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on in Ferr moe Ts Felcia a Madetra Paul ie Loura ld p id DA POLARIZACAO DAS QUALIFICACOES AO MODELO DA COMPETENCIA Helena Hirata* O objeto desse texto é de apresentar as tendéncias recentes do debate em sociologia e em economia do trabalho sobre a evolugao das qualificagdes e da divisio social do trabalho conseqiiente as mudangas tecnol6gicas ¢ organizacionais na empresa, mudangas que configuram hoje a emergéncia de um novo paradigma produtivo, considerado alternativo ao fordismo. Apresentamos inicialmente as caracteristicas de qualificagao e, mais geralmente, do trabalho, requeridas pelo novo paradigma de produgio emergente, analisando simultaneamente a evolugao do debate académico que acompanha essas mudangas no terreno da empresa. Concentraremos nossa atengio sobretudo no momento da passagem das teses sobre a polarizagio das qualificagdes para o modelo da competéncia, indicando a importancia que vem adquirindo a distingdo entre qualificagao formal e qualificagao “tacita” no contexto desse debate. Em segundo lugar serd feita uma critica aos novos paradigmas produ- tivos e aos novos paradigmas de qualificagao a partir da introdugo, na anélise, da divisio internacional do trabalho e da divisao sexual do traba- Iho. A tese da requalificagdo dos operadores como conseqiiéncia da intro- dugiio de novas tecnologias de base microeletrOnica serd fortemente questionada a partir de um enfoque levando em conta as diferencas de género e 0 lugar ocupado na divisdo internacional do trabalho. Os novos paradigmas de produgo tem como referencial explicito ou implicito 0 trabalhador homem como encarnando o universal. A especializacdo flexi vel nao parece um conceito pertinente para a mao-de-obra feminina, nem no Brasil e nem nos paises de capitalismo mais avangado. Por tltimo, abordaremos a questio da subjetividade e dos componentes intersubjetivos da competéncia, na medida em que a emergncia dos novos * Diretora do “Groupe d'études sur la division sociale et sexuelle du travail". (GEDISST) do “Institut de Recherche sur les Sociéiés Contemporaine Paris, Franga. 128 paradigmas de produgao, de trabalho e de qualificagao torna incontornével areflexdo sobre o lugar do sujeito, da subjetividade e da intersubjetividade no desenvolvimento e no sucesso da implantago dos novos modelos produtivos. 5 1. OS NOVOS PARADIGMAS DE PRODUCAO E A EVOLUGAO DA DIVISAO DO TRABALHO E DA QUALIFICACAO O desenvolvimento da produco no quadro do regime de acumulagao fordista baseou-se na fabricagdio em massa de bens padronizados através do uso de méquinas especializadas nfo flexiveis ¢ com recurso a uma massa de trabalhadores semiqualificados. Desses trabalhadores se exigia (€ se exige, pois 0 fordismo nao se conjuga inteiramente no passado...) um cumprimento rigoroso das normas operat6rias, segundo um one best way, a prescrigdo das tarefas e a disci- plina no seu cumprimento, a nfo-comunicagao (isolamento, proibigao de didlogos durante o trabalho em linha ete.). ‘As novas modalidades de organizagao ¢ desenvolvimento industrial, alternativas ao paradigma fordista, foram conceptualizadas no infeio dos anos oitenta como o modelo da “especializagao flexivel” por economistas como M. Piore e Ch. Sabel (1984) nos Estados Unidos e como um “novo conceito de produgdo” por socidlogos como H. Kern ¢ M. Schumann (1984) na Alemanha. © modelo da especializagdo flexivel representaria 0 incremento das inovagdes organizacionais e tecnol6gicas, a descentralizagio e a abertura ao mercado internacional (M. Piore e Ch, Sabel, 1984). Ele teria como figura emblemética, no plano da organizagdo da produgio, a fébrica flexivel; no plano da hierarquia das qualificag6es, 0 operério prudhoniano; e,no plano da mobilidade dos trabalhadores, o trabalhador temporario, isto 6, a possibilidade de variar o emprego 0 tempo de trabalho em fungio da conjuntura (R. Boyer, 1986:237). Essa flexibilidade, que deveria permitir a superagdo da crise da produ- g40 de massa fordista, teria como corolério a volta a um trabalho de tipo artesanal, qualificado ¢ uma relagdo de cooperagio entre management © operérios multifuncionais. Este “novo conceito de produgio”, segundo H. Kern e M. Schumann, representaria uma ruptura com o taylorismo e 0 fordismo, com uma nova 16gica de utilizagao da forga de trabalho, A divisao do trabalho seria menos pronunciada do que no taylorismo, uma maior integragdo de fungdes se tornando perceptivel. A automatizagao da produgdo € considerada como representando tendencialmente um impulso para a formagdo € para a 129 reprofissionalizagZo da mo-de-obra direta, nos trés ramos industriais estudados por esses autores (quimica, méquinas-ferramentas, automobilis- tica), mesmo naqueles setores onde a m&o-de-obra nao qualificada repre- senta ainda a maioria dos efetivos (54%), como na industria automobilistica alema (cf. M. Schumann, 1989:8). Aemergéncia de um novo paradigma de produgZo industrial alterna- tivo A produgio de massa fordista € bem representada, segundo autores como M. Piore e Ch. Sabel (1984), R. Boyer (1991) ou B. Coriat (1991) pelo modelo empresarial japonés, modelo que é, 20 mesmo tempo, um dos inspiradores da construgio tedrica de um tal paradigma por economistas e socidlogos. As caracteristicas da organizagao do trabalho da empresa japonesa em ruptura com o taylorismo e o fordismo sao essencialmente 0 trabalho cooperativo em equipe, a falta de demarcaco das tarefas a partir dos postos de trabalho ¢ tarefas prescritas a individuos, o que implica num funciona- mento fundado sobre a polivaléncia e a rotagao de tarefas (de fabric de manutengio, de controle de qualidade e de gesto da produgao). O trabalhador japonés, polivalente e multifuncional, néo tem uma visio parcial e fragmentada, mas uma visio de conjunto do processo de trabalho em que se insere (J. Magaud e K. Sugita, 1992). Tal visdo de conjunto é necesséria para julgar, discernir, intervir, resolver problemas, propor solu- ges a problemas concretos que surgem cotidianamente no interior do processo de trabalho. As qualificagdes exigidas no interior desse “novo modelo produtivo”, representado pelo modelo empresarial japonés, contrastam fortemente com aquelas relacionadas com a iégica taylorista de remuneracao, de definigao de postos de trabalho e de competéncias: trata-se da capacidade de pensar, de decidir, de ter iniciativa e responsabilidade, de fabricar ¢ consertar, de administrar a produgdo e a qualidade a partir da linha, isto é, ser simultaneamente operario de produgao e de manutengao, inspetor de qualidade e engenheiro. Se tal caracterizagao se aplica menos as trabalha- doras do sexo feminino e aos operdrios de empreiteiras subcontratados pela empresa, trata-se em todo caso de uma caracterizagio valida em geral para © conjunto dos trabalhadores do sexo masculino das grandes empresas, com um emprego regular. Também pode-se afirmar que as pequenas ¢ médias empresas (€ no que se refere aos trabalhadores tempordrios e aos do sexo feminino) acompanham tendencialmente o movimento geral das grandes, que influenciam fortemente as modalidades de gestdo das demais, impondo um padrao de um maximo de polivaléncia e multifuncionalidade, de controle de qualidade e de manutenco possivel para cada categoria de trabalhadores e tipos de empresa. 130 2, DA POLARIZACAO DAS QUALIFICACOES AO MODELO DA COMPETENCIA: A EVOLUCAO DO DEBATE NO. CONTEXTO DOS NOVOS PARADIGMAS PRODUTIVOS debate aberto por H. Braverman (1974) no inicio dos anos setenta em torno da desqualificagao inelutavel, gradual, progressiva como conse- giiéncia do aprofundamento da divisao do trabalho no capitalismo teve como uma de suas variantes consagradas durante um periodo relativamente longo a tese da polarizago das qualificagies. Segundo essa tese, a moder- nizago tecnoldgica estaria criando, de um lado, uma massa de trabalha- dores desqualificados e, de outro, um punhado de trabalhador: superqualificados (Freyssenet, 1977; H. Kern e M. Schumann, 1980; A. Sorge et alii, 1983 etc.). As novas tecnologias reforgariam a divisio do trabalho e a desqualificagao da mao-de-obra’ Uma ruptura se d4 com esse paradigma dominante da qualificago em meados de oitenta. Vinte anos depois dos primeiros estudos sobre as conseqiiéncias da introdugao das novas teenologias sobre a divisio do trabalho e a qualificagdo, autores como M. Freyssenet, B. Coriat, H. Kern eM, Schumann, constatam uma requalificago dos operadores, ou uma reprofissionalizagao, com 0 aprofundamento da automatizagio de base microeletrénica nas indistrias, Essa requalificago dos operadores est4 estreitamente relacionada, nessas anélises, & adogo de novos modelos de organizagao industrial que levariam as empresas a adotarem organizagdes do trabalho de tipo “quali- ficadoras” (cf. Ph. Zarifian, 1990; M. Freyssenet, 1992), tanto pelas oportunidades de formacio profissional abertas pela introdugao de inova- g6es na empresa quanto pelas proprias modalidades de execucao das atividades produtivas. O novo “conceito de produgao” exigiria, assim, uma massa de conhe- cimentos e atitudes bastante diferentes das qualificagdes formais requeri- das pelas organizagdes do trabalho de tipo taylorista, ¢ mais préximas daquelas requeridas pela empresa J (empresa japonesa, em oposigdo empresa A ~ americana; cf. M. Aoki, 1991). A atualidade do debate sobre a empresa J € provavelmente um dos fatores explicativos’ da importancia 1, Uma excelente revisto bibliogrifica internacional sobre a evolugio do debate sobre 2 ‘qualificagso ea divisio do trabalho pode ser encontrada em V. Paiva, 1989. Para uma revisio mais sucinta do debate, cf. C. du Tertre ¢ G, Santilli, 1992:136-153. 2. Os outeos dois fatores explicativos da importincia crescente da distingSo entre qualificagto técita ou social e qualificagao formal e organizada so, a nosso ver, 0 desenvolvimento nos anos recentes da sociologia dos modos de vida e da sociologia das relagdes de género. Amibas, mas particularmente a stima (cf. D. Kergoat, 1982), estabelecem uma forte relagdo entre a qualificagSo, eum lado, ea Socializagio familiar e as dimensbes extratrabalha (profissional), de out. 131 adquirida, na evolugao recente do debate sobre a qualificago, pela questo do seu nivel de formalizacao: componentes implicitos e nao “organizados” da qualificagdo versus componentes “organizados” (a expressio € de M. Aoki, 1991:12 e seg.) e explicitos: educagio escolar, formagao técnica, educacio profissional. Um enfoque por postos de trabalho e por alocagio do indivfduo ao posto daria énfase aos iiltimos; um enfoque por equipes de trabalho e responsabilizagao coletiva na execugio do trabalho tenderia a enfatizar os primeiros. Ademais, a “‘qualificagao técita” (B, Jones e Wood, 1984), ou social ou informal é amplamente solicitada para a implantagao de novas tecnologias. Enfim, a tese da requalificagio dos operadores com a adogdo de novas condigées de produgio vai conduzir — dentro da sociologia das qualifica- gSes — a uma superagao do paradigma da polarizagdo das qualificagdes, dominante desde o fim dos anos setenta ¢ & emergéncia do modelo da competéncia. A competéncia € uma nogio oriunda do discurso empresarial nos liltimos dez. anos ¢ retomada em seguida por economistas e socidlogos na Franga (cf. M. Dadoy, 1990). Nogdo ainda bastante imprecisa, se compa- rada ao conceito de qualificagao, um dos conceitos-chaves da sociologia do trabalho francesa desde os seus primérdios (cf. P. Naville, 1956); nogao marcada politica e ideologicamente por sua origem, e da qual esté total- mente ausente a idéia de relago social, que define o conceito de qualifi- cago para alguns autores (cf. D. Kergoat, 1982, 1984; M. Freyssenet, 1977, 1992). A riqueza da nogo de qualificagdo foi ressaltada por esses iiltimos estudiosos, que salientaram a sua multidimensionalidade: qualificagao do emprego, definida pela empresa a partir das exigéncias do posto de trabalho, e que serve de base ao sistema de classificagdes na Franca’; qualificagao do trabalhador, mais ampla do que a primeira, por incorporar as qualificagées sociais ou tdcitas que a nogao de qualificagaio do emprego no considera — essa dimenso da noco de qualificagao sendo, por sua vez, susceptivel de decomposicao em “qualificagao real” (conjunto de competéncias ¢ habilidadcs, técnicas, profissionais, escolarcs, sociais) ¢ “qualificagdo operatdria” (“potencialidades empregadas por am opetador para enfrentar uma situagdo de trabalho”, cf. M. Sailly in A. Lerolle, 1992:7); finalmente, a dimensio da qualificagdo como uma relagao social, como o resultado, sempre cambiante, de uma correlagdo de forgas capital- 3. As classificagbes profissionais sfo a expressto formalizada e objetivada das qualificasées individuais, consagrada ao nfvel dos acordos coletives na Franga desde 1936, Como diz M. Dadoy, “a ‘qualificagdo é de natureca qualitativa, at classificacbes profissionaissdo sua exprestdo quanttativa” (M. Dadoy, La qualification en question, cit. in Définir la qualification?, slautor, Cadres CFDT, 1984348). im alho, nogdo que resulta da disting’o mesma entre qualificagao dos eaacee qualificagao dos trabalhadores (cf. D. Kergoat, 198437). Diferentemente desta acepgao multidimensional da qualificago, 0 modelo da competéncia corresponderia a um novo modelo, pés-taylorista, de qualificagdo no estégio de adogdo de um novo modelo, pés-taylorista, de organizagao do trabalho e de gestdo da produgdo. Sua génese estaria associada A crise da nog&io de postos de trabalho (Ph. Zarifian, 1992), e a de um certo modelo de classificagio e de relagdes profissionais. ‘A adogio do modelo da competéncia implica um compromisso pés- taylorista, sendo dificil de por em prética se nfo se verificam solugdes (negociadas) a toda uma série de problemas, sobretudo o de um desenvol- vimento ndo remunerado das competéncias dos trabalhadores na base da hierarquia (Ph. Zarifian, 1992), trabalhadores estes levados no novo mo- delo de organizacio do trabalho a uma participagao na gestio da produgao, a um trabalho em equipe e 2 um envolvimento maior nas estratégias de competitividade da empresa, sem ter necessariamente uma compensagZo em termos salariais. Nesta nova empresa, “a qualificagdo, correspondéncia entre um sa- ber, uma responsabilidade, uma carreira, um saldrio, tende ase desfazer” (P. Rolle, 1985:35), na medida em que a divisdo social do trabalho se modifica. As exigéncias do posto de trabalho se sucede “um estado instdvel da distribuigao de tarefas” onde a colaborago, o engajamento, a mobili- dade, passam a ser as qualidades dominantes. A imprecisdo — 0 avesso mesmo da codificagdo que representa a classificagao (dos cargos) — marca, assim, a nogao de competéncia. Como diz A. Lerolle analisando essa nogdo: “A referéncia as aptidoes pessoais necessérias aos empregos nao é certamente uma novidade. Parece entre- tanto que a parte destas capacidades gerais e mal definidas tende a crescer com a acelerago das variagdes da organizagao e das atribuigdes (de cargos). Quanto menos os empregos so estéveis e mais caracterizados por objetivos gerais, mais as qualificagbes so substitufdas por “saber-ser” (A. Lerolle, 1992:5). ‘A competéncia remete, assim, a um sujeito € a uma subjetividade, ¢ nos leva a nos interrogar sobre as condigdes subjetivas (e intersubjetivas) da produgdo (Ph. Zarifian, 1992:49): passamos aqui a analisar a relagio de género, quase sempre ignorada pelos te6ricos ¢ estudiosos dos novos paradigmas de organizagao e de produgio. 133 3. QUALIFICACAO, ESPECIALIZACAO FLEXIVEL E DIVISAO SEXUAL E INTERNACIONAL DO TRABALHO As teses sobre os novos paradigmas de organizagio industrial e sobre a requalificagdo dos operadores como conseqiiéncia da introducao de novas tecnologias sdo fortemente questionadas se introduzirmos, na ané- lise, a diviséo sexual e a divisao internacional do trabalho. A coexisténcia de novas figuras produtivas e do fordismo, que é uma realidade mesmo em paises de capitalismo avangado como a Franga (cf. S. Volkoff, 1987), € ainda mais verdadeira em pafses ditos do “Terceiro Mundo”, onde as formas tayloristas de produgio e de organizagdo do trabalho sio ainda amplamente dominantes (cf., por exemplo, R. Quadros Carvalho e H. Schmitz, 1989). Nao se pode afirmar que no Brasil j& se deu a dupla ruptura, com a ideologia do taylorismo na empresa com 0 modelo taylorista ao nfvel da teoria, constatada por autores como M. Schumann na Alemanha (1989), embora alguns autores brasileiros enfatizem, a partir de pesquisas efetua- das em grandes indkistrias dindmicas e competitivas, empregando mao-de- obra masculina, a emergéncia, também no Brasil, de um novo padrdo de organizagao do trabalho e da produgao alternativo ao fordismo (cf. por ex. A. Fleury, 1988). A introdug&o da diviso sexual do trabalho tem, como primeira con- seqiiéncia no plano analitico, fazer explodir a unidade categorial “empre- sa”, pois as relagdes de género e a divisio entre os sexos atravessa 0 conjunto da sociedade, e nao apenas 0 espago da empresa. A segunda conseqiiéncia importante é que a introdugo da dimensto de género ques- tiona fortemente as ciéncias sociais e as ciéncias econémicas, que partem, nas suas elaboracdes te6ricas, da figura do trabalhador homem como encarnando o universal. Assim, os novos paradigmas da “especializagio flexivel” ou do “novo conceito de produgdo” sao fundados sobre essa figura arquetfpica do operério prudhoniano. Caso mudarmos o anguio de ataque € passarmos a considerar como objeto de estudo o trabalho das mulheres e os pafses ditos “em vias do desenvolvimento”, verificaremos que as priticas e os métodos tayloristas e a produgo em grande série de bens estandardizados, muitas vezes sem grande preocupagaio com a quali- dade, vai coexistir com algumas “ilhas” de modernidade ¢ de sofisticago tecnolégica e organizacional. O cenério de uma tal coexisténcia foi, alidés, reconhecido mais recen- temente como um dos cenérios possiveis por M. Piore e Ch. Sabel, a partir, justamente, da consideragio da divisdo internacional do trabalho. No 134 prefécio a edigdo francesa (1989) de seu livro, eles reconhecem: “Aqueles que nos criticam podem citar exemplos de vestigios importantes de velhas estruturas e prdticas da produgdo em série, e mesmo casos em que economias nacionais inteiras - em particular a Coréia do Sul - se langaram, néo apenas na via do desenvolvimento, mas conseguiram ainda se manter e progredir ao longo dos anos 80 gragas a uma estratégia de produgdo em série. E as experiéncias mais bem sucedidas do mundo industrial neste dominio parecem ter permitido a elaboragao de uma estratégia mista no interior mesmo da produgdo, estratégia aliando equi- pamentos rigidos, especializados e ithas de flexibilidade, Pode-se deduzir destas constatagées que o sistema que emerge atualmente como suporte da recuperagdo econdmica é um sistema misto, aliando as duas tecnolo- gias de uma maneira que o texto (The Second Industrial Divide) ndo soube antecipar” (M. Piore e Ch. abel, 1989:13). Esse reconhecimento se limita, na verdade, A evolugo empirica, pois a ressalva que fazem a seguir reduz bastante seu alcance: “Num sentido, pensamos que essa maneira de ver representa uma leitura correta de certos fatos recentes. Entretanto, a um outro ntvel, ela constitui um erro fundamental de interpretacao da problemdtica de base” (id. ib, 1989:14). Entretanto, mesmo se a retificagdio é parcial e no questiona os postu- lados te6ricos, o reconhecimento da heterogeneidade tecnol6gica, a partir da consideragao da divisao internacional do trabalho, & digno de nota; nao se pode dizer que nuances do mesmo tipo sejam introduzidas em textos mais recentes dos dois autores sobre a questo da divisio sexual do trabalho, A nogo,mesma de flexibilidade ou de especializagao flexivel foi construfda ignorando todo enfoque em termos de género; também a tese de uma requalificagio dos operadores como consegtiéncia da introdugdo de novas tecnologias de base microeletrénica na empresa foi fundada até aqui quase exclusivamente sobre estudos de ramos masculinos (por ex., na Franca, 0 caso da indistria automobilistica, estudado por M. Freyssenet; © caso da petroquimica, estudado por G. de Terssac e B. Coriat ~ ef. para 0s dois estudos o n. especial de Sociologie du Travail, 3/84; na Alemanha, 0 caso de diferentes ramos utilizando mao-de-obra masculina — quimica, automobilfstica, méquinas-ferramenta — estudados por H. Kern e M. Schu- mann, 1989). Da mesma maneira, os estudos sobre a formagdo para novas tecnologias nao se referem praticamente nunca ao sexo dos trabalhadores objetos de formagao, e, em todo caso, as conclusdes so enunciadas em relagdo ao conjunto de efetivos, sem distingao de sexo (cf. por exemplo A. Rosanvallon e J.F. Troussier, 1983 ou Y. Lucas, 1990). 135 Entretanto, alguns estudos sobre a divisio sexual dos processos de formagio para inovagées tecnolégicas mostram até que ponto esta genera- lizago, a partir de uma populaco masculina, pode induzir em erro. As ages de requalificagao nao tém a mesma extensdo, nem o mesmo alcance, nem a mesma significagio, para as mulheres e para os homens, € a formagao pode ser o lugar mesmo da construgio da incompeténcia técnica das mulheres (cf. G. Doniol-Shaw et alii, 1989; G. Doniol-Shaw e A. Lerolle, 1990). Um primeiro exame dos textos sobre a empresa, a divistio sexual do trabalho e a inovago mostrou que tais inovagdes podem reforgar a margi- nalidade das mulheres, e que podem constituir um perigo, sobretudo para as mulheres no qualificadas (cf. um “state of the arts” sobre a questo in H. Hirata, 1991). Essas diferengas no plano da qualificaco, da formagio e da flexibili- dade so exemplarmente resumidas por D. Kergoat quando indica dois cenérios sexuados da flexibilidade: “Primeiro caso: dois setores coexistem. Um, flexibilizado (masculino), outro taylorizado (feminino): € por exem- plo 0 caso das empresas onde a rentabilidade exige automatizar apenas a produgo, a manutengio (do estoque) e a embalagem, setores femininos, permanecendo taylorizadas. Segundo caso: todos os setores, masculinos € femininos, séio afetados pela modernizagZo. Mas de maneira bem diferente quanto a0 espirito € quanto aos resultados (reprofissionalizagZo para os homens e utilizagdo de formas atfpicas de emprego para as mulheres), A politica seguida consiste, ao contrério, em justapor taylorismo e flexi lidade; a “nova” qualificagdo feminina é assim concebida como a adiggo das qualidades novas (capacidade de autocontrole, integrago das exigén- cias de qualidade, de gestio dos estoques, regulagens e primeiras manu- tenges corretivas) as qualidades antigas destreza e rapidez” (D. Kergoat, 1992:80, 81). Todas essas consideragées nos conduzem a pensar que o panorama € extremamente complexo e heterogéneo quando se leva em consideragao as diferengas relacionadas com o género, a qualificagao e a divisio inter- nacional do trabalho: as teses de alcance universal, tais como as dos novos paradigmas ou dos novos conceitos de produgio, sdo forgosamente ques- tionadas & luz de pesquisas empfricas introduzindo tais diferenciagdes. 136 4. OS COMPONENTES INTERSUBJETIVOS DA COMPETENCIA NOS NOVOS PARADIGMAS DE ORGANIZACAO INDUSTRIAL O conjunto de questdes aqui levantado sobre 0s novos requisitos de qualificagio associados & emergéncia ¢ ao desenvolvimento de novos paradigmas de organizagao e de desenvolvimento industrial aponta para um problema incontorndvel, mas raramente levado em conta pelos econo- mistas € soci6logos do trabalho que estudam a questo dos novos modelos produtivos: o do sujeito, da subjetividade e das relacdes intersubjetivas, que condicionam o sucesso da implantagao dos novos paradigmas organi- zacionais, fundados na comunicagao. Claus Offe a questo: “O trabalho é uma categoria fundamental da sociologia?” respondia pela negativa, numa convergéncia explicita com J. Habermas, assinalando a passagem de um paradigma do trabalho ¢ da produgdo para um paradigma da comunicagao (C. Offe, 1989). O nfio-reconhecimento, por C. Offe, da centralidade do trabalho na sociedade contempordnea se deve, a nosso ver, a diferentes razées: uma definigdo extremamente restritiva do trabalho que exclui todo trabalho que no seja diretamente produtivo e industrial (cf. C, Offe, 1989:8-9), elimi- nando, assim, desde o trabalho no setor de servigos até 0 trabalho doméstico um enfoque pela divisio sexual do trabalho nuangaria provavelmente sua andlise; e uma visto europocentrista, que nfo leva em conta a divistio internacional do trabalho, que concentra cada vez mais nos pafses ditos “subdesenvolvidos” ou “semi-industrializados” as atividades labour-in- tensive. Nés tenderiamos a concordar com Ph. Zarifian, quando ele conclui sua anélise sobre o trabalho nas indiistrias automatizadas: “Habermas propoe substituir 0 paradigma do trabalho, pelo da linguagem. Nés pensamos que é necessdrio procurar, ndo uma substituigdo, mas uma nova sintese entre trabalho e comunicagao. Um paradigma do tipo: o trabalho comunicacio- nal” (Ph. Zarifian, 1990b:21) Neste tipo de trabalho, o lugar do sujeito e das relagGes intersubjetivas seria absolutamente central, na medida em que a mobilizagao psiquica do individuo, sujeito do processo de trabalho, constituiria a pré-condigo mesma de toda atividade produtiva. 137

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