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A Satide como Conceito Social AUBREY LEWIS* RESUMO. O presente artigo é a tanscrigio de uma conferéncia de Aubrey Lewis, reproduzida originalmente, em 1953, no British Journal of Sociology. O titulo encerra, na verdade, uma critica ao conceito social de sadde. Sem negar a importancia do contexto em que se constitui a enfermidade ou a saiide, Lewis Tecusa-se, nao obstante, a conferir ao conceito um “contetido” social e propie uma definicao que se refere, primordialmente, as fungdes do corpo e da mente, Nao se trata de uma discussdo epistemoldgica. Lewis argumenta sempre a partir de questées metodoldgicas, quéstionando as definigées mais correntes da medicina € da psiquiatria de seu tempo. Por exemplo, ao considerar a andlise do desempenho de fungdes psicolégicas ¢ fisiolégicas, pondera que nao hé como julgar objetivamente o que é um desempenho eficiente, Dai a impossibilidade de reconhecimento do corpo que é doente ou sadio, “de forma valida € confidvel”. O mérito do artigo talvez. esteja menos em suas propostas ~ apenas alinhavadas na parte final — do que num esforgo rigoroso de derrubar pré-nogdes arraigadas. Palavras-chave: Satide — conceito social; psiquiatria — funcdes psicoldgicas; medicina clinica ~ fungGes fisiolégicas; normal e patolégico, * Sir Aubrey Lewis, psiquiata nascido na Australia em 1900 e falecido em 1975, dirigiu o Instituto de Psiquiatria do Hospital Maudsley, em Londres, por quase duas décadas, até aposentar-se em 1966. Em 1945, tomou-se professor de Psiquiatria da Universidade de Londres. O presente artigo foi tadutido, sob licenga, de “Health as a Social Concept”, British Journal of Socioiogy, v. 4, p. 109-124, 1953. Direitos de tadugdo adquiridos dos editores ingleses pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tradugio de Anna Beatriz de Castro Santos, € revisio técnica de Luiz A. de Castro Santos. PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 151 Aubrey Lewis ABSTRACT Health as a Social Concept A direct transcript of a conference given by the renowned British psychiatrist, Sir Aubrey Lewis, this article was originally published in a 1953 issue of the British Journal of Sociology. The title may be slightly misleading, since the author is actually criticizing the social definition of health. Though rejecting a social content to the notion of health and disease, Lewis does not deny the importance of a social “context”, and advances a definition of health concerning, particularly, the functions of the human mind and body. This is not an epistemological question, His arguments always derive from methodological issues, challenging the most widely accepted definitions from the medicine and psychiary of his time. For instance, in dealing with the analyses of performance of psychological and physiological functions he ponders that there is no way we can objectively assess what is “an adequate performance of functions”. Hence, we cannot recognize a health or unsound body “in a reliable and valid way". The essay is not as important because of the conclusions the author reaches ~ tentative and fragmentary — as it because of the questions he raises and the interpretations he challenges. Keywords: Health — social concept; psychiatry - mental functions; physical health — physiological functions; normal and pathological states. RESUME, 152 Le Concept Social de Santé Cet article a été tanscrit d’une conférence realisée par Aubrey Lewis, reproduite par le British Journal of Sociology en 1953. Son titre enferme, en vérité, pas une définition, mais plut6t une critique du concept social de santé. Néanmoins, méme en respectant "importance du conteate oir s'est produit I’infirmité ou Ja santé, Lewis se refuse a accorder a ce concept un “contenu” social, en postulant une définition qui concerne, primordialement, les fonctions du corps et de esprit, Il ne s"agit ici d’une discussion épistémologique. Lewis raisonne toujours a partir de questions méthodologiques, tout en questionnant les définitions les plus courantes relatives 4 la médicine et & la psychiatric de son temps. Par exemple, en méme temps qu'il considére ’importance de I’analyse de l'action des fonctions psychologiques et physiologiques, il argamente qu’il n'y a pas moyen de juger ce qui signifie exactement une action efficiente. Dod Mimpossibilité de reconnaitre si un corps est malade ou sain, “d'une PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 A Saiide como Conceite Social fagon valable et assurée”. Plut6t que dans ses propositions ~ a peine ébauchées la partic finale du texte - le mérite de cet article réside dans son effort rigoureux dans le but de démolir les pré-notions enracinées. Mots-clé: Santé — concept social; psychiatrie — fonctions psychologiques: médicine clinique - fonctions physiologiques; le normal et le pathologique. PHYSIS: Rev. Side Coletiva, Rio de Janeiro, $(1): 181-174, 1998 153 Aubrey Lewis As implicagdes sociais da sade e da doenca, apesar de amplamente conhecidas, séo obscurecidas pela incerteza sobre a verdadeira aplicacio desses dois termos ou, mais precisamente, sobre como identificar a presenga da satide ou da doenga em um individuo, Embora esta diivida surja especial- mente no que se refere satide mental, ela também se manifesta em relacio a satide fisica. Assim que passamos da noc&o dbvia de boa satide ou de doenga e entramos na penumbra onde residem os casos duvidosos (como malformagées congénitas, lesdes assintomiticas, etc.), percebemos que o conceito de satide precisa ser mais esclarecido; concluimos que ele é extre- mamente dificil de ser definido sem levar em consideragao o ambiente social e material de cada individuo. Se a minha tarefa fosse analisar as causas e conseqiiéncias sociais da doenga (ou as condigées sociais mais propicias 4 manutengdo da satide), ela seria, embora ainda dificil, bem mais facil do que o tema que escolhi. H4 uma enorme variedade de estudos concretos sobre esses assuntos — eles se presiam a vigorosas conjeturas, podem ser ilustrados por casos clinicos € oferecem menos riscos de 0 expositor se perder em um emaranhamento. Esses estudos pressupd6em comumente que, jd conhecendo 0 conceito de satide, podemos distingui-la da doenga. No entanto, nao podemos operar de forma segura com palavras ¢ conceitos ambiguos, tais como os atuais con- ceitos de satide e doenga. Para determinarmos as caréncias a serem supridas pelo National Health Service, é necessario primeiro estimarmos a prevaléncia da doenga; no caso da doenga mental, em todas as suas formas, isso € atualmente impossivel, principalmente porque nao temos certeza sobre 0 que deve ser incluido. Da mesma forma, no podemos concordar sobre a duragio da doenga e sobre a eficécia do tratamento porque nao temos um critério reconhecido sobre sua recuperagdo. Embora essa afirmagiio possa parecer absurda, ha inimeras evidéncias que comprovam a sua veracidade. Consegiientemente, estarei lidando esta noite, em grande parte, com um problema de defini¢éo. Nao vou considerar como as manifestagdes de satide e doenga sao classificadas ¢ definidas, ov seja, nao pretendo falar sobre os princfpios ¢ critérios dos diagndsticos ~ vou examinar somente os critérios de satide em geral. E, embora o assunto demande uma discuss%o0 mais teé- rica, sua finalidade é apenas prdtica - aplicar os critérios, sejam eles quais forem, na enumeragao de pessoas doentes ou sas, na selegio de pessoas sauddéveis para as diversas oportunidades € encargos sociais e na anélise mais aprofundada das condigdes sociais de doenga e satide. E, devido a esta finalidade pratica, sero aceitos certos pressupostos de trabalho, tais como: 154 PHYSIS: Rev, Sauide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1); 151-174, 1998 A Satide como Conceito Social que a linguagem dualista é, aqui, inevitdvel; que as ficgdes, satide ¢ doenga, servem a um propésito intelectual itil, embora saibamos que elas repre- sentam, por assim dizer, as terras altas e baixas de uma extensa regio de terragos e desniveis. Quando as pessoas falam, por brincadeira ou a sério, que somos todos um pouco malucos, que as pessoas neuréticas sdo as que mais contribuem para as artes e para o desenvolvimento do mundo ou que o crime deve ser tratado como doenga e as prisdes transformadas em hospitais, esto sugerindo, a meu ver, que existe um conceito social da doenga, no menos importante do que © conceito tradicional utilizado até recentemente. Esse dilema moderno foi explicado a fundo por Erich Fromm: “O termo normal ou saudavel pode ser definido de duas maneiras: em primei- ro lugar, do ponto de vista da sociedade funcional, uma pessoa pode ser considerada normal ou saudével quando € capaz de desempenhar o papel social que se espera dela naquela determinada sociedade — se cla esta apta a colaborar na reprodugio da sociedade. Em segundo lugar, do ponto de vista do individuo, encaramos a normalidade ou a satide como sua condigio favo- ravel a0 crescimento ¢ & felicidade”! Existe amplo consenso a respeito do pressuposto de que a satide é parcialmente um conceito social — explicito na definigao adotada pela Organi- zacao Mundial de Satide (OMS) hé cinco anos. O pardgrafo de abertura da carta internacional desse érgao afirma que “a satide é um estado de completo bem-estar fisico, mental e social”. Essa afirmagio, ao mesmo tempo que é extremamente abrangente, é completamente sem sentido, Contudo, condené-la por sua falta de clareza é ignorar a histéria e a complexidade do conceito que a precede, Ao descrever a satide como um estado de perfeigao, tal como o supostamente experimen- tado pelos arcanjos e por Adio antes do Pecado Original, os autores da carta da OMS estavam retornando a uma férmula remota e inatingivel de integri- dade total entre 0 corpo, a mente e o espfrito, aleangada no Século de Ouro, e perdida desde entao. ' Esta e outras citagdes no texto original no fazem referéncia ao autor e/ou ao titulo do trabalho IN. do RI} PHYSIS: Rev. Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 155, Aubrey Lewis © conceito trivial de satide pode ser mais bem examinado quando rela- cionado as atividades fisicas do corpo. Desse modo, comegarei consideran- do 0 conceito de doengas fisicas ¢ seus possiveis componentes sociais. Em seguida, passarei para 0 campo mais complexo da satide mental, para exa- minar se a adaptagio ao ambiente social é um critério de satide mental ou se outros critérios — notavelmente distiirbios de fungdes psicolégicas — sio ‘08 iinicos critérios essenciais ¢ titeis. A partir dai, vou considerar as perversdes sexuais, a personalidade psicopdtica e 0 suicidio, de modo a observar se os desvios sociais exprimem doengas mentais, ¢ afirmarei que a doenga nio pode ser definida como apenas aquilo que é tratado pelos médicos. Por fim, apés um rapido resumo sobre algumas conseqiiéncias perigosas de um conceito mal definido de satide, concluirei sugerindo que devemos diferenciar © conceito de bem-estar social do conceito de saiide, para que suas inter- relagdes possam ser mais bem observadas e analisadas. Se os diversos 6rgiaos de um individuo funcionarem suficientemente bem para nao chamarem a atengao sobre si € ele nao sentir qualquer dor ou desconforto, provavelmente supord que esté em boas condigdes de satide. Nesse caso, 0 critério é subjetivo. No entanto, se resolver tirar uma chapa de raios X e descobrir que seus pulmées mostram uma forte evidéncia de tuberculose, imediatamente deixaré de se considerar um sujeito saudavel; o critério que ele adota agora é extrinseco, isto é, a assergo de um clinico que se baseia em dados objetivos ou patoldgicos. E evidente que os critérios de satide fisica de um clinico nao séo os mesmos de um paciente e que, na pratica, aquilo que se reconhece é a presenga da doenga, nao da satide. Nao existem indicagdes positivas de satide em que possamos nos basear; consi- deramos saudaveis todas as pessoas que no tenham evidéncia de doenga ou enfermidade. No entanto, a constituig&o da Organizagaio Mundial de Satide, mencionada anteriormente, afirma claramente o contrario. O pardgrafo diz: “Satide é um estado de completo bem-estar fisico, mental e social ¢ nao apenas a auséncia de doenga ou enfermidade.” Essa afirmagio idealistica parece esquecer que as abstragSes doenga ¢ satide nfo representam estados diferentes, mas sim 4reas de um espaco continuo. O ponto onde a satide acaba e a doenga comega € puramente arbitrério, mas a satide nado pode estar restrita a uma estreita area em um extremo. A dificuldade, quando nao a impossibilidade, de se reconhecer a doenga ou a satide como absoluta esta ilustrada nas pesquisas da drea de satide. A maioria dos paises ocidentais percebeu que as estatisticas de mortalidade 156 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 A Satide como Conceito Social nao fornecem base suficiente para o planejamento de servigos de satide & para a detecgdo de tendéncias na forma e na incidéncia da doenga. Por isso, tornaram-se necessdrias estatfsticas de morbidade para fornecer dados sobre todas as doengas, dados até entdo disponiveis apenas para as doengas notificdveis. O material para essas estatisticas pode ser obtido a partir de diversas fontes: clinicos gerais, hospitais ¢ registros de seguros de saide. Tio logo a questio comegou a ser examinada, foi constatado que seriam gerados ntimeros bastante divergentes, a partir das fontes em que fossem obtidos. Aquilo que um paciente considerasse doenga nem sempre estaria dentre da visto do clinico e de seu diagnéstico. Dificuldades semethantes surgiriam nas estatisticas derivadas de registros de pacientes hospitalizados ou derivadas de estatisticas de seguro, que focalizam apenas segdes especi- ficas da populagao ou grupos especificos de doengas. Desse modo, qualquer conclusdo sobre a prevaléncia de satide e de doenga na populaco deve ser qualificada por uma explicagdio sobre a origem dos dados primiarios. Os critérios de satide e de doenga fisicas dependem, em primeiro lugar, da descrigao do paciente sobre como se sente, ou seja, de afirmagées subjetivas; em segundo lugar, dos sinais visiveis de fungées ou estruturas debilitadas ou satisfatorias. E, por fim, dos sinais ocultos de tal suficiéncia ou debilidade, detectados por procedimentos ¢ instrumentos especiais. Cada um desses critérios pressupde uma norma. Mas, como as normas nao sao idénticas, elas devem ser consideradas em separado. O pacicnte reportar4 alguma alteracgio no que acredita ser o seu estado de bem-estar normal — um estado que tanto pode permitir algum grau de variago como ser um modelo fixo e restrito, em fungao de seu temperamento, constituigéo e experiéncia. A qualidade da alteragdo observada também vai determinar se cle vai ignoré-la (ou seja, considerd-la como satide), ou interpreté-la como toma de doenga. A dor, por exemplo, pode ser tratada de forma diferente do cansago. A norma que rege as percepgdes do corpo, relacionadas aos estimulos internos e externos que supostamente as causam, é um critério criado pelo proprio homem, Nao hd, nem pode haver, pacto algum sobre essa norma, construida a partir de experiéncias passadas, incomunicaveis. Para avaliar qualquer relato de um desvio normativo, € necessério conhecer alguma coisa de seu autor; seus habitos, as exigéncias que faz de seu corpo, a atengfo que dispensa a ele e a linguagem que usa para descrever suas sensagées, A descrigio de um paciente sobre os seus sintomas ¢ as conclu- sdes sobre a sua satide sdo, desse modo, os dados a serem usados pelo clinico que, somente apés um processo de interpretagiio mais detalhado, PHYSIS: Rev, Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 157 Aubrey Lewis pode alterd-los e produzir uma conclusio diferente daquela fornecida pelo paciente. Certamente o médico é treinado para estabelecer uma relag4o entre os sinais de alterag&o de estrutura e fungao e a norma. Para isso, ele conta com sua propria experiéncia e com a experiéncia de terceiros, sendo que, no caso de alguns drgios, existem mais informagdes completas e exatas 4 sua dispo- sigdo do que no caso de outros. Ele pode, por exemplo, julgar com muito mais seguranga 0 estado do coragéo do que o estado do figado. Mas, para cada 6rgao e sistema ele possui um conjunto de conhecimentos suficientes para avaliar as variagSes de uma fungdo normal e as evidéncias de uma estrutura normal. Sendo assim, médicos igualmente bem treinados podem concordar sobre o funcionamento normal de um sistema em particular (o que neste contexto equivale a estar sauddvel). Mas nao quero exagerar: cles podem divergir sobre casos mais complexos, ou em relagéo a érgios cuja integridade funcional e estrutural seja dificil avaliar. Contudo, no conjunto, os critérios sio bastante conhecidos e se tornam cada vez claros a cada avango nas dreas de fisiologia, bioqufmica, patologia ¢ antropometria. Até agora, falei sobre drgaos € sistemas. Mas esses sio, € claro, abstragdes artificiais do organismo vivo. Talvez as fungdes mais importantes do organismo sejam aquelas que possibilitam o funcionamento integrado © em equilibrio dos sistemas separados, garantindo que uma mudanga em um sistema seja compensada ou reforgada pela mudanga apropriada em outro sistema. Quando essa fungdo reguladora ou de integragdo é perturbada, a doenga € inevitavel. Como afirma o professor Ryle, “o termo ‘satide’ individual deve envolver (além das sensagdes de bem-estar ¢ da integridade estrutural) idéias de equilibrio e adaptabilidade; estas, por sua vez, refletem a atividade coordenada das partes componentes, cada qual fun- cionando dentro de sua faixa normal”. O médico deve entio se preocupar nao apenas com as evidéncias de funcio- namento € estrutura normais de partes do corpo, mas também com o seu funcionamento total. Se 0 chamado equilibrio interno do corpo nao estiver regular, 0 médico deve ser capaz de detectar isso. Mas para fazé-lo, ele nao pode se basear em mudancas estruturais (que constituem as conseqtiéncias finais do desequilfbrio na integrag&o, ou suas causas locais); em vez. disso, deve pautar-se nas estimativas do desempenho total do paciente ¢ no desem- penho de partes separadas, isoladas por conveniéncia como érgdos ou siste- 158 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 A Satide como Conceito Social mas. Todos devem estar funcionando em perfeita harmonia. Muitos patolo- gistas e clinicos tém procurado usar esse conceito como um padrao, defi- nindo ou resumindo a satide como “um estado de equilibrio fisiolégico ¢ psicolégico” e considerando a doenga como uma reagao do organismo a qualquer perturbacao em seu equilibrio interno. Neste ponto, nos desviamos novamente das normas j4 bem estabelecidas e objetivas. Como a faixa de variabilidade na espécie humana é ampla, o conceito de desempenho adequado do corpo em funcionamento é muito individual: ele nao sera o mesmo em ragas diferentes, em climas diferentes, em idades diferentes, nos dois sexos e sob as incontdveis condigdes do ambiente passado ¢ presente. E nenhum instrumento de precisdo, nenhuma descoberta recente nas areas de quimica ou de fisica é capaz de remover essa dificuldade. Resumindo, no caso da mais importante das fungSes do corpo, que é a que regula seu funcionamento geral, as normas podem variar tanto ou precisar ser tao extensivamente limitadas por qualificativos que, na pra- tica clinica, 0 médico deve accitar as normas de desempenho ¢ comporta- mento fornecidas pelo préprio paciente e prosseguir com sua propria ava- liagdo sobre a existéncia de algum desvio em relagao aquelas normas, depois de levar em conta o ambiente em que vive o paciente. Desse modo, mesmo quando se trata de doengas do corpo, nao podemos ignorar 0 comportamento total — que é um conceito psicoldgico — ¢ o am- biente, que, por ser constituido por seres humanos e suas instituigdes, envolve um conceito social. Quando passamos para o campo da doenga mental, somos inclinados a pensar que o ambiente humano é tudo o que importa, ou ainda, que 0 conccito de “doenga mental” é essencialmente social, em vez de clinico ou patolégico. Nas discussdes sobre o tema, é comum adotarmos um ponto de vista monjstico e atribuir um aspecto fisico a todos os estados de satide e de doenga mentais, da mesma forma como atribufmos um aspecto psicold- gico a todas as doengas fisicas. Mas na pratica, as limitagdes de nossas observagdes e do nosso conhecimento nos forgam a usar uma linguagem dualista. Por esse motivo, estarei aceitando distinguir tanto a doenga ~ ou satide — fisica da doenga (ou satide) mental, quanto a fisiologia da psicologia. Idealmente, a saide mental deve ser um estado de perfeito equilibrio em um sistema instdvel. JA foi descrita como um estado no qual as capacidades potenciais de um individuo sao plenamente realizadas. Porém, a nao ser que algumas capacidades sejam caracterizadas como mérbidas ¢ excluidas da PHYSIS: Rev, Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 158 Aubrey Lewis generalizagdo, essa descrigio seré absurda. Todos temos potencialidades detestaveis e desejaveis. E quase desnecessario referir a falta de sentido dessa nogdo ideal de satide mental, perfcita ¢ inatingivel. Geralmente, 9 critério empregado para definir a saxide mental consiste na auséncia de doenga mental. Isso mascara a dificuldade e ao mesmo tempo a minimiza. O que é ent&o doenga mental? E possfvel reconhecé-la, como no caso da doenga fisica, pela fung4o qualitativamente alterada de alguma parte de um todo, como por exemplo, pelo disttirbio do pensamento ou por um distdrbio da percepgéo? Isso pode ser possivel: freqiientemente reconhecemos um individuo como mentalmente doente por ter alucinagdes ou delirios, Mas nem sempre isso é verdade. Por exemplo, se os distirbios de fungées parciais nao influenciarem em sua conduta, ou se estiverem dentro de termi- nadas categorias chamadas “normais”, sua presenga no serd considerada “doenga mental”. Em Phantasms of the living?, Myers, Podmore e Gurney dedicaram um capitulo as alucinagées de pessoas sds. O procedimento é entao confuso semanticamente: temos uma classe de percepgdes conside- radas anormais do ponto de vista estatistico, que podem ser consideradas normais por determinados julgamentos de valores. A confusao se manifesta no uso discriminatério de determinados sinais de distirbio de pensamento: se um individuo expressa uma crenga irracional (como, por exemplo, se ele acredita que foi enfeitigado), nao chamamos isso de delirio, um sinal de doenga, a nao ser quando estivermos convencidos de que a forma pela qual tenha chegado a isso tenha sido mérbida. Esse nao seria 0 caso, necessa- riamente, se ele tivesse sido criado em um meio onde todos acreditassem em bruxaria. Contudo, se for um individuo comum, da Londres do Século XX, que tenha chegado a essa convicgao através de um processo mental profun- damente solitario, tortuoso, carregado de suspeigao, chamaremos sua crenga de anormal ¢ o consideraremos insano. A partir dai, dois critérios parecem considera 0 processo) e um critério estatistico (que considera a freqiiéncia dessa ocorréncia). Ao analisarmos 0 critério psicopatolégico, ele mostra sua semelhanga com os critérios patolégicos aplicados na avaliagio das doengas fisicas. A nao ser que o fen6meno ao qual ele é aplicado seja flagrante, ele s6 poderé ser usado por especialistas. Da mesma forma como a decisao sobre a ma- ? Obra publicada em 1886 IN. do R.]. 160 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 A Satide como Conceito Social lignidade de um tumor requer um julgamento altamente especializado, a decisao sobre uma crenga estranha ou uma mudanga de humor ter uma origem patolégica também demanda essa especializagao. No entanto, 0 termo “patolégico” muitas vezes possui referentes evasivos. Geralmente, 0 avaliador mais experiente costuma iguald-lo a “desequilibrio”, ou seja, auséncia de estabilidade nos ajustes interno e externo. O corpo e a mente possuem capacidades admirdveis de ajuste interno; compensando, equilibrando ¢ verificando. No corpo humano, esses ajustes podem resultar em alteragdes extraordindrias de partes da estrutura conven- cional — por exemplo, no caso da hipertrofia de um rim, que assume o trabalho do outro rim prejudicado ou removido. Porém, no caso da mente, onde a falta de conhecimento dos substratos anatémicos ¢ outros fatores dificultam a delimitagio exata das fungdes, os ajustes sio mais sutis ¢ impalpaveis, mas todo sistema de psicopatologia deve prestar muita ateng’o aos mecanismos internos por meio dos quais uma unidade de funcionamento é mantida. O sistema psicanalftico é, fundamentalmente, um relato metaf6- tico elaborado de como essas verificagdes, compensagées e oscilagées de- vem funcionar para manter a atividade mental integrada e sauddvel e de como elas podem, em determinadas circunstancias, sair do controle e derrotar seus objetos. A triste verdade é que essa integragdo nunca é obtida completamente. “A base das frustragdes e de muitos conflitos reside nessa circunstancia universal, de que nenhum homem jamais consegue fundir todas as suas reacées em uma totalidade tinica, coerente, inequivoca.” Mas a refe- réncia a essa imperfeigdo pode ser exagerada, Nos individuos saudaveis existe uma fungdo reguladora, que mantém o organismo ajustado interna- mente e pronto para reagir As condigées externas mutaveis. Chegamos entio a0 mesmo conceito usado nas doengas fisicas: no organismo, deve haver algum ajuste de fungdes que mantenha seu ambiente interno estavel; deve haver alguma adaptagiio desse organismo integrado ao meio externo de modo a preservi-lo, apesar das condigdes mutaveis. Os termos “ajuste” e “adaptagiio” s4o constantemente usados como se os seus significados fossem inequivocos. Eles demandam uma anélise mais detida. Para muitas pessoas, a adequacio da adaptagio é atualmente a prin- cipal medida da satide mental. As autoridades educacionais oferecem escolas especiais para criangas “desajustadas”. O significado de adaptagio (ou ajustamento) e a deteccdio de sua falha sio muito importantes. Nos tiltimos anos, a “sindrome de adaptacao geral” ajudou vigorosamente a explicar como o fenémeno da doenga fisica é produzido em resposta ao PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, (1): 151-174, 1998 161 Aubrey Lewis stress, Aqui, a adaptagao € considerada como um fendmeno biol6gico; os individuos respondem as tenses com padrdes de reagio “adaptativos” de preservagio e de protegdo. Eles podem ser orientados para fornecer combus- tivel e energia extras a partes vitais do organismo ou para defender alguma parte ameagada: “Eventualmente, o organismo pode sacrificar algumas fungdes ou capacidades em beneficio de outras mais capacitadas para reagir a uma situagiio adversa, ‘Bmbora exista um grau de especializagio, onde um ou outro sistema preven- tivo seja dominante, a discriminagdo nao é precisa, Em um individuo amea- gado, € comum encontrarmos uma variedade de reagdes de preservagao, algumas das quais extremamente pertinentes, outras um pouco menos ¢ outras, ainda minimamente eficazes”. Na verdade, as reagées podem estar tio longe da pertinéncia e da eficdcia que se tornam nocivas ao individuo. Em outras palavras, nao ha uma linha divis6ria entre os mecanismos que preservam a adaptagdo © os mesmos mecanismos quando se tornam prejudiciais; a nogao de “adaptaco” é entio expandida de modo a abranger todas as respostas do organismo 4 tensao extema, independentemente delas serem classificadas como sauddveis ou doentias. Embora os numerosos autores sobre 0 assunto nZo sejam sempre explicitos, parece-me que tém 0 mesmo ponto de vista de McIver: “O ar fresco estimula nossos pulmdes ¢ 0 gés venenoso os destr6i; fisicamen- te, 0s dois produzem adaptagio... A natureza faz demandas independente- mente das condigées.... Se aos olhos dos homens elas silo favordveis ou desfavo- réveis, boas ou més, essa adaptagio fisica ineondicional permanece com toda sua compulsio... O ajuste puramente fisico esté sempre em operagio, nunca 6 ‘inadaptagao"”. Quando se trata de adaptagao social, esse tipo de visio da adaptag4o niio pode ser sustentada. Nesse caso cabe um julgamento de valor, distinguir en- tre desajuste e adaptacéo em fungio de uma condig&o particular valorizada ser {ou nao) posta em risco. Desse modo, “adaptagao social” é certamente mais um termo vazio: ela precisa ser qualificada por uma indicagao do estado de- sejado. Conseqiientemente, a satide mental nao pode ser igualada 4 boa adap- tacdo social, como muitos propéem, sem o risco de tautologia: considerar satide © estado valorizado ¢ desejado que a adaptacao vai atingir ¢ manter. 162 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 ‘A Saiide como Conceito Social De acordo com os compéndios atuais, a psiquiatria se preocupa “em estudar o individuo como um organismo psicobiolégico etemamente solici- tado a se adaptar a um ambiente social”, mas, infelizmente, nado temos um fundamento acordado no que se refere ao sucesso ou fracasso deste inevi- tavel exercicio. Além disso, o fracasso aqui nio pode ser considerado como doenga mental. Um individuo pode ser sociopata sem ser psicopata. Embora a desaprovagio social tenha tide um peso grande na decisto sobre 0 que deve ser considerado desajuste social (sendo 0 aspecto principal no uso da psiquiatria corrente), ela nao pode ser aceita como um critério satisfat6rio, j4 que € passivel de variagiio de acordo com o grupo de pessoas gue expressa a desaprovagao. I necessdrio descrever 0 comportamento em termos que especifiquem a situagao social no tempo e lugar; no entanto, essa descrigdo € arriscada se precisarmos fundamentd-la em termos de sva apro- vagio por terceiros, antes de poder considerd-la como boa adaptagiio social. E verdade que um comportamento sugestivo de desajuste social seré muito freqiientemente desaprovade por quase toda a sociedade, mas existirao também diversas formas de desajuste social que gozarao de algum tipo de aprovacio social, em determinado momento ou por uma parcela da socie- dade. Onde entéo podemos encontrar uma barreita menos inconstante entre sucesso € fracasso na adaptagio social do individuo? Enquanto nao a obti- vermos, dificilmente estaremos em posigio de examinar se a inadaptagio indica doenga, delingiiéncia ou pecado (passando da medicina e do direito para a teologia). O desajustamento social de um individuo, da mesma forma que o mau funcionamento de um corpo fisico, nunca serd total. RelagSes sociais distintas serio afetadas de formas diferentes. Mas, assim como a disfungao fisica, a inadaptagao social em algum aspecto pode produzir efeito em todas as relagées sociais do individuo. Sendo assim, é permissivel, embora algumas vezes impreciso, considerar a inadaptacdo social segundo formas restritas, como no caso de alcodlatras ou fandticos religiosos. Pode-se alegar que o critério mais til para saber se um individuo & desajustado socialmente é a nio-conformidade ~ nio-conformidade com as instituigGes, préticas tradi- cionais, costumes verbais e outros costumes predominantes nesta sociedade. Esse tipo de desajuste social poderia, é claro, ser aceito ¢ admirado. Atual- mente, € comum expressd-lo em termos de papel social. Uma pessoa é desajustada quando sua prépria versio de seu papel social ndo esté em harmonia com a versio da sociedade. E A medida que cada pessoa possui diversos papéis sociais, 6 0 papel dominante que importa, ou aqueles que PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 163 Aubrey Lewis tém precedéncia na organizacdo diéria de suas atividades. O conflito pode ser inevitavel. Defasagens culturais, choques, transi¢ées durante as fases de desenvolvimento (como na puberdade) e modificagdes involuntérias de status social irio claramente favorecer conflitos na concepgao do individuo sobre seu papel social e o papel que lhe é imposto pela sociedade, levando a um comportamento de ndo-conformidade. Esse comportamento poderd, é claro, significar doenga mental. Edwin Lemert, um estudioso sério desse problema, acredita que a varie- dade psicopatica de desvios sociais é caracterizada pela distorgdo simbélica da atitude individual em relagio & sua personalidade e seu papel social (“simbélico”, aqui, se refere ao produto das atividades cognitivas e emo- cionais, geralmente ocultas). “O ‘eu interiorizado’ da personalidade (a parte refletiva do processo simbélico) néo mais se enquadra, nos limites normais, as designagGes e estimativas sociais do status e do papel do individuo”. O aspecto observdvel disso no comportamento aparece como “variagdo anormal na quantidade ¢ na forma de expressdo da personalidade individual”. Embora Lemert sustente que essa férmula abrange “praticamente todas as manifestagdes de comportamentos neurdticos ¢ psicéticos”, ela me parece ser aplicdvel principalmente a algumas formas de insanidade e de pré- insanidade, sendo muito vaga para ser usada na diferenciagéo da forma Ppsicopatica de outras formas de inadaptagao social. Objegdes semelhantes podem ser feitas contra outras tentativas sociolégicas de especificar as caracteristicas indicativas de doenga mental. Elas ndo se sustentam sobre suas proprias pernas, amparadas que so por arrimos da explicagzo médica. Vamos retornar, entéo, aos critérios médicos tradicionais j4 mencionados. Eles so trés: 1) 0 paciente se sente mal — um dado genérico, subjetivo; 2) ele apresenta um distirbio de fun¢%o em algum lugar ~ um dado objetivo restrito; e 3) ele apresenta sintomas que estao de acordo com um padrao clinico reconhecivel — um dado tipolégico. O critério social nao é levado em conta a nao ser que o distiirbio na capacidade de atender as demandas sociais (por exemplo, habilidade de trabalhar) gere a pergunta: este homem esté doente? Casos dificeis podem ser citados, é verdade. Por exemplo, 0 caso de um portador do bacilo tiféide que se sente bem e nao apresenta diminuigao na sua capacidade, mas que pode infectar outras pessoas e que, em fungao dessa condicSo, pode ser segregado e tratado como se estivesse ele préprio doente, podendo até ser coagido a remover a vesicula biliar. Ainda assim, ndo penso que alguém possa considerar esse homem verdadeiramente doente, j4 que ele nao satisfaz a nenhum dos trés critérios listados acima — 162 PHYSIS: Rev. Saulde Coletiva, Rio de Ianeiro, 8(1): 151-174, 1998 A Sailde como Conceito Social nao apresenta um mal-estar subjetivo, qualquer distirbio de fungiio ou sinais e sintomas clinicos familiares. Esses critérios tradicionais eram aplicados muito antes do aparecimento de nossos atuais modelos explicativos da origem e da natureza da doenga. Eles seguiam as nogées animistas de doenga que prevaleceram por muitos séculos antes do estudo sistemdtico das causas ¢ da anatomia patoldgica. Os estudos patolégicos da doenga foram o resultado final dos avangos técnicos nas reas de microscopia, fisiologia e quimica. Durante muito tempo, a maioria das pessoas acreditava que estar doente significava se sentir doente, com alguma dor ou incapacidade, correndo risco de morte ou mutilagio. Ao decidir se um individuo estava doente ou saudavel, nao se considerava se o seu estado podia ser derivado de alteragées de células do corpo. Apesar disso, quando, como no caso da insanidade, o estado incomum afetava a conduta geral do paciente e nao apenas a atividade ou © bem-estar de uma parte limitada de seu corpo, de modo algum se diria que, invariavelmente, fosse uma doenga; as antigas concepgées animisticas da doenga eram evocadas — possessio demonfaca, bruxaria, etc. No entan- to, sempre houve médicos que consideravam essas formas também como mé satide. E por qué? Que princfpios os levaram a considerar a insanidade e a doenga fisica sob 0 mesmo tépico, enquanto deixavam o crime, por exemplo, excluido? O trago comum era, certamente, 0 distiirbio evidente de fungées parciais bem como do desempenho geral. Na doenga fisica, isso nao precisa ser demonstrado. Nos distirbios mentais, isso se eviden- cia, por exemplo, nas ocorréncias de perturbagdes mentais (como no caso de delirios), distorgdes da percepgdo (como nas alucinagdes), ou alteragdes do estado emocional (como nos estados neuréticos de angtstia ou melanco- lia). Comportamentos desviantes, desajustes e néo-conformismo serao pa- tolégicos se estiverem acompanhados de distirbio manifesto de algumas fungdes. Como jé mencionei anteriormente, é verdade que as fungdes sfio uma construgao artificial, e que o distirbio de qualquer fungio especifica serd comumente acompanhado de distirbios menos visiveis em muitas outras fun¢des — como acontece com o corpo. Mas, para que se infira a doenga, o distirbio da fungio deve ser detectével em um nivel destacado ou diferenciado, dificilmente concebivel quando a atividade mental é considerada como um todo irredutivel. Se a nao-conformidade for detec- tada somente no comportamento global, enquanto todas as fungGes psico- légicas especificas parecerem inalteradas, deverd presumir-se a saiide, no a doenga. PHYSIS: Rev. Suide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998 165, Aubrey Lewis Os debates sobre os méritos relativos da psicologia estrutural e da psicologia funcional, depois dos excessos da psicologia das faculdades, justificam uma abordagem cautelosa na listagem das fungdes mentais. No entanto, existe no momento um consenso sobre a importancia das seguin- tes fungGes: percepgiio, aprendizagem, pensamento, meméria, sentimento, emogiio ¢ motivagiio. A principal objegio reside no fato de que a lista no € completa. No entanto, ela se enquadra nas divisdes tradicionais do cognitivo, do afetivo e da conagao; e cada uma delas pode ser subdividida em muitas variedades, de acordo com a extensaio dos dados fornecidos pela psiquiatria clinica ou pela psicologia. A motivagao é o dado mais insuficiente e provavelmente o mais importante: sob seu enunciado, neces- sidades ou pulsdes, conflitos e respostas sociais nfo so considerados. Como definiu P.T. Young em relagio 4 diversidade de métodos utiliza- dos no estudo da emogao e da motivagao, a dificuldade reside na enorme complexidade dos processos e em seus significados basicos para a compre- ensao da conduta. Uma lista de fungées como esta é provisdria, e a his- toria da psicologia salienta que isso é suficiente no momento. As fungées fisiolégicas também esto sujeitas & reviso. Quanto mais completo for nosso conhecimento exato das fungées, mais definitivas sero nossas conclusées de que a doenga consiste na desordem de uma ou varias fungées, E possivel agora, como pode ver visto no manual de Landis ¢ Bolles, classificar o fenémeno da doenga mental em termos de fungéo desordenada. Existem algumas formas de desvios de comportamento social que suscitam problemas delicados — é 0 caso de perversées sexuais, como, por exemplo, a homossexualidade ou o exibicionismo. Definir qualquer perverso sexual como necessariamente patolégica, a partir do critério sugerido como doenga, exigiria uma consideragao mais completa e abrangente do que é possivel aqui sobre o lugar das atividades ¢ necessidades sexuais entre as fungdes mentais. Nas criticas psicanaliticas as conclusGes de Kinsey, cons- tata-se uma enorme diferenga entre os critérios estatisticos do que deve ser inclufdo dentro da norma de fungao sexual e o critério de valor. A maior dificuldade surge em relagdo a personalidade psicopatica. Toda matéria de psiquiatria discute essa anomalia, mas quase sempre de forma ambigua porque os autores nao deixam claro 0 motivo dela ser considerada como doenga. Embora ao que me conste nenhuma definigdo do termo tenha tido uma aceitagdo geral, a descrigéo a seguir, obtida de Norwood East, indica 0 tipo de pessoa & que se refere: 166 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, (4): 151-174, 1998 A Saiide como Conceity Social “Uma pessoa que, embora nao insana, deficiente mental, ou psiconeurstica, 6 constantemente incapaz de se adaptar aos requisitos sociais devido as pecu- liaridades quantitativas de impulso, temperamento € cardter, que podem exigir tratamento médico especializado e reabilitagio...”. A categoria decerto envolve um grupo especifico de pessoas cujo desvio de comportamento social surge a partir de desvios psicolégicos nio-cognitivos. Além disso, as condigdes podem exigir tratamento médico; mas como esse nao & um requisito invaridvel, podemos omiti-lo aqui. As peculiaridades de caréter e de temperamento nao constituem indi- cages aceitaveis de doenga; clas so, € claro, bastante comuns na populagio em geral e dificilmente justificam classificar todas as pessoas que as apre- sentam como psicopatas. Nesse ponto, persistem as peculiaridades quantita- tivas do impulso: isso é notdrio nas discussées médico-legais sobre o assunto, possivelmente porque, em casos de crimes de violéncia, o impulso é quase sempre alegado como uma explicagio médica para fins de redugio de responsabilidad, especialmente quando se trata de assassinato. Mas 0 im- pulso é, psicologicamente, um termo impreciso e de certa forma ultrapassado. Com o destronamento da Vontade na psicologia moderna, nao é facil espe- cificar as anormalidades da funcéio conativa em termos de impulso, e € certamente impossivel medi-las. Parece ent&o que, até que a categoria seja definida de forma mais aprofundada e confirme ser caracterizada por anor- malidades especificas de fungées psicoldgicas, ndo ser4 possivel considerar os individuos que se encaixam nela como doentes, mesmo que seus compor- tamentos sociais possam ser desviantes. Embora a ameaga social seja um trago comum tanto a insanidade quanto doenga fisica (por exemplo, no caso de doengas infecciosas — varfola, doengas venéreas e similares), 0 mal social é uma contingéncia, néo uma caracteristica necessdria; na sua auséncia, a condi¢gao ainda é de doenga, devido as mudangas no individuo. A verdade é que, apesar de os efeitos sociais serem importantes (bem como as causas sociais), é impossivel decidir a partir deles quando uma condigSo é¢ saudavel ou doentia. Desse modo, 0 conceito de doenga e satide possui componentes psicol6- gicos ¢ fisiolégicos, mas nao componentes sociais essenciais. Ao examind-lo, nao podemos ignorar as consideragées sociais, na medida em que podem ser necessérias para a avaliacdio da adequaciio psicolégica e fisiolégica, mas nao somos compelidos a considerar se 0 comportamento é um desvio social: embora a doenga possa levar a esse tipo de comportamento, ha muitas PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1): 154-174, 1998 467 Aubrey Lewis formas de desvios sociais que no s4o doengas ¢ muitas formas de doengas que nao sao desvios soci E necessario neste ponto fazer uma distingZo entre doenca e o que é tratado pelo médico. Se todos que fossem ao médico e recebessem tratamento fossem considerados doentes, terjamos um critério operacional simples, mas cujas falhas seriam Obvias: ele flutuaria enormemente de lugar para lugar € de época para época, dependeria da atitude do paciente em relagfo ao médico ¢ certamente nao conseguiria incluir muitas pessoas que, pelos padrdes do senso comum, seriam consideradas doentes. Além disso, é necessario lembrar que o médico nao estaré necessaria~ mente atuando fora de sua area de competéncia ao atender as pessoas que nao estiverem doentes. As falhas congénitas de estrutura e de fungao do corpo (por exemplo, anomalias metabolicas benignas e malformag&es) nao so estritamente doencas, mas sio da alada dos médicos. O mesmo acon- tece com a gravidez e o parto. A extensdo da esfera de acio do médico avangou muito na psiquiatria. O psiquiatra tem um amplo conhecimento sobre a psicologia normal e anormal que é relevante para o tratamento ou prevengio de alguns estados nio-patolégicos considerados socialmente como desvios. Nos dias atuais, ele é freqiientemente solicitado a investigar e tratar distirbios de comportamento em criangas que dificilmente se incluem em qualquer concepgao fundamentada de doenga (embora, é claro, esses distirbios possam prenunciar uma doenga). Da mesma forma, ele pode investigar ou tratar criminosos, dependentes de drogas, prostitutas e perver- tidos sexuais. Parece que nado ha uma forma de desvio social que os psi- quiatras nao aleguem poder tratar ou prevenir — as pretensdes de alguns psiquiatras sio enormes. Felizmente, seu tempo nao chegou. Nao obstante, é bastante claro que tanto os psiquiatras quanto outros médicos tratam de pessoas que no estéo doentes: por outro lado, muitas pessoas doentes pensam como Montaigne e acham absurdo se submeter ao arbftrio ¢ as regras dos médicos — pelo menos em fungiio de qualquer doenga nervosa. Os psiquiatras atuais esto expostos 4s mesmas criticas e suspeitas expressas por Montaigne em relacio aos médicos do século XVI. O suicidio ilustra a dificuldade em decidir entre desvio social ¢ doenga. Ninguém questiona que o suicfdio seja freqiientemente uma conseqiiéncia ou sintoma de doenga; mas, parece-me que ninguém duvida de que possa ser uma agdo de uma pessoa mentalmente s&. Se ocorre em uma sociedade que permite o suicidio em determinadas circunstancias, como é 0 caso da nossa, ¢ se essas circunstancias forem as chamadas “aceitas”, presume-se que a 168 PHYSIS: Rev, Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 8 151-174, 1998 A Saiide como Conceito Social ag&o no traduza doenga mental nem desvio social. Ou seja, se 0 compor- tamento é socialmente aprovado, ele nao é, de modo geral, objeto de exame que possa evidenciar doenga mental; ¢, nese caso, © suicidio é encarado como 0 casamento, ou como qualquer outro ato isolado (porém decisivo) de escolha, aceito pela sociedade. Porém, mesmo em uma sociedade que nao desaprova 0 suicidio, 0 ato pode ser um sinal de doenga mental, devendo ser investigado como tal por duas razes: em fungdo das circunstdncias em que ocorre e em funcfio do desajuste das fungdes psicolégicas exibidas pela pessoa, independentemente de seu comportamento suicida. Quando as circunsténcias indicam que o ato no est4 de acordo com os papéis sociais a serem desempenhados pela pessoa, isto nao é suficiente para configurar a doenga, embora possa estimular pesquisas sobre 0 assunto. A decisio sobre a doenga deve ser tomada a luz de uma pesquisa mais detalhada das fungdes psicoldgicas. Se estas estiverem desajustadas, 0 ato suicida pode ser presu- mido também como evidéncia de doenga mental — mas isto s6 seria verdade se 0 ato suicida se encaixasse em um modelo total de fungdo desajustada exibido pela pessoa. Uma pessoa pode estar mentalmente doente; no entanto, seu suicidio pode ser extrinseco a isso, ou representar, de certa forma, uma resposta normal e até saudavel & situag%io em que se encontra. Pode parecer absurdo falar em suicidio em qualquer circunstancia como uma resposta saud4vel, mas somente se nos ativermos & opinido de que a adaptacdo biolégica € 0 Unico e verdadeiro critério de satide. Por qualquer critério bioldgico, o suicidio de uma pessoa que ainda nao tenha se reproduzido é decerto uma indicagdo mdxima de inadaptagio. Os conceitos psicanaliticos de satide ¢ de doenga mental demandam uma consideragao especial. Embora néo haja unanimidade sobre o assunto entre os psicanalistas, eles se concentram em critérios psicolégicos internos; alguns dos termos usados para definigao tornam impossivel especificar quando um individuo esté mentalmente sauddvel a nao ser que ele tenha sido psicanalisado ou seu comportamento interpretado em linhas psicanaliticas: em resumo, os critérios sio técnico-psicoanaliticos. Também & comum os psicanalistas descreverem a satide mental em linguagem genérica imprecisa, como Karl Menninger: “Vamos definir satide mental como o ajuste dos seres humanos ao meio externo e a seus semelhantes com 0 maximo de eficdcia e felici- dade.” Um esforcgo mais sério de tratar o problema foi feito por Emest Jones, Ele lista trés tragos de uma mente normal ou sauddvel: em primeiro lugar, a “liberdade interna” de sentimentos de amizade e afeigio em relagao as pessoas; em segundo lugar, a eficiéncia mental, ou seja, “o uso completo dos PHYSIS: Rev, Saide Coleuiva, Rio de Janeiro, 8(1): 151-174, 1998169 Aubrey Lewis talentos ¢ faculdades pessoais” e, por fim, a felicidade, que € “provavelmente © mais importante dos trés” — uma combinagio da capacidade de obter prazer com a satisfagio interior. Esses critérios se aproximam daqueles que ele aplica a questdes de ordem pratica, ou seja, determinar “se” ¢ “quando” um tratamento foi bem-sucedido: “O sucesso anslitico significa o grau maximo nos resultados favordveis que acabei de descrever ao tratar dos critérios terapéuticos. A pessoa deve espe- rar entGo uma serenidade confiante, a auséncia de angdstia e um controle sobre todos os tragos da personalidade, s6 obtidos por meio da andlise mais completa possivel”. Esse tipo de linguagem deixa espago para divergéncias de opinido genuinas, mas gritantes, entre um psicanalista e outras pessoas — como um psiquiatra, um clinico geral ou um parente do paciente — sobre a satide mental de um paciente ou de qualquer individuo que tenha sido psicanalisado. Mas essa nao é uma questao remota e teérica. Em parte porque nao foi resolvida, nio possuimos ainda informages exatas sobre os efeitos comparativos da psica- nalise e outros métodos de psicoterapia, ou sobre as chances de éxito de um tratamento psicanalitico em determinado paciente. No entanto, um Servi¢o de Saiide que promete tratamento adequado para toda a populagao fica numa posicao desconfortavel ao recusar uma demanda por mais terapias psicana- liticas alegando os custos desse tratamento ¢ as dtividas sobre sua eficdcia. Todo psiquiatra j4 viu casos em que pacientes, segundo the diziam j4 recu- perados apés um tratamento de distirbio mental, ainda pareciam apresentar sinais de doenga. Esse nao é um problema que afeta somente a avaliagao do tratamento psicanalitico; surge também, com freqiiéncia, apdés alguns métodos fisicos de tratamentos psiquidtricos, como a leucotomia. A difi- culdade inerente ao conceito de satide mental é evidenciada quando vemos um psicanalista (apesar de tio especializado na microscopia dos eventos da mente) ser incapaz de definir seu critério de recuperagao sem prescindir de termos vagos e nebulosos. Outro psicanalista, Lawrence Kubie, observou com mais cuidado a ques- tdo das implicages sociais da satide. Comecando com a afirmaciio de que “a psicandlise é inflexivel em seu conceito de satide mental”, prossegue afirmando que o analista nao est4 “satisfeito em usar o conformismo em relagio aos costumes de qualquer tempo ou lugar como critério de normalidade”... 170 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Faneiro, 8(1): 151-174, 1998 A Satide como Conceito Social “nem a diferenga entre conduta normal e neurética deve depender do grau de contribuigdo de uma agdo para o bem-estar ou destrui¢ao de uma sociedade, ou da definigao de um comportamento como extravagamte ¢ irreal ou discipli- nado e sdbrio. Certamente, do ponto de vista da sociedade, todos esses atri- butos de comportamento humano sio importantes. No entanto, eles nao sio suficientemente constantes e explanat6rios para servirem de base na distingo entre © processo normal € © proceso neurético. A principal diferenga no reside nem na ago nem nas suas circunstincias, e sim nos mecanismos psi- colégicos que a determinaram,.. Q que é aceito como normalidade no mundo atual no é normal em nenhum sentido fundamental. Na verdade, seria antes 0 equilibrio instvel entre fendmenos conscientes ¢ inconscientes... As atividades resultantes podem nio ser estranhas ou peculiares em sua esséncia. Blas podem ser aceitas e até valorizadas socialmente, e podem atender a todas as demandas da consciéncia” No entanto, elas consistem em residuos de problemas neuréticos mal- resolvidos da infincia, “o componente neurdtico universal e oculto da natu- reza humana ‘normal’”. Ele conciui que, em bases pragméticas, podemos considerar “normal” qualquer ago onde predominem processos conscientes; que toda ago & um produto de forgas bioldgicas e de forcas psicolégicas conscientes, pré-conscientes € inconscientes superpostas as forgas biolégicas, todas portando a marca impressa de muitas press6es sociais ¢ em constante estado de equilibrio instavel. Essa é outra maneira de analisar a eficiéncia de determinadas fungdes, mas as fungdes sao aquelas enfatizadas pelos psicanalistas na sua descrico da organizagdo mental. Séo fungdes dificeis de serem consideradas fora de seu quadro psicanalitico de referéncia, e, conseqiientemente, 0 conceito expresso por elas, dificil de ser aplicado no reconhecimento da satide e da doenga. Negar o conteddo social do conceito de satide nao implica de forma alguma negar seu contexto social. Os antropdlogos ¢ psicélogos sociais reuniram evidéncias incontestaveis que mostram o quanto devemos nos basear no conhecimento do ambiente social e cultural ao avaliarmos a conduta ¢ a cficiéncia das fungées psicolégicas. Nenhum psiquiatra no exercicio da profissdo deve negligenciar essas evidéncias, sendo desnecessério citar os exemplos — Kwakinth e Shasta, Ekoi ¢ indios Crow, Yakuts e Dobuanos — para enfatizé-las. Porém, em nossa prépria sociedade a confusio prevalecente sobre a qualidade e a natureza da satide tem gerado alguns erros perigosos. Durante. PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeico, 8(1): 151-174, 1898 171 Aubrey Lewis a tiltima guerra, muitas pessoas presumiram que um individuo neurético estaria menos apto a desempenhar relagGes sociais ¢ de trabalho do que um homem saudavel. Uma suposigao similar costuma ser feita em relagiio aos estudantes pré-universitarios e aos candidatos a diversas profissdes € empregos. No entanto, essa evidéncia ndo é conclusiva, e muito do que passa por constituir evidéncia é contaminado pelo uso de um conceito de neurose que leva em consideragao a inadequago social ou ocupacional, e um conceito de inadequagio ocupacional muito influenciado por consideracdes de satide. A ndo ser que os critérios de doenga sejam independentes e claros, € dificil ou arriscado usar os dados baseados neles para fins de selegao. Nas pesquisas do Niicleo?, as quais estive associado, esse problema surgiu de diversas formas. Em nossas tentativas de descobrir 0 tipo de influéncia que um trabalhador neurético poderia ter sobre os outros traba- Ihadores, ¢ de como a sua satide poderia afetar o seu préprio rendimento, foi necessario obter meios para detectar esse tipo de doenga nos individuos que n&o estavam sob cuidados médicos e que nao apresentavam queixas: deveriam ser levadas em conta eventuais bebedeiras, auséncias freqiientes do trabalho ou a maneira como um individuo se indispunha com colegas da fabrica ou com sua esposa e famflia?-Até entio, havia sido atribuido um valor patolégico a esses tipos de dados sociais, 0 que pode ser responsAvel por alguns mimeros divergentes. Russell Fraser e, posteriormente, Morris Markowe descobriram em suas pesquisas que, entre trabalhadores de obras de engenharia, cerca de dez por cento haviam sofrido doencas neuréticas explicitas, e vinte por cento haviam sofrido formas mais brandas de neuroses, durante um periodo de seis meses. J4 Lemkau detectou uma taxa de prevaléncia bastante inferior em uma populagdo muito menos selecionada. Em 1933, a taxa de prevaléncia de personalidades psicopaticas em uma cidade americana (Baltimore) era de 13 em 10 mil. Porém, em 1936 ela havia caido para 5,2 em 10 mil; parece altamente provével que consideragdes sociais tenham interferido nesse censo “médico”. Na verdade, o principal pesquisador do estudo de Baltimore afirmou que “em 1933, no inicio dos anos da depressio, as fontes que norteavam a pes- quisa tendiam a interpretar como evidéncia de personalidade psicopética a inabilidade para ganhar um salério satisfatério. Em 1936, como a gravidade 9 Nficleo de Pesquisas do Hospital Maudsley, em Londres [N. do R.J. 172 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 81}; 151-174, 1998 A Satide como Conceito Sociai da depressao ja havia sido reconhecida, a familiaridade com 0 desempre- go tomnou-o menos vinculado a um aspecta de deficiéncia de caréter e, conseqiientemente, o diagnéstico de personalidade psicopitica passou a ser usado com menos freqiiéncia”, Esse pesquisador acrescenta que na tltima guerra a incidéncia de perso- nalidade psicopatica entre os homens examinados para o servigo militar nos Estados Unidos era de oito em mil; ela foi responsavel por mais de um quarto das rejeigdes por doenga mental. As consideragdes sociais tiveram um peso muito grande na decisdo sobre a saiide ou doenca desses homens, € a confusio entre desvio social e doenga pode justificar a improvavel flutuagao da prevaléncia de um distdrbio supostamente constitucional. No trabalho mais recente do Niicleo de Pesquisa a que me referi, hé um esforgo no sentido de manter as estimativas de satide mental livres de consideragdes sociais ou diretamente ocupacionais. Isso é especialmente necessario nas pesquisas feitas pelo Nticleo sobre a possibilidade de emprego de deficientes mentais de alto grau. A deficiéncia mental possui duas caracteristicas — uma deficiéncia na inteligéncia ¢ um disnirbio de personalidade. Esse ultimo tende a ser julgado principalmente .por critérios sociais, j4 que as conse- qiiéncias sociais sio tio importantes legal quanto administrativamente. A incidéncia de deficientes de alto grau na comunidade geral pode entao estar sujeita a flutuagdes, dependendo do local. Os laudos sociais devem ser mantidos 0 mais separado possivel dos laudos patolégicos ¢ psicolégicos para evitar correlagdes esptirias entre estados mérbidos e ajustamento social. As implicagdes singulares do uso de um critério social para doenga e satide so aparentes quando uma sociedade inteira é caracterizada como enferma. Enquanto essa afirmacao for um recurso apenas literério, no sus- cita objegio; no entanto, ela tem sido formulada com seriedade, em ana- logias entre uma sociedade doente e um individuo doente. Se a falha no desempenho de um papel social for uma condigdo para a doenga, uma determinada sociedade $6 poder preencher essa condig&o, a meu ver, se essa sociedade desviar-se do rumo de uma comunidade maior ou de um corpo politico mundial, ou se, no outro extremo, o papel social de uma sociedade especffica tiver sido atribuido por seus membros individuais agindo coletivamente. Esta claro que somente por meio de uma metdfora ousada uma sociedade pode ser chamada de doente ou saudavel. Existem muitos outros termos mais apropriados para louvar uma sociedade ou indicar sua desorganizagiio. PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 81): 151-174, 1998 173. Aubrey Lewis Vou procurar agora sintetizar meu argumento. Satide é um conceito tinico: nao é possivel definir critérios essencialmente diferentes para satide mental e satide fisica. Geralmente presumimos um intervalo entre os conccitos de satide e enfermidade, para o qual néo hé contrapartida nos fenémenos, mas que no pode ainda ser substituido por uma linha continua porque nao temos meios de medir algumas de suas dimensdes necessérias. Além das sensagées subjetivas e do grau de eficiéncia total, 0 critério de satide é 0 desempenho adequado de fungées psicoldégicas ¢ fisiolégicas. Como nio podemos designar formalmente as fungdes principais do organismo humano e niio temos meios de julgar se estdo funcionando de modo eficiente, somos incapazes de reconhecer doenga e satide de forma valida e confidvel. As fung6es fisiolégicas podero deste modo ser designadas ¢ julgadas de forma mais satisfat6ria do que as psicolgicas. Sendo assim, podemos em geral afirmar que um individuo tem um corpo saudavel, mas nfo podemos afirmar com a mesma seguranga e com o consenso de diversos observadores se ele est4 mentalmente saudavel. Embora nossas estimativas sobre a eficiéncia do desempenho funcional devam levar em conta o ambiente social que fornece o estimulo e supre as necessidades, os critérios de satide nao sao, a rigor, sociais; € equivocado equiparar doenga a desvio social ou desajustamento. Se evitarmos esse erro, seré mais facil estudar a relagdo entre satide e bem-estar social e, conseqiientemente, assim espero, aprender como ajudar a ambos. 174 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 8(1¥: 151-174, 1998

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