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© ESPETACULO DAS RACAS: CIENTISTAS, INSTITUICOES E QUESTAO RACIAL NO BRASIL, 1870-1930 Lilia M. Schwarcz Sao Paulo, Cia. das Letras, 1993. 268 pp. Raga pertence aquela classe de conceitos que muitos gostariam que fosse definitivamente abandonado devido a sua generalidade, mas que, nfo com pouca freqiéncia, retorna ao centro das discuss6es. Sua longevidade impres- siona: questdes ligadas a raga eram centrais em debates académicos do século XIX (¢ mesmo bem antes). Os debates persistem em uma época em que a énfase volta-se para o seqiienciamento do genoma humane, um projeto que catalisa os interesses da biologia moderna. Obviamente, 0 tépico ‘raga’ no se esgota no dominio das ciéncias biol6gicas, possivel- mente daf derivando sua persisténcia e dos significados a ele associados através dos tem- pos. Nao € nosso objetivo aqui aprofundar certas questdes, mas é preciso mencionar que raca, em sua vertente biolégica, social ou mais freqiientemente no intercruzamento de ambas, tem reiteradamente influenciado ideo- logias de perseguicao e exclusio de segmen- tos sociais especificos em todo o mundo. Esclarecer as formas pelas quais 0 conceit de raga foi hist6rica e socialmente construido ajuda-nos a compreender seu significado e sua relevancia no presente. Foi o que tentou, por exemplo, Thomas Skidmore em Preto no branco: raga e nacionalidade no pensamento brasileiro (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976). Das conclusdes de Skidmore, sobressaem a importincia da temdtica racial no pensamento social brasileiro na virada do século e a énfase acerca do cardter mimético das idéias formu- ladas pela intelectualidade brasileira. LIVROS & ARTIGOS Enfocando “cientistas, instituigdes e ques- tao racial” no Brasil, o trabalho visa “entender a relevancia e as variag6es na utilizacio desse tipo de teoria no Brasil, no periodo que vai de 1870 a 1930” (p. 14). Schwarcz procura demonstrar que, mais do que simples cépias de modelos estrangeiros, as idéias da intelec- tualidade brasileira sobre raga caracterizavam-se pela especificidade, nao raro pela adaptacao ctiativa e seletiva de conceitos face a realidade social do pafs. Diante da condenagiio da mis- cigenagao racial, moeda corrente no debate europeu, que se traduziria pela decadéncia ine- xoravel, pela impossibilidade de progresso de paises como o Brasil, fortemente miscigenado, surgiram reagdes miltiplas (em certos casos ambiguas), reagdes estas que oscilavam entre a peocupagio, a constatag’o e 0 elogio & mesticagem. Os dois primeiros capitulos do livro intro- duzem o ambiente hist6rico, 0s atores sociais € as idéias sobre raga vigentes no Brasil e na Europa do século XIX. Schwarez, analisa © contexto no qual surgiram as primeiras stituigdes cientificas no pais, a partir do inicio do século XIX, e 0 marco de 1870, quando teria emergido “um bando de idéias novas”, expressio do critico literdrio Silvio Romero para descrever a torrente de concei- tos impregnados pelo positivismo, evolucio- nismo € materialismo. A conjugagio de instituigdes e idéias teria fomentado o surgi- mento de quadros intelectuais vinculados a instituigdes cientificas que, segundo a autora, iniciaram um processo de distanciamento das vinculagées sociais ¢ politicas mais imediatas dos setores dominantes ligados ao mundo ru- ral, Nao obstante um “cientificismo ret6rico” pautado em um “ideario cientificista difuso” (p. 34), 08 “homens de sciencia’, diante de mu- dangas histéricas, como a Aboligo da escra- vatura € a criaglo da Repdblica, « munidos de modelos evolucionistas e darwinistas sociais, procuraram responder a questionamentos acer- JuL-OurT 1994 173 LIVROS & ARTIGOS ca da viabilidade de uma nago miscigenada como © Brasil, nascida condenada ao atraso face aos postulados ‘raciolégicos’ estrangeiros expressos por intelectuais como Thomas Buckle, Louis Agassiz e Arthur de Gobineau, entre outros. ‘A novidade da contribuicao de O espetd- culo das ragas esti contida nos quatro capi- tulos seguintes, que tratam dos centros de “produgio de idéias e teorias” (p. 65), quais sejam, museus etnograficos (Capitulo 3), ins- titutos histéricos e geogrificos (Capitulo 4), faculdades de direito (Capitulo 5) ¢ faculda- des de medicina (Capitulo 6). Estes capitulos possuem todos uma estrutura similar, qual seja: breve hist6ria institucional; detalhamen- to sobre instituigdes especificas, particular- mente no tocante aos intelectuais de maior peso € A produgio cientifica dos peridicos a elas vinculados; andlise ‘comparativa das instituigdes pesquisadas. Vale ressaltar que 08 diversos capitulos so ricamente ilustrados, alguns deles com fotos coloridas. £ possivel, contudo, que muitos leitores se ressintam da falta de uma maior articulagao entre texto e ilustracao, dado que boa parte delas nao che- ga a ser referida no corpo do livro. Sem divida, Schwarcz nao se propés a realizar uma tarefa de pequeno vulto. O ter- reno a ser coberto, visando uma anilise com- parativa de instituigdes com caracteristicas e histérias tao heterogéneas como museus et- nogrificos e faculdades dle medicina é, logica- mente, muitissimo extenso. Certamente, é na propria dimensto da proposta do livro que reside muitos de seus pontos fortes. Uma ana- lise que privilegia um espectro de instituigdes tem a vantagem de viabilizar um enfoque comparativo, potencialmente demonstrando re- conéncias que podem ser interpretadas como indicador da relevancia de certas idéias. E preciso ‘observar, contudo, que a abrangéncia e os mé- todos empregados por Schwarcz na coleta € apresentacao das evicéncias trazem imbufdas al- gumas limitagdes, que detalharemos a seguir, a partir dos exemplos dos museus etnogrificos € faculdades de medicina. © capitulo sobre museus etnogrificos nos faz refletir acerca da ‘sensibilidade’ da andlise 174 MANGUINHOS Vol. 1 (1) dos periédicos como estratégia, visando uma caracterizagao institucional. No caso da Re- vista do Museu Paulista, pot exemplo, “a pre- senca estrangeira € to significativa que a propria revista seri basicamente elaborada com a colaboracao de naturalistas europeus. Apenas 1% dos artigos é de autoria de cientistas na- cionais" (p. 81). Ou seja, parcela expressiva dos trabalhos publicados nao é originaria da instituigo. Diante disso, até que ponto se pode argumentar que a produgao veiculada nos di- versos peri6dicos efetivamente sobrepde-se com os “homens de sciencia” das instituigdes em aprego? Além disso, como método sistema- tico, 0 cémputo da produgio cientifica publi- cada nos periédicos selecionados prové apenas um quadro parcial da produgio dos pesquisa- dores dos diversos estabelecimentos. Talvez 0 exemplo mais claro venha dos trabalhos de Edgar Roquette-Pinto. Além dos Archivos do Museu Nacional, periédico ana- lisado por Schwarcz, a partir de novembro de 1923 0 Museu Nacional passou a publicar também o Boletim do Museu Nacional. Como indicado no ensaio de revisio de L. Castro- Faria sobre a antropologia fisica no Brasil (em Boletim do Museu Nacional, n° 13, 1952), parcela significativa da produgio em antro- pologia fisica de Roquette-Pinto nas primeiras décadas deste século nao foi veiculada nos Archivos, mas sim no Boletim e em livros, dos quais se destacam Rondonia (1917) e Seixos rolados (1927). Talvez seja devido & auséncia das paginas dos Archivos que os importantes trabalhos de Roquette-Pinto, en- focando a questio racial, recebam um trata- mento timido no capitulo sobre museus etnograficos. © capitulo sobre as faculdades de medi- a traz A tona uma outra questio relativa & associagio entre revista e instituiglo defen- dida no livro, qual seja, até que ponto se pode argumentar a favor de uma sobreposi¢0 entre elas. Para melhor aferir a importincia do debate racial nas instituiges médicas, Schwarcz escolheu duas revistas académicas, consonante ‘com sua proposta inicial de trabalhar as “pu- blicagées internas organizadas pelas diferen- tes instituigdes” (p. 66). Como reconhece a pr6pria autora, nem a Gazeta Medica da Babia nem a Revista Brazil Medico pertenciam as fa- culdades de medicina que, a propésito, tinham suas prOprias publicagdes, ambas denominadas Revista de Cursos da Faculdade de Medicina. Quanto a Gazeta Medica, os médicos que se congregaram para fundé-la (Wucherer, Pa- terson e Silva Lima, entre outros) nao estavam ligados a Faculdade de Medicina, mas sim Santa Casa de Miseric6rdia de Salvador. Fo- ram eles, juntamente com alguns discipulos, que posteriormente vieram a ser denomina- dos como pertencentes & Escola Tropicalista Baiana. Esta tradigao s6 veio a se inserir na Faculdade de Medicina da Bahia anos apés a ctiagio da Gazeta Medica e tinha entre suas caracteristicas a énfase em investigacdes que levavam em conta a singularidade bra- sileira. A propésito, como apontado por J. Peard (em The Tropicalist School of Medicine of Babia, 1860-1889, tese de doutorado, Nova York, Columbia University, 1990), gran- de parte dos trabalhos dos pesquisadores di- tos tropicalistas estava voltado para 0 estudo de doengas infecto-parasitérias, nao privile- giando a questao racial como aspecto pre- ponderante. Foi somente com a ascensio de Nina Rodrigues a professor de medicina legal que as interpretagdes raciolégicas adquiriram maior visibilidade, Os dados quantitativos de Schwarez corroboram esta afirmagio: 42% da totalidade dos artigos publicados entre 1900 e 1915 versavam sobre medicina legal, contra 5% para o periodo 1870-1930. Deve-se frisar, contudo, que a medicina legal ja naquela época contemplava uma grande diversidade de t6pi- cos, indo além da temitica racial. Até que ponto ‘os dados mencionados sustentam a hipétese de predominancia do determinismo biolégico na faculdade baiana? As informagdes apresen- tadas por Schwarcz nao apéiam necessariamen- te tal assertiva, uma vez que, dentre outras razbes, 62% dos artigos por ela classificados diziam respeito 4 medicina geral, medicina interna e higiene publica (p. 204) O exemplo do Brazil Medico aponta mais uma vez para os limites de uma associagio direta entre periddico e institui¢a0 de ensino médico na virada do século; uma importante LIVROS & ARTIGOS questio diz respeito & procedéncia das idéias nele reportadas através dos milhares de arti- gos publicados entre 1887 1930. Como aponta a autora (p. 219), muitos foram aque- les (e.g., Nina Rodrigues, Vital Brazil, Emilio Goeldi, Oswaldo Cruz, entre outros) de fora da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro que “colaboravam com assiduidade nesta re- vista” (p. 219). Em face da procedéncia ins- titucional dos colaboradores e dos milhares de artigos publicados, fica a questo: esta bibliografia pode ser tomada como espelho da produgao da Faculdade de Medicina da época ou oferece uma forte pista de que o Brazil Medico extrapolava barreiras institucio- nais especificas? ‘As ressalvas delineadas anteriormente, que em esséncia se referem a metodologia em- pregada, nao diminuem a importancia da ana- lise conduzida por Schwarcz. Possivelmente, a realizaglo de pesquisa histérica nos acervos das diversas instituigdes trabalhadas no livro teria contribuido para um enfoque mais ma- tizado do tema proposto. £ preciso mencio- nar, contudo, que uma abordagem desta natureza potencialmente inviabilizaria um es- pectro de comparagdes tao amplo como. aquele delineado ao longo do livro. No mais, a autora, que é detentora de um estilo claro € conciso, foi capaz de transmitir aos leitores uma quantidade imensa de informagdes € reflexdes a respeito do debate racial no Brasil na virada do século. Os dados apresentados apéiam a hipétese de que, longe de ser “mero reflexo ou c6pia desautorizada” (p. 242), a adogao de teses raciais nlio somente foi co- mum, como profundamente vinculada ao con- texto s6cio-politico-econémico vivenciado no pais. O espetdculo das ragas é, sem divida, uma valiosa contribuiglo para o debate sobre raga em espacos institucionais até ento pouco investigados, 0 que o toma leitura obrigatéria para aqueles interessados no tema. Marcos Chor Maio Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz Ricardo Ventura Santos Museu Nacional (UFR) JUL-OUT 1994 175

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