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IMIYWIVIVIVIVIVIVIVIMIYINVAY COLEGAD DE ESTUDOS SOCIAIS : VIMIAAMIVIV ISI Le ¥- MK DAA ea SIONE4Y ¢ BEATRICE WEBB UMA NOVA CIVILIZAGCAO 3° VOLUME /M I YY NSN NYA ae VVVVV DAY DOORS De aX} OMA JNAN VV AAP VAAN TON K KK KAS WAVAVAV AVVO AASV ea /N/| WAV AV AVA WV WW WAN MAVAZM, DMNA VWVNVAVV VIVA yh JNANANN NON TAA i OOOO ies AAA ANAL Titulo da edigdo norte-americana SOVIET COMMUNISM A NEW CIVILISATION Edigdo de 1938 Reservados todos of direitos para a lingua portuguesg 9 - Copyright de - Editorial Calvino Limitada Rio de Janeixo — Braail * SUMARIO GERAL Parte I — A Constituicgao CarfruLo I — A CONSTITUICAO COMO UM TODO — Es tudo preliminar — Declaragao dos Direitos dos Traba- balhadores o dos Explorados — Proclamagio da Unido Sovietica. CapituLo II — O HOMEM COMO CIDADAO — Origem do sistema sovietico — A base da piramide — As catego- rias de “privados” — Assembléias de vila — Debates po- liticos — Aco administrativa do Selogoviet (sovict de al- deia) — Salvaguardas administrativas — A vila e seu Poder Executivo — O soviet urbano — O processo de eleicao — Como se realiza a eleicfo — Sugestdes dos elei- tores — Uma eleicao em Moscou — A organizacéo do soviet urbano — Moscou — Leningrado — A cidade 6 seus rayons — Os subbotniki nas cidades — Eleicoes in- diretas — Como foi construida a piramide — O rayon — A oblast — As sete Republicas Federadas — A R.S.F.R. — A Republica da Ucraina — As Republi- cas da Russia Branca e da Transcaucasia — Como ee formou a Uniao Sovieties — A Uniao Federal — O Con- gresso dos Soviets da URSS — Projeto de Reforma Elei- toral — Os orgados do Congresso — O Comité Executivo Central (TSIK) — O Presidium do TSIK — O Conselho dos Comissarios do Povo (Sovynarkom) — O Conselho do Trabalho e da Defesa — Os Comissariados — Os Comis- sariados encarregados dx Produgao e do Comercio — Ran- cos e Caixas Economicas — Seguros — O Comissariado da Defesa — O Exercito como Escola — O Comissariado dos Negocios Exteriores — 0 Comissariado dos Negocios Interiores — A GPU — A Suprema Corte da URSS — O Procurador — O Colegio dos Advogados — O problema das minorias raciais — Autonomia cultural — O advento do Federalismo — A Republica Tartara — A situacao dos Judeus na URSS — A solucao do problema — A ma- autengao da unidade — Novas bases estatais. i sacs mors 768 SIDNEY E BEATRICE WEBB Capftuto 11] — 0 HOMEM COMO PRODUTOR — Segdo I — Sindicalismo sovietico — A historia do sindicalismo na URSS — A estrutura do sindicalismo na URSS — As eleicgdes sindicais na URSS — O Comité sindical de fabrica — Convengées coletivas na URSS — O Conselho Regional dos Sindicatos — O Conselho Sindical da Repu- blica — O Congresso Geral de cada Sindicato — O Con- gresso Geral dos Sindicatos — Estruturas colaterais do sindicalismo na URSS — Os funcionarios sindicais — A transferencia do Comissariado do Trabalho aos sindicatos — 0 trabalho de escritorio do sindicalismo na URSS — Brigadas de Choque e Comités de Contabilidade de Custos — Associacdes profissionais no sindicalismo da URSS — O Profintern — Comparag&o entre o sindicalismo sovie- tico e o da Gra-Bretanha, Segdo IJ — AS ASSOCIACOES DE PRODUTORES-PROPRIETARIOS: a) A Oficina Autonoma — As reunides de associados — O Conselho Regional de Incops — O Conselho Geral das Cooperativas Industriais. b) A Fazenda Coletiva — O camponés im- produtivo — A crise de produtos alimenticios — Aperfei- coamentos experimentais — A prolongada’ discusséo quanto 4s normas a adotar — A politica de coletivizagso universal — A luta pela eficiencia das kolkhoses — A magnitude do problema — A engrenagem estatal para o controle das fazendas coletivas: a) o novo Comissario do Povo: b) os novos departamentos da Agricultura; c) a fiscalizacdo pelos Soviets de Aldeia. — A hierarquia sovietica domina a fazenda coletiva — As estacdes de ma- quinas e tratores — A hierarquia sovietica é reforeada pelo Partido Comunista — O trabalho das Secgdes de Exe- cugio de Normas — Houve fome na Russia em 1931-32? — A vida numa fazenda coletiva — A reuniao dos asso- ciados — A administragio de uma fazenda coletiva — Como se regularizam os litigios — A democracia na agri- cultura — A comuna — Hierarquia dos Produtores-pro- prietarios na agricultura — Os resultados em 1933. ¢) - Asgociagées diversas de Produtores-Proprietarios — Kol- Khoses de pescadores — Cooperativas integrais — Invali- dos de guerra. d) Associagdes de produtorcs artisticos @ intelectuaig — Trabtlhadores artisticos e intelectuais — Pintores, fotégrafos, escultores e arquitetos. O mundo trabalhista na URSS, Capfruto IV — 0 HOMEM COMO CONSUMIDOR — A hie- rarquia do cooperativismo de consumo, na URSS, em 1935 — O Comité de Administragio — A Uniaio de Rayon (Unido Distrital) e sey ‘Conselho (Raisoyus) — A Uniao II. TI. IV. VI. VIL. URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 769 Provincial (de oblast) ou de Republica, e seu Conselho (Oblsoyus) — O Congresso Geral de Cooperativas de Consumo e sua Junta Central para a URSS e RSFSR (Centrosoyus) — Os resultados obtidos — Os rivais das cooperativas de consumo na distribuigdo a retalho — Re- centes invasdes das atribuigdes do movimento cooperati- yo de consumo — O principio do auto-abastecimento — A amplitude do mereado. CarituLto V — ORIENTADORES PROFISSIONAIS — Como surgiu o Partido Comunista — A filiacio ao Partido — As regras da Ordem — O significado da orientacio — O grupo do Partido (antiga “facgdio”) — O orgdo pri- mario do Partido (antiga celula ou nucleo) — A confe- rencia distrital (de rayon) — O congresso da Republica — O congresso do Partido da URSS e da RSFSR — A autoridade central — O Comité Central — Os motivos da. filiagio ao Partido — O expurgo do Partido — Os resultados do expurgo de 1933 — A reorganizacdo inter- na de 1934 — Os Comsomols — Os Pioneiros e Outubris- tas — O Comitern — A natureza do Partido Comunis- ta — Por que, no Comunismo Sovietico, a orientacao na- cional requer uma organizacao complexa. Carituto VI — DITADURA OU DEMOCRACIA? — Que significa “Ditadura” — O Partido é ditador? — Stalin é ditador? — A Ditadura do Proletariado — A URSS 6 uma autocracia? — Em beneficio de quem age o Governo? APENDICE A PARTE I Diagrama da estrutura administrativa da URSS, acompa- nhado de quadros explicativos. Diagrama da estrutura politica d2 URSS, acompanhado de quadros explicativos. Apendice ao Cap. I — Declaracao do Comité Executivo Cen- tral da Unifio das Republicas Socialistas Sovieticas de 18 de julho de 1923. Apendice ao Cap. IT — Poderes e funcées autorizadas do Soviet de aldeia. a veniics ao Cap. II — Secedes e Comissdes dos Soviets de cidade. Apendice ao Cap. II — Nota referente ao Comissariado de Inspecgiio dos Operarios e Camponeses (Rabkrin, ou RKI). Apendice ao Cap. II — Organizagao interna do Narkomat das Sovkhoses. : SIDNEY E BEATRICE WEBB Apendice ao Cap. I] — Organizacéo interna do Narkomat da Agricultura, Apendice ao Cap, IV — Relucfo dos 154 sindicatos entre os quais foram distribuidos em 1934 os associados dos 47 sindicatos de 1931. Deveres e fungoes dos Comités de Fabrica. Apendice ao Cap. III — Convencao coletiva (Kol-dogovur) da Fabrica de Tornos-I'rezadores de Gorki para o ano de 1938-34, Apendice sos Caps. II e VI — A nova Constituigéo e resu- mo dos Direitos do Homem, Parte II — Tendéncias Sociais do Comunismo Sovittice @ CarfruLo VII — LIQUIDACAO DOS LATIFUNDIARIOS E DO CAPITALISMO — A liquidagao dos grandes pro- prietarios rurais pelo campesinato — A expropriacéo dos eapitalistas — Guerra civil e intervencao — O Comu- nismo de Gnerra — A Fome de 1921 — A Nova Politica Economica (NEP) — A perseguicéo 4 Intelligentsia — QO processo contra o Partido Industrial — O processo contra os professores mencheviques — A atitude de Sta- lin — Julgamento dos engenheiros da Metro Vickers -— O assassinio de Kiroy — A liquidacao dos kulaks — As atividades da Tchekx e da GPU — A organizacado da GPU — O trabalho construtivo da GPU — O Procura- dor da URSS — Tres revolugdes numa so — Comparacaéo com a Revolugao Inglesa. Capituto VIII — PRODUCAO PLANEJADA PARA O CON. SUMO DA COMUNIDADE — Como surgiu o planeja- mento — O episodio do controle operario — O Supreno Conselho Economico — O despontar de um plano geral — Exposigao do planejamento por Krassin em 1920 — Desenvolvimento experimental do planejamento — O Gos- plan como autoridade de planejamento — Como 6 feito o plano — O plano provisorio — O objetivo geral do pla- nejamento sovietico — Coletivizagio e mecanizacio da agricultura — O coeficiente de aumento — Divisio da renda nacional entre o consumo corrente e a inversao _ de capital — Defesa Nacional — Desenvolvimento da educagao tecnica — Saude Publica e habitacao — Pro- vimento de reservas adequadas — Financas — O plano final — Eficiencia de uma economia planejada — Re- sultados do planejamento — A discussio mundial sobre | | ee Se en i th A tect EO ti ay i al as eee a - SF eee eee URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 761 o Plano — A alegada impraticabilidade — A indispensa- bilidade de um Plano — O Plano impede as altag e baixas comerciaiz — A aboliciio do desemprego involuntario — A critica do economista abstrato a uma Economia Plane- jada — Resposta comumista a critica do economista — Como poderia ser derribado o Plano Geral — A lei das rendas decrescentes — “Mas o planejamento significa es- cravidio” — Controle pelos consumidores em lugar dos produtores — Controle pelos cidadaos, onde falharam os consumidores — A suposta “coagao ao consumidor” — Maior liberdade de escolha. CapituLo IX — EM LUGAR DO LUCRO — A magnitude da tarefa — A remodelacao dos velhos incentivos — Nao ha } igualdade de remuneracao — Como s4o fixadas as taxas 4 do trabalho por pecs — Fixadores de taxas de remune- | racio — A graduacao dos salarios — Pagamento de acor- do com © valor social — O mecanismo do arbitramento — A smeaca Ga concorrencia estrangeira — O trabalho por conte propria como alternativa do sistema de salarios — Trabalho individual por conta propria — Cultivo de lotes de terra — Trabalho por conta propria em artels, fabris (Incons) — Trabalho por conta propria nas fa- zendus coletivas (kolkhoses) — A complicada rede de acordos de abastecimento — O Bazear (Mercado) — Educacao socialista — Shefstvo, ou patrocinio— Os udar- niki (brigadeiros de choque) — Brigadas de contabili- ; dade de custos — Subbotniki, ou trabalhadores volunta- rios — Uma obrigacdo universal — Uma comparacdo internacional — Honra e vergonha perante o publico — As ordens sovieticas do merito — Desmoralizacdo em - publico — Estimulo 4s sugestdes e aos inventos dos ope- rarios — A multiformidade das ocupagdes — A pratica da auto-critica — Avaliacio universal — O aperfeicgoa- mento da contabilidade — Deficiencias e realizacbes co- munistas — O custo arruinador da inexperiencia — A ineficiencia causada pela superposicfo do controle — Onde estiio os capitaées da industria? — O substituto da caca ao lucro — Continuidede de iniciativa e de aceita- ~ ¢&o de responsabilidade — Uma analise dos produtores. J ‘CarituLo X — A REMODELACAO DO HOMEM — A mu- ther — A maternidade — A infancia — Controle da natalidade — Controle do aborto — A criacao da saude — Como é administrado o Servi¢o de Saude — Dotacio orgamentaria da URSS para o Servico de Saude — A lo- SIDNEY E BEATRICE WEEB tacgio do pessoal do Servico de Saude — Hospitals — ‘Centros medicos — Centros de Saude nas fabricas — Postos rurais de consulta — O Esquadrao Volante — _A Campanha contra a tuberculose — Sanatorios notur- nos — Assistencia publica — Pesquisas medicas — Uma Cidade da Ciencia e Arte da Saude — O estabelecimento da seguranca economica — Como se desenvolve o Siste- ma de Seguranca Economica — Aspectos caracteristicos — Auxilio em caso de morte — Auxilio por enfermidade — Beneficios por invalidez e por velhice — Beneficios para a maternidade — Beneficios por desemprego — Ou- tros beneficios do seguro social — Sanatorios e colonias de repouso — Credito pessoal — Imperfeicdes do siste- ma — Treinamento para a vida — Universalismo — Po- litecnizacéo — A Organizacao do lazer — Cultura fisica — Cultura politica — Cultura artistica — Museus e ga- lerias de pintura — Teatro e bailados — Musica — Lite- ratura — Ferias e divertimentos — A significagio da cultura — A civilizacio de todo um povo — Falhas da educacdo — A modificacio do ambiente — O servico de habitagdes — Planejamento sistematico de cidades — Servigos municipais. Capitulo XI — A CIENCIA, SALVACAO DA HUMANI- DADE — A luta contra a natureza — A organizacdo da pesquisa cientifica — Um Centro de Pesquisas organi- zado dentro do Gosplan — Diretrizes futuras do. plane- jamento — Como se planeja e executa o trabalho de pes- quisa — A Academia de Ciencias — A Academia Comu- nista — Participacgaéo popular nas pesquisas — O tra- balho dos diversos institutos de Pesquisas — Matema- tica e Fisica — Materiais e processos da produgio de bens — Agricultura — Genetica — A luta pela saude — O Instituto Central de Roentgenologia — O Instituto do Cerebro, de Leningrado — O Instituto de Medicina Ex- perimental, de Leningrado —~ O Instituto de Endocrino- logia, de Moscou — A campanha contra o reumatismo — O Instituto Central Aero-Hidro-Dinamico — Expedicées de exploracao — Desigualdade no devotamento A ciencia — A ciencia do comportamento humano — A doenca da ortodoxia — Anti-Deismo. Capituco XII — A VIDA SA — Em busca da abundancia — Para toda a ‘populagao — Com o industrialismo adian- tado — Em igualdade social — A “Sociedade sem Clas- ses” — Um ambiente obrigatorio — Proibigoes legais — URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO _ 168 Com Plano ou sem Plano — A liberdade dos ricos no ocidente —- Onde est4 a liberdade? — Unidade de acao e aventura do pensamento — A solugao do problema — A evolucao da etica comunista — Nao ha idéia de pecado origina] — Nao ha moral absoluta — A etica que surge da vida — O servigo constante da comunidade — O pa- gamento da divida para com a coletividade — A saude elevada ao maximo — Relacoes sexuais — Prostituigao — O que “Nao se Faz” — Aquisigao pessoal — Os deveres do membro do Partido — A cada um segundo suas ne~ q cessidades — Progresso da etica na URSS — O feneci- mento do Estado — Medigao e Publicidade — Tomada geral de contas — Organizagéo da opinido publica — O Tribunal Popular — Rumos contraditorios nos assuntos estrangeiros — A revolugdo mundial — A Terceira Inter- nacional — Exito inicial do Comitern — A China So- vietica — A reconstrucao da Russia Sovietica — Confe- rencias internacionais — O socialismo num sé pais — O assunto da controversia — Os quatro argumentos dos trotskistas — Da guerra a paz — A tatica subversiva do Comitern — A nova orientagdo de 1935 — A Frente Unida, com orientagdo de cima para baixo — “Ordens ; de Moscow” — Uma Nova Ordem mundial, EprfLoco — UMA NOVA CIVILIZAGS0O? — A abolicgao da 7 caga ao lucro — O planejamento da produgio para con- ; sumo da comunidade — Igualdade e universalismo sociais — Um sistema representativo moderno — Os orientado- res profissionais — O culto da ciencia — Anti-Deismo — O despontar de uma conciéncia comunista — Uma uni- dade sintetica — O Capitalismo em desintegracio — O Comunismo Sovietico perdurara? POsT-ESCRITO DA SEGUNDA EDIGCAO — A nova Constituicio — O significado da nova Constituigdo — Os julgamentos por traicfo — O movimento estakhanovista — O exito da agricultura coletiva — A distribuigao a varejo das utili- dades — Moeda sovietica — O controle do aborto — Al- gumas criticas — Desigualdade de proventos — Buro- cracia — Repressao do PROREHIENED independente — Uma Nova civilizacao. V PARTE II TENDENCIAS SOCIAIS DO COMUNISMO SOVIETICO “Coube aos filésofos a tarefa de interpre- tar o mundo; nossa misséo, agora, é transfor- mé-lo”. Kart MARX. “Para que se possa governar com sucesso & necessario, além da faculdade de convencer os in- crédulos e dominar o inimigo durante a guerra civil, ter-se a capacidade de organizar. E esta é a tarefa mais dificil, porque se trata de modifi- car inteiramente os fundamentos economicos da vida de varias dezenas de milhdes de individuos. ‘Mas esta é tambem uma tarefa muito grata, por- que, uma vez realizada nos seus contornos essen- ciais, serd possive]l dizer que a Russia se tornou, ao mesmo tempo, uma Republica sovietica e so- cialista”, LeNINE. al a - : rel oe 1a he CAPITULO VII : Liquidagao dos Latifundiérios e do Capitalismo A revolucio de fevereiro de 1917, que derrubou o regime tzarista, nao foi obra do Partido Bolchevista. -Lenine, de fato, nao chegou a Petrogrado senio depois de um més e Trotsky cérca de trés meses apos haver entrado em colapso o edificio do império apodrecido. Isso, alias, quase tinha acontecido doze anos antes. Ja em 1905, em iace do desgdsto geral provocado pela vitéria japonesa contra a Russia, verificara-se grande agi- taciio revolucionaria (*). Mas “pretender que o povo cons- tituia uma fércga unificada ou que a -reyolucio era um movi- mento coerente em busca de objetives definidos, seria interpre- tar a situacao de maneira radica!mente errada. Nao havia, nem poderia haver, entéo, nenhum acérdo, tanto no que dizia respeito A direcio como A amplitude da transformagdo desejada: o que estaya cm progresso, de maneira conereta e positiva, nao era uma revolucgdo, mas uma série de revolugdes paralelas” (**). a (*) Bm 1905, segumdo foi apontado por um estudioso dessas questoes, “certa proporegdo de todas as classes sociais da Russia — Painponeses ¢ nobres, burgneses e trabalhadores urbanos — esteve envolvida em tentativas feitas para mudar, de uma forma ou de outra, a ordem social estabelecida” (Rural Russia Under the Old Réginie, por G. P. Robinson, 1932, p. 164). (**) Ibid, p. 164. Ver tambem Blemoirg of Count Witte, por sun viuva (1920, pp. 266-267). Witte afirma que o ministro Plehve dissera ao General Kuropatkin: “precisamos de wma peque- na guerra vitoriosa para conter a onda revolucionéria’’, 788 SIDNEY E BEATRICE WEBB No seu conjunto, o campesinato era passivo e os trabalhadores urbanos estavam divididos. Essa falta de unidade entre as forgas insurgentes nado era, além do mais, neutralizada por um propdasito e vontade persistentes. Dessa fortna, o tzar péde sal- var-se a si e a tdda sua maquina governamental por meio do que a todos parecia uma grande concessio: a Duma, Muito cedo, porém, chegou-se a concluséo de que nada havia mudado. A admimistragio antocratica permanecia intacta. Dentro de poucos anos, a Duma transformou-se numa entidade nula e as repressdes tornaram-se até mais violentas do que dantes. Os camiponeses que, ora aqui, ora ali, se manifestavam contra o pagamento dos impostos excessivos e se entregavam até ao saque das grandes propriedades, eram mantidos sob a mais es- tipida opressdo. Os, mineiros e operarios qualificados, classe que crescia firmemente, trabalhando, na sua maior parte, sob as ordens de diretores e gerentes estrangeiros, nao tinham o menor direito aos contratos coletivos de trabalho (*). Em 1907, foram proibidas todas as organizagdes sindicais. A atividade dos semstvos era entravada pela burocracia. Até mésmo entre os nobres, as mais suaves manifestagdes em fa- vor de unia reforma constitucional eram vistas com desagrado pelo tzar e muitas vézes punidas com a transferéncia para re- gites distantes. A opressora “russificagio” das varias nacio- nalidades submetidas ao império, somando perto da metade da populacao nacional, continuava em condicées piores do que dan- tes. As varias nacionalidades era vedado falar a sua lingua ver- nacila, sendo fechadas as escolas e proibidos de circular os li- vros € jornais que usavam os idiomas nacionais. Os judeus, especialmente, cantinuavam confinados em seus ghettos (bair- ros judeus) onde viviam a mercé dos caprichos e extorsdes de certos funcionfrios, sendo submetidos a massacres periddicos e deliberados. A Igreja Ortodoxa Russa, através de seu clero (*) No perfodo compreendido entre a primeira revolucgio e a guerra de 1914, a producdo industrial da Russia tornou-se quase dupla (History of the Ruasian Revolution, por L. Trotsky, vol. I, p. 29). Isso aconteceu, em srrande parte, devido aos cuidados pa- ternsia de Witte (Memoira of Count Witte, por sua viuva, 1920). URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO inculto e supersticioso, continuaya também a ser um instrumen- to de opressaio de outras numerosas seitas existentes. Assim foi que a atuacio do célebre monge Rasputin acahou por criar uma atmosfera de geral descontentamento, envolvendo, em ul- tima anélise, o tzar, a sua corte e todo o seu regime. A his- téria nZo regista nenhum caso de govérmo mais autocratico e incapaz, de uma aristocracia. mais degenerada e de uma buro- cracia mais corrupta e voraz, 2 marchar cambaleante para o seu préprio aniquilamento. ~ A Grande Guerra, na verdade, com seu espantoso sacri- ficio de soldados russos foi um recurso (conio a de 1904) de que lancaram mio alguns estadistas russos para evitar um novo © levante popular, coisa por éles tao temida. Lenine, com a mais clara visao dos fatos, compreenden imediatamente que a guerra tornara a revolucio inevitavel. Nem foi até necessaria a sua presenca e inspiracdo para iniciar-se o levante em fevereiro de 1917, Foi apenas suficiente, para Iangar a agao as forcas re- presadas da revolugio, a esmagadora derrota dos milhdes de soldados russos, mal equipados, mal abastecidos e péssimamen- te comandados e que, a partir de 1915, comecaram a desertar das frentes de combate. Quando Lenine chegou a Petrogrado, em abril de 1917, ja se havia realizado a “revolucZo burguesa”, achando-se no poder um suave govérno republicano-liberal, con- fessadamente partidario da democracia parlamentar e que se propunha manter os privilégios da propriedade particular. A tarefa de Lenine, para a qual éle imediatamente conclamou o pequeno Partido Bolchevista, consistia em transformar essa re- volucio burguesa numa revolucdo soctalista, para o que se fa- zia neceSsaria a expropriacao dos capitalistas e dos latifundia- rios. A Laiquidacgio dos Grandes Proprietarios Rurats pelo Campesinato 7 Nos distritos rurais, em sua maioria, os camponeses in- terpretavam a “liquidagio dos Jatifundiarios” como coisa com- pletamente alhela a aco governamental ou a teoria marxista. — 49 770 SIDNEY E BEATRICE WEBB Qs camponeses russos, tanto os pobres como os remediadas, jamais renunciaram 4 conviccio de que a terra por éles culti- vada e da qual haviam sido expoliados era propriedade sua, sujeita apenas A redistribuicio periddicamente feita pelo Mir.. Durante os vinte anos que precederam a revolucdo de 1917, os camponeses, ef varias partes da. Riissia, entregavam-se espo- radicamente ao assalto contra as propriedades dos grandes se- nhores (*). Os espancamentos, prises e enforcamentos, por meio dos quais se procuraya reprimir ésses atos de violéncia, nio evitaram que os mesos se repetissem aqui e acola. As gran- des perturbacgdes provocadas pela guerra derani em resultado uma recrudescéncia dessas manifestacdes populares. A noticia da revolucdo de fevereiro e da abdicacio do tzar, acarretando o enfraquecimento geral da autoridade através das provincias, teve como conseqiiéncia uma quase geral liquidagio das gran- des propriedades rurais, muito embora Lenine se mantivesse (*) “Durante o periodo de cinco anos terminado em 1904, hou- ve na Russia europeia aleumas centenas de casos de rebeldia por parte dos camponeses, inclusive alguns em que foram queimados edi- ficios e outros de assaltos contra os grandes senhores ou seus repre- sentantes; essas perturbacdes, porem, na sua maior parte, no ti- nham a meénor ligacdo entre si.. Excepcionalmente, as desordens de 1902 nas regices de Kharkov e Poltava foram tao concentradas que o movimento poderia, talvez, ser considerado como uma peque- na revolugio. Mais de 160 vilas tomaram parte no movimento; umas 80 grandes propriedades foram atacadas no perfodo de cinco dias; e s6 na regidio de Poltava, 75 grandes proprietarios pleitea- ram indenizacdes que montavam a 250.000 rublos” (Rural Russia Under the Old Regime, por G. P. Robinson, 1932, p. 138), Um re- latorio do comandante militar informava que “na regido de Saratov mais de 300 grandes propriedades haviam sido depredadas durante a dezsordem. No distrito de Balashov, houve lugares em que todas as casas senhoriais tinham sido destruidas. O exame das proprie- dades danificadas impressiona terrivelmente, Os camponeses, com espantosa violencia, queimaram e destruiram tudo; nfo foi deixada pedra sobre pedra. Houve um saque geral — trigo, armazens, mo- biliario, utensilios domesticos, animais, folhas de zinco das telhados — numa palavra: tudo que podia ser transportado; e o que ficou, foi queimada.” (Relatorio, transcrito no mesmo livre, p. 175). “ | r URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 771 ainda como um fugitive, que precisava esconder-se da policia de Kerensky. Uma pequena amostra do que estava aconte- cendo por tada parte pode ser dada ao Jeitor através destas li- nhas: ‘‘Num dia de setemmbro do ano fatidico de 1917, um ho- mem subiu ao poste telegrafico 4 margem de uma estrada de rodagem das estepes do centro sul e cortou o fio que ligava a matsio senhorial 4 cidade, a delegacia de policia e aos quar- téis sediados ao Jongo da ferrovia que se dirigia para o sul. Dessa forma, os dois elementos -— camponeses e proprietarios — ficaram em condicSes, momentaneamente, de lutar uns con- tra os outros, em completo isolamento. Dentro de algumas poucas horas a propriedade estava saqueada, a casa incendiada € o seu proprietario morto” (*). , Assim foi que, antes da tomada do poder pelos bolchevis- oy “tas, em outubro de 1917, a “tiquidacao” dos grardes proprie- tarios rurais através de tada a Russia havia sido, numa extensao consideravel, levada a efeito pelos préprios camponeses, de uma forma efetiva, embora brutal. Esse processo contmuou a fa- zer progressos substanciais no ano seguinte, embora nao es- tivesse de acérdo com 9 programa de Lenine e de seus parti- (*) Rural Russia Under the Old Régime, por G. P. Robin- son, 1932, p. 64. Uma descrigdo detalhada desses acontecimentos na Ucraina pode ser encontrada em Seed and Harvest, por Vladimir _ Korostovetz, 1930. The Russian Land, por A. R. Williams (Nova York, 1928), fornece outros exemplos. Os artigos sob o titulo The Russian Agrarian Revolution of 1917, por Lancelot 4. Owen, em Slavonic Review, de julho de 1933 e janeiro de 1934, fazem um su- mario dessa vasta jacquerie. Ver tambem Die Bauerbevegung in dey russichen Revolution, 1917, por S. Dubroveky, Moscou, 1932. E’ necessario esclarecer que, muito embora um numero considera- vel de proprietarios rurais e seus mordomos tenham sido assassi- nados, durante a jacquerie de 1917-1918, alzumas vezes sob as cir- cuntancias da inevitavel brutalidade revolucionaria, essas vitimas eram representadas, principalmente, por aqueles que se fizeram odiados pelos camponeses ou resistiram ativamente & desapropria- gio. A grande maioria dos latifundiarios e suas familias esce- pou com vida, seja porque nao residissem em suas propriedades ou delas estivessem ausentes, seja porque tivessem fugido. : 72 SIDNEY E BEATRICE WEBB ios. A expropriagio dos grandes proprietdrios rurais seria Avel desde que nao fdsse empregado: tio deploravel pro- cesso. A destruicio da propriedade acarretava uma perda in- calculavel para a comunidade em sett conjunto, ao mesmo tempo que a divisio de grandes extensdes de terra entre os dezoito milhdes de faniilias camponesas deu em resultado um alarmiante decréscimo da producio e uma reducHo ainda maior das dispo- nibjlidades negociaveis de que dependiam as populagées urbanas. Mas, que fazer? Esta fora de divida que nenhum govérno, em Petrogrado ou Moscou, nas circunstancias de 1917-1918, quando milhdes de soldados abandonavam apressadamente a frente de Iuta para tomar parte na divisiéo das grandes pro- priedades rurais, nenhum govérno poderia impedir essa ex- propriacdo levada a efeito pela massa popular. Evidentemente, a recente administracio boichevista era também inipotente para fazé-lo. A simples condenacao désse precinitado procedimento des camponeses seria nao sdmente futil, mas tamhém perigosa. O gue féz Lenine, como’ medida urgente, foi conseguir do Con- gresso e do novo Sovnarkoi baixarem um decreto declarando todas as terras propriedade dos camponeses; permitindo a re- distribuicgio, entre os camponeses, cos vastos latifiimdios de pro- pricdade do tzat e seus parentes; pondo essa redistribuicio em mios de comités locais a serem cleitos pelos cammponeses; e re- servando para a instalacio de estabelecimentos agricolas modelos algumas fazendas que certo numero de proprietarios progressis- tas hayiam aparclhado, em larga escala, para a criagao de gado e para a cultura de cereais. Infelizmente, até mesmo em gran- de parte, essas fazendas foram ocupadas e divididas entre os camponeses. E, durante toda uma década, 9 Govérno Sovié- tico viu-se impossihilitado de organizar e administrar a parte mais substancial dessas terras, que s6 nominalmente haviam sido nacionalizadas, mas, na realidade, estayam entregues, em wusu- fruto, diyididas ¢m pequenas propriedades dispersas, a um nt- mere de familias camponesas aummentado para vinte e cinco mi- es, ty ere ee eee URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO T13 A Expropriacio dos Capfitalistas No que diz respeito 4 liquidacio dos capitalistas, 0 tnico responsavel foi o novo Govérno Bolchevista. Para os partida- rios de Karl Marx, segundo mostraremos no capitulo intitulado A ciéneia, salvacio da Inimanidade (*), a raiz de todo o mal da moderna civilizacfio reside na existéncia de capitalistas visando a obtengio-de lucros: organizacdes financeiras, de comércio, industriais, de armadores de navios, de especulaco sobre ter- ras ou na bolsa de valores. Segundo éles, cra essa a classe responsivel pela divisio do povo, em todos os Estados capi- talistas, no que Disraeli, quase contemporaneo de Marx, de- nominava “duas nagdes’” — a dos ricos e a dos pobres. A nacionalizacio dos meios de produg&o, circulacao e distribui- go, sem qualquer inclenizagao aos seus possuidores, era de fato a linha mestra de todos os matizes dos social-democratas russos. ‘Por ontro lado, a liquidacdo sistematica de toda uma classe nao poderia ser realizada sendo por meio de uma revo- lugdo tendo por objetivo a substituicdo da manifesta ditadura de uns poucos, que posstiam os meios de producao, pela di- tadura do grande numero dos que obtinham seus escassos meios de subsisténcia por meio do salario. Essa revolugdo, desenca- deada através de todo o mundo capitalista (admitia-se confian- temente), teria de irromper sem dtivida nenhuma em vista do aumento continuo, em niimero e organizagio, das grandes mas- sas de assalariados que, em alguns paises, constituiam dois ter- cos da populacao total e “nada tinhan: a perder senfio as suas proprias algemas”. Segundo a opiniao dos velhos marxistas, nao era de esperar que o primeiro levante vitorioso do prole- tariado contra os seus exploradores se verificasse na Russia, a menos industrializada de tédas as grandes poténcias. © que os antecessares de Lenine nao haviam compreendido era que havia na Riissia condigdes revolucionarias nio existen- tes na Gri-Bretanha, na Tranga, nos paises escandinavos e ou- (*) Capitulo XI, Parte II, : G74 SIDNEY E BEATRICE WEBB tras democracias ocidentais e nfio existentes mesmo na Alema- nha Imperial, com a sua burocracia honesta e eficiente, seus desenvolvidos servicos de assisténcia social, seus partidos de- mocraticds, seus sindicatos legalmenite organizados e seu mo- vimento cooperativo. Na Russia, pelo contrario, havia uma fermentacgio de ddios, alimentada por uma coragem herdica, no espirito de inimeros homens e mulheres de tédas as classes e de varias geragées: chefes de revoltas camponesas, organizadores de greves operarias, conspiragoes de intelectuais atnantes da liberdade, todos, enfim, que viviam submetidos As privagdes e 4 miséria, soh o perigo permanente de morte, ameacados de prisio e de exilio. Dentre ésses, nao foram poucos os que ti- veram ocasiao de ver seus camaradas e seus entes queridos su- cumbirem martirizados pela causa da liberdade. Era, portanto, natural que Lenine e seus adeptos, ignorando a inexisténcia des- sa amarga consciéncia de classe ou de credo em outros paises, acreditassem fervorosamente na possibilidade de um levante ge- ral dos assalariados de todo o mundo, especialmente nos paises al- tamente industrializados. Sua fé na justica e na praticabilidade do comunismo era secundada por wma crenga igualmente firme de que o regime comtunista nfo podia ser integralmente reali- zado e permanentemente conservado, se apenas a Riissia o adotasse. Estavam tio frenéticamente convencidos da eficién- cia de sua politica (abolicio da propriedade privada dos meios de produs0) e da necessidade de substituir uma ordem so- cial baseada no lucro por outra que proctttasse atender as ne- cessidades coletivas € tio convencidos estavam da moralidade dessa transformacdo, que seit coracio nao se deixava comover ante a possibilidade dos .sofrimentos individuais que uma re- volséo social provocaria inevitavelmente. Para derrubar a “ditadura capitalista”, que um Govérno Provisério essencialmente liberal procurava manter e consolidar, Lenine teria que marchar através de um mar de sangue. Efe- livamente, apesar de ter havido varios dias de luta porfiada tanto em Moscou como em Leningrado, ¢ muitos assasinios in- dividuais em varios lugares, a revolucio de outubro foi, subs- tancialmente, uma expresséo da vontade popular. Sd posterior- URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 775 mente, afim de preservar 0 Govérno Soviético e sufocar as re- elides contra-revolucionarias, foi que Lenine e seus companhei- ros descambaram na titania: prendendo e executando sumaria- mente oS seus opositores politicos, da mesma forma que ladrées e bandidos; permitindo que uma policia politica irresponsavel praticasse atos de terrorismo; entregando o pais a todos os homens da guerra civil. O ddio aos capitalistas estendeu-se, em breve, a todos os governos, quer fossem Republicas, reina- dos ott impérios. Pois nfo eram todos éles pontos de apdio do regime capitalista? A caracteristica principal de todos eles nao consistia na confianga que todos depositavam no regime de caca ao lucro por éles considerado uma espécie de “providéncia divina”? Essa ofensiva contra todos os governos do mundo suscitou naturalmente a hostilidade dos aliados vitoriosos do tzar. A intervencdo armada de uma dtizia de governos capitalistas con- tra o Govérno Soviético foi, em grande parte, a causa que le- vou @ste a Jutar desesperadamente pela sua propria existéncia. Essa intervengao, empreendida em 1918, por motivos de ordem estratégica (afim de restabelecer a frente militar contra as for- gas alemis vitoriosas), continuou em 1919 e 1920, nado somente devido as simpatias dos interventores pelos capitalistas e lati- fundistas russos, mas também pelo receio de que os bolche- viques conseguissem realizar o seu confessado propésito de le- var a revolucdo ao territério de outros paises. A crenga, que alimentavam os bolchevistas, a respeito da iminéncia de uma revolugio mundial nfo constituia, pois, apenas um raciocinio errado. Entre 1919 e 1920, ésse modo de encarar os fatos qua- se provocou o esmagamento da revolugao na propria Russia e a destruigio do regime que éles procuravam manter com tanta valentia. E’ dificilimo compreender e até mesmo iniaginar o que se passou na Russia nesses primeiros dias da revolucio bolchevista. “CQ esmagamento da Riissia nos fins de 1917 — escreveu H. G. Wells, baseado no que viu e soube em 1920 — foi, por cer- to, o mais completo até hoje verilicado em relagio a qualquer organizacio social moderna. Apos o fracasso do govérno de 776 SIDNEY E BEATRICE WEBB Kerensky no sentido de fazer a paz e das attoridades navais britinicas no sentido de aliviar a situagio na zona do mar Bal- tico, os destrocados exércitos russos, de armas na mao, suble- varam-se e avancaram para a retaguarda, verdadeira maré mon- tante de soldados e cainponeses, ansiosos por vollarem aos seus lares, sem esperancas, sem suprimentos, sem disciplina.. A mais completa desordem social, Uma dissclugio coletiva” (*). Guerra Civil e Intervengdo Em 1918, a autoridade do Govérno Soviético estava mui- to longe de se haver estabelecido firmemente. Mesmo em Pe- trogrado e Moscou havia muito pouca seguranca no que diz’ res- peito 4 vida e a propriedade. O rouho, a violéncia e a incursao de bandidos armados nas casas residenciais (quase sempre sob pretexto de fazer pesquisas e requisigdes) constituiam ocorrén- cizs didrias. Fora dos limites das cidades nao havia protegio organizada, o longo e deliberado bloqueio mantido pela frota britanica e apoiado pelos demais governos inimigos da Riissia, privaram o povo de alimentos e roupas bem como dos mais in- dispensaveis medicamentos. Em todas as partes do pais, for- migavam os contra-revoluciondrios, que facilmente se transfor- mayam de sabotadores individuais em grupos errantes, cont binavam, em varias proporgdes, a rebeliao com o banditismo. Foi nessa ocasiZo que.os exércitos da Gra-Bretanha, da Fran- ga, do Japao, da Italia e dos Estados Unidos, sem nenhuma de- claragao de guerra, invadiram o territério da Russia, que nunca (*) Russia in the Shadows, por H. G., Wells, 1920, p. 34. O melhor documentarin desses acontecimentos consta do livro The Bol- shevik Revolution, (917-1918, por James Bunyan a H. H. Fisher, 1933, 735 pp. Algumas informagées podem ser obtidags através do waballo de um escriter, contrario e talvez despeitado, que foi, por ane tempo, auxiliar do governo de Lenine, trabalho esse publica- ae alemio e posteriormente em francés (Souvenira d’un Com- . nftula du Peuple, 1917-1918, por J. Steinberg, especialmente os apitulos Te II). Ver tambem The Russian Revolution, 1917-1918, por W. H, Chamberlin, Nova York, 1935, , URSS, UMA“NOVA CIVILIZAGAO T77 havia deixado de ser, tedricamente, uma “poténcia amiga”, ata- cando-a por Vladivostock e Batum, por Murmansk e Arkangel. Esses mesmos governos, além disso, forneciam oficiais, equipa- mento @ municdes as forcas contra-rcvolucionarias comandadas por Dentkin, Kolchak, Yudenich e Wrange!. Por outro lado, os alem&es e poloneses assolavam as provincies ocidentais da Russia, enquanto o exército, formado pelos prisioneiros tche- coslovacos, assumia uma atitude equivoca durante a sua longa viagem através da Sibéria, em direcio ao Oceano Pacifico. Governos independentes foram organizados, com o apdio mais ou menos declarado das poténcias estraugeiras, na Georgia e na Ucraira, onde tropas irregulares exerciam téda sorte de tropelias as quais nem sempre eram estranhas essas mesmias poténcias (*). Todos ésses horrores, na perpretacdo dos quais se dayam as mios simples bandidos, fandticos religiosos e fac- cées raciais, duraram por mais de dois anos, estendendo-se, por vézes, a quase todo o territério que constitue, hoje, 2 URSS. Podemos apresentar apenas uma descrigio dos efeitos exerci- dos por ésses fatos sObre a populacao civil. Essa descrigao foi feita pelo anarquista Alexander Berkman que, embora fosse um revolucionario extremado, ao mesmo tempo se opunha aos bol- cheviques e o qual atravessou a Russia Européia de um extremo ao outro: (*) Um incidente 6, muitas vezes, recordado como “o assassi- nato dos 26 comissarios”. “O décimo quinto aniversario de um dos dias mais negros na historia da Guerra Civil foi ontem comemora- do em Baki e através de toda a Unido Sovietica. A 20 de setem- bro de 1918, 26 comissarios de Baki foram assassinados durante a noite’ pelos mencheviques e pelo governo Social Revolucionario, a mandado das forcas expedicionarias britanicas. Partindo da Per- sia, os exercitos britanicos avangavam sobre o Turquestiio afim de privar a revolucio de algodiio e, ao mesmo tempo, criar uma base para o imperialismo na Asia Central. Baki caiu em poder dos britanicos na noite de 20 de setembro de 1918, sendo os mesmos au- xiliados por seus agentes, pelos mencheviques e pelos social revolu- cionarios. Os 26 comissarios, que haviam sido presos, foram tira- dos da cadeia, transportados para fora da cidade, e fuzilados.” (Moscow Daily News, 20 de setembro de 1933). 778 SIDNEY E BEATRICE WEBB “No sul da Russia — escrevia le, no seu Didrio, em julho de 1920 — tudo se encontra em estado caético, informe, incon- eruente. Mudancas frequentes de govérno, com todo o seu cor- tejo de lutas civis e destruicao, provocaram um estado fisico e mental desconhecido em outras partes do pais. Formou-se uma atsvostéra de incerteza, de constante ansiedade. Algumas re- gices da Ucraina experimentaram catorze reginies diferentes so periods entre 1917-1920, cada um déles acarretando viofen- tas perturhagdes da existéncia normal, desorganizando e des- truicdo a vida em suas préprias raizes, Toda a gama de pai- xoes revolucionarias e comtra-revolucionarias entrou em jogo nesse territério. A organizacio nacionalista Rada abriu luta contra os orgios locais do govérno Kerensky até o Tratado de Brest-Litovsky abrir o sul da Russia as tropas alemas de ocupa- cio. As baionetas prussianas’ dissolveram entfio a Rada e o hetman Skoropadsky, pelas mZos do Kaiser, passou a dominar a regio em nome da “autodeterminacio ¢ independencia” do povo. A derrota que Ihes foi imposta na frente ocidental e a revoiug&o interna obrigaram os alemaes a empreenderem a reti- rada, o que deu a Petlura oportunidade para derrubar o hetman ¢ transformar completamente o regime de govérno. O ditador Petlura e o seu directorium foram, no entanto, varridos do po- der pelo Exército Vermelho apoiado pelos camponeses, sendo €stes, por sua vez, destrocados pelas tropas de Denikin. Pos- teriormente, os bolchevistas voltaram a dominar a Ucraina, sen- do, logo depois, repelidos pelos poloneses, que foram, por sua vez, novamente derrotados e exputlsos dali pelos comunistas. Essa longa Juta civil e militar acabou por desarticular té- das as manifestacées de vida no sul do pais. As classes sociais desapareceram ; os velhos costumes e tradisdes foram abolidos e tédas as barreiras culturais eliminadas scm que o povo esti- vesse em condicdes de reajustar-se as novas condicgdes perma- nentemente flutuantes, Nao tinha havido nem tempo, nem opor- tunidade para reorpanizar-se o modo de vida fisica ¢ mental, nem para adotar uma orientaciio dentro désse ambiente em constan- te transformacio, Os institutos da fome e do medo tornaram-se 05 Movers essenciais do pensamento ¢ da acéo; a incerteza pre URSS, UMA NOVA GIVILIZACAO 713 dominava e persistia, sendo a unica realidade definida. O pro- biema do pio e o medo de um atacue eram os tinicos motivos de interésse. Ouviam-se histérias de forcas armadas que sa- queavam os arredores da cidade e especulagdes fantasiosas sd- bre o carater de bandidos, aiguns dos quais se denominavam Grancos e outros Verdes. As figuras legendarias de Makhno, Marusya e Stchooss agigantavam- se na atmosfera de panico criada pelos horrores que se verificavam e pela apreensdo pro- yocada pelo desconhecidv. © pais inteiro assemelhava-se a um acampamento militar, na expectativa constante de uma invasio, da guerra civil e de uma stibita mudanca de govérno, trazendo consigo novas matancas, mais opressao, novas confiscagdes e maior fome. A atividade industrial paralizara, sendo desespe- radora a situacdo financeira. Cada govérno havia emitido o seu dinheiro, proibindo todas as formas de troca anteriores. Mas entre © povo continuavam a circular os varios “papéis”, inclu- sive o dinheiro emitido por Kerensky, pelo govérno tzarista, pelo da Ucraina e pelo sovittico. Cada espécie de rublo tinha o seu préprio valor. Sob a calma aparente da vida diaria, desencadeavam-se as mais bai- xas paixdes humanas. Os valores éticos haviam desaparecido, dissolvendo-se o verniz da civilizagao. Permanecia apenas o instinto da auto-preservacio e o medo incessante do dia de amanhi. A vitéria dos Brancos acarretava represalias selva- gens, pogroms contra os judeus, morte para os comunistas, a prisio e a tortura para os suspeitos de nutrirem simpatia pelos tltimos. Mas o dominio dos bolchevistas significava, por outro Jado, o Terror Vermelho. Ambos eram desastrosos: haviam sido experimentados varias vézes e 0 povo sentia medo perma- nente da sua repeticfo. Uma Iuta de exterminio dominara a Ueraina, Iuta devastadora,.que deixava apds si a ruina e o de- sespéro. Jlistorias de atrocidades praticadas pelos Brancos e pelos Vermelhos corriam de boca em béca, compreendendo nar- - rativas de assassinios, rapinagens, crueldades desumanas e ul- trajes indiziveis” (*). (*) The Bolsevik Mit (Diary 1920-1922), por Alexander Berk- man, 1923, pp. 160-162. Um experimentado observador germanico, 780 SIDNEY E BEATRICE WEBB Em face de tais horrores, era inevitavel que tanto a pro- ducio industrial como a agricola ficassem reduzidas a destrocos. De acdrda com as mais seguras informagées, a producao total do territorio que, mais tarde, iria constituir a URSS, nao che- gou a um térco do que féra em 1913. Por mais de uma vez, durante os anos decorridos entre 1918-1920, a populagao in- teira de Petrogrado esteve ameacada de morrer de fome e de frio em conseqiiéncia da escassez de alimentos e combustiveis. Todo o pais sofria horrivelmente de privacdes, que se haviam tomado cranicas e inevitiveis. Até mesmo a manutengao das tropas em campanha constituia pesadissimo sacrificio para o govérno. gue visitou a URSS em 1929, dé-nos a seguinte informacio: “Ho- mens, que passaram sete anos na frente externa e interna, compo- nentes de tropas de assalto endurecidos na luta, ainda hoje se sen- tem mal ao serem interrogados a respeito da guerra civil. Os acon- tecimentos verificados durante esta, devem ter sido espantosos e incomparavelmente piores do que os da guerra externa. O odio do homem a0 homem, de compatriota contra compatriota, de vizi- nho contra vizinho,-a bestialidade resultante da familiaridade com a violencia (que para muitos se tornara um habito), tudo isso con- corria para a desgraca elevada ao mais alto grau. Cidades c ins- talacoes industriais foram convertidas em fortalezas defendidas por homens ¢ até por mulheres, que, no intervalo das batalhas, se en- tregavam 4 manufatura de artigos necessarios A vida civil. Esses artigos eram exigidos, acima de tudo, quando nao sumariamente confiscados, para as tropas combatentes da faccfio que, na incons- tancia da sorte da guerra civil, estivesse dominando no momento. ms. sonatas ae Be verificava através da maior parte do pais ea 1830 a 13.44) en por Arthur Feiling, edicio ingle- a ba a eeu en ee coe parte do pais sofreu mais colap2o quase ulin es craina, onde “a Ruerra provocou um pelas tropas alemis fai anda its, por - nausea dee Dre as a paaliibinope inde doce a por incursdes de bandos arma- dos de Makhno, Grigoriey Sec a dak Havia, além dessts, os ban- uteas ’ & ie oropadsky, Denikin, Petlura e muitos » que saqueavam em larga eseala. Sob texte de dar com- bate ao bolshevismo LGA Cato a smo, esses handos armados levaram o pafs & ruina uase t , ea de aah Sale Review do Banco Narodny de Moscou, dezem- URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 781 oe Um dos principios sustentados com mais firmeza por Le- nine era o de que, embora constituisse puro sentimentalismo a atitude de Blanqui e dos anarquistas sempre rebelados contra qualquer espécie de govérno, era indispensavel, uma vez inicia- da uma revolucio, leva-ka avante, através de tadas as dificulda- dey, até ao seu fim vitorioso. Sustentava também a maxima, desprezada pelos revolucionarios de 1848, de que, desencadeada a revolugio, era dever imperioso (envolvendo maior perigo do - que a preparacdo do movimento) defendé-la a todo custo con- tra os inevitaveis assaltos das fércas contra-revoluciondrias. Se procurarmos saber o que féz o Govérno Soviético durante os primeiros trés anos de sua atuacdo, poderemos verificar que a sua atividade se resumiu “em defender a revolucao”. Mas eram tais as condicgdes do povo, tao implacavel a inimizade de todos os governos do mundo e t&o ferozes e persistentes os ataques sustentados e apoiados pelos mais poderosos dentre os mesmos, que o Govérno Soviético dificilmente conseguiu defender a sua simples sobrevivéncia. O “Comunismo de Guerra” O periodo de lutas compreendido entre 1918-1920 foi pos- teriormente denominado “Comunismo de Guerra”. Nessa épo- ca, entretanto, o que por todos era compartilhado nao era a riqueza, mas a fome e as privagdes. Qualquer outra preocupagao " ficava em segundo plano diante da urgente necessidade de es- magar nao apenas os exércitos invasores, mas também as f6rcas contra-revolucionarias que agiam por detras das frentes de com- bate. Todas as fabricas procuravam concentrar sua produgao no objetivo de fornecer o que era necessario aos dezesseis Exér- citos Vermelhos. Estes compreendiam cérca de cinco milhdes de homens, tudo quanto Lenine pudera langar 4 luta sob a direcio de Trotsky, Stalin e Frunze, e que Trotsky dirigiu de modo tio dramatico, de seu trem blindado sempre em movi- mento. Os sindicatos transformaram-se em centros de recru- tamento, destinados a swprir de efetivos as diversas frentes de combate. Os camponeses residentes nas areas que se encon- 782 . SIDNEY E BEATRICE WEBB travam livres de forcas hostis eram submetidos, por meio de requisigdes forgadas, 4 extorsio de tudo quanto possuiam em matéria de alimentos. A populaciio inteira das cidades foi sub- metida ao racionamento exiguo, afim de que nada faltasse as for- Gas militares. Tédas as decisSes de Lenine e seus auxiliares Se apresentavam sob a forma de ordens peremtérias que deviam set cumpridas sob pena de prisio e, freqtientemente, de exe- cugio sumdria. A menor manifestacao de qualquer atividade contra-revolucionania era, da mesma forma, implacavelmente combatida e esmagada. E a verdade é que 0 povo nao se rebelava contra isso tudo. Os camponeses, por toda parte, odiavam os Brancos muito mais do que os Vermelhos. Os operarios apinhavam-se nos quar- téis do Exército Vermelho. Os que permaneciam nas fabricas, longe de protestar contra a pressdo exercida sobre éles, intensi- ficavam esforcos para aumentar a producio. Muita gente mur- murava contra a continua escassez de alimentos, combustivel e roupas, contra a falta de Inz, dé acticar, de medicamentos e de téda a espécie de conférto. Mas o povo, tomado em seu con- jimto, nao se revoltava. Nao havia mesmo pressdo alguma sd- bre o gavérno no sentido de atenuar seus esforcos contra as ondas sucessivas de exércitos Brancos que os governos da In- glaterra, da Franca, da Italia, do Japfio e da América apoiavam nomeando oficiais, equipando-os e, ocasionalmente, financiando-os. Fim verdade, pode-se afirmar aue foi justamente o sentimento provocado por essa intervencio estrangeira que perinitiu ao Go- vérno bolchevista’ sobreviver. Foi durante ésses dois ou trés anos de intervencido e de guerra civil; de assassinatos e ten- tativas de assassinatos contra funcionirios do Govérno Sovi¢- tico; de sabotagem e de conspiracées contra-revolucionarias; de lutas e represdlias da soldadesca e dos partidarios de ambas as faccées; de extraordinario aumento da taxa de mortatidade ci- vil, devido muito mais 4s privacdes continuadas e 4 cronici- dade das moléstias do que ao homicidio propositado; foi nesse periodo que se basearam as estatisticas tantas vézes citadas s0- bre as perdas de vidas russas “durante a revolucgao”, E. essas perdas de vidas, com incrivel ingenuidade, sio atribuidas quase URSS, UMA NOVA CIVILIZACGAO 783 sempre, nao aos rebeldes, que empunhavam armas contra o go- vérno dc facto ou aos governos estrangeiros que, sem amparo legal, os incitavam e apoiavam, mas, exclusivamente, a influén- cia dos bolchevistas sébre o govérno das Republicas Soviéti- cas! (*). Os episédios do “Comunismio de Guerra”, durante éssés trés anos, tém sido encarados de duas maneiras diferentes. Alguns o consideram como sendo o resultado de um plano de- liberado para estabelecer o Estado comunista. E’ possivel que houvesse, entre os bolchevistas, alguns que, a principio, preten- dessem tal coisa. “A nacionalizacio dos bances; o seques- tro das propriedades privadas; a expropriagao da burguesia, inclusive das suas casas, pratarias, joias e obras de arte; a so- cializacio das terras e das industrias, que passariam a ser pro- priedade do Estado; o racionamento de todos os artigos de pri- nicira uecessidade; a eliminacao das atividades comerciais; a militarizacao do trabalho por meio da obrigatoriedade do mes- mo}; 2 abolicdo do dinheiro pelo Estado, que, 20 invés de pagar aos operarios e funcionarios em moeda corrente (apenas 7% em 1920), -procuraria suprir as suas necessidades em espécie (distribuindo ragdes em restautantes publicos; fornecendo-lhes alojamento, inclusive gas, combustivel, Agua e elctricidade; dan- do-lhes passe livre nos trens e bondes; suprindo-os de roupas € artigos domésticos por intermédio de armazens publicos; e mantendo, para sen uso, escolas, jornais e casas de diversao). Da mesma forma, os camponeses seriam providos dos produtos industriais de que necessitassem em troca das mercadorias agri- colas por éles produzidas, Eram estas, em suas linhas gerais, as caracteristicas do regime de transicio para a sociedade co- munista” (**). (*) “Verifica-se que esses dois anos e meio de guerra civil produziram a morte prematura de cerea de sete milhdes de pes- soas” (The Economie Policy of Soviet Russia, por Paul Haeusel, 1930, p. 2). : (**) The Experiment of Bolshevism, por Arthur Feiling (Edi- gio inglesa, 1930, pp. 52-53). 784 SIDNEY E BEATRICE WEBB Lerine, por outta lado, segundo se depreende das suas numerosas publcacdes durante 1917, admitia um periodo -de transigio mais ou menos longo, cujas diversas fases nao lhe era possivel predeterminar, parecendo-lhe, entretanto, que ha- veriam de constituir uma longa série de experiéncias econdmicas. Em 1921, afirmava éle — segundo as palavras de um inves- tiador germinico — “foi apenas o imperativo da necessidade provecada pela guerra e pela destruicio em grande escala que inweds aos bolchevistas o “Comunismo de Guerra”. Consistiu éste ro fato do excedente, e, por vézes, das indispensaveis re- servas alimentares serem requisitadas aos camponeses afim de suptir as necessidades do exército e dos operarios... Esse co- munisne militar representava um recurso provisdrio, visto como os boichevistas, na sua luta desesperada, nao podiam recuar di- ante de tertas medidas. por mais rigorosas que fossem. Semi- famimtes ou, talvez, ainda pior do que isso, tinham éles que de- fender-se, a todo custo, mantendo vivas as energias dos cam- poneses € operarios” (*), Felizmente para os bolchevistas, no momento exato em que © pove fazia o seu derradeiro esféreo, chegou a seu fim a in- tervencio estrangeira. Foi no ano de 1920 que o “Comunismo de Guerra” alcangou o seu apogeu, “Esse ano — foj dito por algsem— Seara na lembranga de todos os russos que o viveram camo o de maior frio, de maior fome, o mais terrfvel ano da revalugio” (**). Mas, ao terminar o mesnio, “o poder do Comié Central do Partido dominante era completo e abso- futo” (***), Os governos estrangeiros haviam fracassado no ser objetivo de coordenar as sucessivas invasdes por éles pro- mevidas. Os seus prdprios paises estavam, na maioria, tam- bém exaustos pelos virios anos de guerra que haviam sustentado ens seus estalistas demasiadamente temerosos em face do ope- rariado de seus préprios paises sendo-lhes pois impossivel con- (*) The Experiment of Bolshevism, por Arth "eili di- cho inglesa, 1930, pp. 53-54), oe me Foling, (est of A b, c , ra (eo) Wea, ages hae Michael Farbman, 1024, p. 27. URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 785 tinuar a Juta. Os Exércitos Brancos eram péssimamente coman- dados e a conduta, tanto de seus oficiais como de seus soldados, tio escandalosamente ma, que nao Ihes foi possivel obter o apdio dos camponeses por éles oprimidos e enfrentar o fervor patridtico dos Exércitos Vermelhos. As tropas britanicas co- mecaram, entZo, a retirar-se de Murmansk e Arkangel, ao mes- mo tempo qtie os japoneses abandanavam Vladivostock. Navios ingléses e franceses evacuavam as tropas contra-revolucionarias, tanto estrangeiras como rmssas, das costas do Mar Negro. “Os tratados de paz com a Leténia ea Titania foram assinados em julho de 1920 e o tratado com a Finlandia, em outubro do mesmo ano. A guerra civil na Sihéria terminou também em outubro de 1920. As lutas contra Wrangel. Petlura. Bulak-Ba- fahovich e Malhno, no su] da Russia, cessaram em novem- bro désse ano. Na réalidade, reinava a paz através de todo o pais nos fins de novembro de 1920” (*). Apesar disso, a situacdo era tio cheia de incertezas e tio forte a determinacdo do Govérno Polchevista, que a poli- tica de “Comunismo-de Guerra” foi mantida por mais alguns meses, “QO decreto instituindo a nacionalizac3o de tdda a in- dustria, inclusive as penuenas empz-ésas” (ista é todas as or- mimizacbes que emmresassem mais de dez trabalhadores, bem cana as que tivessem mais de cinen oreririas, desde que usas- sem firca mecdricn), ésce decreto “foi haixade na data de 30 dea navembro de 1920: e » decreto estabelecen4o que os im- nostas deviam sér suprimides, uma vez que o dinheiro ja nao finsionava como meio de pagamento. foi assinado a 3 de fe- vereirn de 1921. Em dezembro de 1920. o VIII Coneresso dos Snviets anrovou a mais utdn’ca de tédas as resolucdes désses Aigng de “Camunisino de Guerra”: a cue estabelecia a sociali- saeiq' da acricultura. Comités especitis devinm ser nomeacos nasa estahelecer as obictives e a espécie de cultivo a ser pra- (*) Feonomic Treuds in Soviet Russia, por A. Yurov (edi- efio ing!esa, 1920, p. 41), Somente nos fins de 1922, entretanto, foi que as utimns for¢ns japonesas evacuaram o porto de Vladivostock e@ 36 em 1924 as mesmas abandonaram o norte da ilha Salchalina. — 50 736 SIDNEY E BEATRICE WEBB ticado em cada uma das intmeras organizag6es agricolas. A exploracdo agricola, dizia essa resolucdo, ‘‘deve ser conduzida de acérdo com um plano unificado e sob uma diregao também uniiicada” (*). A Fome dé 1921 Mas, subitamente, na primavera de 1921, ano em que se verificou a mais terrivel fome de que ha memoria na vida russa, o “Comunismo de Guerra” entrou em colapso. Provincias in- teiras estavam reduzidas 4 fome absoluta, verificando-se nas mesmas os piores horrores. Naturalmente, a fome mao era uma novidade na Russia. De fato, era sempre esperada numa ou noutra parte, segundo um certo ciclo que’ se repetia inexora- velmente. Mas a escassez das colheitas de 1921, resultante da diminuigao da area semeada e da matanca de gado levada a efeito pelos camponeses, produziu conseqiiéncias desconhecidas até entio, “A fome de 1891 havia atingido dezessete milhdes de pessoas; a de 1906, vinte e um milhdes; a de 1911, vinte e sete milhées; mas a de 1921 afetou nada menos de quarenta e trés milhGes de pessoas. Nos piores dias das crises ante- ricves, 9 niimero de camponeses, que nao conseguiram obter a quantidade suficiente de sementes, nao excedeu nunca os trés milhdes; mas, em’ 1921, ésse nimero subiu a treze milhdes. Isso quer dizer que treze milhdes de camponeses ficaram redu- zidos 4 miséria. Vinte e sete provincias, ou seja, aproxima~- damente, a metade da Russia, foram devastadas pela fome. Nes- sas provincias, o consumo de alimentos desceu a um nivel ter- rivelmente baixo ¢ a taxa de mortalidade foi extraordinaria- mente alta, tanto entre os seres humanos como entre o ga- do” (**). {*) After Lenin, por Michael Farbman, 1924, p. 41. (**) Ibidem, por Michacl Farbman, pag. 41. Pode-se fer umia idéia de quanto foi profunda a redugiio de todas as formas de atividade, 20 lermos a terrivel descrigdéo feita em seu livro Russia After Four Years of Revolution, pelo professor da Univer- URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 137 A Nova Politica Econémica O povo, que havia suportado tudo isso, estava exausto, Verificaram-se Jevantes de camponeses em Tambov e ao longo do Volga. E, fato mais grave ainda: os marinheiros da Frota Vermelha, com base em Cronstadt, revoltaram-se, juntamente com a guamic&o local, contra o Govérno Soviético, ndo por mo- tivos de servico, mas como protesto contra as privacdes que so- friam suas familias residentes na zona rural. “Os Soviets, sem o Partido Comunista” — era a palavra de ordem dos mari- nheiros. Uma das caracteristicas do génio de Lenine consistia em saber ceder quando o descontentamento popular se tornava , indisfarcavel. E, mais do que isso: cedia completa e drama- “ticamente, sem, contudo, abandonar o seu objetivo princi- pal (*). A revolta de Cronstadt teve que ser, naturalmente,’ sidade de Petrogrado, §. S. Maslov. As inevitaveis consequencias dai decorrentes fizeram-se sentir sobre a vida das mulheres, das eriancas e da familia, provocando um relaxamento geral dos cos- dumes tao serio quanto a crescente taxa de mortalidade. “Segui- ram-se, entfo, os terriveis anos de fome (1921 e 1922) que provo- caram grandes imicracSes entre as populacses reduzidas A com- pleta miseria; familias inteiras, todos os habitantes de determnina- das rerides, eram forcados a abandonar seus lares em busca de uma céden de pao... O aque veiu depois (o perfodo da NEF. a Moya Politica Eeonomica), produziu ainda maior confusio no ernizita do povo. Isso poraue, se os anos anteriores haviam desencr deste os instintos brutnis do povo faminto, ngora desnertavam os inslintos dos ave havinm juntado o dinheiro quo nas vésneras fare vheoly- tamente inutil « assim desfrutavam um mrrau de prosperidade até entho deseonhecido na Russin Sovietier, PRestonrantes, cafés e ta- vernas pulylavam novamente e n vinhe era yendido em tada narte. Nao havia freins para os instintns hyomenna ane havirm sidan elo menos. reprimidos durante os diss do “Comunismo de Cusrra” por meio de um riroroso regime militar. O numero de divortins e de infracdes da lei cresceu enormemente, até mesma na zona rural. E, dessa forma, o amor livre, tio mal comnreendida aunnto ontras teorias revolucionarias, comecou a demenerar em excesses condana- veis” (Woman in Soviet Russia, por Fannina Halle, 1933, p. 107). (*) “Lenine possuia um instinto gerfial da oporturidade. Tinha um senso maravilhoso para mudar de tatica sempre que se 188 SIDNEY E BEATRICE WEBB sufocada a férea, conquanto nio tenha sido aplicada nenhuma punicio indevida aos autores do mais grave crime militar. Mas a verdade é que, em marco de 1921, no X Congresso do Partido Comunista, Lenine surpreendeu seus partidarios ao propor a revogagdo completa do “Comunismo de Guerra” (*).. Foi abandonada, em primeiro lugar, a ilimitada requisica0 de cereais, sendo a mesma substituida por uma taxa proporcio- nal sébre o volume da producio agricola, faculzando-se ao cam- nés a liberdade de vender o restante da sua producdo no mer- cado livre pelo mais alto prego que lhe fdsse oferecido. Em se- - guida foi restabelecida a circulagdio monetaria e estabilizada & moeda, anulando-se tédas as medidas que visavam limitar a posse € as transagées em dinheiro. “O decreto de 9 de julho de 1921 restabeleceu o pagamento de passagens nas estradas: de ferro; o de 1.° de agésto instituiu novamente as taxas de correio e de telégrafo; o de 15 de setembro reintroduziu as taxas do servico de agua e de eletricidade, bem como o pagamento de pas- sagens nos bondes e dos servigos de banhos publicos e Javan- darias (**). O decreto de 12 de agésto de 1921 coneedeu autonomia vir- tual 4s emprésas nacionalizadas sob uma condigao surpreenden- te: a de manterem-se com seus préprios meios! ‘‘Essas fabricas ou organizacées industriais podiam reter como propriedade sua Os seus equipamentos, suas reservas de matérias primas e com- bustivel, hem como os seus produtos semi-acabados; mas per- diam o direito de serem supridas pelo’ Estado com dinheiro ou fazia necessario. E, quando o fazia, era com a rapidez do raio. Mas, forse avancando ou recuando, atacando ou defendendo-se, sua firmeza cra absoluta. Jamais tergiversava, Nao se deixava nunca dominar pelo medo” (Bolshevism in Retreat, por Michael Farbman, 1921, p. 59), (*) A narrativa mais completa, accessivel ao leitor inglés, a tespeito da Nova Politica Economica, pode ser encontrada em After Lenin, por Michel Farbman, 1924, pp. 85-170. Esse volume admi- rave] é tanto mais interessante por ter sido escrito quando parecia que a Nova Politica Economica e o predominio do individualismo se iriam transformar em regime permanente. (**) After Lenin, por Michael Farbman, 1924, p. 109, URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 789 alimentos destinados ao pagamento de salarins: seus negdcios deviam scr conduzidos segundo as regras comerciais, nao lhes cabendo a obrigagao de fazer fornecimentos ao govéerno, a me- nos que fdssem pagos em dinheiro os seus produtos. Dentro em breve, a maior parte das indtstrias do Estado tornaram- se autOnomas no que diz respeito a essas normas. Posterior- mente, nesse mesmo més, as fabricas do Estado obtiveram o di- reito de comprar no mercado as matérias primas de que neces- sitavam e os alimentos de que precisavam pata pagar os sala- rios de seus operarios. Finalmente, em outubro de 1921, foi- lhes concedido o direito de vender os seus produtos no mercado livre. Dessa maneira rapida e sumaria, foram dados os passos necessarios para a organizacao do novo sistema econdmico. O florescimento das emprésas produtivas, o estabelecimen- to de iniimeros pequenos negocios de tédas as espécies e o de- senyolvimento do intercaémbio entre os produtores da cidade e do campo, exigiram naturalmente algum tempo. Acreditamos ter sido com grande satisfacao que todos os paises fora da URSS e quase todos os seus inimigos internos proclamaram a Nova Politica Keonémica, como sendo, ao mesmo tempo, a confissao e a prova da faléncia do coletivisme. Quase toda a gente es- tava certa de que qualquer tentativa ulterior no sentido de li- quidar os latifundiarios e o capitalismo, nao seria empreendida. Lenine,entretanto, havia feito sentir, com perfeita clareza, que o fim dessas medidas era exatamente o de dar um passo a re- taguarda para poder dar dois a frente. Enquanto o govérno con- tinuasse na posse e na direcio de todo o sistema bancario; de todo 0 comércio exterior; dos varios meios de comunicacio e de transporte; de quase todas as tertas e edificios urbanos; das riquezas minerais, dos suprimentos de todas as,espécies de combustivel e de todas as fontes de energia elétrica; das indts- trias pesadas c de todas as emprésas de certa magnitude no ter- reno das indtstrias leves (naa se levando em conta a direcao, pelo mesmo, dos sindicatos e cooperativas de consumo); que podcria importar ao futuro do coletivismo o fato de alguns mi- ]hGes de camponéses gozarem da ‘liberdade de vender seus pro- dutos nos mercados ptiblicos e 0 fato de intimeros individuos 790 SIDNEY E BEATRICE WEBB poderem abrir nas cidades uma enorme quantidade de pequenos restaurantes, cafés, lojas de todas as especies, casas de cha, e até nesnto pequenias fabricas para a conteccéo de uma centena de artigos « estinados ao uso doméstico? ‘Enquanio as “‘posicdes chaves” continuarem a ser ocupadas pelo govérne socialista — argumentava Lenine — os milhares” de outros postos de menor importancia podem ser deixados em mio dos capitalistas até que o govérno julgue conveniente ocupa- Jos em beneficio dos eosumidores., Até mesino o comiunista rnais fandtico podia, sem o menor receio, convidar os capita- listas estrangeiros a pleitear concessGes permitindo-lhes (durante um periodo estritamente limitado, dentro dos quadros legais e sob o contréle dos sindicatos), desenvolver os recursos naturais do pais sobretudo os que o govérno, pelo menos temporariamen- te, nao fosse capaz de explorar. A verdade porém, é que os bolchevistas subestimavam ou ignoravam a capacidade, para o bem ou para o mal, do regime que se bascia na obtengo do lucro, Por meio déle, seria pos- sivel aumentar a producgdo e facilitar o intercambio de utilida- des entre a industria e a agricultura. Mas, uma vez postas em liberdade, as forcas que animam o regime na. busca da obten- c40 de lucros tomaram um caminho tortucso, minando rapida- mente “a nova estrutura moral de que dependia o sucesso do sis- tema soviético. Cada vez mais, a Nova Politica Econdémica aniplava a esfera de sua influéncia intelectual. De inicio, ape- Das 0 mercado rural foj abandonado, ficando sob o regime da compericzo € da caca ao lucro. Todos os demais setores de ati- videle estav aan Supostamente submetidos 10 regime que se ba- ela na persegnicio do bem-estar coletivo, Mas a verdade é que a NEP (Nova Politica Econdmica), a cada dia que sé Pateava, inais estendia os seus tentderins, procurando obter a> completa libertacio das emprésas particulares de todo e qual- quer controle publica, ao mesmo tempe que as proprias em- - présas do Estado iam sendo insidiosamente dominadas pelo es pirito de lucro individual, Disseram-nos que ‘ha um ditado Pune seinpre muita popular enire os discipulos de Marx, 5€- guneo o qual “quem diz A, diz BY, A evidencia dessa maxima URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 792 nunca foi mais bem ilustrada do que pela rapida evolucio das providéncias”, que se verificou estarem abrangidas na Nova Politica Econémica. A aholicgio das requisigdes arbitrarias do Estado sobre as colheitas des camponeses e sua substituigéo por uma taxa fixa sObre os cereais destinaram-se a estimular a pro- ducao de provocar interpretagdes errdneas (*). Uma das mas conseyiiéncias, decorrentes do sigilo com que procede o Govérno Sovietico em tais assuntos, consiste exata- mente em que o mundo, em geral, interpreta todos os fatos de maneira errénea. A prisio e a execucdo sumarias, depois de um simples assassinato, de uma quantidade de pessoas das mais diversas condicGes e antecedentes sociais, nao podia deixar de provocar comentarios desfavoraveis (**). (*) © libelo acusativo contra os conspiradores presos em Leningrado, onde se presume que tenha sido concertado o assas- | sinato de Kirov, pode ser encontrado na integra em International Press Correspondence de 5 de janeiro de 1935. Nesse mesmo do- cumento, encontra-se a afirmacao de que “a edigio de novembro do Ze Roesiyu (jornal da Guarda Branca de Belgrado, que a si mes- mo. se apresenta como Dragéo da Administragéo Central da Or- ganizacio Nacionalista Russa) pregava abertamente a eliminagdo de Kirov, em Leningrado, bem como a de Kaganovich, em Moscow’. Quanto a Stalin, dizia que o mesmo estava muito bem guardado. Ao que se diz, esse claro incitamento ao assassinato apareceu em outros jornais dos emigrados politicos. Louis Fischer, cujos ar- tiges em The Nation (Nova York) de 8 a 15 de maio de 1935, nos oferecem otima andlise desses fatos, declarou que ele proprio havia lido esse ineofismavel incitamento ao assassinato. (**) Uma das manifestacgdes do repudio popular contra esses acontecimentos (conforme foi publicado pela imprensa) consis- tiu no protesto apresentado ao embaixador sovietico em Londres por uma delegacio do Conselho Geral do Congresso dos sindicatos trabalhistas e pelo Comité Executivo do Partido Trabalhista in- giés. (Ndo é faci] imaginar-se o que diria o embaixador britani- co em Moscou a uma delegacao dos sindicatos operarios da URSS que o procurarse para protestar contra o julgamento, por uma Corte Britanica de Justiga, de criminosos ingleses responsaveis pelo crime de alta traicéio e de incitamento ao assassinato!). Mas o embaixadoy sovietico (Ivan Maisky), muito embora expressasse sua surpresa em face dessa atitude incorreta, recebeu a delegacao com rigorosa polidez, fornecendo-Ihe amplas explicagées sobre os julgamentos da Suprema Cérte. Afirmou que os condenados “eram, sem divida, culpados da preparacgio e exceugio de atos terroris- tas. A majoria deles havia penetrado ilegalmente na URSS, ten- URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 807 Muito embora ésses atos fossem justificados em face das provas existentes, revestiam-se de todas as aparéncias de vin- ganga e do desejo de aproveitar uma oportunidade para eli- minar da cena politica os adversarios do governo..- Foram les, assim, interpretados como uma clara manifestacao de terrorismo. No que diz respeito aos inteleciuais, ¢sse processo afigurau-se- thes wn simples pretexto para uma nova perseguicio, aptsar de haver Stalin tentado por-lhe um fim ao pronunciat o seu discurso-de junho de 1931. Tal nao se deu, porém. Em jutho de 1934, Vyshinsky, na sua qualidade de Promotor Geral do Estado, baixou instrugdes aos seus subordinados, determinando que deviam cessar as acusagdes infundadas contra os engenheires e diretores de emprésas, invariavelmente apontados como res- ponsaveis pelos fracassos administrativos. Ultimamente —-afir- do sido encontrados, em seu poder, bombas, granadas, revolveres © outras armas. Perante a Corte, declararam-se abertamente ini- migos da Unido Sovietica, chegando mesmo a admitir os crimes de que eram acusados. Sob condicdes normais — continuou Maisky — os individuog presos antes do assassinato de Kirov seriam. pro- vavelmente, julgados em epocas diferentes e condenados 2 penas apropriadas. O assassinato de Kirov, no entanto, impusera a ne- cessidade de fortalecer os meios de combate ao terrorismo. Em face dessas circunstancias, as autoridades sovieticas julgaram im- prescindivel ativar as investigacdes em torne de todos os casos de terrorismo, simultaneamente com os julgamentos em processo perante a Corte.’ Depois de fazer referencias ao assassinate do rei da Yugoslavia e ao do ministro das Relaedes Exteriores da Franca examinando a atitude tomada pela Liga das Nagées, Mais- ky assinalou o fato “universalmente conhecido de que os terroris- tas da Guarda Branea gosam de uma generosa hospitalidade em certos paises europeus, onde fazem abertamente a propaganda de atos terroristas contra os representantes do Governo Sovietico e se dedicam a preparacaio de semethantes atos. Apesar de preva- leeer a mais rigorosa vigilancia nas fronteiras dos paises adja- centes & URSS, os terroristas da Guarda Branca conseguem’ in- filtrar-se na Unido Sovietica, com o objetivo de pér em pratica os seus propositos criminosos. Semelhante situacao devia provo- ~ car a indienacio de todas as pessoas honestas.” (Do noticiario do Times, Manchester Guardian e outros jornais ingleses de 3 de ja- neiro de 1935), ~ NX ; 808 SIDNEY E BEATRICE WEBB - mava éle — tivera que anular grande ntimero de sentengas er- radamente pronunciadas pelas Cértes siberianas, Terminava proibrindo formalmente a repeticdo’de semelhantes fatos. A Liguidacdo dos “Kulaks”’ A campanha movida contra os intelectuais, entre 1928 e 1934, foi levada a efefto paralelamente com uma outra que, em- bora se desenvolvesse num setor diferente, nio deixava de ser igualmente muito ardua: a liquidacio dos’kulaks como classe. Ja tivemos ocasiao de examinar (*) a maneira pela qual o Par- tido Comunista enfrentou o problema da escassez de alimentos e havemos ainda de voltar a ésse ponto no capitulo intitulade Producaéo Planificada para 0 Consumo da Coletividade (**). E’ conveniente ressaltar aqui a maneira pela qual, ao contrario do que se verifica nos regimes ditatoriais, se processou a Juta para soluco désse prohlema, luta que consumiu alguns anos, através de-interminaveis debates e assemblcias, panfletos e con- trovérsias jornalisticas; como, no decorrer da mesma, se pro- duziram graves dissencdes no scio do Partido Comunista; e co- mo, afinal, depois de interminaveis sessdes dos comités que re- presentavam as faccdes em luta, foi assentada uma decisfo con- tra-a-qual se rebelou uma pequena minoria, cuja atitude assu- miu carater de tal violéncia e tal amplitude que provocou a expul- sion e o exilin de grande numero de eminentes nersonalidades -pertercentes ao grupo dos “Velhos Revolucionarios”. A nova politica entio adotada correspondia perfeitamente a uma se- ounda revoluc3o agraria, talvez maior do que a verificada em 1917-1918. As inumeraveis pequenas propriedades rurais, es- palhadas através do territério da URSS, deviam ser sumaria- mente amalgamadas-em algumas centenas de milhares de gran- des fazendas coletivas, de forma que a agricultura pudesse vir a ser eficientemente mecanizada, Somente por essa forma, de (*) ‘Capftulo TIT, Parte I, Secedo III, As Fazendas Coletivas, (**) Cap. VIU, Parte II, URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO 809 acérdo com as conclusdes finais, se poderia aumentar, de fato, a produgio de alimentos, afim de fazer face ds necessidades da crescente populacao, dentro da década_seguinte; s6 assim se- tia possivel libertar da miséria a massa camponesa, incapaz de produzir nem mesmo o necessario 4s suas préprias familias; sd por ésse meio seria possivel constituir uma reserva de ce- reais indispensavel para fazer face a periddica escassez das co- Jheitas e prover as necessidades da defesa no caso sempre pos- sivel de uma invasio estrangeira. Essa momentosa decisao do Partido (talvez a mais impor- tante desde a que foi tomada, em 1918, em favor da aceitagao dos térmos de paz ditados pelo exército alemao), atribuiu ao Govérno Soviético, além de todas os seus demais encargos, uma tarefa de colossal magnitude e dificuldade. A “‘liquidagio” do tillimo setor no individualismo capitalista seria um dos proble- mas a serem resolvidos. Entre os vinte e cinco milhdes de fa milias camponesas, como ja tivemos ocasiao de assinalar, havia grupos: o dos pobres (bcdniaks), o dos remediados (seredniaks) eo dos relativamente abastados (ki/aks). Désses trés grupos, admitia-se que 0 primeiro poderia ser facilmente persuadido a reunir-se nas kolkhoses, ja que estas lhes ofereciam perspectivas de imaiores lucros. O segundo grupo, conforme se supunha, poderia ser absorvido, em sua grande maioria, uma vez demons- trado o sucesso das kolkhoses. Previa-se, entretanto, que uma proporedo indeterminada désses camponeses remediados, os mais enérgicos e ambiciosos, haveria de mostrar-se recalcitrante, Fi- nalmente, 08 camponeses abastados, grupo que procurava au- mentar sitas posses por meio do arrendamento de terras, exer- cendo o comércio paralelamente a agricultura e fazendo tam- bém pequenos empréstimos em dinheiro; ésse grupo. que ha- via desenvolvido suas plantagGes com o apdio das cooperativas agricolas e gracas aos baixas salarios que pagava aos seus tra- balhadores; ésse grupo de odiados kulaks tinha que ser “liqui- dado como classe”. E’ facil compreender-se que, para levar a hon térmo essa nova revolucdo agraria, se tornava necessaria a expoliagio sumadria de, aproximadamente, um milhaio de fami- lias, que octipavam propriedades. relativamente bem sucedi- 810 SIDNEY E BEATRICE WEBB das (*). Devia ser muito forte a fé e muito resoluta a vontade dos homens que, no interésse do que lhes parecia representar o bem publico, eram forgados a tomar decisGes tio iniportantes. E’ necessario reconhecer, no entanto, que a liquidagao désse capitalismo agricola devia ser levada a cabo para que fOsse pos- sivel obter-se 0 desejado aumento da produgdo. Afim de rea- lizar a mecanizacfio de toda a agricultura, tornava-se indispen- savel unificar, em grandes fazendas coletivas, todas as peque- nas areas cultivaveis. Na Russia, alids, nao’ se fazia necessa- rio, como se deu na legislagao inglésa de 1760-1820, reformar toda a estrutura agricola em que se baseavam os feudos eé fre- guesias. Cada fazenda coletiva precisava, porém, de algumas centenas de hectares, em area continua, que nio ficaria ads- trita aos limites da vila do distrito e acarretaria inevitavelmente @ remocio forcada de alguns proprietarios que se recusassem a fazer parte da kolkhosc. E’ necessario assinalar, no entanto, que nao joi em torno désse ponto que se verificou a séria cisao no seio do Partido Comunista; nenhuma de suas facgdes mani- festava a menor cleméncia pelo odiado kulak. E’ dificil, a um inglés dos dias presentes, compreender, em téda a sua extensio, o ddio alimentado pelos russos contra o kulak. Hoje, pode éste parecer, apenas, um camponés mais enérgico ¢ empreendedor que, por suas proprias qualidades e virtudes, conseguiu elevar-se acima da grande massa de in- capazes. Mas a verdade é™que todos os estudiosos da vida (*) © poderio numerico dos kulaks era consideravel. Step- niak, em 1895, observara que “em todas as vilas ha sempre tres ou quatro kulaks, bem como uma meia duzia de outros elementos semelhantes, mas de categoria inferior... Suas funcgdes nao exi- gem grande capacidade: € necessaria apenas certa aptidao para explorar em seu proveito as necessidades, as tristezas e os sofri- mentos alheios” (The Itussiun Peasantry, por Stepniak, 1895; edi- cao inglesa, 1905, p. 54). A proporgio dog mesmos, numas 5e- tenta mil vilas, foi calculada por Stalin, em novembro ‘de 1928, em cerca de 5% (Leniniamo, por Josef Stalin, 1933, vol. II, p. 164). Foi a totalidade de#sa classe, com um numero apro oximado de um milhio de familias,.que o Governo Sovictico, em 1928, se propds “liquidar”’ dentro do prazo de cinco anos, URSS, UMA NOVA CIVILIZAQAO 811 rural russa, durante os Ultimos cincoenta anos, todos éles es- tigmatizaram o kilak, apontando-o como unr terrivel opres- sor de seus vizinhos mais pobres. Stepniak, em 1895, forneceu- nos, espantosa descricao dos efeitos causados, sobre seus vi- zinhos, pelo inveterado espirito de usura do kulak e por sua tendéncia natural a escravizar os camponeses que nao possuiam terras. “A caracteristica fundamental dessa classe — dizia Ste- pniak — é a dureza de coracgao, a crueldade de certos homens completamente faltos de educacao0, e que, inicialinente pobres, conseguiram chegar a prosperidade e passaram a considerar 0 dinheiro, obtido por qualquer meio, como o tinico objetivo a que se deve devotar o sér humano” (*). “O kulak — dizia um capaz observador germanico, em 1904 — é uma interessante figura da Russia rural... Nao ha du- vida alguma sdbre o fato de que os métodos adotados por ésse usurario € opressor dos camponeses nado sio dos mais hones- tos... A vantajosa posiggo por éles ocupada hoje foi conquis- ada no periodo déstes Gltimos vinte ou trinta anos... O “de- vorador da aldeia” é produto natural de um sistema vicioso Aprovditando-se das desfavoraveis condigdes em que se encon- travam certos elementos da sua propria comunidade, foram fa- zendo-se credores de uns apds outros; em seguida, transfor- maram-nos em assdlariados seus; e, finalmente, se apropria- ram, para seu proveito individual, e(ias~terras pertencentes a ésses° camponeses econdmicamente fracos” (**). O Dr. Dillon, cujo testemunho se reveste de grande autoridade, declarou, em 1918, que “ésse tipo de homem foi denominado kulak (mio fechada, punho) para simbolizar a sua completa insensihilidade. Entre todos os monstros humanos que até hoje encontret, atra- ves de niinhas viagens, ndo me recordo de nenhum tao maligno e odioso como o kulak russo. -Durante os horrores das re- volugdes de 1905 e de 1917, foi éle o espirito dominante, uma (*) The Russian Peasantry, por Stepniak, 1895 (edicao in- glesa, 1905, p. 35, P pniak, (edica (**) Russia, her Strengh and he ker Wolf Schiorband, 1904, p. 120, , ecknen, per Wes ee 812> SIDNEY E BEATRICE WEBB espécie de diabo em figura de gente” (*). Muitos exemplos ustrativos da desapiedada opressdo econémica exercida pelo kulak podem ser obtidos em fontes russas (**). A verdade, entretanto, é que o kudak 1iunca féz mais do que por em pra- tica o que seria considerado como “um negécio honesto” pelos economistas individualistas da Inglaterra vitoriana: tirar van- tagens da fraqueza econdémica daqueles com quem realizavam 0 seu gomercio ; comprar sempre pelo preco mais baixo e ven- der pelo mais elevado; pagar os mais infimos salarios aos que lhe pediam emprégo; e obter o maior juro possivel daquéles que voluntariamente aceitavam seus empréstinis. Mas, sem levar em’ conta se o camponés abastado era ele- mento bom ou mau dentro da sociedade rural, o Partido Co- mumista havia resolvido que a URSS nfo haveria de seguir o exemplo da Franca, estabelecendo uma classe permanente de proprietarios rurais. -A experiéncia dos sete anos anteriores, durante os quais apenas 2% dos camponeses, em toda a URSS, haviam aderido voluntariamente as varias kolkhoses, apesat de terem sido elas favorecidas com a concessao de créditos e re- ducio de impostos, tudo isso estava indicando que se fazia ne- cessiria esférco mais determinado. No primeiro ano que se seguiu ao discurso de Stalin anunciando a nova linha politica, a segunda revoluco agraria entrou em plena execucio, sendo ex- pulsos de suas propricdades todos os que se opunham ao plano, confiscando-se as suas terras e removendo-se, para novas loca- Jidades, todos os recalcitrantes. Ao mesmo tempo, os impostos recaiam com maior severidade sobre o camponés individualista, obrigando-o a compreender, por essa forma, que a sua situacao, em pouco tempo, se tornaria insuportavel. A principio, a nova revolucéo agraria avangava com uma velocidade ultrapassando tédas as expectativas. O Primeiro Plano Quinquenal previa a absorcio, anualmente, de 20% das (*) The Eclipee of Russia, por E. J, Dillon, 1918, p. 67. (**) Ver, por exemplo, a conyineente historia de uma cam- ponesa no panfleto Collective Farm Trude, por Eudoxia Pazukhina, Moscou, 1930, . \ URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO als propriedades camponesas. Mas, dentro de um ano, nada menog ‘de 55% das mesmas se haviam fundido nas fazendas coletivas.. Nao havendo, entretanto, a quantidade suficiente de tratores e de outras maquinas agricolas para fazer frente a tao rapido de- senvolvimento, surgiu uma grande onda de elementos descon- tentes, O Comité Executive Central (TSIK) féz sentir que se tornava necessirio tomar medidas tendentes a minorar-a_ si- tuagio; e o Comité Central do Partido Comunista deu instru- cdes a Stalin afim de que éste pronunciasse o discurso conhe- cido em téda a URSS sob o titulo de “A Vertigem do Exito” (ou ‘“Estonteados pelo Exito”). Nesse discurso, eram aspera- mente censurados os comités Jocais e funcionatios excessiva- mente zelosos. Stalin afirmava que o ato de aderir as fazendas coletivas devia ser resultante da decisio voluntaria de cada cam- ponés; e¢, ao invés de privar ésses soldados voluntarios das van- tagens decorrentes do gézo da propriedade que éles haviam tra- zido para uso comum, o que deviam fazer as autoridades da kolkhos era conceder-lhes razoavel compensacio pelo apdio assim presiado 4 comunidade. Declarou éle que se devia permitir a retirada, deritro de justas condigdes, a aesigeres membro que desejasse fazé-lo, O resultado désse discurso foi que a cifra total de mem- bros das kolkhosi cai. rapidamente para cérca de metade. E a coletivizacio, dai por diante, continuou a processar-se menos precipitadamente e com maior seguranga. Prosseguiu, sem so- luglio de continuidade, até que, nos fins de 1933, cérca de 65% das propriedades rurais se haviam fundido em mais de duzentas mil fazendas coletivas que produziam mais de trés quartos das colheitas totais da URSS nessa data. Nas provincias em que a organizacao de kolkhosi foi acelerada, abrangendo aproxi- madamente a totalidade da area em que o trigo ¢ produzido em quantidade superior as exigéncias locais, a liquidacay do kulak estava substancialmente completa nos fins de 1933. K’ conveniente esclarecer que nao se conhecem estatisticas nem foram publicados relatorios s6bre a maneira pela qual foi realizada essa transformacao, que afetou, por certo, algumas centenas de milhares de pessoas. Nao nos é possivel estimar 814 SIDNEY E BEATRICE WEBB o numero de casos em que, praticamente, toda a propriedade dessas familias foi confiscada. Nao podemos formar uma idéia do nimero dos que podiam ser de fato classificados como kulaks ; nem do numero dos que eram apenas individualistas obstinados que, fdssem ou nao bem sucedidos em seus empreendimen- tos particulares, se recusavam resolutamente a solidarizar-se com as fazendas coletivas. N&o sabemos em que extensao ou por que meios os seus casos foram investigados, antes de serem expulsos de suas terras. Nao nos foi possivel apurar o nd- mero de camponeses dessa espécie recolhidos 4 prisdo, ou de- portados para as florestas do norte, ou empregados na cons- trucZo de canais e ferrovias, ou transferidos para as gigantescas emprésas industriais de Magnitogorsk e Chelyabinsk, perpétua- mente famintas de operarios, ou enviados para a bacia do Do- netz, onde havia também grande escassez de bragos. Nao exis- te também nenhum documento que nos dé a conhecer as condi- gGes sob as quais essas centenas de milhares de homens, mu- Theres e criancas foram forcados a viver, durante ésse arbitra- _ rio processo de transferéncias e reajustamento, assim como niio ha também nenhuma estimativa sobre a mortalidade provocada por ésses deslocamentos, De tudo quanto pudemos apurar, che- gamos a conclusio de que o Govérno Soviético nio se dignou temar conhecimento das numerosas dentncias sdbre atos de erueldade que, segundo se alegava, foram perpetrados por seus agentes; nem publicou relatério algum explicando o seu pro- cedimento nessa liquidagao sumaria de tao larga porcio de ci- dadios. De fato, quase tudo quanto se sabe é que, durante os ltimos anos, pessoas que viajaram através do sul da URSS, testemunharam repetidamente, nas estagoes ferroviarias, cenas dolorosas em que homens, mulheres e criancas, levando consigo apenas aquilo que podiam carregar, eram postos como carneiros em trens aue deviam conduzi-los para destinos desconhecidos. O sofrimento humano dai decorrente ultrapassa tudo quanto se possa imaginar (*). (*) Um competente observador escrevia em 1933: “Dois cam- poneses, que atingiram a prosperidade por serem extraordinaria- URSS, UMA NOVA CIVILIZAGAO 815 A liquidagio dos kulaks foi feita de uma forma téda es- pecial. Decretos baixados pelo Sovnarkom da URSS determi- naram que a classe dos kulaks devia desaparecer. Por téda parte do pais, os batraks e bedniaks (camponeses sem terra e camponeses pobres) bem como os seredniaks (camponeses re- mediados), realizavam assembléias e determinavam quais eram os kulaks, existentes na aldeia, a serem destituidos de suas pro- priedades. Fizemos jA referéncia a uma jornalista americana, por longo tempo residente na URSS, e que foi testemunha da seriedade e do sentimento de responsabilidade com que eram mente trabalhadores, ambos meus conhecidos e- que, sem dtvida, niio cram kulaks, foram retirados de suas casas ds duas horas da madrugada e deportados para um distrito désconhecido e subme- tidos a trabalho forcado, sem aue houvesse contra eles nenhuma acusacio. Suag terras foram confiscadas, ficando suas familias sem coisa algeuma... A maior parte da vila em que viviam ti- nha sido coletivizada, mas a direefo da fazenda coletive nao per- mitira a sua inclusdo. Ele havia gosado de certa prosperidade e tinha.a seu servico trabalhadores assalariados; por conseguin- te, nfio podia fazer parte da eranja coletiva. . — Como vé, sou um simples deportado, tal como o Sr. (havia terminado na véspera o meu julgamento pelos tribunais de Mos- cou). Mas, — continuou ele — existe uma diferenca: o sr. volta para sua patria, reintegrando-se no regime da ordem e da fartu- ra; enquanto que, para nés, <6 existe uma saida: fechar as ja- nelas e abrir as portas do fogao. E’ tssa a unica maneira de fugirmos as angustias da morte pela fome”. )Moscow, 1911-1938, por Allan Monkhouse. 1933, pp. 219-220). Esse mesmo observa- dor descreve a situacio do kulak em Chelyabinsk, em janeiro de 1932: “Fiz uma visita A agencia especial, encarregada de encami- nhar trabalhadores para Magnitostroi... A maioria desscs itnfe- lizes desempregados eram KULAKs que haviam sido privades de suas terras e de suas propriedades, sendo expulsos de suas aldeias. Faziam-me lembrar os refugiados polacos em Moscou, em 1915. Em muitos casos, acompanhavam-nos as suas familias. Os mais velhos niio falavam, por estarem evidentemente aterrorizados... Duas _criangns ali tinham ido para pedir assistencia... tendo eu ecasiao de ouvir uma triste narrativa de destruicio de suas al- deias, de casas arruinadas e da falta de emprego que atormentava esses camponeses.”? (Moscow, 1911-1983, por Allan Monkhouse, 1933, p. 190). 816 SIDNEY E BEATRICE WEBB tomadas as resolucdes nas assembléias por éle assistidas, bem como das tentativas feitas por altas autoridades no sentido de refrear qualquer julgamento precipitado (*). Quanto 4 ma- neira pela qual eram executadas essas resolugdes, nada podemos dizer por nao dispormos de testemunhos diretos on documentos a respeito. Aventuramo-nos, porém, a transerever aqui alguns trechos de um trabalho de ficgfo recentemente publicado por um escritor que foi testemunha ocular de muitos fatos. Nao _quer isso dizer que consideramos essa narrativa como verdade " incontestavel. Mas, desprezando-se embora alguns de seus de- talhes, a novela em questo reflete, por certo, o espirito que pre- dominou nessa fase de expropriagées: “Timoteo, que herdara a altivez e a elegincia de sua mae, levantou-se de seu lugar. Limpou no guardanapo os labios ver- melhos, encimados por um ligeiro buco, levantou o olhar in- solente € penetrante e, com grande desembarago, acompanhan- do as palavras de um gesto da mio, disse aos recém-chiegados: — Entrem e tenham a bondade de sentar-se, respeitaveis ‘autoridades. — Nao temos tempo para sentar — disse Andrei, — pu- xando uma fdlha de papel do mago que segurava. E acres- centou :, : — Cidadao Frol Damaskov, uma assembléia de campo- neses pobres resolve expulsa-o e confiscar tédas as suas pro- priedades.- Esperamos que acabe de jantar e nos entregue a casa. Vamos fazer imedjatamente uma relagdo de tudo quanto the pertence. — Por que isso? — interrogou Frol, abandonando os ta- | lheres e levantando-se. — Temos ordens para liqttidar a sua classe — explicou-lhe Demka Ushakoy: aoi, Distatorship and Democracy, por A. L, Strong, 1934, Pp. : URSS, UMA NOVA CIVILIZACAO R17 Frol sain da sala, fazendo grande rujdo com suas botas e voliou logo depois cont um papel na mao; . ™ —- Aqui esta o mett certificado. Vocé mesmo o assinou, Razmetnov. — Que certificado é ésse? — E’ a prova de que fiz entrega dos cereais que me fo- ram exigidos. — Nada temos a ver com a entrega de cereais. —- Por que entio pretende expulsar-me de minha casa e confiscar 0 que me pertence? — Ja lhe disse que essa foi a deciséo assentada pelos cam- poneses pobres. — Isso nao tem apoio na lei — exclamou Timoteo. Isso é um roubo! Vou imediatamente ao Comité Exccutivo do Dis: trito, meu pai. Onde esto os arreios? — Se queres ir ao Comité Executivo, terés que fazé-lo a pé. Nao podemos fornecer-te um cavalo — disse Andrei, sen- tando-se 4 borda da mesa e tendo 4 mao papel e lapis. As narinas de Frol adquiriram uma cér azulada e sua ca- beca comecou a oscilar. De repente, tombou sobre o chio, mo- vendo com dificuldade a lingua, escura e entumescida: — Filhos da... filhos da... ladrdes, assassinos! — Por amor de Deus, papai, levanta — dizia-lhe, a cho- rar, a filha, puxando-o pelos bragos. Fro] recuperou o dominio de si mesmo, Jevantou-se e ficou senitado num banco, ouvindo o que era ditado a Razmetnov por Demka Ushakov e pelo corpulento e retraido Mikhail Iguatenok: — Uma armagio de cama, um edredon, trés trayesseirps . — Dois leitos de madeira. — Um armiario cheio de lougas. Sera preciso discrimina- las todas? Que vio para o inferno! — Doze cadeiras, um banco comprido com encésto. — Uma concertina tripla. — Nio permitirei que levem minha concertina! Deixa-a onde esta, vesgo, ou te quebrarei o nariz! — disse Timéteo, arrebatando-a das mios de Demka. — 52 818 SIDNEY E BEATRICE WEBB — Menino, vocé acaba levando um murro que dara muito trabalho a sua mie... * — Camarada Zakharenko, representante distrital da GPU, apresento-Ihe aqui o kulak Borodin, Tit Konstantinovich, co- mo elemento contra-revoluciondério e traidor, Quando fazia- mos o inventirio de sua propriedade, féz um ataque aberto ao C rada Davidov, um dos 25.000 trabalhadores mobilizados, teniardo, por duas vézes, quebrar-lhe a cabega com uma barra de ferr aie disso, posso afirmar-lhe que vi nas maos de Boro- din um rifle de tipo russo que, por circunstancias alheias a mi- wha vontade, me foi impossivel apreender; encontraya-me num pequena outeiro e quis evitar derramamento de sangue; aprovei- tando essa oportunidade, conseguiu éle pd-lo fora sem que ett visse. Haverei de encontrd-lo e tra-lo-ei como uma prova ma- terial do que afirmo, “Tit foi conduzido a prisio. Pediu um pouco dagua e cha- mow Nagulnev, que acabara de prendé-lo e era secretario do nucleo do Partido Comunista em Gremyachy, condecorado com a Orden da Bandcira Vermelha. Nagulnov limitou-se a gri- tar-lhe da porta: — Que quer voce? - -+- Makar! (Nao te esquecas!) — exclamou Tit, acenan- do-lhe com as mins atadas, como um bébado. Nido te esquecas! Haveremos ainda de nos encontrar um dia! Hoje éstou sendo hunithado por ti; mas amanha seris t1 o humilhado. Hei de matar-te! Cavaste o tiimflo de nossa amizade. ~- Cala a héca, porco contra-revolucionario! — exclamou Naguinov” (*), (*) The Soil Upturned, por M, Sholokhov (Moscou, 1934), Cap. VIN, pp. 71-73, 80-81; publicado tambem em Londres, 1935. ‘ URSS, UMA NOVA CIVILIZAGA0 819 * N4@o podemos apresentar a relacio exata de todos os kulaks que foram, dessa forma, sumariamente expropriados, privados de seus bens e expulsos de suas aldeias. A sua “liquidacgio” foi devida, alias, a outras causas. Em 1931 e 1932, ao mesmo tem- po que se verificava um fracasso parcial nas colheitas (a que ja nos referimos), muitos camponeses, tanto os que eram membros dos holkhoses como-os que nao o eram, recusavam-se obstinada- mente a cttltivar suas propriedades, limitando as semeaduras a tuna pequena proporcio de suas terras, numa extensao por éles considerada como suficiente para Ihes assegurar o indispensavel a sua propria manutencdo; deixaram as ervas daninhas dominar por completo suas culturas e, na época de maturacdo dos ce- reais, colheram o minimo exigido pelas suas necessidades, dei- xando o resto apodrecer no solo. Dat resultou que, tendo-se ve- tificado um perfodo de séca, muitos camponeses, na Ucraina e no norte do Caucaso, ficaram sem ter oe que comer durante o inverno e a primavera. O Govérno Soviético, depois de haver reduzido os impostos e, em certos casos, fornecido cereais aos camponeses atingidos pela ameaca de fome, chegou a conclusio de ser impolitico amparar ésses recalcitrantes que recusavam cul- tivar a terra. Assim, foram éles deportados, ora como fami- lias, ora como aldeias inteiras, para lugares em que podiam “trabalhos de emer- estar a salvo da fome, sendo empregados em géncia”, mediante salarios reduzidos. Dezenas de milhares de homens foram absorvidos na construgao do canal do Mar Rranco Outros foram enviados para reforcar o operariado que se de- votava a constriucio de novas cidades como Chelyabinsk e Magni- a x togorsk. Nao pretendemos reduzir a proporcdes insignificantes muito menos justificar essa impiedosa expropriacio e remociio de canyponeses considerados como kulaks da mesma forma que nao concordamos com a expulsio igualmente cruel, ha pouco mais de um século, dos pequenos agricultores escoceses e que deu em resultado a ruina econdmica de grande nimero de pe- quenos proprictarios, resultante da decisao legislativa da Camara 4 820 SIDNEY E BEATRICE WEBB dos Comurs da Ine'stera. A po'itica tendente a substituir, compt'sdriarente 9 neniera pronriedede por grandes fazendas de eriacio e agricolas, podia ter sida econOmicamente vanta- josa tanto num como noutro-caso. O Govérno Soviético podia ter tada a raz3o ao conclvir que sémente por meia da concentra- cio e fusio das pequénas propriedades camponesas, poderia . tornar-se praticarel a mecanizacdo geral da agricultura; e que, somente por meio dessa mecanizacio seria possivel elevar a producaio total de cereais ao nivel das necessidades nacionais. De fato. a parcial escassez das colheitas em 1931 e 1932 (con- qnanto, como ja explicamos (*), no tivesse determinado pro-~ priamente o que se possa chamaz de fome), levou a miséria mui- tos milhares de pequenios camponeses; e bem poderia ter pare- cido que, nesse caso, somente a fransferéncia de local seria ca- paz de salvi-los da morte. Na verdade; nfo é tanto essa po- litica de transferéncia € ¢xpropriacdo de cammponeses que é pas- stvel de critica, mas a maneira pela qual foi a mesma levada a cabo e.as condicdes desfavoraveis de vida em que ficaram as suas vitimas, arbitrariamente deportadas sem nenhuma investi- gacao efetiva ou formalidade judicial (**). ‘ (*) Capitulo ITI, Secedio III, Parte. I: A Fazenda Colctiva. (**) Contsram-nos a histéria de um grupo de kulaks depor- fados e que foram empregados, sob condicées muito desfavoraveis, como trabulhadores nas obras de construcio da ferrovia Turksi- beriana. Dizse que o engenheiro encarregado dessa obra suge- rira que esses trabalhadores poderiam receber certa porgdo de terra onde se agrupariam sob a forma de uma kKolkos€, aprovei- tando seus conhecimentos agricolas em seu proprio proveito, sem o emprego de trabalho assalarjado, quando teminassem sua tarefa na construcdo. No sabemos se foi posta em pratica semelhante sugestio. Alguma coisa parecida deve ter sido realizada, entre- tanto, atravée do “plano de colonizacéo” promulgado em agosto de 1233 e submetido A fiecalizac¢io de uma Comissio Especial. Esse plano foi experimentalmente posto em execugio, em 1932, em con- gequencia da deportacio de aldeias inteiras de cossacos do norte do Caucaso. Essas novas colonias encontram-se em distritos agri- colas apropriados na parte sul da Sibéria (ver The Times, de 3i de agosto de 1933).

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