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DISEGNO. DESENHO. DESiENI 0 Edith Derdyk Ce IPZ LOLLY Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Disegno. Desenho. Designio | orgarizagdo Edith Derdy. - So Paulo : Editora Senac Sio Paulo, 2007. Varios autores. Biblioarafia, ISBN 978-85-7359-645-8, 1 Desenhos 2.desenhistas |. Derdyk, Eth, 07-9176 c0p-741 indice para catilogo sistem 1. Desenhos : Artes visuais 741 Um corpo que danga ~ dele geralmente se fala como se seus movimentos dese- nhassem algo no ar. A perna risca, 0 braco vai cortando 0 espaco. Parecem surgir linhas que vao formando um desenho. Desenho de que mesmo? O que esse desenho pode representar? Para muitos, esse desenho representa justamente a danga que o corpo faz. 0 equivoco de tal entendimento est no fato de que ndo se pode reduzir a danga a deslocamentos espaciais, porque eles podem simplesmente no acon- tecer e, mesmo assim, aquele evento continuar a ser um evento de danca. Existem muitas dancas em que a espacialidade € explorada de modos muito inusitados, sem pernas nem bragos riscando o a. Exatamente por isso, para entender com mais propriedade a relagao dese- nho-danga, vamos precisar de um pouco de Richard Dawkins," um dos mais influentes e polémicos cientistas que hoje estudam a teoria da evolucdo. Espe- cialmente em dois de seus livros? Dawkins apresenta argumentos contunden- tes a respeito da relagdo entre designio/design e evolugao. A principio, Dawkins nos lembra de duas coisas preciosas: 1) que estamos acostumados a pensar que todo objeto complexo € fruto de um design premeditado; 2) que acreditamos que existe um autor consciente, que planeja € delibera por tras de tudo o que é complexo. ‘ard Dawkins nace em Nari, no Qué, mt 84, Etudu a Inge, ensinou z0lg3 nas Universi (avira de Oster ane em 198, pasou x cup cited de Conpreensta Pubes da Cees, radaespecimente > iu Dankin A esclada co monte igrovve So aula: Compania ds Leta, 198; O rl ceg (Sto Paulo comum que quanto mais extraordinario algo nos parece ser, mais se supoe que ele tenha resultado de um designio ou de um planejamento. 0 modo como as coisas complexas esto arranjadas surpreende sempre e faz com que muitos continuem a duvidar de que toda aquela perfeig¢ao possa ter se dado sem que alguém a tivesse desenhado. A explicacao para esse fato é simples: a maior parte das pessoas ainda pensa na evolugdo como um processo inteiramente aleatério, desconhecendo que a selegdo natural nao acontece por acaso € que a parte aleatéria da evolucao é a variat 0 corpo & complexo € design é planejamento. Design é a organizagao das partes de um todo, de modo que os componentes produzam o que foi planeja~ do. Sé que esse arranjo é sempre improvavel, seja 0 design de algo extraordiné- rio ou nao. E isso ocorre porque 0 niimero de modos pelos quais as partes podem ser combinadas ¢ excessivo. Cada arranjo nao passa de uma entre uma quantidade enorme de possibilidades. Ou seja, cada arranjo realizado € tao improvavel quanto todos os outros, nao realizados. Os arranjos excepcionais, os que impressionam pela sua perfeicao, lem- bram mesmo projetos de engenheiros ou de relojociros. Esses, para quem nao tem familiaridade com a teoria da evolucdo, sao ainda mais dificeis de com- preender como resultados de uma “perfeicdo improvavel’. Parece mais natu- ral atribui-los a um superplanejador, seja um deus ou um "designer inteli- gente", Duro mesmo é explicar que a seleco natural nao prevé nem planeja, uma vez que no tem propésito em vista, mas ndo é aleatéria e produz resul- tados extraordinarios. Um corpo que danga acomoda duas das instancias indispensaveis para a evolugdo: variagio (aleatéria) e selecdo (cumulativa). 0 desconhecimento de que existe uma enorme diferenga entre a operacdo de uma € a de outra se constitui na grande dificuldade de quem nao conhece a teoria para avalia com propriedade. Parece mais facil aos detratores continuar a atacar a teoria da evolugo, como se ela propusesse apenas o aleatério como regra de funcio- namento do mundo ~ 0 que, de fato, no ocorre. Na natureza, as transformagdes sao graduais, se dio passo a passo. Na evo- lugdo, nao ha saltos repentinos, ndo ha retrocessos e ha mais de uma maneira de solucionar o mesmo problema Os eventos que apareceram quando tudo comecou eram suficientemente simples para terem surgido por acaso, e continuaram mudando, em um fluxo que nunca mais estancou. Cada uma dessas mudangas continuou sendo por acaso, ¢ simples em relacdo & mudanga que Ihe antecedia. O que nao acontece 20 acaso é a seqiiéncia integral dos passos cumulativos dessas mudangas. Quando se sabe disso, um corpo dancando deixa muito evidente a sua se- melhanga com a maneita de como a evolucdo opera na natureza. Afinal, a danca se nutre dos ajustes entre aleatério e cumulativo. A cada dia, por causa de todas as informacdes que vio transformando o corpo, ele é sempre um corpo tinico. Assim, qualquer corpo reine uma certa colecdo de informacdes a cada momento de sua vida. E € essa colegdo de informagées na forma de um corpo (que se encontra em transformacao permanente, pois hd muitos tipos de informago que nao param de chegar), é esse corpo ~ do fluxo incessante de trocas de informagao com os ambientes por onde transita - que danca. Por isso, a sua danga ndo pode se repetir, pode apenas ser refeita. Se ele no per- manece 0 mesmo, no pode fazer duas vezes a mesma coisa, simplesmente porque a coisa no pode ser a mesma. No corpo, os eventos so tinicos. Quando se é especialista, conseque-se deduzir a natureza do propésito de um objeto a partir da sua organizacdo. Essa organizacdo € 0 seu design, o modo como as informagées tomam forma, Na vida, a forma que cada animal toma é produzida pelo seu desenvolvimento embrionério, e sio as ligeiras dife- rengas nesse desenvolvimento que produzem a evolucao, diferengas essas que emergem em razao das mutagdes — este, sim, o elemento aleatério do processo. 0 desenvolvimento embriondrio & uma seqiiéncia ordenada de eventos, como 05 procedimentos do preparo de uma torta, masa diferenga é que, no seu caso, a receita inclui passos diferentes que so dados simultaneamente e em muitas partes do seu processo. Embrides erescem por divisio celular € os genes, essa espécie de receita seguida pelas células, atuam nelas localmente. "A forma emerge devido a nu- ‘merosos efeitos locais bem pequenos sobre as células por todo 0 corpo em desenvolvimento, ¢ esses efeitos locais consistem primordialmente em ramifi- cages em duas diregdes, na forma de divi jo da lula em duas direcdes.”* lead Dawns. 0 rej e908 Nesse procedimento, o desenvolvimento pode ser visto como uma regra de desenho para as informagées que constituem o corpo. Fazendo deste um con- texto para a danca, torna-se inviavel aceitar que seu design seja 0 conjunto de riscos e tragos que um corpo faz no ar quando se desloca. Porque ha mais camadas de fendmenos complexos implicados na construgao de uma danga do que somente esses tipos de deslocamento. A proposta aqui é pensar que, quan- do a danca acontece, ela toma uma forma que ¢ 0 seu design, sem separacao temporal entre as duas instncias. Nao existe primeiro um corpo dancando que, entao, vai desenhando no ar a sua danga. Para danear, o corpo-em-mudanea-permanente vai aprendendo movimen- tos de danca por um proceso de combinagdo entre variagdo € selecdo. De todas as possibilidades de relacionamento entre a informagéio que esté che- gando com todas as outras que ja existem nele, apenas uma delas vai ser por ele implementada. 0 aprendizado € baseado em processos de repeticao, que produzem séries de oportunidades para que aquela primeira combinacao alea- toria que se deu va ganhando estabilidade, até que ela possa ser selecionada. Quando isso se dé, esse resultado sempre provisorio dos acordos entre as infor- mages novas e velhas transforma-se no jeito sempre individual de cada corpo realizar 0 mesmo movimento. Esse fluxo de ajustes regula cada momento evo- lutivo do corpo ao longo de toda a sua trajetéria no mundo. 0 importante € nao esquecer que se trata de uma selecdo cumulativa, na qual o que é selecionado nao permanece definitivamente selecionado. Ao con- trério, depois de ser selecionado, adentra novamente a cadeia das probabilida- des combinatérias, sucessivamente. E so necessirias muitas “geragées” se- qiienciais, nas quais 0 ponto final é sempre o ponto de partida para a proxima selego. Nao por outras razdes, cada um de nds se move de modo singular, € essa singularidade vai mudando ao longo do tempo. Como se sabe, todas as células de um corpo contém o mesmo conjunto de genes, € 0 que faz com que elas se comportem de modo especifico é o subcon- junto de genes nelas ativado. “0 efeito que um gene produz, se houver algum, no é uma simples propriedade do proprio gene, mas uma propriedade do gene em interagao com a histéria recente de seu meio."* Para entender em profun- 201 didade esse fluxo incessante de trocas produzindo novos designs, a danca se ‘oferece como 0 melhor estudo de caso dos processos evolutivos de um corpo vivo. No decorrer da vida, a sucessao de experimentos pelos quais passa tende a tornar o corpo cada vez mais habil na tarefa de sobreviver. Seu cérebro vai armazenando uma vasta biblioteca de lembrangas sobre agdes que realizou € seus respectivos resultados. Esse tipo de aquisicao constitui o que se chama de aprendizado. Na danga, 0 que acontece naturalmente em cada corpo humano ganha tragos muito fortes - e, justamente por isso, ela pode nos ajudar a entender melhor que cada corpo é sempre um design da sua propria e exclusiva colegao de informagées de cada momento do seu percurso no mundo. Dizendo de ou- ‘tro modo, todo corpo é sempre um corpomidia,* uma midia de si mesmo, Ele € mmidia de si mesmo, € ndo um veiculo por onde passam as informacdes. O corpo nao é um meio por onde as informagoes séo expressadas, mas um laboratério permanente de processos que vao desenhando a sua forma a cada situacao que s€ apresenta. Por isso, 0 corpo s6 pode mostrar-se a si mesmo, apresentando tudo 0 que 0 constit 0 corpo trabalha por selego cumulativa, no por seledo de um s6 paso ~ a Unica selegao que € puramente aleatéria, porque nao pode antever o futuro em planejar 0 que é bom. Vale sublinhar que no convém associar o sentido -m uma forma especifica. do fenémeno aleatério com 0 de qualquer coisa possivel, pois a variagao se da entre as probabilidades produzidas por cada tipo de informagao. “Apenas uma minoria das coisas que concebivelmente poderiam evoluir sio, de fato, permi- tidas pelo status quo dos processos de desenvolvimento existentes.”* Quando 0 corpo aprende a dancar break, néo encontra probabilidade de vir a dancar como um principe de coreagratia de balé, e vice-versa. Cada corpo vai trabalhar com as pré-adaptagdes especificas de cada danca, 0 processo conhecido por pré-adaptagao refere-se a quando um orgao é usado originalmente para um proposito © depois passa a servir a outro (um pélo que vira espinho, ao longo do tempo da evolucao de determinada espé- ‘conceit de corpoiia tie una cara sobre o corpo tori copomil que ven senda desemolidaplas pega dares elena kate Cvisine Gree em vo stg ele cie). 0 conceito serve como metfora para nomear as refuncionalizacdes que cada técnica de danca faz do corpo. No break, o exemplo mais conhecido € 0 da cabeca, que foi para o cho e passou a ser usada como apoio para pirueta. No balé classico, tem-se a rotacdo externa das pernas ~ ineficiente para andar, ‘mas eficiente para dangar 0 Jago dos cisnes. O que é preciso deixar claro € que a evolugdo nao tem alvos distantes € nao trabalha com nenhum modelo de perfeicdo final. 0 critério da selegao natural € de curto prazo e tem como objetivo a sobrevivéncia via éxito reprodutivo. Em razio de tudo isso, deixa de ser possivel seguir a maioria que usa 0 talento como uma das justificativas para a existéncia de um designio divino. O talento é freqiientemente apresentado como algo que nao pode ser explicado. Nasce-se com ele, que diferencia quem 0 possui de todos 0s outros mortais, nascidos sem ele. Todavia, o nascimento do talento nao obedece as leis que regulam o processo de transmissdo de carascteristicas via hereditariedade dos outros nascimentos do reino dos vivos. 0 talento, nessa légica, pertenceria categoria do -, portanto, seria fruto de um designio. Entretanto, nada “brota” magicamente em um corpo. Tudo depende do que (0 processos embrionarios sao capazes de eriar € manifestar por meio dos seus processos adaptativos. Tudo 0 que acontece ao corpo obedece a essa regra e, assim, 0 talento nao poderia ficar de fora desse modo de funcionar da evolu- ‘620. Dessa forma, ele ndo passa de um entre muitos outros tipos de design que podem criar um corpo. A selecio natural lenta, gradual e cumulativa explica a vida, e a evolugio representa a solueao para 0 problema dos objetos de design complexo que a povoam. E nessa populagao dos objetos de design complexo que se encontra a danga. Bibliografia DAWKINS, Richard, A escalado do monte improvével. So Paulo: Companhia des Letras, 1998. 0 relojoeiro cego. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2001 GREINER, Christine. Corpo. Pistas para estudos indisciplinares. Sdo Paulo: Editora Anna- blume, 2004, KATZ, Helena. Um, dois, trés. A danca é 0 pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005,

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