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João 

Rodrigues
A injustiça social faz muito mal à saúde
 
Jornal de Negócios, 26 de Abril de 2010

O título deste artigo sintetiza a principal conclusão de um notável


relatório lançado recentemente pela Organização Mundial da Saúde.
Coordenado por Michael Marmot, uma referência incontornável na área
dos "determinantes sociais da saúde", ...

Coordenado por Michael Marmot, uma referência incontornável na área dos


"determinantes sociais da saúde", e tendo a colaboração, entre outros
especialistas, do Prémio Nobel da Economia Amartya Sen, este relatório
oferece-nos um retrato realista da extensão das desigualdades nacionais e
internacionais na área da saúde, dos mecanismos sócio-económicos que as
geram e dos principais meios para as superar. Fá-lo através de uma
impressionante recolha de evidência estatística, de estudos de caso e de
análise histórica e institucional. O assunto não admite relativismos de nenhuma
espécie e sobretudo não admite o subjectivismo egoísta que justifica todas as
insanas utopias de mercado. Trata-se aqui de uma questão de vida ou de
morte. E as utopias de mercado matam. Literalmente.

Os EUA são o país mais rico do mundo e o que mais gasta, em percentagem
do PIB, com o seu ineficiente sistema privado de saúde. No entanto, a
esperança média de vida é das mais baixas entre os países desenvolvidos. Um
norte-americano branco e rico pode esperar viver oitenta anos enquanto que
um norte-americano negro e pobre apenas pode esperar viver sessenta e três,
menos um ano do que um habitante das Filipinas. Do outro lado do Atlântico, a
desigual Grã-Bretanha apresenta padrões idênticos. Na cidade de Glasgow,
por exemplo, alguns quilómetros de distância determinam que dois cidadãos de
uma mesma comunidade política possam esperar viver cinquenta e quatro
anos ou oitenta e dois anos.

A maior vulnerabilidade à doença é uma das injúrias mais marcantes das


cavadas divisões de classe. A precariedade laboral, sintoma de vulnerabilidade
numa esfera essencial da vida, também tem um impacto negativo na saúde dos
indivíduos. A identificação de padrões relevantes e dos seus mecanismos
causais multiplica-se ao longo do relatório. Os países com maiores
desigualdades económicas tendem a exibir, para níveis mais ou menos
idênticos de desenvolvimento económico, piores indicadores nesta área. A
maior robustez do Estado Social, a natureza pública da provisão de bens
essenciais, o alcance das políticas públicas de redistribuição ou a maior e
melhor regulação dos mercados, em especial do "mercado de trabalho", são
decisivos para que todos os cidadãos possam ter vidas longas e saudáveis. A
natureza da provisão dos serviços de saúde é obviamente parte essencial
destes "determinantes sociais". Os sistemas públicos e universais, financiados
por impostos progressivos, são, segundo o relatório, a melhor solução. Neste
contexto, conclui-se sensatamente que "a comercialização de bens sociais
vitais, como a educação e a saúde, produz iniquidade na área da saúde". É por
isso que "a provisão destes bens sociais vitais deve ser da responsabilidade do
sector público, em vez de ser deixada aos mercados". A evidência estatística
não mente. Quanto maior é o peso das despesas privadas no total das
despesas em saúde, menor é a esperança de vida. A evidência histórica
também não mente. O relatório tem o grande mérito de nos lembrar
indirectamente, pelos bons exemplos que menciona, dos países nórdicos ao
Estado indiano de Kerala, o que já se sabia por outros estudos: movimentos
sindicais e socialistas com poder ajudam muito.

A saúde das pessoas é então o resultado das suas circunstâncias sociais. É


por isso preciso, como dizia Karl Marx, ter a capacidade de organizar
humanamente essas circunstâncias. Quando tal não acontece, quando os
recursos, as oportunidades e o poder são distribuídos de forma
excessivamente desigual, então, como mostra o relatório, a possibilidade de
grupos sociais bem identificados, por questões de classe, de género ou de
etnia, terem acesso às condições que permitem o florescimento humano é
posta em causa. A teoria social e as nossas melhores intuições morais dizem-
nos assim que estamos perante uma situação de injustiça social evitável. O
relatório mobiliza ambas para nos informar sobre a forma como as múltiplas
faces da injustiça prejudicam a nossa saúde. Como sempre acontece, superá-
las é a tarefa inadiável de uma comunidade política digna desse nome.

Nota: O relatório está disponível em www.who.int/social_determinants. Para


uma boa síntese da literatura académica sobre o assunto, o leitor interessado
pode consultar com proveito Richard Marmot e Richard G. Wilkinson (orgs.),
Social Determinants of Health, Oxford, Oxford University Press, 2006 e Richard
G. Wilkinson, The Impact of Inequality – How to make sick societies healthier,
Londres, Routledge, 2005.

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