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DOMINGO, 9 DE MAIO DE 2010 ANO XXIV – Nº 7995 O ESTADO DE S. PAULO

Caderno2
Lena Santana
Moda nacional em Londres. Pág. D6

DOMINGO
G
http://www.estadão.com.br

O ator Rodrigo Santoro recria com precisão a trajetória

do mais torto e trágico dos anjos do futebol brasileiro em
filme que José Henrique Fonseca dirige no Rio de Janeiro

UM CRAQUE CHAMADO

HELENO
Ubiratan Brasil / RIO ta Perón) e Atlético Junior de
WILTON JUNIOR/AE

Barranquilla da Colômbia, onde

A metamorfose começou – pri- cativou torcedores ilustres co-
meiro, o corte de cabelo, cuida- mo o escritor Gabriel García
dosamente modelado e esculpi- Márquez. “Quando o encontrei,
dodegomalina,àmodadeRodol- em um festival de cinema em
fo Valentino; em seguida, os tor- Cuba,Gabodisseque, comHele-
nozelos que, graças à dedicação no, não havia meio termo: ou ele
nas cenas de jogo, são tratados encantava a torcida com um
com gelo, como fazem os atletas show de bola ou era expulso, de-
profissionais.Mas é no olhar que pois de brigar com alguém.”
atransformaçãomaisimpressio-
na: incisivo, confiante, debocha- Mito. Assim, o plano de Fonse-
do.Éa partir dosolhosque o ator ca, que divide o roteiro com Feli-
RodrigoSantoroassumeaperso- pe Bragança, é recriar justamen-
na de Heleno de Freitas (1920- te esse mito do qual sobraram
1959), o mais torto dos anjos do documentos esparsos – um pu-
futebol brasileiro, ídolo do Bota- nhado de fotos e depoimentos
fogodosanos40quemorreusifi- conflitantes. Nada de imagens
lítico, incompreendido, louco. emmovimento,excetoalgunsse-
Um fascinante personagem cuja gundos de uma partida do Boca,
trajetória inspira o novo filme recém-descobertos na Cinema-
que José Henrique Fonseca roda tecaArgentina.Criou-se,portan-
há dez dias no Rio de Janeiro. to, ao longo dos anos um perfil
“Heleno carregava a própria tra- desencontrado do jogador. “Ha-
gédia grega no nome”, conta o via quem o endeusava, mas tam-
cineasta,enquan- bém existiam
toobservaotraba- aquelesque opin-
lho de concentra- tavam como de-
ção de Santoro. mônio”, lembra o
Na manhã de cineasta, que há
sexta-feira, em cinco anos traba-
um dos vestiários lha para viabilizar
doestádiodoVas- o projeto. “No fi-
co da Gama, em nal, tanto tempo
São Januário, o de espera serviu,
Estado acompa- ao menos, para
nhacomexclusivi- criar uma histó-
dade a prepara- ria menos docu-
ção de uma cena. mentalemaiscen-
INSTÁVEL, PASSAVA
Vestido com a ca- tradanafigurahu-
misa de época do DE UMA JOGADA A mana.”
Botafogo, chutei- Graças ao
UMA BRIGA EM
ra de couro e tra- apoiodoempresá-
vas de cortiça, o INSTANTES rio Eike Batista,
ator acerta o ca- que acreditou no
belo, acende o cigarro, posicio- filme e despertou o interesse de
na-se como um deus grego, outros financiadores, o público
apoiadoem um banquinho. “Ro- vai conhecer a história do ho-
drigo fica tão concentrado que, mem que buscava a perfeição
no set, o chamamos de Heleno, mas,vitimadopelasífilisquedes-
sem gozação”, comenta Fonse- truiu seu cérebro, terminou co-
ca. “E ele atende.” mo um farrapo humano. “Há ce-
Orçado em R$ 8 milhões, o fil- nas muito fortes, como a única
me (que ainda carrega o título partida que Heleno disputou no
provisório de Heleno) vai acom- Maracanã”, observa Santoro,
panhar a trajetória de um craque que leu toda a documentação
singular: advogado formado, bo- existente, além de ter conversa-
nito,famoso,goleador masbipo- do com pessoas que, de alguma
lar – irascível em campo, dispos- forma, tiveram um certo conta-
to a brigar com adversários e co- to com o jogador. “Em 1951, já
legas do próprio time por conta doente, ele vestiu a camisa do Rodrigo. Em
de uma jogada malfeita, Heleno América que enfrentaria o São processo de
eraumgentlemanforadograma- Cristóvão. Heleno ficou apenas descoberta do
do, incapaz de insultar alguém. 25 minutos em campo – há quem personagem
“É um personagem muito com- diga que estático, só acompa-
plexo, que ainda estou desco- nhando a bola. O seu desejo, po-
brindo”, conta Santoro. rém, foi realizado: pisar no gra-
Heleno (que pode mudar para mado do Maracanã.”
um título sem referência ao no- As filmagens seguem por mais
me do jogador) não será um fil- quatrosemanas.Depois,serãoin-
me sobre futebol, apesar de seu terrompidasduranteummês,pe-
fio condutor ser a trajetória do ríodo em que Santoro vai engor-
atacante obcecado pela vitória, dar oito quilos para viver o mo-
que passou por Botafogo, Vasco, mento crucial de Heleno de Frei-
Santos, América carioca, além tas:aderrocadaemumsanatório.
do Boca Juniors da Argentina
(passagemnaqualsecriouoboa- Leia sobre a preparação do ator
to de que teve um affair com Evi- para as cenas de loucura na Pág. D3 }
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O ESTADO DE S. PAULO
Cinema. Making Of
Homenagem. Mesmo habilidoso com a bola, Santoro pediu auxílio ao ex-atacante Cláudio Adão para reproduzir o refinado futebol de Heleno de Freitas: “É meu tributo ao grande mito”
NUNCA HOUVE
UM MITO COMO HELENO
Santoro foi aos locais onde o atacante viveu e ao sanatório em que morreu
Ubiratan Brasil / RIO
Sem avisar a produção, Rodrigo
Santoro decidiu passar um fim
desemanaemSãoJoãoNepomu-
cenoeBarbacena,cidadesminei-
ras onde Heleno de Freitas nas-
ceu e morreu, respectivamente.
“Fui acompanhado do (prepara-
dor de elenco) Sérgio Pena e con-
versamos com as pessoas sobre
as reminiscências deixadas pelo
jogador.”Emseutrabalhoperfec-
cionista, ele também ouviu Luiz
Eduardo, único filho do atacan-
te.E aindaassistiu aofilme Gilda,
clássico noir de Charles Vidor de
1947, em que Rita Hayworth in-
terpretaumamulhercujotempe-
ramentodedivainspirouumabe-
la provocação dos torcedores ri-
vais, que gritavam “Gilda” quan-
do o craque estava em campo.
“Ele era um homem surpreen-
dente, um marco da sociedade
carioca dos anos 40, pois foi o
primeiro jogador a atrair donze-
las para os estádios por conta de
seu charme”, explica Santoro.
“Tambémfoipioneiroemimpor-
tar um Cadillac, alimentando
sua paixão por carros.”
O ator se prepara com afinco
para as cenas que considera as
mais marcantes do filme – justa-
mente a fase em que Heleno, já
com a mente devastada pela sífi-
NETA ENTRA
EM CAMPO NA
PRODUÇÃO
● Mariah de Freitas não conhe-
ceu o avô, célebre jogador. “Só
sei que foi um cara de atitude,
graças às histórias que meus
pais contam”, afirma ela, que tra-
balha como estagiária de maquia-
gem no longa dirigido por José
Henrique Fonseca. “Mas, mesmo
sem muita informação, confesso
que tive um certo tremor quando
REPRODUÇÃO
Pinta de galã. O atacante
com o uniforme do Botafogo
lis, abandona o futebol e vive o
resto de sua vida em um sanató-
rio. “Como ele se negou a fazer
tratamento adequado, temendo
comprometer a virilidade, a
doença avançou a ponto de com-
prometerseusensocrítico,sinto-
ma que era tratado com choques
elétricos.”
A cena inevitavelmente faz
lembrar do primeiro grande mo-
mentodeSantoro no cinema, Bi-
cho de Sete Cabeças (2000), filme
de Laís Bodanzky em que inter-
pretaumrapazinternadopelafa-
mília em um hospício. “Há algu-
ma semelhança, mas acredito
que agora será mais forte.”
AdoençaqueHelenopotencia-
lizava em sua raiva é a chave do
Mariah. “Pelo que meus pais
dizem, foi um cara de atitude”
vi o Rodrigo Santoro interpretan-
do o papel do meu avô. Ele se
encaixa bem na descrição que
tenho do Heleno.”
longa de José Henrique Fonseca,
que deve estrear em maio de
2011. O diretor gosta de criar um
clima propício na filmagem – ao
som de músicas incentivadoras
(de O Anel do Nibelungo, de Ri-
chard Wagner, a clássicos do jazz
americano), ele pretende apre-
sentar um Rio desaparecido.
“Nosanos40,enquantoaEuropa
tentava se recuperar da guerra, a
cidadeviviamomentoglamouro-
so, graças à beleza natural e ao
lazer propiciado por clubese cas-
sinos”, observa o cineasta, que
fez uma pesquisa cirúrgica em
busca de locações que ainda con-
servam reminiscências da época.
Em alguns casos, teve sucesso,
como o estádio do Vasco, cujos
vestiários,tribunasearquibanca-
das mantêm a base do desenho
original. Ou ainda o Copacabana
Palace,ondeHelenoviveuduran-
te seus momentos de glória, épo-
ca em que, reza a lenda, testemu-
nhou Orson Welles atirar uma
poltrona na piscina do hotel.
“Nossosproblemassãomaisgeo-
gráficos”, conta Eduardo Pop, da
GoritziaFilmes, que divide apro-
dução com a RT Features, de Ro-
drigo Teixeira. “Veja a cena de Il-
ma, mulher do jogador, no balcão
de um apartamento do hotel: ao
fundo, aparece a orla de Copaca-
bana,hoje totalmente distinta do
Pai de Mariah, Luiz Eduardo é o
único filho do atacante. Ele, po-
rém, ainda não conseguiu equili-
brar a emoção para visitar a fil-
magem. “Luiz vem se acostuman-
do aos poucos com a ideia”, expli-
ca o produtor Eduardo Pop.
Na verdade, Luiz Eduardo pouco
conheceu o pai – Ilma, sua mãe,
cortou qualquer contato depois
que se separou do jogador e foi
morar em Petrópolis. Só quando
estava com 10 anos é que ele
recebeu algumas notícias do pai,
justamente a informação de seu
falecimento. / U.B.
que era há 70 anos. Assim, uma
empresa americana foi contrata-
da para, durante quatro meses,
trabalhar com computação gráfi-
ca a fim de aprimorar apenas três
cenaserevigoraravistaoriginal.”
Cores. “Nenhum detalhe históri-
co passará despercebido”, garan-
te Rodrigo Teixeira. “Como não
setratadeumfilmesósobrefute-
bol,todas ashistórias foradogra-
mado têm a mesma importân-
cia.” Para se conseguir o melhor
bordado dessa recriação, foi con-
vidado o especialista da fotogra-
fia no cinema Walter Carvalho.
Com mais de 50 longas no currí-
culo, ele elaborou um plano so-
bre as cores do filme. “Para as ce-
nas no sanatório, que represen-
tam o momento presente da his-
tória, penso em cores desbota-
das. Já para os planos de futebol,
talvezfaçaexperiênciacomopre-
to e branco, mas nada está defini-
do.” Em todo caso, todo o longa
vem sendo rodado em cores.
A preparaçãotambém éacom-
panhada por Santoro que, apai-
xonadopeloprojeto,decidiutor-
nar-seumdosprodutores. Inédi-
ta em sua carreira, a experiência
revelou-se cansativa. “Incrível
como surgem problemas. Isso
até retardou minha preparação
do personagem.”
Nada, porém, parece barrar
seu perfeccionismo. Apesar de
ter alguma habilidade com a bo-
la, o ator pediu auxílio do ex-ata-
canteCláudio Adão,quelheensi-
na o refinado futebol de Heleno
de Freitas. “É uma homenagem
que presto ao grande mito.” Res-
peitoporalguémque,mesmode-
pois de morto, não escapou do
infortúnio – quando o corpo do
jogador era levado até São João
Nepomuceno, chovia torrencial-
menteeocarro atolou,adiandoo
enterro em um dia.
O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE
DA PRODUÇÃO DO FILME
Caderno2 D3
DOMINGO, 9 DE MAIO DE 2010
FOTOS WILTON JUNIOR/AE
✽
Análise: Luiz Zanin Oricchio
Ele foi o primeiro
bad boy do futebol
brasileiro
● Diva
A
lgumas fotos dizem muita coisa.
E “nunca hou- Uma delas, talvez a mais famosa,
ve uma mulher mostraHeleno,emseueleganteuni-
como Gilda”, forme do Botafogo, pinta de galã,
dizia a propa- olhar direto na câmera, cabelos penteados
ganda do filme com gomalina. Não fosse a camisa da estrela
com Rita solitária, poderia passar por astro de Holly-
Hayworth (fo- wood. Aliás, seu apelido (Gilda) era tirado da
to), que es- mais famosa personagem de Rita Hayworth,
treou no Rio do filme do mesmo nome. Consta que foram
em 1947, quan- osadversáriosquecriaramoapelido,parairri-
do Heleno de tação do atleta, comprovado mulherengo.
Freitas vivia o Mas, há quem diga que os autores foram seus
auge de sua própriosamigos,osgozadoresdofamigerado
carreira. Clube dos Cafajestes, do qual fazia parte.
Heleno foi mesmo uma das figuras mais
fascinantes do futebol brasileiro, em especial
em sua fase pré-televisão. Atuou em vários
times mas, no imaginário do futebol, faz par-
te mesmo é do ativo memorialístico do Bota-
fogo, onde jogou por oito anos, sem, contu-
do, ser jamais campeão pelo clube. Apesar
disso, é seu o maior ídolo da fase pré-Garrin-
cha. Didi conta em depoimento que seu cole-
ga do Botafogo era um ás com a bola no chão e
mortífero com ela pelo alto. Refere-se à cabe-
çadamortaldeHeleno, suajogadamaiscarac-
terística e com a qual marcou boa parte dos
seus tentos. Conta-se também que, quando
jogava contra algum desafeto, o Fluminense
em especial, levava um pente no bolso do cal-
ção.Usava-opararefazer o penteadoimpecá-
vel caso marcasse algum gol de cabeça. Fazia
isso, claro, de maneira ostensiva, em frente à
torcida adversária, para provocá-la.
Ele foi mais que um jogador de futebol ta-
lentoso. Foi personagem marcante, talvez o
primeiro bad boy dessa profissão. Não levava
desaforo para casa, gostava do luxo, da noite,
de carrões e belas mulheres. Tinha dinheiro
para financiar tudo isso. Mas também se me-
teu com álcool e drogas variadas. E não foram
esses excessos químicos que o liquidaram e
sim a sífilis, que contraiu provavelmente em
suas escapadas noturnas e foi responsável
por seu declínio e morte prematura.