You are on page 1of 1

De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo

tempo, o único no qual o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo.


Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que
conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto
o excesso engajam apenas o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações
e caráter racional e pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual
nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha.
Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por
motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer
exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem
maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total,
comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece,
maravilho-me ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das
responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos
compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços
impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, que vai
do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para
consagrar-lhe uma parte de minha vida.

Memórias de Adriano.
Marguerite Yourcenar

You might also like