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Ano XVI, n° 22, Junho/2004 19

Motrivivência Ano XVI, Nº 22, P. 19-38 Jun./2004

A QUESTÃO ECOLÓGICA NO CAPITALISMO:


uma crítica marxista
Helton Ricardo Ouriques1

Resumo Abstract

A questão ecológica, neste momento do In the current phase of capitalism, the


capitalismo, ganha os contornos da ecological issue has become the “crucial
“grande questão” colocada para a question” to the humanity. In this sense,
humanidade. Foram sendo construídos, a new speech has been constructed in
por conta disso, um discurso e uma order to present the sustainable
prática que defendem o desenvolvimen- development as a solution to economics
to sustentado como solução para os disturbance end environmental
problemas de desequilíbrios econômicos disequilibrium. However, this paper
e naturais. Contudo, em nosso ponto de defends that the ecological response has
vista, a ecologia acaba encobrindo hidden some essential determinations of
determinações essenciais da realidade the capitalism concrete reality. In this
concreta do capitalismo. Nesse sentido, way, this paper seeks to resume both the
apresentaremos uma síntese do pensa- ecological thinking and the Marxist
mento ecológico e uma crítica marxista a criticism to this interpretation,
essa interpretação, mostrando aspectos displaying important points that has
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relevantes que a análise ecológica been ignored by the ecological analysis.


ignora. Tais aspectos podem ser resumi- These points can be resumed by the
dos pelo caráter intrinsecamente destructive face of the capitalist
destrutivo da produção capitalista, production which has not been
desconsiderado por parcela considerá- considered by the majority of ecological
vel do pensamento ecológico. thinking.
Palavras-chave: desenvolvimento Key words: sustainable development,
sustentável, capitalismo, Marxismo. capitalism, Marxism.

1. Introdução partes. A primeira fará, nos limites


inerentes a esse tipo de trabalho,
A temática do meio ambi- uma síntese do pensamento ecoló-
ente tornou-se generalizada como gico, mostrando suas contradições.
objeto de preocupações sociais, em A segunda parte mostrará os limi-
especial desde os anos 1970. Desde tes das idéias da sustentabilidade,
então, as mais diversas áreas das a partir de uma análise marxista.
ciências sociais têm se debruçado
sobre o assunto. Sendo assim, são 2. O pensamento ecológico:
possíveis múltiplos olhares sobre o uma breve síntese2
assunto. Aqui, neste artigo, quere-
mos trazer à discussão uma breve Os primeiros passos do
crítica, de cunho marxista, às teses movimento ecológico moderno fo-
do que chamamos “sustenta- ram dados no final dos anos 60, li-
bilidade” porque, embora relevan- gados à contestação do modo de
te, o conjunto de preocupações que vida burguês, com a ênfase nos di-
podemos sintetizar pela palavra eco- reitos de liberação feminina, de ci-
logia promove e promoverá apenas dadania negra, de liberdade aos jo-
mudanças aparentes, se não estiver vens, etc., sem contudo ter existido
inserida na luta pela eliminação da a contestação do modo de produ-
produção destrutiva que o capitalis- ção capitalista3. A partir de então, a
mo implica. literatura voltada à temática
Para evidenciar esse argu- ambiental se proliferou, principal-
mento, dividimos o texto em duas mente após a Conferência de Esto-
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colmo de 19724, que para muitos é o Estaria assim lançada uma


marco do movimento ambientalista. das pressuposições fundamentais do
Para os autores que vêm economicismo: a concepção de que
desenvolvendo estudos nesta área, a natureza é um mero recurso, ou,
existem três modos de se encarar a na linguagem corrente da economia
ecologia, que nós classificamos, neoclássica, um dos fatores da pro-
para fins didáticos, em economi-cis- dução. Portanto, deve ser manipu-
mo, ecologismo e sustentabilidade. lada para que se obtenha o melhor
A concepção economicista resultado possível, dada sua combi-
fundamenta-se no racionalismo nação com o capital e o trabalho.
cartesiano, que determina a socie- Ou seja, trata-se de uma visão
dade moderna através de dois aspec- utilitarista, que se baseia numa ló-
tos fundamentais: o pragmatismo gica racional: a busca da
científico e o antropocentrismo 5. maximização dos benefícios (o lu-
Descartes completa a idéia de cro). A preocupação ecológica base-
dissociação homem-natureza, inici- ada nesta interpretação restringir-se-
ada com o cristianismo: á, assim, a uma mera atenuação da
“intensidade de exploração da na-
...é possível chegar a conhecimen- tureza”, através da mensuração de
tos que sejam muito úteis à vida, e custos e benefícios. É daí oriundo o
que, em vez dessa filosofia princípio do poluidor-pagador. Con-
especulativa que se ensina nas es- figura-se numa análise meramente
colas, se pode encontrar uma ou- quantitativa, pois está preocupada
tra prática, pela qual, conhecendo com a institucionalização contábil
a força e as ações do fogo, da água, das variáveis ecológicas com o in-
do ar, dos astros e de todos os ou- tuito de garantir o seu uso mais pro-
tros corpos que nos cercam, tão
longado.
indistintamente como conhecemos
A abordagem ecologista,
os diversos misteres de nossos ar-
também chamada de ecossistêmica,
tífices, poderíamos empregá-los da
mesma maneira em todos os usos
ambientalista ou de ecologia radi-
para os quais são próprios, e assim cal, vai surgir como uma crítica à
nos tornar como que senhores e pos- análise economicista. Freqüente-
suidores da natureza. [grifos nossos] mente, tal discurso adquire um ca-
(Descartes, 1987:63). ráter catastrófico, lançando alarmes
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quanto à destruição total do Plane- mínio e a posse pela escuta


ta. De acordo com Redclift admirativa, pela reciprocidade, pela
(1987:106), “...os radicais verdes contemplação e pelo respeito, onde
partem da premissa de que, se não o conhecimento não mais suporia a
for evitada a crise ambiental, não propriedade nem a ação a domina-
serão alcançados nenhum dos ou- ção...” (id., p.51). Ferry (1994), se-
tros objetivos sociais importantes”. guindo inicialmente esta mesma li-
A ênfase dessa proposta é pautada nha de raciocínio, aponta que o
na conservação da natureza por si, humanismo deve ser questionado,
para que se evitem os desequilíbrios. dada a possibilidade de que “...os
Para os ecologistas radicais, o ho- seres da natureza possam vir a pos-
mem sempre polui o ambiente, sen- suir estatuto de pessoas jurídicas”
do o único responsável pelos desas- (p.18). Esta interpretação, para nós,
tres ambientais da atualidade. Ser- já parte de um pressuposto falso:
res (1991), por exemplo, aponta que considerar o homem como um não-
“devido às nossas intervenções, o ar ser da natureza (assunto que desen-
varia em sua composição e, portan- volveremos mais tarde).
to, em suas propriedades físicas e Bahro, um dos principais
químicas” (p.14). Para ele, “a mu- teóricos do movimento ecológico
dança global que se prepara hoje radical alemão, parte da premissa de
não leva apenas a história ao mun- que se a crise ambiental não for evi-
do, mas também transforma o vigor tada, as outras questões sociais não
deste em precariedade, em uma in- serão resolvidas. Para ele, as princi-
finita fragilidade. Outrora vitoriosa pais contradições do capitalismo
a Terra é vítima” [grifos nossos] “...não se observam na luta de clas-
(p.22). Ora, será que todos os ho- ses institucionalizada dentro dos
mens são responsáveis pelas mudan- países desenvolvidos, mas sim no
ças na qualidade do ar? Será que a rearmamento nuclear e na crise eco-
vítima é somente a Terra, conforme lógica” (BAHRO APUD REDCLIFT,
nos diz este autor? 1989:102).
A tese principal que defen- Em síntese, a abordagem
de é a de um Contrato Natural, uma ecologista é meramente ecos-
volta à natureza. Para ele, devería- sistêmica, preocupada unicamente
mos juntar ao contrato social (que com a conservação dos recursos na-
em momento algum ele esclarece turais. Para nós, tal concepção é to-
convincentemente) um contrato talmente desprovida de propósito.
natural de simbiose, “...onde nossa Em primeiro lugar por ser um
relação com as coisas deixaria o do- enfoque conservacionista, como se
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a natureza fosse algo imóvel, que Ignacy Sachs, um dos au-


nunca se transformasse. Tal concep- tores mais conhecidos na literatura
ção é centrada exclusivamente no ambiental, defende o ecodesen-
aparente, porque o movimento de volvimento. Para ele, é possível a
transformação da natureza exterior conciliação do crescimento com a
não é percebido pelos sentidos hu- conservação do meio-ambiente. O
manos. Como os ritmos da nature- ecodesenvolvimento “é um estilo de
za externa e o ritmo do relógio hu- desenvolvimento que, em cada
mano são diferentes, o que aparece ecorregião, insiste nas soluções es-
no mundo é que a natureza exteri- pecíficas de seus problemas particu-
or está dada, é inerte, em relação à lares, levando em conta os danos
mobilidade do homem. Em segun- ecológicos da mesma forma que os
do lugar, mantém a separação ho- culturais, as necessidades imediatas
mem-natureza, herdada da filosofia como também aquelas de longo pra-
cartesiana, considerando o homem zo” (SACHS, 1986: 18).
a fonte de todo o mal, de toda a Sua proposta passa por
“destruição” da natureza, além de “...um crescimento diferente,
continuar encarando a natureza ambientalmente prudente, sustentá-
como “recurso”, sem fugir do vel e socialmente responsável, vol-
economicismo, portanto. tado para uma qualidade de vida de
A abordagem conceituada grau superior e eqüitativamente dis-
por nós como da susten-tabilidade6 tribuída” (id., p.140). Considera que
é mais conhecida como isso só será possível se forem con-
ecodesenvolvimento, desenvolvi- templadas cinco dimensões:
mento sustentado, ecologia demo- a) sustentabilidade social: está
crática ou ecologia social. Em sínte- ligada à maior eqüidade na
se, busca o meio-termo entre o distribuição de renda e bens;
antropocentrismo e o biocentrismo b) sustentabilidade econômica:
das concepções anteriormente apre- está ligada à redução dos abis
sentadas. Atualmente, a maior par- mos norte/sul;
te dos estudiosos que se dedicam à c) sustentabilidade ecológica:
temática ambiental estão ligados a está ligada à qualidade do
esta concepção. meio ambiente e à preserva
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ção das fontes de recursos lucro, e isso, em momento algum, é


energéticos e naturais; enfocado por Sachs.
d) sustentabilidade espacial: Também as premissas para
está ligada ao maior equilí as sustentabilidades econômica e
brio entre os meios rural e ecológica são equivocadas. Reduzir
urbano, à melhor distribuição abismos norte/sul pelo fluxo de in-
territorial dos assentamentos vestimentos? Pelo manejo eficiente?
humanos, evitando as aglo Mas ao capital só importa a rentabi-
merações; lidade! Além disso, o que é o Norte
e) sustentabilidade cultural: está e o que é o Sul? Os abismos não
ligada à necessidade de se existem apenas ao sul do Equador,
evitarem conflitos culturais. como colocado. A riqueza e a po-
breza estão em toda a parte, inclu-
Para nós, as teses do autor sive no “Norte”, embora se concen-
têm um caráter idílico, não passam tre no Sul, por conta dos históricos
de mera retórica e trazem, implíci- problemas de subdesenvolvimento,
tas, uma argumentação determinados, principalmente, pela
economicista liberal. Quanto à exploração econômica dos países
“sustentabilidade social”, percebe- mais desenvolvidos do Norte. Quan-
mos que ele trata da humanidade to à qualidade ambiental, é visível
de forma homogênea, universal- a linguagem cartesiana, preocupa-
mente. E isso ela não é, por ser da com a rentabilidade dos recursos.
fracionada pelas classes que a com- As idéias de susten-
põem. Está certo considerar que a tabilidade espacial e cultural pau-
produção visa à “satisfação” do ho- tam-se também por frágeis argu-
mem, mas do homem enquanto coi- mentos. Como evitar as “aglomera-
sa que consome. A produção tem ções” no meio urbano, num cenário
como objetivo o lucro, e o homem de expulsão contínua do trabalha-
só é importante enquanto instru- dor agrícola de suas terras, pelo
mento para a realização do mais- movimento histórico de concentra-
valor através do consumo! Caso fos- ção fundiária? Não há nenhuma pa-
se diferente, os milhões de miserá- lavra sobre a questão agrária, pare-
veis que vivem precariamente neste cendo tão fácil o “retorno ao cam-
Planeta fariam parte da “sociedade po”, bastando a vontade dos ho-
de consumo”. Desejar que a produ- mens para viverem no meio rural!
ção vise à satisfação das necessida- Também a proposta de “se evitarem
des humanas de todos, requer, por- conflitos culturais” parece ingênua,
tanto, a eliminação da economia de por desconsiderar o próprio homem
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e a própria história da humanidade, volvimento sustentado, que surge


repleta de conflitos culturais (que sob os auspícios da Comissão Mun-
também são conflitos de classe). dial sobre Meio-Ambiente e Desen-
Para nós, a idéia de volvimento, através da publicação do
ecodesenvolvimento, esboçada por Relatório Brundtland7. De acordo
Sachs, soa como uma proposta de com o Relatório, “...nos últimos de-
planejamento - ligada ao Estado, cênios, surgiram no mundo em de-
que tem maiores compromissos com senvolvimento problemas ambien-
a classe dominante -, que simples- tais que põem em risco a vida. O
mente inclui uma melhor adminis- número crescente de agricultores e
tração dos recursos naturais, com o de sem-terras vem gerando pressões
uso de formas alternativas de ener- nas áreas rurais. As cidades se enchem
gia. Isso é perceptível para nós quan- de gente, carros e fábricas” (p.6)
do o autor considera que é possível Para a Comissão, não há
explorar a Amazônia “por meio de
compromisso com o futuro, dado o
técnicas tradicionais ou através de
ritmo de retirada de recursos da na-
ecotécnicas que a respeitem e a imi-
tureza, o que pode levar à
tem, ao mesmo tempo tornando-a
insustentabilidade do progresso
rentável” [grifos nossos] (id., p.20).
Tal afirmação é elucidativa, pois de- humano. Assim, “...para haver um
monstra que ele não consegue es- desenvolvimento sustentável é pre-
capar de uma premissa economi- ciso atender às necessidades básicas
cista, ao ver, como resultado das de todos e dar a todos a oportuni-
possíveis ecotécnicas, uma fonte de dade de realizar suas aspirações de
rentabilidade. Sua proposta de um uma vida melhor” (p.10). O Desen-
paradigma ambientalmente são é, volvimento Sustentado, neste con-
desta forma, ambígua, pois perma- texto, é entendido como aquele que
nece enraizada na premissa dos lu- atende as necessidades do presente
cros. Portanto, para nós não se tra- sem comprometer o futuro.
ta de uma nova proposta, mas de É ressaltada a necessi-
mais uma proposta de perpetuação dade de interligação entre a econo-
do status quo vigente da sociedade mia e a ecologia, porque “...ambas
capitalista. são muito importantes para que a
Não menos contraditória, humanidade viva melhor” (p.41). É
teoricamente, é a idéia do desen- por isso que o meio-ambiente e o
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desenvolvimento não são questões erradicação da pobreza, já que “...as


separadas: “...o desenvolvimento necessidades interligadas de habita-
não se mantém se a base de recur- ção, abastecimento de água, sanea-
sos ambientais se deteriora; o meio- mento e serviços médicos também
ambiente não pode ser protegido se são importantes no que se refere ao
o crescimento não leva em conta as meio-ambiente” (id., p.59);
conseqüências da destruição - a manutenção de um nível
ambiental” (p.40). Neste sentido, o populacional sustentável: é preciso
Desenvolvimento Sustentável “... é baixar os índices de crescimento
um processo de transformação no populacional, para que se evitem
qual a exploração dos recursos, a pressões maiores sobre os recursos
direção dos investimentos, a orien- naturais. Além disso, deve-se evitar
tação do desenvolvimento o crescimento urbano. Dessa forma,
tecnológico e a mudança “...quem mais lucrará serão as cida-
institucional se harmonizam e refor- des, que se tornarão mais fáceis de
çam o potencial presente e futuro, a administrar” (id., p. 61);
fim de atender às necessidades e - a conservação e melhoria da base
aspirações humanas” (p.49). de recursos: deve-se estimular o uso
Para a efetivação de tal de recursos energéticos renováveis,
postulado, as políticas ambientais e com “ênfase maior na conservação
de desenvolvimento devem ser e no uso eficiente de energia” (id.,
norteadas pelas seguintes estratégi- p. 63);
as de ação: - a reorientação tecnológica: é pre-
- a retomada do crescimento: prin- ciso estimular o uso de tecnologias
cipalmente nos países em desenvol- alternativas, que não impliquem em
vimento, “...porque é neles que es- altos índices de destruição
tão mais diretamente interligados o ambiental;
crescimento econômico, o alívio da - a inclusão do meio-ambiente e da
pobreza e as condições ambientais” economia nas decisões: deve-se bus-
(id., p.54); car não apenas a eficiência econô-
- a mudança na qualidade do cresci- mica ou a eficiência ecológica, mais
mento: significa tornar o desenvol- a eficiência ecológico-econômica.
vimento “...menos intensivo em Dessa forma, “...a estraté-
matérias-primas e energia, e mais gia do desenvolvimento sustentável
eqüitativo em seu impacto” (id., visa a promover a harmonia entre
p.56); os seres humanos e entre a humani-
- o atendimento às necessidades dade e a natureza” (id., p.70). Para
humanas essenciais: é necessária a nós, tais proposições são passíveis
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das mesmas críticas inicialmente vimento, partindo de três conside-


feitas ao ecodesenvolvimento. A ex- rações:
posição acima nos sugere que os
impasses ecológicos modernos de- a) o equilíbrio da natureza é um
vem-se aos países menos desenvol- equilíbrio extremamente delicado
vidos, o que é evidenciado em afir- que, com facilidade, o homem pode
mações do tipo “surgiram no mun- modificar de maneira irreversível;
do em desenvolvimento problemas a natureza não é um reservatório
ambientais que põem em risco a ilimitado de recursos; a) a longo
vida”, o que indica uma visão prazo, a coletividade jamais é in-
preconceituosa das coisas. Usando denizada pela destruição e desper-
dício dos recursos naturais e
o mesmo tipo de linguagem do re-
ambientais, nem em termos econô-
latório, se é o mundo em desenvol-
micos, nem em termos sociais; c) o
vimento o responsável, o que são
fictício bem-estar da sociedade de
então as multinacionais européias, consumo baseia-se na exploração
japonesas e norte-americanas que real de três tipos de pessoas: 1)as
operam nestas áreas do planeta? novas gerações, que irão se depa-
Elas não poluem porque são oriun- rar com recursos escassos com um
das do “Norte”? Além disso, a idéia ambiente poluído; 2) os grupos
de promoção de “harmonia entre os mais fracos e marginalizados, que
seres humanos e entre a humanida- sofrem danos sobre a saúde, com
de e a natureza” nos parece, no mí- a poluição, etc., sem usufruir das
nimo, ingênua, dentro dos vantagens econômicas do
parâmetros de uma sociedade cujas consumismo; 3) o Terceiro Mundo,
relações sociais estão embasadas no que paga nossas necessidades
lucro. consumistas com a monocultura,
Para Tiezzi (1988) vivemos com o próprio ambiente destruído
uma grande crise ao mesmo tempo (natural e culturalmente) e com a
ecológica, energética e econômica, fome. [grifos nossos] (p.7)
cuja raiz está na questão da ener-
gia: “...um sistema baseado em Sua análise incorpora ain-
energias não-renováveis catalisa da as Leis da Termodinâmica, para a
uma série de reações em cadeia que defesa do não-crescimento. Os prin-
levam à destruição do meio-ambi- cípios termodinâmicos dizem que a
ente, à exaustão dos recursos natu- energia do mundo é constante (prin-
rais e, em última análise, à crise eco- cípio da conservação energética) e
nômica” (p.13). O autor vai defen- que a energia não passa de uma for-
der uma nova cultura do desenvol- ma para outra sem despender tra-
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balho. Isso implica na tendência do do imprescindível a repartição eqüi-


mundo à desordem: a entropia. Ins- tativa das riquezas e dos recursos na-
pirado nesta idéia, o autor ressalta turais entre os homens, além da exi-
que “o tempo tecnológico é inver- gência do controle de natalidade.
samente proporcional ao tempo Com isto, Tiezzi sugere
entrópico, o tempo econômico é in- uma “revolução cultural” em busca
versamente proporcional ao tempo de um modo renovado de viver, prin-
biológico” (p.32). cipalmente no que diz respeito ao
Ou seja, a essência das cri- seguinte:
ses atuais estaria na desproporção
entre estes diversos “tempos”, pois a) o conceito de renovabilidade:
o homem, ao usar energia demais, qualquer ato humano ou
estaria acelerando a desordem: : tecnológico baseado na
“quanto mais rapidamente se con- renovabilidade da matéria e da
energia é eticamente válido; ao
somem os recursos naturais e a ener-
contrário, deve ser considerado um
gia disponível no mundo, tanto
erro e uma exploração em relação
menor é o tempo que permanece à
a nossos filhos qualquer ato ou
disposição de nossa sobrevivência” tecnologia baseados em recursos
(idem). não-renováveis; b) o ser deve subs-
Estas considerações é que tituir o ter como valor-base da so-
levam o autor a defender o estado ciedade e como satisfação de nos-
estacionário: “o ponto fundamental sas necessidades: a qualidade de
é o de que o crescimento deve ser vida deve substituir a quantidade;
interrompido: o crescimento da po- c) as leis da termodinâmica devem
pulação, da desertificação, das ne- ser o guia das opções produtivas,
cessidades energéticas, do inclusive em relação aos processos
consumismo, da poluição, das alte- econômicos; d) deve-se adquirir,
rações climáticas, dos armamentos como conseqüência óbvia de se
viver no planeta Terra, o conceito
nucleares, das espécies animais ex-
de ‘limite de crescimento’, e de
tintas, do custo energético dos
equilíbrio biofísico; e) contribuir
aliMas isso para ele não significa a
para o aumento da população deve
renúncia ao desenvolvimento e ao ser considerado um ato eticamen-
bem-estar. O estado estacionário te reprovável(não mais de dois fi-
significa uma “simbiose entre o ho- lhos por casal). (p.199)
mem e a natureza” e um sistema
baseado na renovabilidade A obra de Tiezzi tem o
energética e de recursos naturais, sen- mérito de introduzir o conceito de
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entropia para o entendimento da meio-termo mais racional entre o


problemática ecológica, mostrando cartesianismo e a ecologia profun-
a distância cada vez maior entre os da. Para ele, o “homem pode e deve
ritmos biológicos e os ritmos modificar a natureza, assim como
tecnológicos. Contudo, considera- pode e deve protegê-la” (p.174). Por
mos que ele comete um equívoco isso o autor critica o cartesianismo
ao argumentar que na sociedade de e a ecologia radical. O primeiro pelo
consumo a exploração real se dá em seu caráter de má utilização dos re-
cima das gerações futuras8: “sempre cursos e desrespeito aos animais. A
se pensou que o lucro industrial se segunda pelo seu apego inconsis-
baseasse na exploração da força de tente de uma “volta à natureza”,
trabalho, enquanto hoje o lucro se pois a sacralização da natureza, se-
baseia essencialmente na exploração gundo o autor, esconde o fato de
das gerações futuras” (p.170). O que que nem tudo é harmonia e beleza.
nos sugere essa afirmação? Primei- Afinal, “como explicar então os ví-
ro, que a exploração não existe ain- rus, as epidemias, os sismos e tudo
da, posto que advém do futuro. Se- o mais que tem, com toda razão, o
gundo, que são as gerações futuras nome de catástrofe natural?”, per-
as que virão a ser exploradas. En- gunta o autor.
tão, o grande problema é evitar a É a partir daí que irá de-
exploração do futuro, no vir-a-ser, fender o reformismo da ecologia
pela “simbiose homem-natureza”? democrática, que seria a única al-
Embora reconheça a existência da ternativa viável para a humanidade.
exploração, o lucro industrial apa- Para ele,
rece aqui como algo abstrato, só
existente no vir-a-ser, o que para nós ...o reformismo não é a forma com
é uma grande contradição do autor. que devamos contentar-nos, à fal-
Parece que ele quer esquecer (pro- ta de melhor, quando a esperança
positadamente?) uma das grandes revolucionária se esquiva, mas
constitui a única atitude corres-
evidências da organização social
pondente à saída do mundo da in-
capitalista.
fância. Não só ele é o único com-
Para Ferry (1994), o essen- patível com a rejeição democráti-
cial é a ecologia democrática, um ca das linhas partidárias e das au-
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toridades dogmáticas, não só dei- motores de combustão interna?


xa de fazer entrever a esperança Que não seja por isso: serão
mística de um trabalho militante construídos catalisadores, mais
para além do mundo real, mas abre, caros mas menos poluentes. Esta
em contraste com a ideologia revo- docilidade dos construtores ale-
lucionária que se orienta para um mães tornou-se um modelo: a in-
termo último, um espaço infinito dústria desenvolve-se a passos gi-
para a reflexão e para a ação (p.179). gantescos, criando concorrência
entre as empresas para a obtenção
Assim, Ferry se concentra- de “rótulos verdes”. Suprema re-
rá na crítica interna do sistema, pois cuperação? Talvez, mas por que
esta “crítica da democracia real e ficar chocado, se ela permite, ao
imperfeita em nome de suas pro- mesmo tempo, fazer avançar as
messas e de seus princípios própri- exigências de uma ética do meio-
os é, até por definição, a única que ambiente e as inserir num quadro
permanece compatível com a exi- democrático? (p.188).
gência democrática” (p.174). Sua
proposta passa ainda pela elabora- Finalmente, o autor apon-
ção de uma teoria dos deveres para ta que tal ética ecológica e demo-
com a natureza. E isso implica na crática não possui vocação para o
imposição de limites à poder. Para ele, “política, a ecolo-
tecnociência, para que o respeito a gia não será democrática; democrá-
todos os seres vivos e não-vivos tica, deverá renunciar às miragens
seja a tônica de uma nova consci- da grande política” (p.188). Ora, ao
ência, segundo o autor.
dizer que a ecologia democrática
Esse avanço só será pos-
sível com a inauguração de uma é a única alternativa, o autor já não
nova ética do individualismo. Ele está negando o rótulo de “demo-
ressalta que “trata-se, de viver de crática” em prol de uma ditadura
outro modo, de mudar de vida, mas verde? Além disso, nos parece meio
a expressão já não remete para a absurdo conceber algum grupo de
revolução, já não assinala um ou- pressão (como o autor o define)
tro lugar qualquer: ela significa, so- como não-político. Também ques-
bretudo, ‘viver a la carte’, fazer cada tionamos se o que ele chama de
um suas próprias escolhas” (p.187). crítica interna do sistema é sufici-
Por isso, tudo o que tiver
ente para o estabelecimento de
um caráter preservacionista é apon-
uma relação harmônica entre o ho-
tado como ecológico:
mem e a natureza.
A floresta é ameaçada pelos gases O princípio do meio-ter-
de emanação de veículos com mo, ou da sustentabilidade, como
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conceituamos, tem ainda outros lítica ambiental e de uma política


defensores. Alphander y (1994) tecnológica voltada para o meio-
aponta para a criação de uma nova ambiente” (p.38). Tal proposta está
era, fundamentada no que chama de apenas preocupada com o aspecto
ótimo vital, com “...uma redis- administrativo, centrada na prepa-
tribuição mundial das riquezas e do ração de recursos humanos com a
trabalho, a expansão de atividades incorporação da variável “meio-am-
autônomas e não mercantis, a inter- biente”.
venção direta dos cidadãos nos ne- De modo geral, para os
gócios da cidade e uma concepção expoentes da sustentabilidade, ba-
de usufruto da ação do homem so- seada na harmonia homem-nature-
bre a natureza” (p.182). Será possí- za, a luta pela preservação ambi-
vel a expansão de atividades não ental é a luta das lutas, porque o
ligadas ao mercado, no capitalismo? que está em jogo é a sobrevivência
Claro que não, da forma como ela da própria espécie humana. Tal dis-
se mantém e a concebemos. A soci- curso vai evocar a urgência do “novo
edade capitalista é a sociedade do paradigma” como única alternativa
mercado por excelência. Será que viável à inauguração de uma outra
uma “redistribuição das riquezas e sociedade. A principal questão que
do trabalho” é possível em tal soci- colocamos é se a abordagem da
edade? Talvez, mas não de forma sustentabilidade (ao ser apontada
eqüitativa, pois isto significaria a como superação dos problemas re-
negação da exploração do trabalho. latados pelos seus defensores) im-
Maimon (1992), partindo plica, realmente, em uma nova or-
das mesmas linhas de raciocínio de dem. Na nossa interpretação, a res-
Sachs (já apresentado anteriormen- posta é não, porque o pensamento
te), vai ressaltar a importância das da sustentabilidade não é suficien-
políticas ambientais para o proces- te para a efetivação das próprias pro-
so de desenvolvimento. Para ela, a postas que defende, e é isto que ten-
educação ambiental, seja formal ou taremos mostrar a seguir.
informal, tem um papel importan-
tíssimo, “...tanto na criação, no mé- 3. As limitações da susten-
dio e longo prazos, de uma consci-
ência ecológica, como, também, na
tabilidade e a crítica marxista
formação de recursos humanos ne-
cessários à implantação de uma po- Como Marx parte sempre
do real9 consegue constatar “...que
32

o primeiro pressuposto de toda a se à relação de “liberdade, igualda-


existência humana e, portanto, de de e fraternidade” moderna: a rela-
toda a história, é que os homens ção de proprietários (o capitalista,
devem estar em condições de viver dos meios de produção; o trabalha-
para poder fazer história” (MARX e dor, da força de trabalho).
ENGELS, 1993:27). E essa será a di- Operando os objetos e
ferença concreta entre o homem e meios de trabalho sob os auspícios
os outros animais: o homem pode do capitalista, o trabalhador produz
produzir seus meios de vida. Na his- a mercadoria (forma elementar da
tória, o homem não realiza pensa- riqueza) que não lhe pertence. Ou
mentos ou obras, o homem realiza seja, com seu trabalho, fonte de todo
a si mesmo: “...o homem se realiza, valor, produz um valor alheio, que
isto é, se humaniza, na história” lhe é estranho. Esta alienação, para
(KOSIK, 1976: 217). Essa realização MARX, consiste no fato de que o re-
se dá através do trabalho, esse in- sultado do trabalho não pertence ao
tercâmbio entre o homem e a sua trabalhador, é “externo a seu ser”;
natureza externa. No trabalho, o e, além disso, pelo fato do trabalha-
homem “põe em movimento as for- dor se negar no trabalho, porque
ças naturais de seu corpo, braços e “...não se sente feliz, mas infeliz;
pernas, cabeça e mão, a fim de apro- não desenvolve uma livre energia
priar-se dos recursos da natureza, física e espiritual, mas mortifica seu
imprimindo-lhes forma útil à vida corpo e arruina seu espírito” (MARX:
humana. Atuando assim sobre a na- 1968:109). Por isso o trabalho tor-
tureza externa e modificando-a, ao na-se apenas num meio de satisfa-
mesmo tempo modifica sua nature- ção das necessidades. E o homem
za” (MARX, 1988:202). perde sua humanidade:
Isto quer dizer que a hu-
manidade do homem está no seu ...o homem (o trabalhador) só se
trabalho, na superação da natureza. sente livre em suas funções ani-
Contudo, uma das peculiaridades da mais, comendo, bebendo, procri-
sociedade capitalista é justamente ando, e em tudo o mais que diz res-
peito à moradia e ao adorno. Con-
ter podido inverter essa relação: o
tudo, em suas funções humanas se
trabalho, sob a espada encantada do
sente como um animal. O animal
capital, é alienação. É alienação se converte em humano e o huma-
porque o homem foi separado dos no em animal. Comer, beber e pro-
seus meios de produção (incluindo criar são também autênticas fun-
a terra), pelo processo histórico da ções humanas. Mas pela abstração
Acumulação Primitiva, submetendo- que as separa do âmbito restante
Ano XVI, n° 22, Junho/2004 33

da atividade humana e as converte ge mais às linhas de produção, indo


em fins únicos, tornam-se funções da “fábrica ao corpo”, como bem
animais.(Marx, 1968:109) lembrado por Guatari (1993).
Partindo dessas premissas,
No modo de produção ca- podemos perceber que os ideólogos
pitalista, portanto, o homem está da sustentabilidade cometem al-
separado de si próprio, de sua pró- guns equívocos e não avançam na
pria natureza. Ele existe não enquan- discussão sobre a relação homem-
to homem, mas enquanto produtor- natureza.
consumidor. Sua humanidade se ex- O Relatório Brundtland res-
pressa no sentido do ter e de estar salta que um dos mais graves pro-
na coisa. As relações humanas tor- blemas ambientais é a pobreza. Afi-
nam-se eminentemente materiais, e nal, “para sobreviver, os pobres e
a grande desgraça é não pertencer os famintos muitas vezes destroem
ao mundo mágico das mercadorias, seu próprio meio-ambiente: derru-
que é o que ocorre com milhões e bam florestas, permitem o pastoreio
milhões de pessoas atualmente, que excessivo, exaurem as terras margi-
se encontram abaixo de qualquer nais e acorrem em números cada vez
noção de civilidade. maior para as cidades já congestio-
Isso porque, na sociedade nadas” (p. 30). O combate à pobre-
capitalista, impera a subordinação za revela-se como uma das premis-
do trabalhador ao capital, iniciada sas e promessas fundamentais do
pela própria afirmação de sua or- desenvolvimento sustentado, ligado
dem. O trabalhador vai se negar no ao controle populacional e à criação
capitalismo pela sua expulsão rela- de oportunidades.
tiva do processo produtivo, deter- Sachs, nesta mesma linha
minada pelas mudanças na compo- de preocupações, aponta que “a
sição orgânica do capital; e, ao mes- meta é trazer mais de um bilhão de
mo tempo, vai afirmá-lo quando se pessoas para acima da linha de po-
torna consumidor, consolidando a breza, inicialmente provendo-as, em
expansão da economia de mercado. cenários culturais e ambientais di-
Além disso, separar homem e natu- ferentes, de garantias de um meio
reza, cabendo ao homem dominá- de vida sustentável” (p.38). Ora,
la, nada mais é do que garantir o num mundo onde a exclusão social
domínio do homem sobre o ho- têm crescido anualmente (direta-
mem, mais especificamente a perpe- mente relacionada às próprias con-
tuação da relação de dominação tradições do modo de produção ca-
capitalista que, hoje, não se restrin- pitalista), como falar em erradicação
34

da pobreza, se esta parece insolú- rar num ar cada vez mais carregado
vel, sendo inerente à sociedade no meio urbano. Que os responsá-
“moderna”? veis são os “senhores das grandes
Uma outra crítica pode ser decisões econômicas” como salien-
feita ao pensamento da tou Silva (1991;41), que estão pre-
sustentabilidade quando seus au- ocupados, logicamente, com seus
tores afirmam que todos somos res- rendimentos.
ponsáveis pela degradação A argumentação da
ambiental, que nossas intervenções sustentabilidade, que propõe uma
afetam o ambiente ou que os países integração homem-natureza, tam-
devem promover a modificação. Por bém é passível de uma outra crítica.
quê? Porque tal interpretação é Os diversos textos aqui menciona-
generalista e não expõe os verdadei- dos dão especial ênfase ao fato de
ros responsáveis de uma “destruição que é preciso preservarmos a base
ambiental”. Será que é possível cul- de “recursos naturais” ou que “...o
parmos os mineiros pela poluição homem é o recurso mais precioso”
ambiental causada pela extração do (SACHS, 1986:16) e, portanto, deve-
carvão? Será que é possível culpar- se ter especial atenção para com os
mos os operários das indústrias “su- recursos humanos. Ora, o termo re-
jas” pela poluição dos rios e do ar? curso, como bem lembrado por Gon-
Será que todos intervém no ambi- çalves (1990:124), significa um meio
ente da mesma forma? Será que to- para se chegar a um fim. Temos,
dos somos responsáveis pela amea- portanto, duas considerações. Pri-
ça nuclear e pelas guerras capitalis- meira, como já salientado anterior-
tas deste século? Talvez sejamos mente, manter o termo “recursos
pela omissão. Afinal de contas, a falta
naturais” significa continuar enca-
de politização, não somente com
rando a natureza apenas pela sua
relação às instituições, mas também
utilidade, devendo ser preservada
ligada às demais instâncias que cer-
para a perpetuação de sua utiliza-
cam o homem, é um fato na atuali-
ção lucrativa. Segunda, ver o homem
dade.
como mero “recurso” é próprio de
É muito fácil generalizar as
uma sociedade baseada na
causas, porque assim elas permane-
cem escondidas. Quando se fala que coisificação, pois o homem aqui não
“as populações” ou os “países” são passa de um meio para a efetivação
responsáveis, esquece-se de dizer do processo de acumulação. Nesses
(propositadamente?) que os pobres termos, essa proposta pode ser en-
do mundo não têm culpa de respi- tendida como emancipadora?
Ano XVI, n° 22, Junho/2004 35

Além disso, os autores da A crítica de Bernardo


sustentabilidade alertam para a ne- (1979) à perspectiva ecológica par-
cessidade da imposição de limites à te do pressuposto que a ecologia é,
exploração da natureza. Só assim, na verdade, “... um projeto global e
segundo eles, será possível alcançar- ideologicamente articulado de re-
mos o equilíbrio e evitarmos a tra- modelação das condições gerais de
gédia. A receita para tal “estado produção e de reestruturação inter-
equilibrista” passaria pelas políticas na do capitalismo em novos meca-
que apresentamos acima. Mas será nismos de funcionamento econômi-
que é possível se falar em limites, co e social” (p. 153), uma forma de
dentro do capitalismo? gestão do capitalismo apelando in-
O que está no âmago de clusive para a “consciência
tal organização social é a busca dos ambiental”, pelo “consumo consci-
lucros. Estes se traduzem em núme- ente” e “ecologicamente prudente”,
ros e os números não têm limites: enfim, por essas expressões que es-
“...quando o objetivo é acumular condem, no fundo, que se trata de
dinheiro, não há mais limite para a uma nova forma de gestão do capi-
exploração do trabalhador e da na- talismo. Ou, como diz o autor, “os
tureza. Afinal, qual é o limite do di- argumentos de caráter genérico in-
nheiro?” (GONÇALVES, 1991:126). vocados limitam-se a servir de pre-
Para nós, a preocupação ecológica âmbulo estilístico para propor mo-
na atualidade é alienante e aliena- dificações circunstanciais (grifos
da justamente por isso. Porque não meus) que adaptem o capitalismo às
percebe (pelo menos explicitamen- novas condições da sua existência”
te) que a incorporação ecológica é (p. 164).
apenas mais um meio de se acumu- Para este autor, há um sig-
lar capital10, um novo negócio lucra- nificado ideológico oculto nas teses
tivo. Mas, principalmente, por não da ecologia, que é a remodelação
significar uma mudança. Como se das condições de produção, dentro
pode dizer ecológica uma socieda- dos parâmetros da acumulação ca-
de que se baseia na exploração do pitalista. E essa ideologia ecológica
trabalho não-pago, mesmo manten- é mais uma forma de expressão da
do florestas supostamente intactas? atuação da classe dos gestores11: “o
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objetivo da corrente ecológica con- material das características do pro-


siste em descobrir uma maneira de cesso de trabalho no capitalismo.
ultrapassar a crise da produtivida- As ideologias ecológicas concen-
de, mantendo-se porém no quadro tram-se na relação das condições
das relações sociais básicas que de- gerais de produção, consideradas
como um todo organizado, com os
finem o capitalismo. Por isso não
elementos naturais considerados
coloca os verdadeiros problemas de
como fonte de energia e de maté-
fundo e absolutiza a crise da produ- rias-primas. É este o fulcro das pre-
tividade, pretendendo encontrar-lhe ocupações dos elementos da clas-
a origem nas relações entre a totali- se gestorial que integram e condu-
dade do sistema econômico e a na- zem a corrente ecológica (p. 166).
tureza. A ecologia veio dar assim
nova vida ao mito do esgotamento O argumento, tão dissemi-
da natureza” (p. 167). nado por certas correntes da ecolo-
Para Bernardo, a corrente gia, da necessidade de um “cresci-
ecológica centra-se na “administra- mento zero”, é visto como uma for-
ção do consumo” porque tem como ma contemporânea de manifestação
função perpetuar as condições soci- do imperialismo capitalista:
ais de exploração. Por isso,
Este crescimento zero implica tam-
...não é o sistema de empresas par-
bém a manutenção de grandes di-
ticularmente consideradas que in-
ferenças de nível de vida entre os
teressa à corrente ecológica. Nem
países industrializados e os países
o processo de trabalho no interior
exportadores de matérias-primas,
da fábrica; no que respeita aos tra-
conservando-se essas vastas regi-
balhadores e às suas condições de
ões na situação de dependência
laboração importam pouco as po-
tecnológica e econômica. O pro-
luições, senão sob a perspectiva do
grama ecológico é, assim, a mais
aumento da produtividade. A lite-
extremada manifestação contem-
ratura ecológica é silenciosa quan-
porânea do imperialismo. Apresen-
to ao problema da exploração do
ta-se o baixíssimo nível de vida dos
trabalho. Nem sequer na distribui-
países exportadores de matérias-
ção dos rendimentos entre a po-
pulação incide o grosso das aten- primas como modelo a impor ao
ções ecológicas. O seu objeto não proletariado dos países industria-
são as unidades particulares de fa- lizados. A elite dos gestores que
brico nem o capitalismo como sis- encabeça as correntes ecológicas
tema de exploração nem a atual tece o elogio de formas de explo-
tecnologia enquanto realização ração pré-capitalistas, delas pre-
Ano XVI, n° 22, Junho/2004 37

tendendo reproduzir os hábitos de problema não é o que se consome,


vida e o nível de consumo. Supre- e sim como se produz. Pretender
mo cinismo, só igualado pelos ca- eliminar essa situação consumindo
pitalistas de outrora, quando o es- menos terá unicamente por conse-
cravo era apontado ao proletário qüência acrescer à miséria social da
como exemplo de obediência, pa- alienação a miséria física” (idem, p.
drão do consumo, modelo de vir- 181). A crítica ao consumo capita-
tudes” (BERNARDO, 1979:177). lista, recorda-nos o autor, “só tem
sentido como um dos aspectos de-
Podemos perceber, por- correntes da luta central do proces-
tanto, o porquê de o autor conside- so de exploração...”. (idem, ibidem).
rar a ecologia uma espécie de “ini- Assim, colocada nesses termos, a
migo oculto” dos trabalhadores, já questão ecológica não passa de uma
que representam ideologicamente, forma de manutenção do capital.
em última instância, os interesses do
capital de reorganizar as condições 4. Considerações finais
sociais e técnicas de produção sem
mexer no fundamento do sistema:
A discussão precedente
o controle e exploração da força de
tentou pontuar algumas contradi-
trabalho. Bernardo sentencia, dura-
ções do pensamento ecológico. Na
mente, que os grupos sociais liga-
verdade, falta a tal paradigma uma
dos ao ecologismo “...apresentam-
real compreensão da relação ho-
se como nova elite, e sua frustração
enquanto consumidores transforma- mem-natureza. Arraigados no
se em apologia da redução do con- cartesianismo, não conseguem ver
sumo. Daí que tendem inflectir os que o homem, na relação com a sua
movimentos reivindicativos dos con- natureza exterior, se relaciona con-
sumidores num sentido novo, con- sigo próprio. E que se hoje vivemos
vertendo as pressões relativas à qua- uma crise ecológica, é porque as re-
lidade e ao tipo dos produtos em lações entre os homens baseiam-se
propaganda das restrições ao con- na dominação. Não basta controlar
sumo particular, de modo que, de os usos de energia, controlar o cres-
situação de crise, a redução do ní- cimento populacional, controlar o
vel de vida venha a estabelecer-se uso das águas, controlar os usos da
como situação definitiva” (idem, p. terra para uma sociedade
180). Por isso, as teorias que visam “ambientalmente sã”, como defen-
combater o capitalismo pela redu- de parte considerável do pensamen-
ção no consumo são equivocadas. to ecológico. Mesmo porque o con-
Afinal de contas, diz Bernardo, “o trole, na sociedade capitalista, como
38

vimos, é absolutamente impossível, GUATTARI, Félix. As três ecologias.


porque o movimento do capital não Campinas, Papirus, 1993, 56 p.
conhece limites. Daí serem cosméti- KOSIK, Karel. Dialética do concreto.
cas as propostas do pensamento eco- Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990,
lógico, que quer impor barreiras a 186 p.
MAIMON, Dália. Ensaios sobre
formas específicas de crescimento e
economia do meio ambiente. Rio
desenvolvimento sem questionar os de Janeiro, APED, 1992, 149 p.
fundamentos destrutivos da auto- MARX, Karl. Manuscritos
expansão do capital. econômicos e filosóficos de
Em suma, não questionan- 1844. Madrid, Alianza Editorial,
do a essência da lógica existente, pelo 1968, p. 51-119.
seu próprio caráter utilitarista, as idéi- _____. O capital. São Paulo, Difel,
as relacionadas à sustentabilidade 1988. Livro I, volume I, 933 p.
apresentam-se para nós equivocadas MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia
frente aos objetivos que propõem alemã. São Paulo, Hucitec, 1993,
realizar, por não ser possível a efeti- 138 p.
va relação homem-natureza numa NOSSO FUTURO COMUM. Comissão
mundial sobre meio ambiente e
sociedade onde imperam as “...rela-
desenvolvimento. Rio de Janeiro,
ções materiais entre pessoas e rela- Editora da FGV, 1991, 430 p.
ções sociais entre coisas...” (Marx, REDCLIFT, Michael. Los conflictos
1988:82). del desarrollo y la crisis
ambiental. México, Fondo de
Referências Cultura Econômica, 1989, 255 p.
SACHS, Ignacy. Os tempos-espaços
ALPHANDÉRY, Pierre et.al. O do desenvolvimento. São Paulo,
equívoco ecológico. São Paulo, Espaço & Debates, n. 8, jan./
Brasiliense, 1992, 189 p. abr. de 1983, p. 42-53.
BERNARDO, João. O inimigo oculto _____. Ecodesenvolvimento: crescer
– ensaio sobre a luta de classes. sem destruir. São Paulo, Vértice,
Manifesto anti-ecológico. Porto, 1986, 107 p.
Afrontamento, 1979, 199 p. TIEZZI, Enzo. Tempos históricos,
_____. Capital, sindicatos, gestores. tempos biológicos. São Paulo,
São Paulo, Vértice, 1987, 119 p. Nobel, 1988, 204 p.
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica.
São Paulo, Ensaio, 1994, 193 p.
GONÇALVES, Carlos W. P. Os Contato: helton@cse.ufsc.br
(des)caminhos do meio
ambiente. São Paulo, Contexto, Recebido: fev/2005
1990, 148 p. Aprovado:2005

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