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OPINIÃO OPINION 871

Farmacovigilância: um instrumento necessário

Pharmacovigilance: a necessary tool

Helena Lutéscia Coêlho 1

1 Grupo de Prevenção ao Uso Abstract This paper discusses the potential benefits of pharmacovigilance in promoting ratio-
Indevido de Medicamentos
nal drug use and the implementation of drug policies, especially drug regulation, based on the
(GPUIM), Universidade
Federal do Ceará. WHO International Drug Monitoring Program. The initial development of pharmacovigilance
Rua Fausto Cabral 1188, in Brazil is presented and the need for a National Pharmacovigilance System is stressed.
Fortaleza, CE
Key words Pharmacovigilance; Drug Utilization; Drugs
60155410, Brasil.
lutescia@ufc.br
Resumo O presente artigo discute a contribuição potencial da farmacovigilância na promoção
do uso seguro de medicamentos, tendo como referência o Programa Internacional de Monitori-
zação de Medicamentos da OMS (The WHO International Drug Monitoring Program). É enfati-
zado o papel da farmacovigilância como instrumento facilitador de uma política de medica-
mentos, em particular como suporte técnico às ações reguladoras nessa área. São apresentadas
evidências do desenvolvimento, ainda que incipiente, da farmacovigilância no Brasil e da neces-
sidade de potencializá-la, através da criação do Sistema Nacional de Farmacovigilância.
Palavras-chave Farmacovigilância; Uso de Medicamentos; Medicamentos

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Até fins de 1997, o Programa Internacional de gam a definição do mercado farmacêutico aos
Monitorização de Medicamentos da Organiza- interesses da indústria e do comércio de fár-
ção Mundial da Saúde, The WHO International macos. O oposto, no entanto, parece ser verda-
Drug Monitoring Programme, contava com 49 deiro, ou seja, o não possuir um sistema nacio-
países membros (Tabela 1), entre os quais cin- nal de farmacovigilância reflete a pouca serie-
co latino-americanos, a saber: Argentina, Chi- dade com que um país trata a questão do me-
le, Costa Rica, Cuba e Venezuela ( WHO, 1997; dicamento no bojo de suas políticas de saúde e
WHO, s.d.). Participar desse programa signifi- o seu despreparo e inoperância para lidar com
ca, principalmente, contribuir para que rea- essa questão. Isso porque se trata de uma ativi-
ções adversas desconhecidas e de ocorrência dade pouco custosa e de implementação gra-
rara a medicamentos novos ou antigos possam dativa (OMS/OPS/ANMAT, 1997), cujos desdo-
ser identificadas e prevenidas. O acúmulo de bramentos potencializam, sobremaneira, a efi-
notificações espontâneas de suspeitas de rea- cácia de uma política de medicamentos.
ções adversas a medicamentos (RAM) e a sua Em primeiro lugar, é importante ressaltar o
análise sistemática, em nível local, nacional e suporte técnico que um centro ou sistema na-
internacional, geram hipóteses de causalida- cional de farmacovigilância propicia à autori-
de que constituem sinais de alerta, divulgados dade reguladora de medicamentos, facilitando
através de boletim aos centros nacionais e dis- o saneamento do mercado farmacêutico e a
seminados entre profissionais de saúde de to- abordagem de problemas pontuais nessa área.
do o mundo (ten Ham, 1992). Tais informes dão A sua estruturação gera a necessidade de que
origem a estudos experimentais e/ou observa- instituições e serviços, inclusive a indústria
cionais, que contribuem para a avaliação dos farmacêutica, supram o sistema com dados re-
riscos evidenciados pelas notificações espon- lativos à utilização de medicamentos (comer-
tâneas (Inman, 1993; Lawson, 1997). cialização, distribuição, prescrição e uso), e a
O principal objetivo do programa tem sido, pacientes (variáveis sócio-econômicas e de
desde o seu início, estabelecer e manter um mé- morbi-mortalidade), dados estes que consti-
todo efetivo de detectar reações adversas não tuem os denominadores farmacoepidemioló-
reveladas nos ensaios clínicos (WHO, s.d.). gicos. Tais denominadores são necessários pa-
Em que pesem as limitações decorrentes da ra a avaliação dos riscos relativos à exposição a
subnotificação, da qualidade nem sempre sa- medicamentos comercializados, procedimento
tisfatória das informações e do desconheci- que confere à farmacovigilância o caráter pre-
mento do real número de pacientes expostos, a ventivo (Wiholm et al., 1994).
notificação espontânea é considerada o méto- Além disso, a farmacovigilância pode ser
do de melhor relação custo-efetividade, em ter- um importante instrumento para a promoção
mos potenciais, na detecção de RAMs desco- de uma mudança cultural que fomente uma
nhecidas e raras (Wiholm et al., 1994). Alguns percepção mais cuidadosa dos profissionais de
exemplos de problemas clinicamente impor- saúde e da população em geral, com relação ao
tantes, detectados ou confirmados por inter- uso de medicamentos. O seu exercício também
médio desse método observacional, são mos- estimula uma maior preocupação com o ensi-
trados na Tabela 2. no da Farmacologia Clínica e da Farmacoepi-
O sucesso do programa da OMS em detec- demiologia nos cursos de formação na área de
tar RAM precocemente, isto é, quando o núme- saúde, bem como em programas de educação
ro de casos é ainda pequeno, tem sido reco- continuada (ten Ham, 1992; Kimbell, 1993).
nhecido por muitos estudiosos, bem como a Diante de todos os aspectos vantajosos da
sua eficiência em alimentar os centros nacio- farmacovigilância, além da sua praticidade, é
nais com informações relevantes (Fucic & Ed- forçoso reconhecer que o Brasil não tem justi-
wards, 1996). ficativa aceitável para se ausentar dessa ques-
O fato de um país estruturar o seu sistema tão. Se olharmos a listagem das nações que fa-
de farmacovigilância e estar integrado à rede zem parte do Programa de Monitorização de
de centros nacionais vinculados ao Programa Medicamentos da OMS ( Tabela 1), veremos
de Monitorização de Medicamentos da OMS que ali se encontram realidades tão problemá-
não é, certamente, o bastante para definir que ticas como a nossa e algumas até com menor
o mesmo desenvolve uma política de medica- grau de desenvolvimento técnico na área.
mentos adequada, do ponto de vista da saúde Em que pesem as dificuldades e limitações,
pública. Na verdade, fazer parte dessa rede po- as iniciativas na área de farmacovigilância no
de constituir-se um álibi utilizado por gover- Brasil, nos últimos anos, vêm proliferando e
nos no intuito de aparentar seriedade no trato adquirindo consistência (Arrais, 1996; Rosen-
da questão do medicamento, enquanto entre- feld, 1998). Na área oficial, em maio de 1995,

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uma portaria da Secretaria de Vigilância Sani- Tabela 1


tária do Ministério da Saúde (MS/SVS) (Porta-
ria n. 40 de 09/05/95) criou uma comissão cuja Relação de países membros ativos do programa de monitorização
finalidade seria planejar a estruturação de um de medicamentos da OMS.
Sistema Nacional de Farmacoepidemiologia
(Arrais, 1996). Infelizmente, o projeto prepara- África do Sul Espanha Omã
do pela referida comissão não foi colocado em Alemanha Filipinas Polônia
prática antes da substituição do secretário de Argentina Finlândia Portugal
vigilância sanitária que a criou. Na gestão se- Austrália França Reino Unido
guinte, uma outra proposta foi elaborada por Áustria Grécia Romênia
um grupo de técnicos a pedido do novo secre- Bélgica Holanda Rússia
tário (MS/SVS, 1997), mas, até maio de 1998, Bulgária Hungria Suécia
nada havia sido concretizado. Enquanto isso, Canadá Indonésia Suíça
em diferentes locais do País, profissionais de Chile Irlanda Tailândia
saúde vêm se iniciando na prática da monitori- China Islândia Tanzânia
zação de RAM, quase sempre mediante proje- Cingapura Israel Tchecoslováquia
tos de investigação desenvolvidos no contexto Coréia Itália Tunísia
hospitalar, como podemos verificar consultan- Costa Rica Japão Turquia
do os livros de resumos dos últimos congressos Croácia Malásia USA
da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medi- Cuba Marrocos Venezuela
camentos (1996, 1997), da Sociedade Brasileira Dinamarca Noruega
de Farmácia Hospitalar (1996, 1997) e do Pri- Eslováquia Nova Zelândia
meiro Seminário Brasileiro de Farmacoepide-
Membros associados: República da China, Egito, Paquistão, Iugoslávia,
miologia (GPUIM, 1996). O interesse por essa Chipre, Irã, Sri Lanka e Zimbabwe.
área pode ser avaliado, também, pela grande Fonte: WHO, s.d. The Uppsala Monitoring Centre.

afluência aos cursos de farmacovigilância rea-


lizados durante os referidos congressos, bem
como pela participação de técnicos brasileiros
em treinamentos promovidos pela OMS no ex- Tabela 2
terior.
Uma iniciativa de caráter mais amplo está Exemplos de reações adversas importantes, identificadas ou confirmadas

em curso no Estado do Ceará, onde vem sendo com a ajuda de notificações espontâneas.

implantado um sistema aberto de monitoriza-


ção de RAM (Sistema de Farmacovigilância do Reação adversa Droga
Ceará – Sinface), por meio de um convênio ce-
Anemia aplástica Fenilbutazona
lebrado entre a Universidade Federal do Ceará
Tromboembolismo Contraceptivos orais
(representada pelo Grupo de Prevenção ao Uso
Hemorragia gástrica Antiinflamatórios não esteróides
Indevido de Medicamentos – GPUIM) e a Se-
Colite pseudomembranosa Lincomicina, clindamicina etc
cretaria de Estado da Saúde. A estratégia da im-
Síndrome oculomucocutânea Practolol
plantação envolve a divulgação do Sinface en-
Síndrome de Guillain-Barré Gangliosídeos
tre os profissionais de saúde, a ampla distribui-
Toxicidade hepática Isoniazida
ção da ficha de notificação e a implantação
Desordens extrapiramidais Cinarizina, flunarizina
progressiva da farmacovigilância em unidades
Hipersensibilidade aguda Acetaminofen
hospitalares do SUS. O trabalho nos hospitais é
Fibrose Ergotamina
efetuado através das farmácias hospitalares,
com a participação de estudantes do curso de Fonte: Wiholm et al. (1994); Venning (1983); Capellà & Laporte (1993).
Farmácia da Universidade Federal do Ceará.
Pretende-se organizar, em cada hospital, uma
comissão de farmacovigilância, envolvendo,
além de farmacêuticos, médicos e profissionais são de caráter confidencial e o notificador re-
de enfermagem. As notificações recebidas di- cebe uma carta de agradecimentos, que pode
retamente ou recolhidas mediante busca ativa ser acompanhada de informações referentes
são avaliadas e codificadas de acordo com a me- ao assunto, conforme a necessidade ou solici-
todologia recomendada pela OMS (OMS/OPS/ tação. Após a codificação, as notificações são
ANMAT, 1997). Tal análise é feita pelo corpo acumuladas em banco de dados para sua aná-
técnico do Ceface (Centro de Farmacovigilân- lise sistemática.
cia do Ceará), que é a subunidade do GPUIM De dezembro de 1996 a abril de 1998, o Ce-
dedicada à farmacovigilância. As notificações face registrou 95 notificações de RAM e seis

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queixas técnicas relativas a medicamentos. A dicamentos é capaz de tomar medidas regula-


freqüência de notificações vem aumentando à doras relativas a fármacos comercializados (ten
medida que mais profissionais tomam conhe- Ham, 1992). É evidente, também, que um mer-
cimento da existência do sistema. O fato de não cado farmacêutico saturado de produtos ques-
se aceitarem centros isolados como integrantes tionáveis e de qualidade duvidosa, como o bra-
da rede da OMS impossibilita a acumulação sileiro, requer muito mais um saneamento do
dos casos registrados pelo Ceface na base de que um acompanhamento (Arrais, 1997). Por
dados do programa internacional, ficando a de- outro lado, problemas relativos a deficiências
pender da criação de um centro nacional ou do na qualidade da atenção médica, farmacêutica
credenciamento do Ceface pelo Ministério da e de enfermagem também contribuem sobre-
Saúde. Isso não invalida o trabalho realizado, maneira para maus resultados no uso de medi-
tendo em vista o aprendizado e acúmulo de in- camentos (Bates et al., 1995). Essas constata-
formações que representa, além da possibilida- ções podem nos conduzir a pensar que outras
de de detecção de problemas raros ou caracte- prioridades antecedem a estruturação do siste-
rísticos da nossa realidade. ma de farmacovigilância do Brasil. Tal impasse
É claro que a efetividade de um sistema de poderá ser resolvido, na prática, pela utilização
farmacovigilância depende do grau em que a da farmacovigilância como um canal para o en-
autoridade responsável pela vigilância de me- frentamento das dificuldades aqui apontadas.

Referências

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