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O ULTIMO CARRO JoBo das Neves PERSONAGENS: | ze Zefa ( Guarda Mulher de Joao Jorge Joao Fulano Menino Outro Menino Sujeito 1 Sujeito 2 'Deolindo Pedro Neco Hilério Rapaz { Beto \Mariinha | Prostituta | Antonio cattiz, Zico Ruivo [Passageiro | Velha / Judith \ Vendedor Camponés 1 'Camponés 2 Beato | Bilheteiro | Homem (pai) Mulher (mae) Silvia Guarda 2 Passageiro 1 Passageiro 2 Passageiro 3 Moga Mulher 1 Mulher 2 Mulher 3 Teatro da Juventude - 13 (Estagao de trem subsrbano, Um homen esta sentado muutn. bance, cochilando. Noite fechada, ‘Mais ou menos wma hora da madrugada, Todo 0 ‘movimento cessou. Chega um.casal de mendigos, discutindo, Ele est4 completamente bébado; ela, ‘mais ou menos, Zé traz na mao direita um bolo de nnotas e levanta-as bent alto, procurando impedir que ela as alcance. Zefa, que é baixinha, dé uns pulinhos, tentando inutilmente aleangar as notas.) ze Num faz escandalo, mulher. © dinheiro € meu, a bartiga é minha, a cabega é minha. Eu bebo, pronto. Ninguém tem nada com isso. ZEA ‘Deixa de ser moleque. Me dé 0 dinheiro. we 6 dinheiro é meu, Bu ganhei ele com o meu suor © suor do meu rosto, £ meu, sou um homem livre, Gasto o meu dinheiro do jeito que eu quero. EFA : Pode gastar o teu, se quiser, Mas devolve 0 meu dinheiro das minhas esmolas. E meu. zt Fica quieta af, mulher. Fica quicta, Aqui num tem dinheiro teu. © dinheiro € do chefe da. casa, Quem € que veste calgas aqui? fi voce? Heim? Entao recotha-se. ZEFA (Sempre dando pulinhos para alcangar 0 dinheiro) ‘Tu nao vai beber mais, Zé. A gente precisa de economizar. ze conomizar uma droga. (Mostrantlo 0 mago de notas a ela) Ta vendo? T& (Ri.) E meu. Acabou- se. (Cantando) Tado acabado entre nés, jé nao ha mais nada. (Canta horrivelmente desafinado e rodopia pela plataformd. Vai deixando que as notas eaiam no chito. Zefa corre a recolhé-las.) TEA Giha o dinheiro, diabo. Tu nem sabe mais o que té fazendo. (Zé finalmente percebe que estd deixando cair 0 dinheiro e, a0 tentar apanhar uma das notas 10 a, desequilibra-se ¢ cai redondo no cho, ao lado do banco. Zefa acode, prestativa.) att TERR Zé, meu filho, 0 que foi? Machucou, benzinho, ‘machucou? Eu num disse? (Olka para 0 homent que estd dormindo no banco,) Mogo, acode aqui. (Chora,) Pra que tu foi beber tanto, Zé? ze Que diabo de chao mais duro, gente. 14 00kimo carro EFA ‘Té melhor, benzinho, ti melhor? ze (Procurando sentar-se) Melhor 0 qué? Cadé meu dinheiro, mulher traidera. Me dé 0 meu dinheiro. (Grita.) Eu quero o mex dinheiro, EFA ‘Jem dinheiro, nao. (Para o homem que dorme) © senhor ta vendo, mogo, té vendo? Isso é um ingrato, Um desalmado. Eu cuido dele, moso. Cuido. Trago ele arrumadinho. Limpinho. (Mostra 0 mendigo odo esfarrapado ao rapaz.) ‘Trato dele que nem crianga. Até banho dou nele. Costuro a roupinha dele, Olha s6, mogo, olha s6. E ele me trata desse jeito, ze ‘Mogo, me faz um favor. Vai ali, chama aquele guarda e diz a ele que essa mulher me roubou. ‘ZEA £..a paga do meu sacrificio ¢ essa, Da minha fidelidade. Eu sou fiel, mogo. Gragas a Deus sou ‘uma mulher que se preza. Nunca enganei ele com homem nenhum. Sou fiel. S6 cuido dele. Sou incapaz de olbar pra outro homem, Nao sou dessas. ze (Sacudindo 0 rapaz que continua a dormir) O ‘mogo, chama o guarda a, seu. Diabo de terra, A gente € assaltado € ninguém liga. ZEFA Beixa 0 mogo em paz. (Suspirando) Esse homem é a minha desgraca. Mas que que eu vou fazer? ‘Quando a gente gosta.. 2 Gosta € do meu dinheito. era Dinheiro... olha s6! Um traste velho desses que num tem onde cair morto, de boca cheia com 0 dinheiro dele. Ah, se eu num fosse uma mulher séria, 26 (Comega a gritar.) Seu guarda! Seu guardal TEA (Assustada) Nao geita, meu filho. Voce quer ir dormir nas grades, heim? Separado de mim? Ab, meu Deus! S6 me dé desgosto, ze Otha, mulher, vamos parar de conversa. Me dé 0 ‘meu dinheiro, . ZEA Ta vendo, mogo, té vendo? A gente gostar de uma ccriatura € uma infelicidade. Eu tava tio bem de vida! 2 (Rindo, debochado) Bem de vida. £ boa. Um diabo que eu tirei da rua da amargura, que nio tinha onde cair morta, ZEFA £ assim... Eu apanhei esse homem na sarjeta, mogo. Na sarjeta. Apanhei de pena, com a cara na lama, Bébado com a cara na lama, Tive pena. Tratei dele, Remendei a roupinha. Até comida na boca eu dei, De pena, Dei banho. Lavei tudinho, Deus que me perdoe. Agora me trata assim. Ah, se eu quisesse... ze Na roa da amargura, Agora té toda perequeté. ‘Mas é com o meu dinheiro. ZerA ‘Feu dinheiro! Teu dinheiro pra qué, estafermo? Gragas a Deus sou uma mulher independente. Eu preciso do teu dinheiro pra qué, estafermo? Eu preciso do teu dinheito? zt Num precisa, mas té com ele. © mogo, chama 0 guarda af, seu! (O rapaz continua a dormir.) EFA Nao precisa chamar ele, nfo. Eu chamo, pronto, Seu guarda, 6 seu guarda! (O Guarda, que durante todo 0 tempo estava do outro lado, aproxima-se.) GUARDA \ Que foi? Que bagunga € essa? ZeFA # meu marido, seu guarda, Quer falar com 0 senhor, GUARDA Que € que hé? (Zé olha para 0 Guarda, mas niio se anima a dizer nada.) Como que é Perdew a lingua? ZEFA Fala, Zé, Fala com o guarda, Tu nao queria falar com 0 guarda? Fala, 1 ze © trem vai demorar muito, seu guardat GUARDA Tso nao 6 comigo, com o chefe da estagio. ZEA (Rapida) Num disse que era com o chefe? Obrigada, seu guarda, (O Guarda continua a olhar para os dois,) Pade ir embora, seu guarda Agradecida. ze E. Pode ir. ZEA Era s6. 500 ANOS ze Muito agradecido. ZEFA Desculpe incomodar. ze Eta s6. (O Guarda olha-os ainda um instante. Os dois se encolhem. O Guarda sai.) ze © chefe da estagao nao sabe. ZEA ‘Ah, ele nunca sabe de nada. (Abotoa o paleté em farrapos do compankeiro.) Abotoa esse palet6, Zs "Ta fazendo frio. (Acha qualquer coisa no bolso de Zé.) Mas 0 que € isso? (Tira uma rosa rieio amassada. fE uma flor. Ah, Zé! & pra mim, Z& Tu comprou pra mim? ze Que comprei o qué, mulher. Eu sou Ié fresco? Achei por ai, no chio. ZEFA . Mas tu trouxe pra mim, Zé, foi? (Ble faz um muxoxo, sem responder. Pausa.) Fecha, fecha esse palet6, Vocé vai acabar se resfriando. 26 Ah ZEFA Vocé nem se cuida, ze ‘Ah ZEFA Por isso td sempre resfriado, tossindo. ze Ab. ZEA (Suspirando) Eu nasci mesmo pra softer. ze Ah. ZEFA ; Virgem! Que homem mais desleixado eu fai arranjar. ze ‘ah. ZEFA Antes tivesse ficado com 0 Benedito, (26 ri.) Té rindo de qué? ze De que & que eu posso rir? Me diz! De que € que eu posso rir? ‘EFA Sei Id. Voce parece maluco. (Zé ri muito.) 4 rindo de qué, homem de Deus? 2 (Sempre rindo) Ora de qué. De que eu iria rir? ‘Teatro da Juventude - 15 Er) zea Eu seit Pd De que € que eu podia ta rindo? Do chifrudo do Benedito, ora essa EFA Num fala dele desse jeito, Respeita zt Respeita, respeita. De que jeito voct quer que eu fale? Quem tem pena € galinha, quem tem pulga é ‘cachorro, quem fem teta é vaca e quem tem chifre é chifrudo, cxt-rRU-DO. EFA ‘Num fala assim... Olha todo mundo olhando! Que é que vao pensar de mim? Fa Unn chifrudo sem eira nem beira, zea Mas andava sempre limpinho. wt Nem sapato tinha ze0 Sempre srramedinho. # $6 mesmo uma coitada pra viver com aquilo TERR E-era uma boa alma. z Vivia de porre, 90 Bitem fala, 76 vendo, moo? £ assim. Ab, mew Deus ze Feu Deus 0 quet O qué? Té achando ruin? Vai embora. Me deis 7588 ‘Te deins, te deixa, Voct fale, mas € da boca pre fora. a Me alivia. Vai te pendutar nos chifres do Benedito, eho 2eFa Ingratol Seu ingrato! (Chora, magoada,) Eaco tudo por esse homem, mogo. Tudo, Deixei uma situasio. (Na sua comogio, esquece a bolsa no chao. Zé aproveite a situagio para pegt-ln.) Pa ‘Ah, peguei zen (Gritando, enquanto lute pela posse da bolsa) Nao, é, deixa o dinheizo af, Num vai beber mais, Ze ze Meu dinheiro, me dé o meu dinheito. (Os dois 16-0.0himo carro brigam. A bolsa se abre ¢ 0 dinheiro vai se espalhando pelo chao. Os dois catam e continuam a diseutir.) zeRA Deixa, Zé, Deixa o dinheiro. A gente precisa dele, 26, Voct vai gastar tudo em cachaga. Tu nao pode ais beber, Zé. Fa Num amola, Meu dinheiro, £ meu. Ganhei com ‘meu suot. (Continuam a brigar de gntinbas pela posse do dinheiro. O Guarda se aproxima. Os dois ‘param ao pé do Guarda e ficam ajoelhados, com algumas notas na mio. Zefe pega a Bolsa tira um lengo imundo e assoa o nariz.) GUARDA Que desordem é essa al, heim? Que é que ha? Pa Fessa mulher, sett guarda. Roubou meu dinheiro. Zefa (Chorosa) # mentira, sew guarda, Eu s6 ia guardar 0 nosso dinheiro pra ele nao beber mais. B mentira dele, seu guarda, (Abragando-se a Zé € choramdo) Ah, Zé, Por que voc faz isso comigo, 7 ‘GUARDA (Para Zefa) Deixa eu ver esse dinheiro. (Bla entrega 0 dinheiro ao Guarda, sempre solurando ¢ abragada a Zé, que a repele) B voce também, vamos passando 0 dinheiro. ze En, seu guarda? GUARDA E, voce mesmo, Me dé esse dinheito af. zt Mas seu guarda! GuARDA ‘Nao tem mais nem meio mais. (Tim o eassetete.) Como & que €? Vai dar? ze ‘Té bem, ta bem. Nao vos exaltei-vos. ‘GUAROA (Pagando-o pela gola) Olha aqui, 6 porqueita. ze Porqueira nao, seu guarda, Cidadao. ‘GUARDA (Enfurecendo-se) T4 querendo desacatar a autoridade? zen (Desesperada) Nao, seu guarda. Num bate nele, seu guarda. ‘GUARDA (Larga-o e ajeita a roupa. Para ela) BE voct a. Recolhe esse dinheiro ¢ bota tudo na minha mao. (Bla apanha as notas, mas esconde algumas nos seios, sem que o Guarda veja. Dé as outras ao Guarda, que comega a conté-las,) ze Té faltando, seu guarda, Bla escondeu nos peitos. GUAROA Cadé 0 resto, mulher? EFA ‘Nio, seu guarda, Esse num dele. 8 o meu dinheiro, seu guarda. B meu, GUAROR ‘Vamos! ze Isso, sew guarda, O dinheito € todo mea, que ela roubou, Sabia que o senhor era um mogo direito. Eu sou pelo direito. © senhor também, jé vi que o senhor é pelo direito, que nem eu. Por isso eu sou pelo senhor 0 senhor é por mim, Muito obrigado, seu guarda, (Bstende a mio para receber 0 dinheiro, enquanto fala para Zefa.) Viu, mulher, fo que vale a autoridade? (O Guarda mete 0 dintheiro no bolso e vai saindo) ze (Chamando) Fi, sew guarda? GUARDAR, (Voltando-se) © que foi agora? ze 6 senhor se esqueceu de me devolver 0 dinheiro, GUARD (stica a mao.) Toma. (Quando Zé se aproxima Teva um pescogao do Guarda e sai rodando, Ve cenir de borco no colo de Zefa, que continua ajoclhada no chéo, choramingando. O Guarda sai, caindo na gargathada.) EFA Machucou, benzinho? (Baixo) Filho da puta. ze ‘Num sei pra que tanta violtncia, (Olhando para Zefa) Ts chorando por qué, mulher? E vinho triste? ZEFA Vin o que tu foi arranjar? E agora? ze ‘Agora o qué? EFA A gente té na rua da amargura, (Chore) 26 ‘A-calpa ¢ tua. E num novela que eu ndo sou Rede Globo. ZEA ‘A-culpa é sempre minha, ze E tua, Diabo de mania de ficar com o dinheiro dos outros. Era pra voc® mesmo. Tava juntando pra comprar aquele paleté do Neco. 2 Hum, Num sei qual é a validade de gastar dinheiro em trapo. Pa ‘Trapo € isso que vocé tem ai zt Num € trapo. & tiras. E que € que tu tem com isso? ZEFA Sei, Quem passa vergonha de andar com homem, maltrapilho sou en. ze Blas por elas. ZERA las por elas, no. Comigo num me importa, Mas tu tem que ler apresentacao. ze ‘Quem gosta de mim tem que gostar do jeito que eu sou, EFA De homem maltrapilho ew num gosto. ze Entio me deixa. (Vai levantando.) Me deixa, Tu é livre, Bu te dow a tua liberdade, Voce é uma mulher livre. EFA : Num preciso que tu me dé nada, ze Mas eu dou. Eu quero dar, pronto, dou. Bsté acabado, Vocé é uma mulher livre. Eu sou um. homem livee. Nés estamos numa democraci Vocé vai pra lé que eu vou pra acolé. Somos livees. Vai embora. (Sai andando ¢ cambaleando.) ZEFA Vai embora, Eu sei. (Sai atnés dele.) ze ‘Me deixa. A coisa que eu mais prezo no mundo & a minha liberdade. (Canta.) Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre ns, ZEFA Liberdade, liberdade. Otha af. Todo sujo. Patece um mendigo. (Vai atrds dele, batendo-the na roupa para limpar. Ouve-se unt apito de trem, Os dois vao ‘andando para o fundo da plataforma, ela sempre a bater na roupa dele como a escovar.) CENA II (terior de um trem em movimento, Trem parador, dlesses que devem parar obrigatoriamente em todas as estagdes. Os bancos sao distributdos ‘Teatro da Juventude «17 '500 ANOS alrernadamente, ao comprido ¢ na largura do vagio. Alguns homens mal vestides e criancas maltrapilhas dormem encolhides nos bacos. Uns calgando ‘apenas um sapato ou alpargata, outros inteiramente descalgos. As portns do trem esto abertas ow apenas semifechadas, Os vidros das janelas esto, ens sua maioria, quebradas. Um sapaz meio abobalhado, fala asin casel, Esté sentado com as pernas tsticadas e as mitos entre elas. O corpo ligeiramente inclinado para a frente. De vez em quando, tira uma das mos de entre as pernas e ilustra a palestra com gestos pesaios ¢ largos.) JORGE ‘A comadre mais 0 compadre nao vieram ontem, JORO Nao. Ontem foi dia da nossa folga. JORGE ‘Ah, pois é. Eu logo wi. Eu entrei no trem, que ‘ontem eu peguei esse trem mesmo, De uma hora, Af ett entrei e disse pro meu colega que tava comigo: eu vou procurar meu compadre mais mina comadre. Mas af eu nfo achei, nfo. Entdo eu me estiquei nesse banco ai, acho que foi nesse mesmo, ¢ dormi. (Sorri pesadamente,) Dormi até chegar na Central, Quando acordei Jevei até um susto, Pensei gue tinha voltado pra Campo Grande, Eu acordei e o trem jd tava cescuro, olha 56. 0 meu companheiro num me chamou que ele esqueceu. Af eu levei aquele susto, (Ri,) Pensei que tivesse voltado pra Campo Grande. (Ri.) Se eu tivesse voltado, ser fogo, Jé pensou? Nem brincat Olha, comadre, 1 senhora pode descansat, © compadre também, Se quiserem dormir, pode, que eu fico olhando, ah fico. Quando a minha comadre mais 0 meu compadre vém no mesmo trem que eu, eu fico 86 vigiando, Num brinca, (Fala ent tom confidencial.) £ que aqui dé muito assaltante Outro dia, comadre, 0 compadre veio no trem cochilando, af eu fiquel 56 vigiando. Af veio vindo um malandro... (Fala guase cochichando.) que eu comhego ele, sei que ele € assaltante, Mas af ele veio vindo assim como quem vai sentar, ‘mas o que ele queria era roubar 0 compadre! Faz que nem eu que numa vez que dormi e quando acordei na Central tinham me roubado 0s sapatos, (Ri.) Cheguei descalgo. (Ri) AC eu gritei assim como quem néo sabe, mas deixa que eu tava vigiando © compadre ¢ conhego ele € sabia que ele queria era roubar, mas eu tava de olho nele e nao ia deixar ele roubar 0 meu compadre. Se fosse outro qualquer, que se 18-0 OW Cro danasse, que eu ndo vou arrumar confusdo com esses malandro assaltante por qualquer um, mas ‘0 meu compadre mais a minha comadre sio meus, (Ri) Af ew disse: 6 fulano, que ele chama Juca, mas eu nfo lembrava direito ¢ eu chamei falano mesmo, que é nome que todo mundo atende, e chamei fulano mesmo. Como é gue é vocé vai sair esse ano? Porque ele ja foi até da Sinfonia, por iss0 que eu conhego ele tao bem, ‘mas é que no ano passedo ele nao sai com a gente porque tava preso. Bu sou da Sinfonia também, O compadre conhece a Sinfonia? A senhora conhece, minha comadre? (Ri.) Ah, eu gosto um bocado da comadre, Quando a senhora nfo vem, eu sempre pergunto a0 mew ‘compadre pela senhora. A senhora conhece & Sinfonia dos Tamancos? E 0 nosso bloco. f legal. Ginterrompe-se e grita para um passageiro que vai andando pelo trem.) Ob, fulano? (Baixo aos dois) Hsse malandro € assaltante. Quer ver? (Grita,) Como € que é, 6 fulano? FULANO Oba, Tudo tegal? JORGE Vin como ele respondeu? f assim. (Acompanhando o falano com o ola, levanta un ‘poco 0 corpo, esticando 0 pescoco.) Ab, viu? Ele vai pa tris, pro terceiro vagio, de ld pra trds € que cles assaltam. (Passa um soldado,) Boa noite (Baixo.) Té vendo? © guarda vai atrés dele, Esse ‘guarda é soldado. Ele vai ver se pega. (Levantando ¢ olhiando) Ble é soldado do exército. Eu vou até ver, Pera ai, meu compadre, Eu volto jé, minha comadre. Vou 36 ver. (Levanta-se definitivamente ¢ olka para o outro vagao. Fala alto para os outros passageiros,) TA vendo? O guarda vai pegar ele. ‘Vamo 16. (Um dos passageiros se levants, olha sem inuito interesse e volta a sentar-se. Zé, 0 mendigo, aque havia sentado mais ou mertos no meio do vagao com Zefa, também se levanta e sai jogando de wm lado para outro, como wm navio na tempestade, sempre em diregao aos vagaes do fundo, Zefa ‘permanece sentada, cocilando,) JORGE Voct vai pra lat (Zé, ao ouvir Jorge, para, olka fixa ¢ indefinidamente, dé wma cusparada no cha & virando-se outa ves, prossegue o seu camino, desaparecendo no outro carro.) Viu? Ele vai pra It. (Gritando) Pera ai que eu vou contigo. (Jorge sai rio encalgo do Zé. Do outro carro entra um menino com uma lato de amendoins.) MENINO ‘Torradinho! Olha 0 torradinho. Vai querer? J0R0 (Para a moga que 0 acompanka) Quer um? (Ela faz que sim.) JOO _ Me dé dois, Ei, menino! Me dé dois, Té quentinho mesmo? MENINO ‘Ta, sim senhor. Olha ai, (Levanta a lata ¢ mostra 0 carvito aceso.) 400 Me dé dois. Quanto & MENINO E trezentos cruzeiros, sim senhor. Joo , Puxal (Dé 0 dinheiro ao menino. Um passageiro, que estava dormindo, encolhido no banco, levanta- se e acorda outro que também dormia, perto de uma das portas.) suseirot Oh, rapaz, acorda. susetto2 . Ahn. (Continua a dormir.) SUJEITO1 Acorda af, seu. suseito2 Que & Deixa de ser chato. suseirot Levanta af, rapaz. susetro2 Nao aporrinha, droga. usEITO4 $6 um instante, suserto2 (Sentando-se) Ai meu cacete. Que que tu quer? Nao se pode nem dormir! susetro1 Chega pra Ié. suseito2 Nao me enche, merda! suetro1 Chega pra 4, rapaz. Depois tu deita de novo. (Sujeito 2 se afasta contrafeito, arrastando-se pelo banco. Sujeito 1 levanta uma parte do banco e mexe em qualquer coisa. Ouve-se um ruido semelhante 0 de un freio hidréulico e uma das bandas da porta, que estava aberta, se fecha, Sujeito 1 dé wm leve toque no Sujeito 2, que, sentado, voltara a cochilar e com o toque vai caindo ent citmera lenta até ficar deitado de novo, Sujeito 1 examina a banda da porta que nao se fechou.) Merda! ‘Tem pedra, (Tenta retirar a pedra e, nao consegucindo, volta meio desanimado para o banco de onde se tina Ievantado e torna a se deitar.) Erne MENINO Olha 0 torradinho ai. Vai querer? (Entra outro ‘menino no vagiio.) OUTRO MENINO Embalhé. Olha o doce de leite Embalhé. MENINO ‘Torradinho! (Zé volta do outro vagao e atravessa todo 0 carro, Zefa, que jd estaya procurando por ele, Tevanta os bragos e segue-o. Ele vai para a extremtidade do vagiio, ao lado da cabine do ‘maquinista, ¢ fica ali em pé,inclinado e oxcilando, Zefa puxa-o pelo brago e fala qualquer coisa. Ele recusa-se a atendé-la, Zefa senta-se perto dele. O rruldo das rodas do trem vai aumentando, donsinando 4 cena, com as pessoas em silencio, a maioria dormindo ou cochilando, imitando 0 movimento do trem. O Soldado também volta do outro vagio. O trem dé um solavanco que joge as pessoas was emt cima das outras. Depois dé outro e finalmente para. A.banda da porta que havia sido fechada volea a abrir-se, Novo solavanco ¢ o trem torna a andar. Zé, sempre inclinado para a frente. As luzes apagam-s.) CENA I (Plataforma. Um grupo de operrios conversa, esperando o trem.) EOLINDO , Essa droga desse trem j4 tem mais de uma hota de atraso. HILARIO ‘Uma hora s6? Entao té bom. Ta cedo ainda, NECO TA no horério, EOLINDO Esculhambagéo! BEDRO . E uma merda, A gente mora mais na estagto que em casa, DEOLINDO. Eu jd decidi, velho. Vou juntar af uma nota, comprar um desses canos que a Sursan larga por ai, bem largo, e vou me mudar com toda a familia pra perto da estagio. Nao preciso nem gastar dinheiro com frete. F s6 atrumar a mobilia dentro vir rolando 0 cano. PEDRO Quer dizer que o trem vai te deixar na porta de casa? NECO Vais entrar pelo cano, Ded? EOLINDO Entrar eu jé entrei desde que nasci. Bu vou é morar no cano duma vez, Teatro da Juventude - 19 HILARIO ; Voce & que é feliz. Vai morar em casa de alvenaria. DEOLINDS Oral E86 a patroa jogar uma cortina nas pontas. Vai ficar um bangalé porteta. Dé até samba. Neco E sempre vai ter mais espago que no meu barraco. HILARIO Brinca néo, rapaz. Tu sabe que tem semana que ‘eu s6 vejo a molecada dormindo? £, rapa. A gente chega em casa tarde da noite. Tem que sair a essa hora! B essa merda da Central! PEDRO E Central nao, velho. & tudo. Esses sacanas vive de botar na alma do pobre. Neco E depois tu jé viu, né? Chega domingo, tem futebol. Eu nao estou a fim de perder. A patroa quer dar umas voltinhas, nem quer saber de jogo. Pronto, lf ver bronca. PEDRO Ué, Deixa a-patroa comigo que eu consolo. Neco Tu nao te enxerga, nao, € criolo! PEDRO Eu sou o Bléqui-charme falado, deixa comigo! HILARIO Por isso que outro dia tocaram fogo na estagio de Queimados. ECO | : Tss0 foi em Queimados. Neguinho da linha de Nova Iguagu € pau duro, Mas essa turma do xamal de Santa Cruz... PEDRO Sio todos uns bunda-suja, DEOLINDO ‘Tocar fogo em estaglo nao resolve nada. HILARIO ‘Num resolve? Vai ver se os trens de Jé nio esto correndo direitinho no horario. EOLINDO, » Mas $6 por uma semana. Depois volta tudo a atrasar. Mas pelo menos uma semana endireita. 34 € alguma coisa, HILARIO Se'toda vez que atrasasse a gente fizesse um ‘quebra, garanto que endireitava, DEOLINDO Besteira, Quem que voct pensa que vai pagar a estagdo nova? £ a gente mesmo. Quebra-quebra é bobagem. Arruaga besta. 20 - 0Ultime carro PEDRO Ninguém vai pagar conserto nenhum, porque eles nfo vio consertar nada, Jé viu essa turma botar a0 menos um vidro em janela de trem? Vai quedrando, vai ficando quebrado e vai da valsa Quem for tisico que se agtlente, HILARIO Esquece de consertar, mas ndo esquece de cobrar. B de aumentar as passagens, DEOLINDO Pois €. Fica tudo quebrado € 2 gente mesmo é que agiiente. Inda por cima, nem bem passa uma semana € comeca tudo que trem a atrasar de novo, Sem contar com os homens, que fica tudo com cécegas na mao. Doidinho pra baixar 0 cacete. Neco E, velho, entéo num tem que chiar. & esperar a vida inteira pelo bicho, que mais dia menos dia cle apita na curva e a gente embarca, HILARIO | Pra cidade dos pés juntos, Mas trem que é bom.. Neco £, E pra ld que a gente vai mesmo, HILARIO ‘Quem espera sempre alcanga. PEDRO Quem espera desespera, Eu ainda estou pelo quebra, Arrebentava esta droga que eu queria ver. EOLINDO Besteira, rapaz, besteira. O que podia era todo ‘mundo combinar. Trem comecou @ atrasar, todo ‘© povo ficava em casa. Ninguém ia trabalhar. Queria ver se nao endireitava PEDRO Sei, Endireitava, Ia todo mundo pro olho da rua. Nem precisava mais tomar trem nenhum. DEOUINDO . ‘Que olho da rua! Nao vé que eles precisam da gente? Bota a gente na rua e quem é que vai sujar as mios de graxa, levar cimento nas costas, assentar tijolo? HILARIO . em muito morto de fome af pra isso. Te garanto. Neco ‘Mas até que era legal. E, depois, a gente podia sentar o brago nesses neguinhos, PEDRO . | Té olhando pra mim por causa de qué, heim? Neco £ que tu t4 sempre no contra. Nao gosta nem que se fala, PEDRO ; Porque acho isso burtice. Bu quero ver € ter peito pra quebrar essa joga toda. NECO Escula aqui, 6 Fidel Castro de merda. Nao tis agradando. Tu jé nao sentiu que quebra ndo adianta nada? Depois, quebrar e se mandar nao tem macheza nenhuma. Pra agtentar 0 rojio do nao vou é que precisa ser macho. Ou vais querer que eu te explique melhor? PEDRO Sai pra I4, meu chapa, sai pra li, Num encosta nao. Neco ‘Tés achando ruim, & DEOLINDO Para com isso, Neco. ECO Num vou com esses vaselinas. PEDRO . | Quem é que é vaselina af, heim? DEOLINDO Vamos parar? HILARIO Ib, gente. Olha o bicho ai. ECO le mesmo? PEDRO §, sim. Nao té vendo o uilho brilhar? ECO (Para Pedro) Olha ai, 6 chapa, Bu tava brincando. PEDRO To sabendo. Do contrétio tinha levado uma porrada. (Neco, brincalhao, anteaga wna rasteira em Pedro, que pula pra trés, sorrindo.) Que € que hd, meu irmao. Tou aqui, mas to de olho vivo! (Ouve-se 0 barutho do trem que se aproxima. Apagarn-se as tuzes,) DEOLINDO Ih, rapaz, inda por cima vem apagado. PEDRO Bu ndo digo. Quebra! (Riem todos. A cena passa ppara o interior do trem.) voz1 Acende a luz! voz2 Fica quieto ai, 6 palhaco! voz1 Palhago € a mae! voz2 A tua, seu fresco! voz3 (Imitando voz de mulher) Tira a mao! voz4 , Ai, tira a mo daf, ail JORGE ‘Cuidado com os assaltantes, O fulano! Vai la, acende a luz! voz Eu, heim, sou besta? Vai voct. (Unt passageiro cacende um cigarro.) Neco Oba, podia me dar fogo? (Encostam os cigarros.) Obrigado. JOAO ‘De nada. (Passa 0 Menino com a lata de amendoins.} MENINO Otha, olha, olha 0 torradinho af! voz1 Tira essa lata pra 4, rapaz. (Alguéna acende outro {fisforo por segundos. Jorge é iluminado de costas, em frente a uma das portas, alhando 0 céu.) voz2 (Agora séria) Ola essa mao af, rapaz! Vai levar ‘uma porrada! voz4 Mamie, socorro! voz (Imitando mulher) Nao posso! Estou ocupada! vous Vows? voz3 . Ah, minha netinha, gienta af, A velhinha também tem direito, nao DEOLINDO Vamos acabar com essa pouca-vergonha, Vocés no tio na zona, nfo, Aqui tem familia! voz3 Achou ruim 6, 6 gaiato? (O trem passa por uma estagio. Seu interior é parcialmente iluminado. Deolindo pegou o rapaz pela camise.) DEOLINDO Achei, sim, B vé se fica guietinho af, RAPAZ Ta bom, Mas vé se me larga, né? (Deolindo solta 0 rapaz e vai sentar-se. Ourve-se apenas o barulho do trem, As huzes se acendem de repente.) vARIOs ‘Qo000000000h! Viva! Palmas pra ele que ele merece! (Alguns batem palmas, As luzes voltant a apagar-se.) CENA IV (Plataforma. Um casal de jovens conversa, sentado tno banco,) tude = 21 Eel) BETO Mas nao é muito cedo, nao? MARIINHA E, nao. A gente tem que garantir os primeiros lugar na fila, S6 tem vinte vages. BETO Quanto ser que vdo te pagar? MARINHA ‘Num sei Salério de menor... BETO Quase nao dé pra nada. MARIINHA Sempre ajuda, O pior € que dura pouco. Passou 0 Natal, bota a gente tudo pra fora outra vez. BETO Se eu tivesse um aumento... MARINA ‘Voce j4 comprou os saco de cimento que tava faltando? BETO Comprei, nao. Vou comprar agora, semana que entra, Dinheiro néo deu. MARIINHA Dinheiro nao dé pra nada, néo @ BETO Nao dé mesmo, néo. MABIINHA Jé faltou mais, nao 6? BETO Ah, jé. Agora é s6 levantar essa «iltima parede ¢ pronto. MARIINHA Tu jé puxou a luz por dentro da parede? BETO J&. TA tudo pronto. MARIINHA, Falta € rebocar. BETO O reboco é que vai ter de esperar, mais a pintura, Senfo a gente dorme no chao. MARINA Quem sabe? Se eu consigo emprego. BETO Nao. Do teu dinheiro, nao. MARIINHA Por qué, Beto? Deixa de bobagem, BETO, Nao. Teu dinheiro vai guardando pra comprar roupa pra esse moleque af. (Toca carinhosamente na barriga da companheira.) MARINA Tira a mio dat! Olha o povo olhando! (Levanta e olha para os lados.) 22 - 0 Ditime Carre BETO Que povo? Num tem ninguém. (Enlaga-a pela cintura e puxa-a para si,) Tua gente ja sabe? MMARIINHA . ‘Deus me livre. $6 quem sabe é mame. Se pai soubesse, nem sei BETO Nem sabe 0 qué? A gente néo vai se casar? MARIINHA Vai, uai. BETO E entio? MARINA Mas tu nao conhece o pai, Era capaz de te matar. BETO Matar nada, O velho & meu chapa, MARIINHA Mas é porque ele nfo sabe que tu me fez mal antes da gente casar, seu safado. Se soubesse... BETO Derrubava 0 puxado que a gente td fazendo? MARINA Th, nem sei, Num queria me ver nem pintada Vocé entao! Ainda mais com a confianga que tem em ti BETO : Pois olha. Eu acho que ele vai descobrir antes do casamento. MARINA ‘Nem brinca assim. Por qué? (Desprende-se do rapaz e examina a cintura.) Bu estou com a cintura muito larga? BETO Ja ta até de barrigal MARIINHA Ah, meu Deus do céu, como é que vai ser? BETO (Puxando-a para si) Assim, (Pinge que esta comendo a barriga da moga.) Pronto. Comi a crianga toda, Agora 0 velho nao desconfia. MARINA Ah, seu peste. (Dé uns socos na cabega dele, que se defende, rindo,) Por que ndo vai assustar a tua mae? BETO ‘Ai, ai, ai. Porque minha mae é uma senhora direita. MARINA . . (Para de brincar e de rir. Fica séria.) Quer dizer que eu nao sou, nao @ (Senta-se, chorosa.) Eu sabia que voce ia acabar me jogando na cara, BETO (Surpreso) Que foi, Mariinha? MARINHA Nada. Pode deixar, BETO Que foi que en fizz -MARIINHA (Chorando) Nada. BETO, Te ofendi? Bu nao falei nada. MARUINHA Falou, sim. BETO Eu? [MARINA Nao. Ex. BETO ‘O que que eu falei? MARINA, Nada. BETO, Mariinha, Nao fica assim. Que € que eu felei? MARINA Nada, sero Entéo por que 6 que vocé esta chorando? MARINA De nada, Vontade. BETO Bu nao falei nada, MARUNHA Falou, sim, BETO Eu? MARIINHA Me chamou de vagabunda, Beto Eu, Mariinbat MARINA E, Voeé, sim. Mas no faz. mal, niio. B 0 castigo de Deus. BETO Que castigo, Mariinha? Disse aquilo sem intengao. Vocé leva tudo a mal. MARINA ‘Antes levasse. Garanto que nfo tava assim. BETO Se eu te ofendi, desculpa, amorzinho. Nao tive intengao. MARIINHA Nio precisa desculpar, néo. BETO. Mariinha! Mariinha, meu bem, olha pra mim, Voce acha que eu ia dizer isso de vocé? MARA Tu falou, BETO Voc’ acha que, se eu pensasse isso de voce, eu ia agora, todo dia, dar um duro danado depois do trabalho pra levantar um quartinho pra gente no quintal do teu pai, acha? MaRunin Mas voce falou, BETO Falei nada, Mariinha, Entao eu ia dizer uma dessas? Me dé um beijinho, vai. MARUIVHA Nao dow nada BETO Dé. manna Nao... (Beijam-se. No meio do beijo, ela vé o trem que se aproxima. Com muita vivacidade, inteiramente esquecida do choro de hd pouco) Chi, 1 vem 0 nosso trem al, Levanta, Beto. (Beija-o de novo, Os dois saem enlagados para esperar a chegada do trem. De repente, ela volta correndo ao bbanco.) Chi, ia esquecendo o meu “Encanto!” Ta com a fotografia do Roberto Carlos! (Pega uma revista que havia deixado no banco. Os dois tornam se beijar. As luzes se apagamn. A cena passa para 0 interior do trem.) CENA V (Um vagao vazio. Deve corresponder ao illtimo vagio do trem ¢ ter, portanto, ao fundo, unta cabine de maguinista.) PROSTITUTA (Entrando do outro vagdo e desvencithando-se do hhomem que tenta segurar-The o brago.) Espera, no me agarre assim. (O homent tenta beijé-ta.) th, ‘voct € porco! Vamos ali pra cabine. B mais seguro. ANTONIO. Fica aqui mesmo, minba filha. PROSTITUTA Nao. Vamos na cabine, Dé um azar af e pegam a gente. ANTONIO Se azarat aqui, vai azarar 1a também, PROSTITUTA 14 € melhor. ANTONIO Bem, minha nega. Ta com muito xaveco. Em pé, comigo nao vai, nao! Vocé escolhe. Ou deita aqui no banco por bem ou te como aqui, no peito. ‘Teatro da Juventude - 23 PROSTITUTA (Persuasiva) Meu benzinho. Vamos pra lé, vamos. LA € fechadinho, Olha af, o trem para na estaclo, a gente no meio do amorzinho, entra um... Vem... (Acariciandlo-o) Vera com a tua neguinha. (Ele vai se deixando levar.) Vamos fazer um amorzinho bem gostoso, quer? (Chegam a porta da cabine, Bla para de acaricié-lo.) Quer pagar adiantado, bem? ANTONIO Th, mulher, t4 muito cheia de xavecagem. Vamos logo, nao aporrinha PROSTITUTA Me da o dinheiro adiantado, benzinho, sento nada feito, ANTONIO Nada feito 0 qué, sua vaca? Toma o teu dinheiro. (Dé-the um bofetdo e forga-a contra a cabine. Ela rita.) PROSTITUTA Nao, seu filho da puta, no, ail ANTONIO (Batendo sempre) Fica quieta! PROSTITUTA Ai, socortol (Os dois se agarram furiosamente. Lutam durante alguns segundos, depois ela cede. O trem para, Beto e Mariinha entram no vagio e, sem reparar em nada, dirigem-se para os carros da frente. De Id entram trés malandros que, debochados, abrem passagem para 0s dois.) cicarniz Dé passagem pra princesal RuIvo Ja vai embora? zico Quer tirar um sarro com 0 Zico Gostoso? (Beto volta-se.) MARINA (Apavorada, segurando-o) Vamos embora, Beto. cicarriz : Faz o que a mocinha diz, menino. Tu jé mostrou que é macho, Vai embora que a barra aqui é pesada, zico (Vai avancar para Beto.) Pera af, seu merdinha. (Cicatriz 0 impede.) cicaraiz Pera 1s, companheiro, Quem manda aqui é 0 Cica. Deixa eles. ico Que ¢ que hi, 6 Cica? cicarriz Sou escoteiro. 8 minha boa ago. (Para Beto) Vai- te embora, rapez. (Beto Mariinha saem para 0 ‘outro vagito, amedrontados.) Até logo, princesal (Procuram assento, Zico senta-se defronte da cabine. Cicatriz fica rindo na passagem de um vagio para 0 outro e depois vem sentar-se também.) Qerndo Antonio e Prostzuta na enbine, Para Ruivo) Otha Ié, Ruivo, aqueles dois. RuIvo En sabia que a noite hoje dava em sarro. (Para ica, que vinha sentando.) Bu nfo digo? Olha s6. ‘Temos comida pra hoje. cicarniz, E.E 86 ficar esperando, que o passarinho vem cair nna nossa arapuca. zico Vamos? RuIVo ‘Vam'bora. Se o cara se estranhar; leva umas porradas e desembarca no meio das paralelas. clcarriz Calma, minha gente, vamos apreciar. Depois que © pinta se servir, fica mais macio. Vai sair de lé e vai estar s6 a fim de livrar a cara. No que se esborracha. 210. ‘Aqui, 6. Vou ficar aqui bestando ¢ o gaiato ali fazendo o dele? Vamos 4, Ruivo. (Ruivo faz mengio de se levantar. Cica puxa a navalha e se coloca entre os dois ¢ a cabine,) cicarriz ‘Vamo sentando, calminho. Pra que essa afobacio? Passarinko nao vai fugir. E se 0 cata fizer de besta, melhor, A gente come os dois. (Continua a rir € ‘ameaga os outros, seguro de si.) Senta, v4! Senta! (Os dois voltam a sentar-se.) Isso, meus chapas, isso. A gente ja vai chegando li, (Anténio ¢ a Prostituta saet da cabine e deparam com os trés. A Prostituta se protege atrds de Antonio.) Gostei de ver, men irmo, Rulvo ‘Trabalhou a contento. zico ‘Agora vai dividir a sobremesa, nao € mesmo, distinto? ANTONIO (Para Zico, que avangara) Ninguém vai tocar nela, nao. zico (Avangando sempre) Num vai tocar € 0... (AntOnio sai de banda e passa um rapa em Zico, que se esparrama no chao. A Prostituta tira 0 sapato & enquanto Antonio se mantém de olkos fixos em Cica e Ruivo, dé com o salto na cabega de Zico, que apaga.) cicaraz Foi bem feito. Ele estava mesmo pedindo, Ruvo (Para a Prostituta) Gostei da macheza, minha fitha icarriz ‘Uma fémea dessas foi feita pra Cica. (Dao un asso a frente.) ANTONIO E melhor ficar onde estao. cicaraz Que € isso, distinto? Rulvo ‘Vamos s6 dar uma metidinha, cicarRiz Vai querer me engrupir que a mina é donzela? (Riem.) PROSTITUTA (Para Antinio) Deixa. 8 melhor acabar com isso de uma vez. ANTONIO Fica aqu cicarniz Mas que falta de delicadeza! A mina quer vir e ele no quer deixar, (Cicatriz e Ruivo dao um passo rapido, Antonio segura-se nas correias de apoio e impulsionando o corpo, langa os pés nos dois, que se afastam lateralmente e seguram as pernas de Antonio, que fica suspenso no ar.) clcaTRiz ‘Que € isso, meu chapa? T4 querendo bancar 0 Tarzan’ (A Prostituta avanga e leva um tabefe de Gicatriz, Antonio solta uma das miios, mas é ‘apanhado por um tremendo murro de Ruivo, Solta- se e vai ao chao. Cica déthe uma joethada, A Prostituta & puxada em seguida por Cica, agora sem violencia.) Vamos, minha filha, vamos duma vez (Diz isso sem prepoténcia na voz. Ela se deixa levar para a cabine, Ruivo senta-se ao lado de Zico € ‘Antdnio desmaiadas e calmamente espera.) (A cena escurece, deixando apenas um foco sobre AntOnio, Zico e Ruivo. Fuso para o filme. A cimera deve percorrer vérios vagaes do trerm, focalizando meninos que dormem descalgos, um homem maltrapitho, um pretinho que planta bananeira diante das portas abertas do trem, enquanto outro vi um sorriso sent dentes. Corte para uma estagio. Tomada do interior do irem em movimento. Unt mendigo dorme num banco, homens conversam. A cémera volta ao interior do trent e focaliza agora wma velha mendiga com uma 500 ANOS crianga no colo, Desaparece o filme. Um faco de luz cai sobre um honiem gordo, vestido com um desses uniformes de bandinha do interior. Esta acarrapachado num dos bancos, inteiramente de ore. Ouve-se miisica de retreta, subindo aos oucos. O Maestro levanta-se, puwxa uma batuta e rege a banda imagindvia. Vozes: “O maestro, viva 0 maestro!” O Maestro dé uma volta como a agradecer, faz una reveréncia e torna a cair sobre 0 banco, as pernas escarrapachadas no meio do caminho. Luz geral.) PASSAGEIRO ~ (Que ia passando) © maestro! General da banda? (Para os outros) Olha s6, Ta bébado que nem gambé. Fez a maior lagoa af, olha s6. (Passa outro Passageiro, que vai pisando na urina,) Cuidado, ‘meu branco, Tu te afoga nesse Guandu. (Os outros passageiros riem. O trem dé um solavanco Para, As portas se movimentam loucamente, abrindo e fechando. O trent volta a andar. A menina que tina sido focalizada no filme no colo da Velha levanta-se e dirige-se para onde o chiio esté molhado. Péra, abaiza-se e fica olhando encantada para a urina,) VELA Judith? Vem 4. 4uprTH J4 vou. (Judith levanta-se, junta os pés comega a pullar de unt lado pra outro da urina, Depois faz 0 mesmo num pé 56.) VELHA Judith? Vem c4, Ah, menina. (A crianga torna a abaixar-se e comesa a brincar com 0 dedo na urina. Passa um vendedor de cocadas. E um rapaz de wns dezenove anos.) VENDEDOR Olha a cocada baianal Olha a cocada baiana! (Dois camponeses esto sentados, Sao dois velhos.) ‘CAMPONES 1 Quanto é? VENDEDOR Duzenticingitenta, ‘CAMPONES 1 Cingiienta? YENDEDOR, gE ‘cAMPonés 1 Me da uma, (O rapaz dé a cocada, Camponés 1 oferece a Camponés 2.) O senhor quer? ‘cAMPONEs 2 Um pedacinho, aceito. CaMPONes 1 (Pagando com wma nota de cingitenta) Toma, mogo. Teatro da Juventude - 25 500 ANOS VENDEDOR (Sem apahar o dinheiro) Al té faltando. camponés1 4 faltando? Faltando 0 qué? VENDEDOR Duzentos cruzeitos. campones1 Mas nio era cinguenta? Té certo, VENDEDOR (Grosseira) Bu disse duzentos ¢ cinqtienta, Falta duzentos, camponés 1 Duzentos ¢ cingienta? VENDEDOR Nio sou relégio de repetiglo, (A cocada ainda esta intacta.) campones 1 Eu ouvi cingiienta. Desculpe, enti nfo quero, no. O dinheiro nao dé, © senhor desculpe. Obrigado, (Devolve a cocads,) ‘VENDEDOR {Pega a cocada com raiva.) Agora no presta mais. Qual o fregués que vai comer essa porcaria? (Joga a cocada inteira pela janela ¢ sti.) camponts 1 (Surpreso € magoado) Eu entendi cingtienta. (Fala baixo, olhando para cima, na diregao do vendedor, que se afasta. Volta-se, desconsolado, para 0 outvo.) senhor nao entendew cingtlenta? -AMPONES 2 eu também entendi cingdenta, ‘camponts 1 (Voltando-se para Joao, que est sentado perto dele) (0 senhos, mogo, nao entendeus cingiienta também? Nao foi? Ele pensou que et queria tapear, Ele nao disse cinqtienta? Joao Disse sim, eu ouvi bem. camponés 1 ois € Vosmicé ouviu. Vosmicé também, Bu também ouvi, Pra mim era cingdlenta, Se eu tivesse ouvido outro prego, nio ia pedir a cocada s6 pra sujar, Eu entendi cingiienta, Se fosse mais, ext ndo ia pedir, Pra qué? Nao tenho @ intengdo de prejudicar ninguém. Nunca prejudiquei ninguém em toda a minha vida, Fu sou pobre, mas gragas 4 Deus vivo do que ¢ meu. Sem prejudicar os outros, Nao ia querer prejudicar 0 rapaz também, Pra qué? Agora jogou a coceda fora, A cculpa nio foi minha. Jogou a cocada fora. Pela janela do trem, Mas tava limpinha. Néo precisava jogae fora, A culpa ngo foi minha. Ele nao disse cingtienta? Vosmicé nao ouvit? 26-0 hime carro MPONES 2 disse sim. camponts1 Pols €. Entio... por que é que ele fer isso? VELHA {Gritando) Judith, 0 que é isso que voce té facendo? 2uoiTH "Tou escrevendo um desenho, JoKo (Aproximando-se e acocorando-se junto & garota) Voc8 sabe que essa agua € suja, Judith? VeLHA (Falando alto para os outros passageiros) Pronto. ‘Arranjou amizade. & danada pra arranjar amizade, essa menina. JuorTe (Levanta-se, rindo, e corre para a Velha.) ‘Mamae, o mogo ta pensando que o xixi do velho ¢ agua. (Rindo, enfia a eabega no regago da Velha. Jodo fica de pé, sent jeito. Judith tira a cabega, Olka para o rapaz, cai outra vez na gargalhada ¢ torna a enfiar a cabega no colo da Velha. Joao agora ri tamsbém, meio sem graca. A mulher dele nito pode conter o riso. Ele acaba rindo de novo, espontaneamente agora, ¢ volta a sentar-se, O velho camponts matuta. O trem para, Zé, sempre inclinado, Entra no trem um hhomem muito claro ¢ alto, levando debaixo do brago uma biblia e na mao uma pasta. A luz diminui até focalizar apenas 0 novo passageiro, aquie abre a biblia e comega a lé-la em voz baixa, quase murmurando, Nao obstante, sua voz domina a cena.) Beato Se profeta ou sonhador te convida com sinais e prodigios a que abandones 0 teu Deus = nio o seguirés, Nio onvirés aquele profeta porque 0 vosso Deus vos prova €0 sonhador de sonhos morterdy pois falou rebeldia contra o senor vosso Deus. (0 barulho das rodas do trem volta a dominar a cena por alguns segutidos. Apagamse as lzes,) CENA VI (Estasao. Varios passageiros na plataforma. No primero plano, wma borboleta, Ouve-se 0 barullio do trem, Trés passageiros apressados,) omen (Na borboleta) ira trés aqui, mogo. Depressa que trem té vindo af, BILHETEIRO ‘Tem tempo. O trem fica parado aqui mais de dois minutos. MULHER (Logo atrds) Depressa, mogo. Parece uma lesmal (0 Bilheteiro faz 0 troco, O Homem e a Mulher passant, Sua filha, que vinha atrds, é impedida de pasar pelo Bilheteiro, que tranca a borboleta.) sivia Deixe passar, moro. BILHETEIRO Nao vai sair comigo, belezinha? Deixa os coroas pra ld, suLvIA O senhor quer fazer o favor de me deixa passat? Homen (id no meio da plataforma) Vamos, Silvia, Olha 0 trem, criatura, BILHETEIRO Fica aqui, Silvinha, fica. Eu vou te ensinar uma porgdo de coisas gostosas. Suva ‘Me deixe passat, seu desavergonhado. Olha que eu faco um escindalo aqui. (O Bilheteiro ri. A mae de Silvia volta ao ouvir a filha levantar a voz. Vern com as maos nas cadeiras, olhando de banda para 0 guiché.) Vai me deixar passar on nao vai? BILHETEIRO TA bom, meu doce de coco, minha boazuda. Vai, vai, voct ainda nao sabe 0 que & bom, gostozinha do papai. Se quiser, eu estou As suas ordens. (Mete a mao pelo guiché e apalpa a mioga antes que ela passe.) snVIA Sai pra I4 seu desgragado, (A mae, que estava observando, agarra a mio do Bilheteiro e torce-a violentamente.) MULHER Olha aqui, sujeitinho, tu vai abusar da tua mac, ouviu bem, seu descarado? BILHETEIRO Aaiii! Larga a minha mao, sua puta velhal HoMEM (Do meio da plataforma) Olha o trem, olha 0 trem! Que é que voces estio fazendo aff Mas que gente mais mole! MULHER ‘Também tu 56 pensa na droga desse trem! © sem- vergonha abusando da gente e vocé nfo vé nada. Homem Abusando? Quem foi que abusou? De quem que ele abusou? Que sem-vergonha? Eee} sitvia, Foi aquele desgragado ali, que me prenden na borboleta pra me propor imoralidade. Homem Prendeu o qué? Prendeu quem? Que foi que ele disse? Como € que € Sem-vergonhice? Pra quem? Pra ti? E vocé disse que sim? Vocé ouviu? siLvia Eu tinha gue ouvir. E mao. HOMEM Ah, ouviu? Deu confianga? Passou o qué? A mio? ‘Onde € que ele passou? Por cima? Foi por cima ou por baixo? Ah, sua desavergonhadal Toma! MULHER ‘Nao bate na menina, desgragado! HOMEM Pois tem que apanhar, MULHER E apanhar por qué, sua besta? Homen Pra deixar de dar confianca a qualquer um, sui (Chorando) B quem é que deu confianga a ninguém, papai? MULHER Seu estiipido! Homent Ue! Entio ela nao den? MULHER Dew 0 qué? Homem Eu sei Id 0 que! MULHER Que deu nada. F voc’ ndo conhece a filha que tem, seu palermat omen Conhego: por isso mesmo! MULHER E tua filha la da confianga a qualquer um? HOMEM O qué? Nao dé nao? Nao dé mais nao? Entio quem deu? Foi voce? MULHER Mas deixa de ser burro! Ninguém deu confianga nenhuma! Homem Ah, bem, muito bem. Agora entendi, Se ndo deu confianga, est bem. Té bem, Saiu ao pai. Foi assim que eu ensinei, B isso mesmo. MULHER E isso como? E vai ficar assim? inda por cima me passou @ Teatro da Juventude - 27 HOMEM Assim? Assim como? Esta bem. Ela nao dew confianca, Pode ficar assim. Esté certo, Olha, 0 trem td chegando. muLHeR Que certo, homem? HoMeEM Retiro o tapa, pronto. MULHER Eraquele miserdvel abusa da gente como quer voce diz que esté certo? F ainda por cima bate na ‘menina? omen ‘Abusar? Abusou de quem? De voc#? Quem foi que abusou? MULHER © bilheteiro, homem de Deus, o bilheteiro. Quem E que pode prender a gente na borboleta? Homen Na borboleta? © bitheteiro? Espera al. (Vai entrando bilheteria adentro, Gomera uma discussdo. Um guarda, que estava nas proximidades, corre para a bilheteria, De li saem a seguir os trés, O ‘Guarda, pensando tratar-se de un assalto, desce 0 cacete no Homem. O Bilheteiro vem atrés do Guarda, protegendo-se. O Homem tenta se explicar) Pera af, seu guarda, & um mal- entendido, Eu... (As mulheres correm ent seu socorro, Os demais passageires aproximam-se para ver a brign.) mutner Targa 0 meu marido, miserdvel! suLvtA (Avangando para cima do Guarda) Deixa 0 meu pai NMULHER (Ao Guarda) Pra que que vocé existe, heim? Devia era estar dando uma liso nesse desavergonhado ‘que tf escondido atris de ti, sua besta. GUARDA Escuta aqui, minha senhora, a autoridade aqui sou eu, Nao admito 0 desacato. uur ‘Que ndo admite o qué! Vocts sio tudo da mesma 1 BILHETEIRO Baixa 0 cacete neles! Baixa 0 cacete neles! Suva 'seu filho da mae. (Avanga para o Bilheteiro.) GuRRDA Bara com isso, moca. (Segura-a pelo bravo.) MULHER Targa @ minha filha! 28-0 Gitmo carro omen Segurou? Quem foi? O bilheteiro? Sai da frente, seu guards, ‘GUARDA ‘Ah, €assim, nao € (Comepa a baixar 0 pau indiscrinsinadamente, A Muller, que trazia sew ‘guarda-chuva, quebra-o na cabeca do Guarda. A ‘moga se atraca como Billeteira. Q Homer esmurra-o e leva pancadas do Guarda. Os outros ‘passageiras intervém.) PASSAGEIROT Bip ei, ei, 0 que é isso? GUARDA O que é 0 qué? PASSAGEIRO O senhor nao pode ir batendo assim, nao. PRSSAGEIRO2 Nao pode nfo. GUARDAR | Eu bato como quiser. Sou a autoridade ¢ té acabado. PASSAGEIRO2 fines mio pode ir metendo 0 pat, nao. PASSAGEIRO1 ‘Nio pode mesmo, nao. MULHER Hsses caras so assim mesmo, ndo prestam pra nada. GUAROA ‘Minha senhora, senhora nio desacata, PASSAGEIRO3 Bla esté certa, PASSAGEIRO 1 Th pensando o qué, heim? svi . Delxa pra If, gente. Ja acabou. Deixa pra Id. Vem, papai, Vem, mamae, Olha, 0 trem jé vem chegando, PASSAGEIRO2 pas vem mesmo, gente, L4 vem o trem! PRSSAGEIRO3 Olha 0 bicho at. omen AAté que enfim. PASSAGERO2 Eyem que ver tinhoso. PRSSAGEIROS Vival PASSAGEIRO2 Viva ele! topos Vivanaa! (O trem passa direto pela estagio, suurpreendenda os passageiros.) PASSAGEIROZ Ei, ef, ell Home - Ué porra, nfo vai parar, nao? PASSAGEIROT Que filho da mae, olha s6, passou direto! Topos Passa, filho da mie, passa desgragado! Seu puto! Mas que merda & essa? (Apagant-se as luzes. Barulho ensurdecedor de tren.) SEGUNDO ATO (Interior do trem) PEDRO Engracado, rapaz. Voc® jé reparou que o trem té indo direto? HILARIO Direto como? PEDRO Direto, ora. Como é que 0 trem vai direto, inteligente? Td passando sem parar nas stages. J4.€ a terceira que passa sem nem diminuir a velocidade. HILARIO Vai ver 14 descontando 0 attaso. PEDRO Mas devia ter parado ao menos em Bangu, nao € © trem nio é parador? Tem gente que tem que saltar, porra, Vio ter que ir até D. Pedro? DEOLINDO En também jé reparei, Nao sei, mas no tou gostando disso, nao. Esse trem ta correndo esquisito JoKo Sera que © maquinista est dormindo? HiLARIO E bem capaz, PEDRO Nao paga der. BETO Nao € melhor dar uma othadat EOLINDO B, sim. Vamos 4. (Levantam-se Deolindo, Bet, Pedro e Hilévi, Vao até a cabine.) maRuniin que foi, Beto? BETO Nada, meu bem, Acho que 0 maquinista adormeceu. MARINA Por qué? © trem t4 comrendo pra burro e passando direto nas estagbes, ARIINHA Ai, meu Deus do céu. BETO Nio é nada, meu bem zt Nao adianta olhar nada. Eu tou aqui olhando € falando desde que cheguei. Tou falando. Ninguém quer me ouvir. Nao adianta olhar, esse trem no tem maquinista droga nenhuma, ZEFA Fica quieto, ail Té com a cara cheia, Onde j& se vviu trem sem maquinistat 2 Nos States, ora DEOLINDO O bébado tem razio, gente. O trem té sem maquinista, Jono Vamos entrar na cabine, Forga a porta que est trancada, Neco Deixa que eu ajudo, we Otha af, Quem foi que me chamou de bébado? ZEFA Fica quieto! HiLARIO Pedro, vai Ié e puxa o freio de emergéncia. (Pedro ‘i até 0 fundo do vagto, enquanto os outros arrombam a porta da cabine.) voz1 O que é heim? yoz2 T4 dormindo 0 homem? voz 3 Pior. Nao tem maquinista, voz Porra, nfo tem maquinista? voz2 Essa no. vozs Entao pra o trem, (Alto) Puxa o frefo af, seu. you1 Serd que 0 homem foi lé pra trés? voz2 E deixow o trem solto? EOLINDO (Gritando) Pedro, puxa logo o freio de emergéncia. O daqui nfo obedece. Teatro de Juventude - 28 PEDRO {Bo fundo do vagio) }6 puxei. Nao adiantou nada, Jorce (Em voz alta) 1h, compadre. Acho que o tem vai bater. vou2 A gente quer sair daqui. voz Vai bater. HILARIO ‘Vamos ver 0 que se pode fazer. Neco Néo tem que afobat. (Comesa a se estabelecer 0 panico, O grupo de Deolindo tentta impedir que alguns se atirem do trem em alta velocidade.) MAESTRO (Trepado um banco) Vai todo mundo se afogar no mictério! (Black-out. Na escuridao, 0 barulho aumenta. Voltam as luzes, Estamos na estaqio em que terminow 0 primeiro ato. Os passageiros, agora sevoltados com o fato de o trem ter pastado direto, diio pescogdes no Guarda ¢ no Bilheteiro, que se deferdem como podem.) BILHETEIRO Eu no tenho culpa, gente. PASSAGEIRO1 Nao tem, uma ova. PASSAGEIRO2 Vocés jf fazem dé propésito. PASSAGEIRO3 Ta tudo combinado. MULHER $6 server pra abusar dos outros PASSAGEIRO2 86 serve pra sacanear a gente. PASSAGEIROT Desaforo, escuthambagao. PASSAGEIROS. Pica a gente aqui a vida inteira e essa merda, quando vem, passa direto, BILETEIRO Fle tinha ordem pra parat, gente, Olha li, 0 sinal ainda ta fechado. Ele avangou o sinal GUARDA Vocés vao pagar por isso. PASSAGEIRO 1 Fica quieto at, vocé também. Pagar é 0 cacete. PASSAGEIRO3 ‘Tem € que acabar com essa esculhambasio, Pensa que a gente é 0 qué? 30 -OUltme Caro \ / ‘BILHETEIRO . Vé se vocés ouvem, gente. ‘Tem que avisar pras outras estagées. PASSAGEIRO 1 Avisar 0 qué? BILHETEIRO Té acontecendo alguma coisa, gente, Isso no € normal. Esse trem vai acabar batendo, Vai morrer todo mundo. £ a terceira estagéo que tinha de parar e passa direto. PASSAGEIRO 2 ‘Ta dizendo a verdade, homem? BILHETEIRO Pois vocés nao tdo vendo o sinal fechado? Me solta, gente. Eu tenho que comunicar pras outras ‘stages. Vem trem subindo na mesma linha. Tem que avisar pra desviar tudo, Senio vai morrer muita gente, PASSAGEIRO 1 Solta eles. (Os passageiros soltam: 0 Bilheteiro ¢ 0 Guarda, que correm pra bilheteria. Corte para 0 filme, Nao no telégrafo, No telefone, Rotativn de Jornais. Multidées nas estagoes. Em volta de jornais. ‘Em volta das bancas, por toda a cidade. Desaparece 0 filme. Corta para o tren.) vozes Socorro! A gente vai morrer agui dentro! Socorro! EOLINDO Calma, calma! PEDRO Nao adianta apavorar. vELHA, Judith? Vern cé, menina! vozes Pelo amor de Deus! Socorro! Acudam! BEATO (Sobreponda-se as outras vozes) Oh, Deus misericordioso! Neco E preciso calma, Sendo nao se pode fazer nada HILARIO Gritar ¢ correr nfo adianta, BEATO Declara os que séo culpados, culpados. J0k0 Nao adianta nada. MARUINHA Beto, vem cé, Beto! BEATO Bos que sto inocentes de culpa, declara-os inocentes, 6 Deus. HILARIO, “Tem calma, Tem calma. NECO Nao adianta ninguém gritax MARINA Ai, Beto, (Chora histericamente.) vozes Pelo amor de Deus, socorro! Nao adianta, Vai tudo ‘morter, Vamos saltar. Socorro, minha miezinha! MAESTRO Vai tudo morrer no mictério. vozes Socorro! Misericérdial Bero ‘Tem calma, Mariinha, Se controla. DEOLINDO Pedro mais Neco. Vao por todo o trem procurar (08 freios de emergéncia. Vé se algum funciona. A gente fica segurando esse pessoal! (Neco e Pedro saemt. Deolindlo sobe mur bance.) Olha, gente, vocés precisam parar com essa correria. Nés ‘vamos ver o que se pode fazer PEDRO Correndo e bertando s6 atrapalha, sé serve pra atrapalhar. JORGE , gente, Eu acho que quem sabe nao dava pra gente pular PEDRO ‘Voce té maluco, rapaz? Joho Nessa velocidade? Jone A gente tem que pulas, compadte. PEDRO Nao d& pra pular EOLINDO ‘Mesmo que desse, HILARIO ular pra que? Jorse (Fora de si) Pular, sim. Ea vou pular, BEATO E aos culpados, 6 Deus de misericérdia... Jorce Vou saltar, sim. 4oKo Nao faz besteira, HILARIO Quer morrer? BEATO Langa-os fora por causa da multidao das suas transgressdes, Jorse Eu vou saltas, compadre. Pra avisar as estacoes. Pra salvar todo mundo, Eu vou saltar. (Corre ‘Para a porta. Jodo se atraca com ele, mas Jorge consegue desvencithar-se. Pedro dé-Ihe wm murro. Fle cai, orna a se levantar e ativa-se para a outra porta aberta,) Eu vou saltar, vou saltar, (Tropera ens Judith, que brincava na urina e é projetada para fora do trem, enquanto Jorge cai ao chito. Na sua ‘mao fica um pedaco do vestido da menina. Hildrio consegue imobilizé-lo,) BEATO E que no horror e no desespero encontrem a expiagao dos seus pecados. Jorse (Othando apalermado para o pedago de vestido) Ela cain, HILARIO Seu fillho da putal Viu o que voce fer? (Comega a esrnurrar Jorge.) ‘Toma, toma, toma... ECO Para com isso, Hildrio! Voct vai matar 0 rapaz. HILARIO Ea menina ndo morreu? Nio morreu? DEOLINDO Para, Hilério, a culpa nao é dele! HILARIO Bu te mato, miserével, eu te mato. (Comega a chorar e esnnurrar, impotente, 0 chao.) DEOLINDO (Contido) Péra, Hilario. Ainda tem muita crianga nesse trem, A gente tem que pensar nelas, Sendo elas vio morrer também, E nés todos vamos morter juntos. A gente precisa se acalmar. Ter a ccabeca fria, JORGE (Apalermado) Bla caiu. (Fica de joelhos, com 0 pedago de pano enire as maos e repetindo as frases que se seguem até o final da pera.) Nao foi culpa minha, num é, compadre? Ela tava al. Ba num vi Depois que eu vi, Bla caiu, Acho que ela vai avisar. (Fala e olha com ar desamparado,) BEATO (Gritando) Langa-os fora por sua iniqiiidade HILARIO (Berrando para o Beato) Péra com isso, seu filho da puta. (Faz-se siibito siléncio. Beato olha para Hildrio, Pedro e Neco volta.) PEDRO Ded, nada feito. Acho que ta tudo: enguicado. (Os passageiros aglomerasn-se emt volta dos dois. O Beato otha fixo. Siléucio, Alguns se deslocam para perto do Beato, Outros para as portas ¢ janelas. As ‘Teatro da Juventude - 31 OUT falas seguintes devem ser lentas, tendo como fundo ‘ruldo do trem. Jorge faz 0 pedaco de vestido de Judith lutuar e olka para ele fascirado, repetindo suas falas.) veLHA Judith, vem cd, Judith, Essa menina. (Pausa longa) CAMPONES 1 K cocada. Nio foi culpa minha, Bu ouvi cinqienta. JORGE Ela caiu, Eu num vi smewvo Embalhé. Doce de leite Embalhé. MAESTRO. Um mictorio é um mictério. ‘camponés 2 Se'num adianta, num adianta, O que tiver de acontecer acontece, WARUINHA (Comtega « chorar, # wm choro longo, que se miisturn ao siléncio, as falas esparsas e ao barulho das vodas do trem, De repente, um outro trem za, 0 rufdo das rodas aumenta brutalmente, misturado a um apito. O panico volta a se estabelecer, Muitos passageiros se atiram no chao.) vozes Socorro! Meu Deus! Minha Nossa Senhora de Fatima! Minha Santa Rital Acudam! annua ‘Agente vai morrer, Beto. £ castigo! BEAT Castigo! Castigo! Pois se aborreceram das tuas obras. Langa-os fora, pois se rebelaram contra t Joko ‘A gente tem de parar esse trem de qualquer jeito. HILARIO Vamos experimentar todos 08 freios de novo. EOLINDO Quem sabe dé certo dessa vez. Vocé e o Neco tentam If atrés, no siltimo carro, Pedro! Voce € 0 Hilério tentam no terceiro. Bu vou tentar na cabine da frente de novo, (Para Jono e Beto) Voces vvém comigo. JOROE BETO Vamos, vamos sim, (Todos se movimerstam. O Beato comesa a falar. Suavemsente, agora.) BEATO Castigo para os que se rebelaram contra ti, is que o momento da justiga é chegado. Gresceu © {mpio como a erva daninha, que no crepasculo ilude a foice do segador. Mas a flor noturna da iniquidade cedo racebers em suas pétalas 232-0 Uhime carro ‘0 beijo ardente do orvalho. E eis que pereceré, e com ela teus inimigos, pois suas pétalas serio abrasadas seus gemidos dispersos pelos ventos. B deles nfo restaré meméria rnem testemunho haveré de sua passager. ‘Mas os que me seguem, estes entraro pela porta da frente em tua casa e estardo diante da tua face e pot ti serio vistos © poderao te ver sem que Ihes cegues 0s olhos, pois a ti favorecem, reconhecendo em meus lébios as tuas palavras E com elas sto conformes e nelas encontram guarida, (Alguns passageiros comegam a se ajoelhar em volta do Beato e a orar, A reza lentamente vai se transformando em um canto de procissao. A titania continua. Corte para o filme. Panordmica de wna ‘grande procissio com 0 andor da Virgem. A cfimera ‘se aproxima do rosto, que forna toda a tela. Corte ‘para a fachada de uma igreja, Corte para detalhes do interior: rostos,pés de santos, mifos,altares barracos. A mnisica se mistura ao “Messias” de Haendel ¢ a pontos de macumba. Parordrmica da cidade, Pessoas se deslocando ras ras. Corte para 0 mar. Corte para uma ceriménia de candomblé no dia de Sao Silvestre. Um beato que prega na Avenida Copacabana em meio ao ruido dos transeuntes. Parada militar. Central do Brasil, Desaparece 0 filme. A musica se transforma de novo na litania dos fii, agora distante, A cena passa para o iltimo vagao. A Prostituta sai da cabine, seguida por Cica.) RuIvo {Puxando-a) Vamos nés, minba filla. icataiz, (Ao Ruive) Que barulho é esse? RuIvo Sei ld Vai ver algum pau [4 na frente. cicaTRiZ, Parece mais cantoria de procissio. Rulvo ‘Agora parece. Vai ver € algum beato. cicaTRIZ, Esse cara vai acabar acordando todo o trem € melando o trabalho da gente. RuIvo ‘Vamos, minha filha. (Leva a Prostituta para a cabine, Cica vai observar a passagem do vagio. Depois vai até onde AntOnio esté catd, segura-o pelos bragos e coloca-o no Banco.) cicaraz Vamos li, meu camaradinha, Te arruma ai nesse tbanco que vem uns otérios, Nao pega bem tu ficar estirado na passagem. Vao pensar que andou levando um corretivo, (Colca Zico no banco também, Entram ma carro Joao e Neco. Abrem wma pportinhola © puxarn o freio de emergéncia.) Neco Nio adianta, Nao funciona mesmo, soko Vamos tentar na cabine. icarrz (Calocando-se na passagem) Vio a algum lugar? soko Vamos, sim, Por qué? cicara, Bosso saber aonde & Neco Ora, nfo amola, rapaz. (Vai passar.) ‘icarruz (Puxando a navalha) Jé néo ouviu perguntar onde € que vio? ECO, Vai fazer gracinha, € cacarniz ‘Gnome do jogo € voce que escolhe. soko Fica quieto, Neco, B assalt. ercarez Por enguanto eu nao tou assaltando ainguém, $6 quero saber aonde € que vao. NECO Escuta, velho, A gente tem que parar 0 trem, cacaraz O freio de emergéncia ¢ ali, meu chapa, 200. i Nao funciona. Nés jé puxamos, no funciona cicaraiz Entto espera chegar na estagao. Na estagio 0 maquinista costuma parar o trem. ECO Deixa a gente passar, seu. O trem ta correndo doido, sem maquinista. Pode matar todo mundo. Deixa’a gente passar. Pelo amor que tem & tua cicaraiz Deixa a velha em paz. (Chaia,) Ruivo, vem cd. (Mais alto) Ruivo, vem cf. Ruivo (Sai da cabine ajeitando @ roupa.) O que & que hé, meu irmo? Pensa que eu sou galo? Que ¢ isso af? 4 é freguesia pra mina? sicareiz Nao. Diz que 0 trem desembestou. Vio entrar na cabine pra tentar parar, Agora pode passer. (Os outros vio correndo para a cabjine,) cicarniz (Para 0 Ruivo) Olha, velho, pelo jeito essa merda i se estourar jf, jf Ruvo Mas 0 que que ha crcarniz Tw burro, heim? Nao ouviu, nto? (Seem Joao e Neco da cabine. No mesmo instante, entra Deolindo cons os outros, vindos da frente.) EOLINDO Como & que é Neco Nada. EOLINDO Entio no adianta mesmo. A gente tem que dar outro jeito. Joho Nao vejo qual. Neco Acho que s6 tem é que esperar: Ou pular, como queria o Jorge. Vai ver ele tinha razao. crcarniz Ruivo, na primeira a gente se manda dessa josa. Ruvo Vamos garantir o lete das criangas (Cieatriz puxa a navalha ¢ Ruivo, 0 revélver.) cicataiz Ja que vocés estio dispostos a enfiar 0 paleté de madeira, a erva fica melhor na nossa manjedoura, née Ruivo ‘Vao passando as inftis, antes que me zangue. (Mete as maos nos operdrios, tivando-lhes as carteiras.) cicarniz E@bom ninguém piscar 0 tho de mau jeito que en inauguro logo uma avenida nulvo E Jd viu que « maquininha aqui tem medalha automética. Vai tudo desfilar condecorado se eu cortar a fita. Que nem marechal em dia de paradal (Nao perceberam os movimentos da Prostituta € de Anténio, que se havia recuperado. Ela dé uma sapatada na mao de Ruivo, que atira a esmo e em seguida cai, apanhado por um rapa de Antonio. Neco aproveita e apartha o revélver. Beto avanga para Cicatriz, mas & derrubado com uma pernada. Cicatriz dé um salto felino para tras, evitando aa mesmo tempo Deolindo ¢ Jono ¢ ameagando com a navatha, Hilério imobilizou Ruivo, que ainda leva wm pontapé na cara dado por Antonio ¢ desmaia,) Teatro da Joventude - 33 EO cicarRiz Eeeceeepa! Pera ld, meu irméo, (Para Neco) Vai atirar? Besteira. (Ameaga com a navalha,) Atira, nao! (Anténio avanca. Cicatriz, répido, sai de lado e passa-lhe a navalha na barriga. Neco atira, 0 ‘ev6lver falha, Cicatriz pula, rindo, em cima de um dos baricos. Para Neco) Nao adianta cutucat, meu chapa, $6 tinha um pintassilgo na gaiola. E 0 assustado deixou fugir. Tu ndo viu? Saiu voando agorinha mesmo. (Para AntOnio, que & amparado pela Prostituta) Esse af tava pedindo. Como é que @ Ninguém mais quer se mexer? Té todo mundo com medinho de morrer? Mas vai morrer! Porque © trem nao vai parar € ninguém vai ter peito de saltar dele andando. Me dé até vontade de rit. Vocés passam a vida esperando pela morte dentro dessa geringonga. Esse trem nao para, seus bestas. [4 sempre andando com voces. Voces pensam que entram e saem dele todo dia, mas estio enganados! Voces ja nasceram aqui dentro. E tio sempre nascendo pra encher essa lata velha que catrega voces. (Ri,) Vocés téo sempre resmungando que essa lata ndo presta, tA sempre atrasada e isso e aquilo, mas to s6 enchendo a lata, nascendo e enchendo ela com a cara de vocés, com a covardia de voces, o sor fedorento ea merda de vocts. Até que um dia cla arrebenta.! E voces resmungando da porra do atraso, Seus merdas. Esse trem nio tem que obedecer hordrio nenhum. Nao sabem disso? Nao sabem? Aqui dentro num tem tempo. Que que voces sio: tu é pedreiro, velho? Constr6i casa, edificio, constréi? Constréi merda nenhuma. Tu nunca saiu daqui. Tuas paredes s8o essas, Tu evantou clas e elas te fecharam. Sai daqui, pedreiro, sai, Sai nada, pensa que sai. Num pensa que € saltando direitinho nas estagdes que voct se livra das paredes, ndo. Blas vao atrés de ti, Lugar de macho na briga é brigando dentro dela pra sair com a vida nos dentes. Tem que furar caminho. Saltar do trem em movimento. DEOLINDO. Quem salta do trem andando t4 é caindo fora da briga, néo ti brigando ela. cicareiz Tu é bestal DEOLINDO Sou ndo, sou gente, Nao sei se fui eu quem Jevantou essas paredes, mas sei que foi um como eu que levantou. E outro como eu que fez essa maquina, e outro botou pra andar. E se ela desembestou é que td faltando um de nés pra controlar. Por isso ela t4 correndo para a morte, 34-0Ultimo Carro Que nem voce, Que briga muito, mas s6 briga no caminho errado cicarRiz Tu é besta mesmo. E fecha essa latrina se ndo quer que te retalhe. (Para a Prostituta) Quer vir comigo, minha filha? Entdo fica, sua puta velha, Se atrebenta também junto com eles. (Salta do trem, Ouve-se 0 seu grito,) Atiral Atica pra matar, seus cachorros! Mas eu levo um pro inferno comigo. (Juntamente corm os gritos, inicia-se um Liroteio, Corte para a tela. Projegao de fotografias de Cara de Cavalo e outros bandidos fuzilados pela policia, Projecio de manchetes de jornais e revistas, referentes aos bandidos, Os tiros continuam sempre, Acendem-se luzes no primeiro vagdo. Desaparecem 0s tiros e a projegio,) BEATO Eu sou a luz que desceu ao coragéo endurecido do mundo. Vinde a mim os que sois exaustos ¢ oprimidos. Aprendei de mim a humildade ¢ mansidao. ‘Tomai sobre v6s 0 meu jugo, pois que o meu fardo é leve e esta viagem sem fim. Mas nela encontrarcis © esquecimento do vosso corpo a glorificagao para as vossas almas, Bis que o meu jogo € stave, (Mariinha, @ medida que o Beato fala, levanta para ele 0s olhos como que iluminada, Depois atira-se aos seus pés e, chorando, abraca-lhe as pernas.) MARINHA Perdao, meu paizinho, eu pequei contra Deus. Mas en nao quero morrer. BEATO Os que me seguem serdio perdoados pelo Senhor: MARIINHA (Chorando histericamente) Mas eu nao quero morter, no quero morrer. (Alguns comegam a sgritar, desesperados: “Eu no quero morrer”: Repete- se 0 grito de Cicatriz. Corte para a tela, A camera passa rapidamente pelos vagées. Corte para 0 fotograma de um homem inteiramente arrebentado ‘no meio dos dormentes. E Cicatriz. A clmera corre sobre a linha férrea. Fotograma de Judith. Corte para Jorge, girando com a roupa de Judith como se {fosse um estandarte. Corte para o tiltimo carro, A Prostituta, com as méos no rosto, grita, aterrorizada.) Joho Calma, moga, calma DEOLINDO . Pra ele nao tinha mais nenhuma saida. BETO O que a gente vai fazer? DEOLINDO Acho qué 86 tem uma solugto. Trazer todo mundo pra cé-e tentar desligar esse carro do resto da composigao, Os ferros que apsiam as correntes das passagens dos vag6es podem servir de alavanca. Neco E muito dificil, isso, DEOLINDO Eu sei, Mas a gente tem que tentar alguma coisa. PEDRO Vamos M4, gente. HILARIO Vamos. BETO Vamos chamar o pessoal que esté If na frente, DEOLINDO Vamos. (Para Joto Neco) Voces ficam titando os ferros. B vocts dois ajudam a gente a convencer 0 pessoal e a acordar a turma dos outros carros. JoKo Vamos I (Apagam-se as luzes. Corte para a tela. A cdmera avanca por dentro dos diversos vagoes, percorrendo todo o trem, do siltimo ao primeiro carro. A princfpio lentamente, parando em detalhes de portas abertas, janelas quebradas, ventiladores sem pes, homens e criangas dormindo nos bancos. Depois vai acelerando sua marcha até que a imagent se transforme numa massa cinzenta, disforme. Corte Sai tela. A luz acende no primeiro carro.) BEATO (Reza com iniimeros passageiras ajoelhados d sua volta, Os operérios entram no vagao,) DEOLINDO ‘Vam'bora, gente, Vamos todos lé pro carro, BETO ‘Vamos, Mariinha, vamos I pra trés. MARUNHA Nao, Beto, eu no quero sair daqui. Joho Vamos, pessoal Moca Pra qué? DEOLINDO A gente vai tentar separar 0 tiltimo carro do resto da composigao, Se se conseguir, pode-se salvar muita gente, Mas tem que ir todo mundo If pra tds. Error tery HILARIO E bom andar depressa, minha gente, Quanto mais tempo ficarem aqui na frente pior. (Alguns passageiros se dispoem a acompanht-los e comegam a levantar-se.) BEATO (Gritando) Ninguém sai daqui. Lé atrds esté a danacio. $6 ha uma salvagio. A salvagdo em Dens pela oracio. JOKo © importante ¢ todo mundo sair daqui. BETO Vamos, Mariinha, BEATO ‘Ninguém sai. Bu sou a verdade! E este €0 mew templo, De joelhos! De joethos ou o raio da justica se arrebentard sobre as suas cabegas (Alguns passageiros voltam a ajoelhar-se.) DEOLINDO Gente, o trem vai bater! Vai bater! Vocés nao podem ficar aqui sem fazer nada, iezando, se deixando morrer. Ficar aqui é suicidio. Vamos 1é pra trés, Vamos ver se a gente se salva tudo junto, PASSAGEIRO © mogo tem razao, vamos Ié pra tras, MAESTRO | Vamos todos pro mictério. PASSAGEIRO Vamos todos, vamos. BEATO Fulmina-os, Senhor, porque nfo hé retidao em suas palavras ¢ suas gargahtas so sepulcros abertos. (Forma-se ligeiro tumulto.) EFA ‘Vamos Mi pra tras, Zé? ze Vamos coisa nenhuma, Eu tou com 0 santo. Ele disse pra ficat, eu fico. ZEFA Isso la é santo? B santo coisa nenhuma, Té & maluco, Tu nao té vendo? ze E daft J4 viste santo que nao fosse maluco? Eu fico com 0 santo, pronto. PASSAGEIROS Eu fico com o santo! Vamos lé pra tris! Eu fico também! Eu vou! Nés ficamos! Ficarnos com 0 santo! Pra trés! Pra trés! Eu quero ficar! NECO Quem ndo quiser ir que fique, O resto vein pra tras. (Vao sair. O Beato coloca-se na passagem, impedindo a safda.) Teatro da Juventude - 35 BEATO ‘Ninguém sai. Esse € 0 meu rebanho € eu sou o seu pastor. Esta viagem € a minha viagem, DEOLINDO Sai da frente, seu Beato. Sendo a gente vai ter que tirar o senhor pela forga. Nao vamos morrer por sua causa, ndo, BEATO Eu vejo. Bu vejo os fariseus que te ofendem € humilham no caminho do calvério. PEDRO Foi o senhor que pediu, seu Beato, (Tira 0 Beato da passagem) DEOLINDO Vio saindo, gente. (Alguns passageiros comegam a sair do vagio, indo para o fundo, No ar, levantado ‘por Pedro, o Beato abre os bragos para o alto, Pedro ‘gira com ele.) BEATO Essa guerra € a minha guerral Morte aos fariseus! vores Morte! Morte aos fariseus! (Os seguidores do Beato comtegam a agredir os demais passageiros. A briga se generaliza, Pedro & derrubado e pisado,) ze Ai, seu santo. Dé neles. ZEFA, Vam'bora, Zé. ze Nao amola, mulher. Vai vocé. ZEA ‘Tu t4 maluco também. Vou mesmo. (Sai para 0 fundo pelo meio da briga.) BETO Mariinha, vamos, Mariinha! MARINA . Eu fico aqui, Beto. Bu fico. (No meio da briga 0 ‘Beato comega a cantar ent voz alta, Deolindo, Joao, “Hilirio e Neco vao empurrando os passageiros que ‘podem pela passagenn. Os fidis comegant a se ajoelhar. ‘Neco apamha Pedro nas costas e sai corn ele.) DEOLINDO Vio saindo, gente. Acordem o pessoal que ainda esti dormindo nos bancos dos outros carros. Véo pasando, vio acordando. As criangas voces pegam no colo. Joao (Para a Moga) Vai lé pra trés com os outros. mM Eecer JOK0 : . : ‘Nés ficamos, Ainda tem muita gente aqui. Vamos tentar convencer 36 - OUlime carro Moca (Para Beto) E Mariinha? BETO Pode deixar. Eu levo ela EOLINDO melhor vocts irem todos embora. Néo adianta mais. Os outros nao ao mesmo. Bu fico com 0 rapaz pra tentar levar a mocinha. Assim que chegarem, véo separando 0 carro. Esperem s6 uns segundos. Se néo der pra gente chegar, azar. Nao vio sactificar o resto s6 por nés trés. JOK0, Hsta bem, amigo velho. Tamos te esperando. Vamos gente. (Saem.) BETO ‘Vem, Mariinha, vamos sait daqui. MARINHA Nao, Beto, nfo, nao. DEOLINDO . Vem, moa. Vocés tém muita vida pra viver. BETO. a. Mariinha, eu vou te levar que qualquer jeito. MARIINHA (Livrando-se dele e abragando-se aos pés do Beto) Nao, nao, meu pai, me acuda, meu paizinho. Ble... meu pai... ele € 0 culpado. Me arrastou pro pecado, agora quer me levar pro inferno. Me acuda, meu pai. DEOLINDO, (A-Beto) ‘Tem calma, rapa. BETO (Ajoethando-se ao lado dela ¢ tomando-Ihe 0 rosto ‘nas miios) Eu quero € te salvar, Mariinha, Salvar ‘© nosso filho. MARINA Filho do pecado. Bu no quero 0 filho do pecado. BETO ‘Que pecado, Mariinha? Se querer ndo pode ser pecado, Pecado ¢ se'deixar morrer assim. A gente tem que viver, Mariinha. A vida respondeu a0 amor da gente com outra vida. A gente tem que dar uma resposta também. E s6 pode responder certo, vivendo. Amando, futando e sofrendo junto pra melhorar a vida. Nao € s6 se entregando nem fugindo, Mariinha, © beato ta cerrado, Se a gente s6 encontra Deus na morte, entéo é melhor nio encontrar nunca. Vamos 1é pra trés, Mariinha, La atrds tem a gente que quer viver. Vamos, Mariinha MARINA Nao, nao, Tira @ mao de mim. DEOLINDO Leva ela a forga, rapaz, Bu te protejo. (Beto levanta Mariinka nos bragos. Deolindo se agarra 40 Beato, inspedindo-o de mover-se. Os figis tentam barrar a fuga de Beto.) Foge, rapaz, leva la, (Beto sai com a moga, que se debate em seus bragos. Gira rapidamente, evita os outros e sai do vagio. Os fiéis agridem Deolindo, enguanto 0 Beato levarita os bragos para 0 céu, Deolindo vai caindo, abragado sempre ao Beato ¢ escorregando pelo seu corpo até 0 chao. Corte para o filme, Beto carregando Mariinha através dos vagdes. Mariinha vai parando de se debater e comega a acariciar a cabeca de Beto. Beijam-se. Ouve-se ruido de marteladas que vai aumentando gradativaniente, Sai filme, A Prostituta aparece a porta do primeiro vagio ¢ vai ajoelhar-se onde esté Deolindo, colacando a cabega dele em seu colo e acariciando-Ihe os cabelos. Zefa também entra de volta no vagio. As falas seguintes sto lentas, pontuadas pelo ruido das rodas de ferro batendo.) ZEFA ‘Tu ndo vai mesmo, Zé? ze ‘Nao chateia, mulher. Voltaste, & (Zefa sentta-se & fica olhando para Zé.) VELHA Judith, minha filha, vem c4. Essa menina... MENINO Embalhé, embalhé. JORGE Ela tava al, Caiu. ‘CAMPONES 1 Eu num queria prejudicar ninguém... ‘cAMPONES2 O destino € 0 destino. BeATO (Rezando em vor, baixa) Senhor, em teu esplendor me inclinarei. Do teu esplendor meus olhos nao tomarso conhecimento, pois minha nuca estaré curvada diante de ti € meus alhos pousados ali, onde os joelhos suportam 0 peso de todas as culpas. (Durante essa fala, 0 ruido de rodas e ferros deve aumentar sempre. O Beato também vai aumentando 0 volume de sua voz e a intensidade da oragto. A Aleluia volta a ser cantada,) BETO ‘Todos os que de ti se afastaram sentitéo 0 frio e agudo corte da lamina @ hio de chorar sem verter lagrimas, gritar sem que seus ouvidos alcancem © som da mesma vor, caminhar perdidos da prépria sombra. (De repente, um grande solavanco. As luzes se apagam. Corte para o filme, que mostra 0 carro que {foi separado e 0s rostos ansiosos dos que foram para 14, Depois, o vagto correndo sozinho e gradativamente diminuindo a velocidade até paar. Corte para o resto da composigio, que continua ent alta velocidade. O ruido das rodas aumenta. A Aleluia vai ao paroxismno, Black out. Um grande estrondo, Na tela, a foto de ur desastre de trent, Composigées engavetadas, corpos pendurados mutilados, Diante da fotografia, que toma todo 0 espago cénico, trés mulheres vestidas de negro esto voltadas para o piiblico. Uma delas é bent jovern: dezesseis a dezoito anos. Outra tem entre trinta € 35 ea terceira é uma velha. Lamento,) CORODAS TRES MULHERES Ele era meu pai, moso, meu homem, meu filho. Ele era calado, alegre, carinhoso, tabugento. Gostava muito de ficar na porta aos domingos, sentado na cadeira e esticando uma conversa com (05 amigos. E era trabalhador como poucos, como poucos. Como poucos, mogo, como poucos. (A mais jovem se destaca e fala sozinha.) MULHER1 Ta sempre nesse trem. ‘Antes chegava perto da minha cama e ficava olhando assim, calado, depois ia MULHER2 Levantava téo cedo, mogo. ‘Tao cedo pra pegar esse trem. Tao cedo e jd de brincadeira, atrapalhando a gente na cozinha, apertando a gente sem querer abandonar 0 calor do nosso corpo, sempre brincando, Da rua dava adeus, sumia, ‘mas sia mao ficava dangando no ar, no olho da gente, até esconder-se embaixo das cobertas € adormecer em nosso peito. muLHeR 3 Tomava tao apressado o café... Tanta pressa... pra qué, meu filho? Tanta pressal Eu ajeitava a camisa dele, sempre pra fora da alga, ¢ ficava na porta até que seus ombros curvassem a esquina. “Lembra tanto 0 pai” Era arrimo, mogo. ‘Teatro da Juventude - 37 EO Tes coro Arrimo, arrimo. Trabalhador como poucos, como poucos. Deolindo, mogo, Deolindo era 0 seu nome. Hilério, José de Souza, Isaltino, Pedro, mogo. Ble tinha defeitos, moso. O senhor nao tem? Ele era tao diverso do senhor, mogo, ¢ no entanto igual. 38 - 0 Uitime Caro FIM Ele ia para o trabalho de trem. E 0 senhor, mogo, permi como viaja? De énibus, carro, avido? Seu trem tem rumo? ‘Aonde o conduz? A estagio mais préxima? O senhor, mogo, perdoe. Qual é a estacéo mais préxima? A mesma de ontem? A mesma de ontem? A MESMA de ontem? A MESMA DE ONTEM?

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