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JEAJ.V ROUGH, 54 anos sem tripé


concedida a Jean-Pau/ Colleyn 1

I[nlre~'is[a p:.:bficada
em CinernAction. n.

jean Roucb é incontestavelmente um dos mestres, senão o grande mestre 64,1992.

(ou não seria o grande bruxo?) do cinema etnográfico. já contou sua }'(uÚi e Dia.:Jigii são
écis povo;rics do N.~':f.
experiência várias vezes,

jean-paul Colleyn o levou, nesta entrevista, a contar passagens de sua vida


ainda desconhecidas do grande público.

Jean Rouch, faz quanto tempo que você Então o famoso artigo "O Sudário do
f1lma sem tripé? chefe", seria ilustrado com algumas
imagens?
Desde 'que o tripé caiu na correnteza de
um rio do Níger, há alguns quilômetros da É verdade. Com a dança do chefe durante
nascente, em 1946. Já faz um bom tempo: o sacrifício de um carneiro, Era bem bonito.
54 anos sem tripé! Mas usei tripé, não dá Mas ternos o inconveniente de um ponto de
para negar! Usei um que logo abandonei: vista único. Para citar um outro clássico, é
tinha trazido da Austrália com "cabeça um pouco a censura que eu fazia a Timothy
giratória" Miller e o utilizava com a câmera Asch em Tbe Ax Figbt: ele estava com
Eclair. Fiz um filme com o amigo~Michel Napoleon Chagnon, acabavam de chegar e,
C3rtry sobre as festas das chefias de um de repente, ficaram slJrpic:;c3 com G cOilnito;
povoado gounnantcbé, em Yubri, ao lado os índios lutavam com machado. Timothy
de Diapaga2 O resultado ficou esquisito, pois estava com um tripé na cabana que Ihes
o tripé me forçava a um poni:o de vista único haviam cedido: o resultado ficou marcado
e eu zoomava corno o diabo! Acabou que pelos efeitos do zoom e de um ponto de vista
nunca mostrei esse filme. Ele está lá, é bem único. O ponto de vista único, veja bem, pode
bonito mas nunca o montei. Assim, acabei ser defendido e pode mesmo ser a qualidade
abandonando este pequeno tripé. deste filme, mas gostaríamos também de estar
mais próximo das pessoas. Será que ado-
taram este ponto de vista inconscientemente,
para não se aproximar e evitar tomar partido?

---------
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jt
Nesse caso, com o tripé, mudar a câmera de um ritual, segue com uma objetiva de 100101,
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lugar depois que você faz uma escolha se
torna um problema: é pesada e cria-se uma
ou seja, muito próximo, de alguém que pode
ser um "cavalo" .. Há nisto uma espécie de
I
f

ruptura em pleno evento. É tão irritante para coreografia inspirada, no fato de que eu sabia !
quem está sendo filmado quanto para quem só ter dez minutos, e tentava não tropeçar em
filma. MWl~tja~~câmerã:'é:umfriodo- de' nenhuma pedra, senão seria necessário
~. p'e'iYétraYem qualqúer coisa} (!}: zoam .~não: recomeçar tudo novamente e eu não poderia.
,í~()~ {{I'",-~
i sú15stitui rá°'jafnais:úrri~;'.tfavelhng.,
IUm-'tra-
V5 t°é>~ , velling nO"eixo' ou lateral,' é 'Uma forma de
descobrir'o mundo: Os Lumiere com- Não seria um pouco um exercício de
estilo?
preenderam isto desde o início, colocando a
câmera num barquinho de Veneza, num trem
na estação de La CiotaL Esta descoberta do Um pouco, talvez porque introduzi uma
mundo em movimento, este movimento do t~rtãclt1:S'úbl~y:lJFiz isso para assinala~um
aparelho, é um dos elementos essenciais da ponto importante: o', papel~ da-;-Câmera;num·
câmera de reportagem. rituah:omc).estet Quem sabe a câmera tenha
desempenhado um papel de catalisador,
acelerando uma crise que era latente?
o movimento evidentemente traz impli.
cações quanto à montagem. Você prefere
seguir, acompanhar o movimento ou Desempenhando de alguma forma um
cortá-Io em tomadas separadas? papel comparável ao do tambor?

A gente caiu muito rapidamente naquilo É. De repente a orquestra para de tocar.


que se chamou de plano-seqüência, que é o Geralmente, num caso como este, a gente
sonho quase inesperado: temos quase dez corta e muda de ângulo, mas eu continuei.
minutos numa bobina. e temos então que Ora, as pessoas de Simiri, que tinham visto
contar uma história em dez minutos. o que drios de meus filmes sobre possessão,
não é nada fácil. Eu só consegui isso uma· .. pensavam que de dentro da câmera eu podia
vez, num culto de possessãõque se chama ver os espíritos. Eles acreditavam que era
Les tambours d'avant, Tourou et Biti. \este um aparelho que detectava o invisível.
filme, eu estava apressado, pois iria anoitecer, . Assim, para eles, se eu continuava fixado
se não fosse isso, não teria feito. \leu técnico no personagem que dançava, era porque o
de som, Moussa Amidou, me disse: "a noite espírito estava chegando. E isto "aconteceu".
vai chegar, é preciso filmar alguma coisa, pois Qual era o efeito da câmera? Talvez mínimo,
são tambores que vão desaparecer, não houve mas tinha, quem sabe, também, o mesmo
possessão mas não faz mal, vamos registrar a efeito que um tambor bem cadenciado que
música assim mesmo". Eu comecei a filmar lança, no bom momento, esta passagem
neste momento e a possessão aconteceu justo singular da mudança de personalidade.
com aquele que estava entrando em transe.
Isto me trouxe enormes problemas. Imagine
um câmera que, no espaço da dança, durante

L
:..-.;-~

~:~
Se a gente elimina os cortes móveis na possessão não é dada de imediato; algumas :-.~;-
~ Y"

tentativa de seguir um movimento; de VP7PC


•••••..•••••.••.•••••...••p)'J 'Jrr\ntPf"p
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P1"Y'I111 '1111.\...UIII1UlV0,
"int,,::. rY'l;nnt •..•... VUlId;)
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seguir a progressão de um evento, em dois dias. - ..•••.•.


cortar não é um sofrimento?

É. Isto me acontece todo o tempo porque Ainda mais porque ele é sustentado por
eu tremo algumas vezes, ou porque alguém um fundo musical e, com plano-
me toca, ou qualquer coisa desse gênero ...Q.. seqüência, a gente não pode trapacear
problema é que a gente não sabe como rai com o som, não é?
montar depois. Assim, é preciso ter
imaginação.Toco sempre no mesmo ponto: Este é, de fato, o ponto fundamental;2....
gente não pode montar o som. Ora, o
é preciso ter} imagin~o que tínhamos
com aquelas câmeras em que precisávamos Iravelling apresenta uma grande vantagem,
retomar a tomada, quand~gente~a foi aliás a grande descoberta de Fred Astaire.
com esta câmera, com planos que não Veja só: quando você tem duas câmeras, em
duravam mais de vinte e cinco segundos, geral tem uma com objetiva normal ou
como no caso de Les maflres (ous, a gente uma pequena teleobjetiva e outra com ângulo

refletia sobre qual seria o próximo plano. A mais aberto, acontece que a mudança de
gente mudava de ângulo e construía a mis- objeLiva produz subjetivamente uma mudança
en-scéne pouco a pouco, com um corte no tempo. Isto se deve a uma ilusão de
que era automático, pois não tínhamos perspectiva que aprendemos no cinema
auto-nomia superior a vinte e cinco antigamente, no cinema mudo. Quando a
segundos. Quando a gente pára por gente filma, por exemplo, uma ceramista em
acidente, tem que guardar na cabeça o dose e num plano distante, no plano distante
valor do plano que esta\·a no visar, evitar a mão do ceramista na tela tem, talvez, um
movimentos pra lá e pra cá e continuar o metro por segundo, enquanto que em dose
plano, ou mudar de ângulo descendo até ela tem três metros por segundo. É, então,
um movimento muito rápido. Recomen-
~ os pés. É preciso saber qual era a posição
do horizonte .. davam, assim, desacelerar os closes. Fred
.\staire, ao inventar a comédia musical,
percebeu -. ele filmava com várias câmeras
__ ./:--. Então.. você monta durante as tomadas? - que assim não dava. A montagem era
impossível, pois não se podia desacelerar a
Eu continuo tentando montar durante as música, não se podia alongar algumas
tomadas mesmo nestes casos, pois reparei imagens para operar esta transição. A única
que a busca de planos-seqüencia feita de . solução era ter um movimento contínuo com
qualquer maneira é uma besteira É um a mesma objetiva, muito próximo ou muito
pouco, efetivamente, um exercício de estilo. distante.-Ele regulava., desse mod~ a mise-
Mas é um exercício válido na medida em en-scene de sua câmera. Era remarcável; foi
que é um filme em tempo real: mostramos o que Gene Kelly não conseguiu fazer anos
como ISSO se pass-:r It:almt:lltt:.-trn~ mais tarde, pois não tinha esta virtude e este
importante. É precIso entender que a sentido que a imagem dá.
67 I

-
É na mesa de montagem que a gente que não iiOS pareciam importantes. Foi Jean
percebe ... Ravel quem criou os procedimentos
utilizados hoje em dia por todo mundo: por
É na mesa de montagem que a gente exemplo cortar num mesmo eixo, num
percebe. Eu filmei uma comédia musical em mesmo personagem, desde que a-c;dência

1 CtJtgl:s 5~dcd. ,~;5-


Dakar, Le bac ou le mariage, com Constantini.
Ele tinha uma objetiva de 16 mm: nossos
planos não combinavam. Se fosse um tex10,
tudo bem, têm a mesma história, a gente não
--
da frase- funcione. Então!.!o~qu~j,;réTF·r
,,~montagem?, É)..llna!;JoJçage!TI~:drvêfaàae7

i.=>riddor do ci:;e,T.'?
muda a velocidade, mas pode-se alongar na Quando você dizia ucinema-verdade"
ligação para habituar o olho a esta mudança; isto não significava upretensão em
mas, querer se sair bem na inserção de um restituir integralmente o real". Foi aí
close num plano médio não é nada evidente que houve um mal-entendido?
quando se tem música. A vantagem do
tra&'elling é que permite filmar estas coisas e Claro! Temos exemplos desde o início,
parar. O melhor é partir de um ponto, chegar pois as pessoas que havíamos filmado, elas
a outro e parar para retomar numa montagem mesmas diziam que era falso' (risos) Sa-
normal. Mas isto nem sempre é fácil. doul3, muito tocado com tudo isso, encontrou
o te:>,,10do Vertov que ~s dava a chave: a
expressão cinema-verdade vinha de ~
Houve muito debate sobre a noção de jogo de palavras para traduzir o nome do
cinema-verdade. Quando a gente filma, a suplemento cinematográfico do Pravda, o
gen1e vive com a câmera um momento jornal A verdade. E um pouco co~ºjs:_ o
que se tenta ao máximo não cortar. É isto Tele Libération. Mas ele entro~o jogo e
o cinema-verdade: a interação entre a fez uma frase que, para nós, se transformou
câmera participante e as pessoas que a na resposta desta questão: "o cinema-verdade
recebem? n~o é!,v~~d.ade no cin,ema; é a· verdáde--dc(
, Desde o início, quando realizamos Cbrollique
cinema". Verdade particular!
~(~~
d'un été, que Edgar .\10rin e eu dedicamos a Diga Cbrúllique d'ull é/é é um filme que, por
t)-ud~
Verto, para falar de uma experiência de c~ seu estilo, suporta bem a desordem das
\"êrdãde, sa~íamos perfeitamente que n.~o era seqüências, mas quando você faz um filme
vecd?qe, pois. tínhamos onze horas de filme. Era . no I\íger, tenho a impressão de que isto o
precisç) fazer..uma montagem, mesmo D.2..i0terior deixaria doente, colocar uma seqüência antes
das ~~qQências. da outra, invertendo a ordem do tempo real..

Algumas vezes era dada resposta a uma De fato isso incomoda. Às vezes sou
questão que não estan no filme, pois forçado a fazer, como se fosse uma marcha
tínhamos pulado uma passagem importante. a ré, um play-back .. Veja um exemplo: eu
/\. gente começou a montar o filme a partir da apresentei no Bilan do filme etnográfico um
transcrição dos diálogos e eliminamos as coisas filme que Dubosc fez sobre a montagem de

___ .1..
meu primeiro filme Aupays des Mages Noirs É talvez a embalagem
- comigo e três africanos -, remontado por resistiu mal ao tempo?
Acutilais Frangisses e que me chocou
terrivelmente, a começar pelo título ... Exatamente. Fiz a .experiência de
apresentá-Io em Marselha4, cortando o som
-.
e refazendo o comentário. Pois o comentário
Você não era dono do produto final? tinha sido confiado, pela Actualités Fran-
caises, a um comentarista esportivo que dava
Não, de jeito nenhum! Eu cheguei do a entonação da maratona Tour de hance: ~No A:eliê lr.tetna<:ioMI
ée )"r,(:opc/cgia 'lisu41.
Níger completamente duro e o diretor da "e agora o hipopótamo! .. "Era angustiante! (N.d. T.)

Actua/ités Françaíses - cujo filho, pianista, Mas, cortando o som, retirando a música e
5 Jl.2nosque e 3re5f sJo
nós tínhamos encontrado numa casa noturna este comentário, apenas contando o que cidades (rar.cesa.s. A prj.
mei!d reali;a fte-qüen-
- nos propôs: "eu fico com o filme, ele está acontecia, o filme retomou sua verdadeira CemefHe fes!i\'_is de
cinema documeo1lirio.
horrível mas podemos fazer duas bobinas de dimensão. (N.ca 1.)

dez minutos. Somos os mestres da montagem,


da narração e da música". Quando eu vi o
filme que fizeram, que exaltava exotismo e Há uma coisa que sempre me espantou.
com uma música de mercado persa, ou algo Compreendo por que você sempre cita
parecido, tive um sentimento de revolta. Flaherty mas, ao mesmo tempo, quando
Neste filme havia uma caça ao hipopótamo a gente olha o trabalho deles e a sua
e um ritual no qual pediam ao espírito da concepção do cinema, vê que é bastante
água que Ihes desse um hipopótamo. As
Actualités Françaises acharam que esse se incomodava com a encenação, em
ritual, um culto de possessão, era mais recortar seus planos, em colocar em
dramático que a caça e a colocaram no final diferente.
cena, em Autilizar
gente sabe que Flaherty
atores; quanto nãoa /
do filme como se eles agradecessem ao Vertov ...
espirito da água, coisa que não jamais
\ aconteceria No Níger, quando se dava de Escuta: Nanook foi o primeiro filme que
comer, não se agradecia, isto era um~ó'lsulto. eu vi na minha vida' Eu o revi há pouco
De\"o admitir que este artificio torna\'a o tempo em l\1anosque, numa cópia de ] 6 mm
filme, incontestavelmente, mais dramático. que não estava nada má, mas pedi que
:\1ais tarde eu o revi e reconheço que ele foi cortassem o som. Na sala, as crianças ti\'eram
muitíssimo bem montadol Do ponto de vista a mesma reação que tive nos anos 1920, em V
da dramaturgia do documentário, as Brest,S quando vi o filme pela primeira vez.
Actualités ti\'eram razão ao inverter a mon- Então, funciona!

tagem. Eles 2.0 menos me ensinaram algo que


eu ~ão sabia. Eu estava chocado, não queria
admitir, mas depois de tudo, essa gente
conhecia seu trabalho, eles faziam dois filmes
como este por semana!
Que o filme é excelente, é incontestável, de Flaherty e que - só soubemos disso anos
mas e em reiação à etnografia? Sabemos mais tarde com certa emoção - lhe deu um
que o igiu no quai FÍaherty fiÍmou era filho. Mas era alguém que tinha esta
aberto para deixar passar a luz, que qualidade de util,izar o cinema sem guardá-
Nanook não se chamava Nanook, que as 10 para si ou para salas futuras, que o
mulheres de Nanook não eram suas
mulheres, somente uma delas.
compartilhava
que filmava.
diretamente com as pessoas
J
Bem, houve uma série de críticas a este
respeito, mas será que muda alguma coisa' Será que a diferença não está no fato
de F1aherty ter o cuidado de embelezar
a realidade enquanto para você a
Mas você lança mão desse tipo de prática? realidade é bela como tal, ou, em todo
caso, muito forte?
Não, e veja por que: eu sempre filmo com
3s mesmas pessoas, Damouré e seus Bela' Vamos devagar' Quando filmamos
companheiros são velhos cúmplices de toaas
Les ma/tres jous - um filme bastante duro
asaventuras e eles não compreenderiam se de fazer, um filme sanguinário, rejeitado por
eu mudasse sua identidade, ete. FlaQ~!:l)i viveu todo mundo, censurado em todo canto - à
cinco ou seis anos na baía de Hudson, ele
noite, depois desse ritual de possessão,
conhecia perfeitamente essas pessoas, ele
trouxemos Damouré, Lam, Tallou e algumas
compartilhava de suas vidas'e trouxe \anook:
das pessoas que haviam participado em nosso
Ele me faz pensar um pouco em Rqbert
carro, principalmente aquela que se chamava
Gardner. Flaherty fazia um filme sobre uma
A locomotiva. Após o ritual agitado, ela
região mas se ligava a certas temáticas: depois
cheirava a suor e também a sangue, a
de rodar Nanook, a luta do homem contra a
cachorro e aos perfumes que tinha be-
natureza hostil, filmou Moana, a luta do bido(era uma mistura muito horrorosa).
homem numa natureza bastante benevolente.
O cara estava muito, mas muito cansado: este
E ele nunca voltou aos lugares, a mesma coisa "cavalo de espíritos" estava literalmente
morto! 1\ÓS o lev;lrnos, o colocamos em C;lS1.
fosse necessário no lugar. Fazia seu trabalho
)- com Jfan ojAra/!. Ele pàs~la o tempo que Foi aí que Damouré me disse: "Nós fizemos
um filme horrível hoje". Era a impressão que
a época e ainda hoje, é que ele mesmo fazia o tínhamos, e nesta mesma noite decidimos que
iríamos ver as pessoas no dia seguinte.
àsnãopessoas
~ etrabalho
voltava do lugar.
de laborat02:e
mais. O'Presenta~~
pontoexemplar
A diferença, onde para
me Fizemos então este último plano, onde a
encontrocom Flaherty é esta câmera gente os revê. Na montagem, não
C:~~ participante, A câmera está- dentro. Ele hesitamos em mostrar Guerba coberto de
~construiu sua história com Nanook, projetando baba e sangue, alúcinado e, no dia
fd~'C-\p~V~ '0 filme' a Nanook e sua família; mesmo que seguinte, sorridente, purificado, a cabeça
ele não se chamasse Nanook, mesmo que a raspada. Então, não é um "final feliz", é
, mulher de Nanook no filme, seja ao mesmo uma atitude que significa: "veja, é assim
tempo a mulher quê esquentava as noites fria's que se passa .. .".

I
I

L
~~

~[~>
Bom, digamos que não é uma bela pelo sorriso de Nanook - não podemos:;;"~
realidade mas uma realidade forte. Mas esquecer que o "sorvete de chocolate ~..-._
você não chega a vestir alguém com Esquimó·6 surgiu com Nanook -, isto
outra roupagem só por achar que os justifica o sucesso mundial. deste filme, o que
brancos iriam apreciar muito mais.
é muito importante. Os espectadores não "l
viram todas as trucagens, isto é certo! E é
Não, claro, da mesma maneira que não verdade que elas continuam existindo.
\·ou despir os negros. Isto me faz lembrar o Vejamos a seqüência da caça à foca.
que disse Gardner quando viu La cbasse à Soubemos depois que foi feita com uma 6[s.ç1.p;m6 é ~ m4fC_ éf!

~m picolé f:a:,;:i:s.
lion à j'arc: "mas eles estão com coturnos corda, que passava de um buraco a outro:
militares!". E aí? Não vou fazê-Ios andar de de um lado, Nanook puxava e, de outro, as
pés descalços nos espinhos. A gente mostra pessoas puxavam também. É uma seqüência
as pessoas ta: como são: elas são assim! que funciona e é eX1remamente cômica!
.'-'1

Mas desde Nanook, em 1922, tinha-se a Você já teve idéia de fazer coisas
idéia de fazer filmes a partir daquilo que parecidas?
as pessoas solicitavam ...
?\ão, nunca.
É. Razão pela qual vemos Nanook com
calças de pele de urso quando nesta época
não havia mais. Mas Flaherty tentou fazer uma Sua fascinação é outra?
caça __~s ursos, pois era algo de muito
imp-ortante.ÃCaça -às morsas também era um É, mesmo se perco a cena. Por exemplo,
exemplo interessante. Era praticada em ilhas a caça ao hipopótamo foi perdida, o
onde Nanook nunca tinha ido, mas hipopótamo fugiu: para mim, estava ter-
representava a tradição de sua família. minado! .-\ caça perdida, eu a tomava como
flaherty organizou, então, com ele, uma caça tal. :\ós estávamos tristes. Passamos quatro
às morsas. E o fez de forma dramática: a ou cinco meses no rio e voltamos vencidos:
câmera no tripé estava entre O caçâéíor e --a não matamos o hipopótamo. Os pescadores
presa.- É estranho que André Bazin tel2.ha fizeram um gesto simbólico de colocar suas
escrito:~é u~ plano-seqüênci~", qu~ roupas pelo avesso e nós voltamos para o
~laIlOS! ~osso amigo ]ean-Dominique rio. Utilizei minhas últimas bobinas para
Lajoux viu um fuzil num piano e este não filmar este retorno, mas não filmei a chegada
estava mais no plano seguinte. Ele considera no povoado quando as mulheres vieram
que houve trapaça. O que se pode fazer, se insultá-Ios! Foi uma pena! O que é
não havia muitos arpões ou coisas do gênero engraçado é que este filme se tornou clássico
e Flaherty mata o animal para que possamos no :-iíger. Engraçada é também esta anedota,
vê-Io sair? Reconheço que desse jeito a gente um dia levei alguns amigos franceses numa
brinca com fogo. ;\"Ias se eu, ainda criança, canoa para ver os hipopótamos. De repen-
como todos os espectadores, fiquei seduzido te o barqueiro de trás disse em francês:
ZLI

- ------------.---- ..- - .. -'-''''


'i7/f/::r:V"f~'7"',', .
,J .iit'~~~
:i'

"E o grande macho de Tamoulés some na depois, filmei uma seqüência em Tourmi
bruma à noite, levando todos os arpões dos Bougné, um lugar que já desapareceu, uma
pescadores". O barqueiro da frente se volta e ilha do rio no meio de Niamey, onde os jovens
pergunta: se encontravam todas as noites, era o lugar
bendito da juventude. Filmei este lugar e o
-Por que voce diz isso? introduzi no filme como uma das lembranças
-Emão, você não o reconhece? que ele evocava. Eu o introduzi entre dois
-Quem? planos filmados no mesmo momento em que
-o branco que está aí, você não o reconhece? ele diz: "Venha, não estam os nó i\'íger!" e
-Não, conta a guerra da Indochina. i\'este momento,
-Mas é o jean-jacques Rocheau! não estamos longe de uma montagem
Ele citava o meu comentário do filme, que
passa na televisão de tempos em tempos. Um
.- ---
"vertoviana", com uma citação ...
...

clássico, como lhe dizia ...


É verdade, mas é bastante raro no teu
trabalho. Há também a montagem
Retornamos a um outro ancestral-fetiche, alternada em Ia Goumbé des jeunes
Dziga Vertov. Ele também fazia filmes noceurs, onde o regulamento da
muito diferente dos seus. poderíamos sociedade, recortado ...
dizer que ele, freqüentemente, como que
...serve de comentário ao filme. Sim, é
pendurava os planos em pregos e tirava
as imagens necessárias para construir verdade, estas montagens são bastante raras;
uma narrativa onde os planos eram mas eu as utilizo quando elas funcionam.
praticamente como letras de um texto.

Era a teoria de Vertov sobre a montagem, Quando a gente olha para a sua carreira
era verdade, mas ele fazia isso com o filme de etnógrafo, você está um pouco acima
mudo. Eu pude utilizar rapid;;:nente os das querelas entre as "esta,-ticas" e as
gravadores portáteis, O-'0m ainda não era "dinâmicas", pois você tem uma grande
sincronizado, mas era real. Ora, cesde que a admiração pela sociedade tal qual ela era
gente tem acesso ao som, a gente fica cati\ado. no passado, como a etnologia de Mareel
Não falo apenas no plano musical, mas também Griauli. Mas, ao mesmo tempo, tudo que
no do ambiente, ete. Desde que \"ocê tenha o muda na Africa o apah::ona do mesmo
som real, fica muito difícil colocar alguma coisa modo. Aquilo que se conversa num táxi
intes ou depois. Veja como fiz com Moi, un lhe interessa tanto quanto uma prece aos
noir. Na beira da lagoa de Abidjan, depois ancestrais, não é isso?
que Eddie Constantine esteve na prisão,
Oumarou Ganda-Robinson discute com Petit J lve algumas querelas com Griaule
Jules, olhando a lagoa, e diz: CIsto lhe faz quando começamos a estudar as migrações
pensar em quê? Não te faz penSaí no Níger?". que nos conduziriam a Accra. Ele tinha
Eu filmei a lagoa e, passando no !\íger um mês condenado violentamente Les ma/Ires jous,
--
:..:.....~
:~...i'_".~
..~

~~
pois, para ele, sua imagem era um pouco a Será que tudo isso desapareceu por ~l-'
imagem irrisória do branco mostrada pelas completo? Há pouco tempo, um amigo ~
pessoas em transe, ele compreendeu isso illeu chegou do Mali surpreso, pois ele
imediatamente. só conhecia deste país os comentários
miserabilistas das secas' sucessivas. Ora,
ele ficou impressionado com a vitalidade
Não era a imagem dos africanos que o extraordinária, a pulsão de vida que
incomodava? havia por todo lado ...

De jeito nenhum! Era, principalmente o Isto é verdade em relação à luta contra a


retrato horrível do branco: era, antes de tudo, natureza, mas quanto à situação dos. imigrantes,
uma imagem bem próxima da real ida-de! poderíamos dizer que são quase refugiados nas
(risos) Odades. ~uação dos mendigos, dos doen~,
de todos aqueles que 'trabalham" nos sinais
de trânsito na tentativa de obter o que comer,
Mas além disso, me parece que você piorou tremendamente.
sempre se interessou muito mais pelos
lugares que mudaram, testemunhos do
passado, do que por um bar num A suscetibilidade de certo público,
subúrbio de Abidjan. mesmo das pessoas filmadas, às vezes
entristece você?
Claro! Moi, um l10ir ficou censurado pelo
governo da Costa do Marfim desde 1959. Há, de fato, casos horríveis. Vejamos, por
pois não podiam admitir que mostrássemos exem'plo, Touki Bouki de Djibril Diop, um
a violência, a pobreza. Levei uma cópia do dos raros filmes barrocos senegaleses. Ele
filme (35 mm) para Niamey, no décimo foi rejeitado no Senegal e nunca obteve o
aniversário da morte de Oumarou Ganda, que sucesso que deveria Portanto é, sem dúvida
trabalhava no filme, descobri algo de dos filmes senegaleses de vanguarda, o mais
impressionante que havia esquecido: estas extraordinário. Muitas vezes as pessoas
pessoas, ainda que vivendo numa.J.ncrível rejeitam a sua própria imagem. Quando filmei
miséria, tinham uma grande alegria de viver, Jaguar, no início eu queria fazer um
um apetite. uma imaginação. Tudo isto tinha documentário sobre os migrantes que
desaparecido .. -\s condições de vida dos deixavam seus povoados para trabalhar na
estivadores era terrível, o cara jogando cartas cidade, Muito rapidamente decidimos fazer
para dividir o ganho, era abominável! .\1as um filme de ficção, pois era muito complicado
ao mesmo tempo, havia estes sonhos estar em todo canto. Então me dei conta de
permanentes aspirando por outra coisa, havia que não era propício mostrar, na volta, as
esperança. imagens documentais destes homens que
pilavam milho no mercado de Kumasi; era
vergonhoso, A ficção permitia encenar aquilo
sem magoar nlnguem.
73 I

--------_._-~--'-_._-.---,_ -_ •..- - -
--~-------_._-_. __ .-_.- -
... ... ••....• -
Mesmo que você tenha muita ternura pela pessoas desaparecidas. O cinema tem um71
humanidade, será que o cinema, por definição, memória impiedosa que é também sua
. não é uma profissão violenta na medida em que
a gente arranca as imagens do seu tempo e lugar?
É, de todo modo, um corte ao vivo, não?
do tempo. grandeza.
verdadeira Quan~o Eie
a gente
guarda revê,
a vida hoje,
primeiro filme de MareeI Carné, Nogent,7
apesaro .J
Eldorado du dimanche, a gente fica
É particularmente verdade quando as impressionado com as imagens de Nogent,
imagens resistem ao tempo. Há uns dez anos, os bailes de domingo, os rapazes, as moças.
Lam viu o início de jaguar na Cinemateca Fica-se espantado com a elegância, a ex-
;\l':f~.~.!·S::t-I.~ar:~t
:.:rr. !:'::-:':'':';~ c'e ?ê::5.
Francesa, em Paris, e começou a chorar, traordinária beleza das operárias e desses
dizendo: "Não posso ver esse filme, pois hoje operários que vinham dançar no domingo e
em dia todo esse gado, todas estas árvores que eram pessoas dignas, gente alegre. E não
desapareceram":'Ele"via na imagem o atlas do era apenas para a câmera. Como dizia André
tempo, a erosão, a desertificação que não nos Leroi-Gourhan: "1m filme, mesmo quando
damos conta no dia-a-dia. É como um rosto não é bom, traz Lma imagem insubstituível
que envelhece: não vemos os nossos próximos da vida cotidiana, 'pessoas que foram filmadas
envelhecer, somente quando encontramos na sua época e no seu meio".
alguém cinco anos depois é que dizemos
f'opal"Crisos). Por acaso conheci, do tempo de
jaguar, um Níger onde a cultura do milho
ocupava três meses de trabalho e dava nove
meses de férias. Quando não havia seca, era
maravilhoso. E quando os jovens partiam para
trabalhar na cidade para comprar coisas, eles
gastavam, muitas vezes em um só dia, tudo
que tinham ganho em seis meses. Era uma
espécie de jogo.

Você falou de idade e c1é prox1illos,


recentemente você quis fazer com que
Nathalie, a maravilhosa dançarina de Les
Goumbé des jeunes noceurs dançasse
novamente, não?

Nathalie continua dançando muito bem.


Agora é uma velha senhora, mas ela guardou
seu charme. Ela não quis dançar. Dois dos
heróis do filme estão mortos, portanto era
bastante fúnebre para ela fazer um remake.
Seria impossível, pois teria que revi\·er as

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