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1X) TEMA Il - PALESTRA — “HISTORIA DA TECNICA COLONIAL NO BRASIL” Ruy Gama, FAU/USP — Diretor do IEB/USP Pediu-me 0 Prof. Milton Vargas, um dos lores, que falasse sobre a Hist6ria da Técnica, no Brasil Colonial. Gostaria de come- gar fazendo uma pergunta. Por que histéria da técnica no Brasil Colonial nfo hist6ria da Tecnologia? Eu acho que ¢ uma distinglo con- ceitual que precisa e deve ser feita. ugar, quando abordamos a problematica da da tecnologia, a tendéncia que se configura na li- tetura técnica e nas revistas de engenharia, que aptrpce na linguagem comercial, ta publicida & sempre no sentido de adotar a palavra tec- nologia, como traducSo da palavra inglesa “te- chnology”” © a meu ver essa traducdo tem al- guns vicios e algumas imprecis6es muito sérias. Em primeiro lugar, uma tradugo na base da semelhanca gréfica ou fonética das palavras, sempre nos oferece uma série de riscos. E evi- dente por exemplo, que se alguém quisesse tra- duzir 0 verbo inglés “to realize", por realizar, todo mundo acusaria de errada a traducéo, al- guém que pretendesse traduzir “actualy” por atualmente seria denunciado imediatamente co- mo mau tradutor. A semelhanca gréfica ou fo- nética nfo € a melhor maneira de vot fazer traducio e, freqilentemente talvez seja até a pior. Nés encontramos isso na traducio de vé- “rias Ifnguas para o portugués. A palavra italiana laborat6rio, no tem o mesmo sentido que tem em portugués, em italiano a palavra laboratorio quer dizer laboratério no sentido nosso, mas também € fébrica, também € oficina, tem uma série de outras acepcées. ‘Acontece que de uns anos para c4, particu- larmente depois da segunda guerra mundial, se disseminou 0 uso da palavra tecnologia como traducio do inglés “technology”, ora, a palavra inglesa “technology” € extremamente imprecisa porque é extremamente vasta, Se a gente for ve- fificar as acepgées em que essa palavra € usada, a gente vai chegar A conclusio que cla quer di- zer quase tudo e, dizendo quase tudo, acaba nio dizendo nada ou dizendo muito pouca coisa. Is- 80 tem sido objeto de preocupacées inclusive de historiadores, ensaistas, pensadores americanos, quando tém se voltado para esse assunto. Um deles por exemplo, é 0 professor Melvin Kranz- berg da Universidade da Georgia, decano de histria, da “History of Technology” nos Esta- dos Unidos, que chama a atengéo para essa im- preciso conceitual. Recentemente foi publica- do, hé trés anos atrés, um artigo de Jean Jac- ques Salomon, por uma revista publicada na In- glaterra chamada “History and Technology’ @bordando esse problema, das diferengas por que a técnica e tecnologia. Para o inglés ndo 131 existe esta diferenga porque a palavra “tech- nics”, em inglés € muito pouco usada e tem significados muito restritos. Se refere por ‘exemplo, & habilidade especffica de um deter- minado intérprete, um pianista, um violinista e al muito, muité confinadas € muito estreitas. Todo 0 resto para o inglés € “technology”, mas também néo foi as sim na lingua inglesa. Uma consulta ao dicion4- Bo etimolégico de Oxford, por cxemplo. que € Tazodvel ¢ muito bem organizado da semintica historica da lingua ingles, mostra como essa palavra, mesmo no inglés, teve acep- ges muito variadas. J4 significou principal- mente terminologia de uma determinada técnica, vocabulério técnico e varias outras acepgées. Mas, a partir da 2* Guerra Mundial, houve uma difusio da palavra “technology” como substi- tuto, pura e simplesmente , da palavra técnica e querendo © conjunto de todas as té- nicas, querendo significar as mAquinas, apare- Ihos,’ equipamentos, “gadjets”, enfim, tudo aquilo que a indistria coloca af, est4 nessa faixa de consumo conspfcuo, como & chamada, ¢ de consumo promocional e, inclusive, muito asso- ciada & idéia © ao sistema, mundial de fo de invengées e patentes. E nesse sentido que a gente vé por exemplo, um amincio na televisio mostrando determinado aparelho, dizendo: — es- sa € pura tecnologia japonesa, esta € pura tec- nologia alemé, e até alguns antincios engraca- dos em que aparece um japonés anunciando re- ceptores e dizendo: ~ "essa € a melhor tecnolo- gia, tecnologia Telefunken”. Ento, comecamos nosso trabalho hé 15 anos atris aqui na FAU com essa discussio e, embora no tivéssemos na época muita certeza sobre que denominacio dar & nossa discipina, fol para nés ponto pacifico que ela devia se re- ferir & Hist6ria da Técnica, inclusive porque hé para nés arquitetos, hé uma vinculacéo muito estreita com a hist6ria das técnicas construtivas, das técnicas de uso ¢ de produgdo de materiais de construcdo, enfim, todas aquelas técnicas mais ligadas 3 arquitetura e histéria da arqui- tetura no Brasil. Entio, a partir daf nossa disciplina adotou 0 nome de HISTORIA DA TECNICA NO BRA- SIL; digo mais: nds; mim pessoal- toente, Nio Talo ban nents Go'professgr alo Katinski, que discorda do meu ponto de vista sob alguns aspectos. Para mim, s6 tem sentido falar em tecnologia no Brasil a partir do século XIX. E a partir da instalag&o dos cursos de en- genharia no Brasil que realmente se pode falar em tecnologia, entendida como eu a entendo, como a sistematizacSo cientffica dos conheci- mentos relacionados com a técnica; ou seja: a tecnologia nfo se confunde com a técnica, a tecnologia, seria, nas palavras de um autor francs contemporineo, uma meta-técnica pois tem a técnica como objeto de seu estudo mas, nfio € a propria técnica; quer dizer, 0 homem uel mum labore de peaquiea to jgica, nfo esté produzindo objetos ° mercado, objetos para consumo, ele nio esta Le gado & produg&o, ele esté ligado A pesquisa tec- Rol6gica que’ tem o carter de sistematizagso cientifica e é suficientemente genérico para nfo se vincular a um determinado ou auma determinada marca, est ligado & toda a proble- mitica da produgio, inclusive a dos custos. EntSo, tomo como ponto de partida, 0 con- ceito de tecnologia como o estudo, a disciplina cientffica que estuda as atividades produtivas, estuda a produgéo ou até, de forma mais sintéti- ca, embora correndo o risco de ferir um certo Burlamo epistemolégico clnssifcatéeo, poderin € a ciéncia da produgéo e isso a meu a outras vantagens. ‘Em primeiro lugar é preciso assinalar que a palavra tecnologia, aparece na Ifngua portu a € no Brasil — ¢ isto € muito significativo — num texto de José Bonifacio de Andrade ¢ Sil- va, escrito no comeco do século XIX. José Bo- nifécio de Andrade e Silva foi secretério da Academia de Ciéncias de Lisboa ¢ num relaté- rio que, como secretério encaminha & Academia de Ciéncias, fala de diversas coisas que falta- vam e que nfo eram cultivadas em Portugal e se refere & tecnologia. Posteriormente, num outro trabalho — “Memérias sobre o plantio dos bos- gues em Portugal” — le se refere novamente & tecnologia. Os nossos diciondrios de entio nfo registravam essa palavra e também nfo re- istravam a palavra técnica. O diciondrio do que € do comeco do século XIX nio traz a palavra técnica, nem a palavra tecnologia. Aquilo que hoje chamari&mos de técnica, ainda era no comeco do século XIX, arte — as artes — a arte do carpinteiro, a arte do curtidor de cou- To, a arte do ferreiro, a arte do pedreiro, do vi- dreiro — aquilo que hoje, tranguilamente, cha- marfamos de técnica. Entio, isto nos permite também, em segun- do lugar, datar historicamente a tecnologia. Pa- ra os americanos — ¢ esta acepcdo da “techno- logy” foi difundida praticamente em todo 0 mundo ocidental através do trabalho dos antro- POlogos, que assumiram “technology” como o conjunto de todos os fazeres do homem — tudo aquilo que implica no trabalho do homem e do produto do trabalho humano. Recentemente encontrei num comentério do escritor Femando Braudel, um conhecido es- critor do grupo dos “Annales”, um t6pico que se refere a0 vicio dessa traducko. Como por exemplo, um texto de Mauss, que se refere & técnica, transcreve 0 texto em francés ¢ depois, 132 na hora de ser traduzido na Inglaterra, substitui- ram “técnique” por “technology”, isso nfo dé certo; quer dizer, nfo tem sentido falar de “‘te- chnology” na Idade Média, como escreve por ‘exempo o Lynn White Jr. Eu acho que é uma antecipacsio. Nio existia esta acepcfo na Idade Média. Acho que é, sim, uma adaptaco indevi- ‘da do termo tecnologia. Deixando de lado as corigens mais remots que sfo as origens gregas, pol pear ee eee Cece séeulo A.C. parcioularmente na Jona, jf se pen- tava numa Wonologia como 0 saber ts ter © conhecimento des tonienss detvando ends isto, acho que € perfeitamente possfvel datar a tecnologia modema no século XVIII, que € quando comegam a surgir os primeiros trabalhos em que a palavra tecnologia surge clara, especf- fica e expressamente, como por exemplo, no di- cionfrio do alemfo Alsted, do comego do sé- culo XVIII. E 0 trabalho do filésofo © matems- tico Christian Wolff que, discfpulo dileto de Liebnitz, que define tecnologia como ciéncia das artes ¢ das obras de arte. ‘Ora, isto acontecia no nfvel do pensamento, no nfvel ideolégico, no nivel da discussio aca- démica; mas na pritica, na vida social daqueles patses da naquela época, o que estaria ‘lacontecendo? © que acontecia na época era a decadéncia do sistema de trabalho corporativo artesanal, quer dizer, as s de officio estavam ' perdendo ‘importincia. No século XVII por exemplo, na Inglaterra, as corpora- g6es séo simplesmente do dos Artifices € uma série de outros atos. En alguns pafses isto acontece depois; na Franca, por exemplo, 86 acontece em 1981, depois da Revolucéo, com a lei “‘Le Chapelier” que extingue as corporagées. de oficio e em varios outros paises isto acontece em épocas diferentes. Na Itflia, no século XIX; e 0 exemplo mais berrante € o da Rissia onde as corporagées de officio s6 foram extintas por um decreto do governo revolucionério, em 1917. Logo apés a Revolucéo, um dos seus primeiros atos foi extinguir as corporagées de oficio e os privilegiados a elas inerentes. ‘As corporagées jf vinham sendo atacadas no século XVI por gente do quilate, por exemplo, de Adam Smith, que na Riqueza das Nagdes tem longas consideracSes sobre os pri- vilégios inadmiss{veis das corporagées de off- cio, Voltaire, seguindo as fguas do pensamento inglés, também na época, critica as corporagées de oficio. Ent&o, ao se desmanchar, ao se desmoronar © sistema das corporagées de offcio, todo 0 pro- cedimento destinado a transmissfo de conheci- mento dos oficios também fica extremamente prejudicado, ‘© aprender na oficina, o Eprender no fazer ~ que era o caracteristico do sistema corporativo — em que o aprendiz apren- dia com o mestre © passava depois A categoria de oficial; mas era sempre dentro da oficina que ele vivia ‘0 seu proceso de formagio. Com a extingho das corporagées, este mecanismo de- saparece, comeca a se enfraquecer ¢ acaba de- io. Na Franca a sa(da foi a criagSo de Escolas Profissionais. A Franca foi o pais pioneiro no ensino profissional, destinado a substituir, a su- prir a cxaustio do sistema corporetivo. ‘A preo- dos alemiis, como a de Christian Wolff, acho que também esté na mesma linha € no mesmo contexto histérico, quer dizer, no inicio da implantaco do sistema manufatureiro. Tam- bém na Alemanha, hé enfraquecimento das cor- Porseées. Ento, surge uma nova dsciplinn nova disciplina é a tecnologia, destinada transmitir os conhecimentos técnicos, 2 reuni- os, a -los, sistematiz4-los, dar-Ihes ca- ‘ter cientifico e estruturagfo e a partir daf,tor- nar possfvel a transmiss§o dos conhecimentos técnicos e do saber fazer, nfo mais na oficina, mas na escola. As escolas profissionais come- a ter grande difuséo ¢, em seguida, as pri- Eieiras escelas ssionais de cardter clemen- tar para a formagio de operérios diretamente. Depo, iso € aus ‘as escolas de en- Sod Mat ee a escola de “Arts et Metiers”, a “Ponts et Chaussés” ¢ a“ nitcbant que”, depois da Revolugso Francesa. A fagla- terra tem um procedimento um pouco diferente porque os engenheiros ingleses eram homens formados também na prética. A Inglaterra tinha uma tradiggo do “engenheiro” da corporagéo. Era o construtor de moinhos, por © jue era o eng era 0 feat cate Ge constatr usm Sone, faxer uma barragem para reter 4guas para acionar 0 moinho, fazer comportas; enfim, todas as obras civis inclusive, implicadas no funcionamento ‘Era um homem desvinculado da racterfstica © seu Ambito municipal, digamos as- sim, cada cidade tinha a sua corporagéo de um determinado oficio. Ora, 0 carpinteiro de moi- nhos, que segundo Bernal é o precursor do en- genheiro inglés, era um homem que néo tinha domicflio fixo. Ele vivia trabalhando entre uma cidade e outra. Os arquitetos estavam em uma situac&io mais ou menos semelhante a esta. To- me-se, como exemplo, Villard de Honnecourt, construiu no XIV, vai-se ver que ele nfo so- mente construiu na Franca, construiu na Hun- gria e construiu na Itflia. Eram homens que se deslocavam de um lugar para outro, resolvendo problemas das construcées, das grandes obras, ‘onde elas se encontrassem. Ento agora, por que o sistema corporativo se desmancha, se en e, se desmancha, se desfaz? Na minha opinifio, eu acho que é preci- so para historizar corretamente, verificar quais foram as transformagées, nfo apenas o desen- volvimento das forgas produtivas, que tém sido © lado privilegiado, sempre privilegiado no es- 133 tudo da histéria da técnica, mas também levar em conta a alteracfio nas relagdes de produc&o. Acontece que a partir do século XVIII o capital ‘comega a entrar no processo produtivo. O capitalismo que era até entio predomi- nantemente mercantil, a partir do século XVI a do SSO lutivo. comege specie do procs pati. exemplo, adquirir mercadorias ou objetos feitos nas oficinas dos artes6os ¢ revendé-los, cobran- do um sobre-prego, levando-os para outras ci- dades, vendendo nas feiras, noutros paises; mas © capital néo podia entrar diretamente no pro- cesso produtivo. capitalista néo ser dono de uma oficina; quem tinha privilégio de ser dono da oficina era o mestre e néo podia se associar a0 capitalista; ora, isso era uma restri¢o ac desen- volvimento do préprio capitalismo, o gual ameagou ¢ inibiu o seu desenvolvimento. século XVII que o capital entra decididamente no proceso produtivo e altera, d& uma revira- volta total nesse sistema. © que acontece no Brasil? No Brasil eu acho que, apesar de José Bo- nifécio ter falado de tecnologia j4 no comego do século, € realmente apenas a partir do final do século, que aparece tecnologia, quando se ins- talam as primeiras escolas de engenharia: a es- cola de Minas, de Ouro Preto, a Escola Militar, do Rio de Janeiro, os cursos nas Casas do ‘Trem, enfim, todas essas coisas registradas, ¢ 96 depois da Escola Central, e da Escola Politécni- ca do Rio de Janeiro e da Escola Politécnica de Séo Paulo, é realmente comega a aparecer, co- mega a ser possivel, na minha opiniso, falar em tecnologia. Af h4 uma superposic&o. Os enge- nheiros formados nessas escolas, como acontece ‘até hoje, tm uma formacSo até certo ponto du- pla; porque eles podem exercer a sua atividade profissional como tecndlogos, passar a vida to- da trabalhando em laboratério na pesquisa de cardter tecnolégico, ou podem trabalhar na pro- dugfo, no papel mais de engenheiro. En- to, Te rebiente urna superposeto, desde 0 Gomeso, no Brasil — © pareze que em quase t- dos os do ocidente. E a superposicio da formagao do tecnélogo com a formagio do en- genheiro. Assim, torna-se necesséria a convi- véncia entre as duas Sreas de atividades. Assim, € a partir do final do século XIX — volto desculpem, a repetir — que é possfvel falar em tecnologia no Brasil. Comegam a aparecer obras eseritas que orientam os cirsos, comegam a ser introduzidas obras e: muito ivo, por exemplo, que a Escola Poli- técnica do Rio de Janeiro j& desde a sua funda- 40, por obra de reforma feita pelo Visconde do Rio Branco, que desligou da Escola Central, ¢ também a Escola Politécnica de Séo Paulo, j6 no primeiro ano da sua existéncia, em 1893, ti-

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