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MIGUEL MARTINS DE MENEZES

O TEMPLO DOS
HOMENS
(NARRATIVA)
Amritananda – Tinhas razão Babu, a vida é como uma árvore que cai durante uma tempestade fulminada por um raio
na margem de um rio ou como um pássaro que sai de uma árvore ao amanhecer, tudo o que me ensinaste ajudou-me
e ainda hoje tenho guardado comigo o segredo do mantra que me deste.

Babu – Nunca o revelaste?

Amritananda – Nunca pronunciei publicamente. Apenas em locais isolados na natureza ou mentalmente, “Manasika-
Mantra”.

Babu – (Sorrindo) - Já dominas o Prana?

Amritananda – Ajudaste-me imenso com os teus ensinamentos, foi contigo que atingi o oitavo estado de consciência.

Babu – Fico feliz por saber que sentes paz e harmonia. Fixaste-te em algum lugar?

Amritananda – Não, contínuo a minha peregrinação entre os locais sagrados. Quando o meu corpo deixar de me
obedecer então fixar-me-ei em algum lugar e abandoná-lo-ei.

Babu – Sim. Todos temos que abandona-lo, surge um momento que o sentimos e partimos como o pássaro e a árvore
que falaste.

Abhay escutava o diálogo sem entender o seu sentido real, sentia saudades de Janalih, da sua presença, de Karnal e
Garima, dos momentos no rio. Um pássaro caiu da árvore Gulmohar, Abhay levantou-se e pegou no pobre animal com
as mãos mostrando a Babu, estava morto, Amritananda abanou a cabeça descontente, dizendo que o governo
colocava DDT em todos os locais para evitar cheiros e infestações. Jipes com aspersores e enormes ventoinhas
passavam de noite espalhando o produto em todos os locais, os pássaros morriam contaminados. Babu ficou
escutando em silêncio, ficara sem palavras.

Conversavam sobre o programa para o dia seguinte, Amritanada queria revisitar o templo de Chandi Devi na colina
mais a sul dos Himalaias, no dia seguinte começaria o festival “Makara Samkranti”, o sol entraria em Capricórnio dando
início ao Khumba Mela.

A cidade estava cheia de Sadhus e Gurus vindos de toda a parte, o acampamento gigantesco estava dividido de
acordo com as filosofias e grupos, havia um relativo sectarismo em relação ao modo como as pessoas se agrupavam
naquele espaço enorme. Muitos eram os curiosos e estrangeiros que ali se deslocavam com as suas máquinas
fotográficas. Abhay viu um Sadhu de cabelos loiros e olhos azuis, parecia um Sahib pela cor da pele branca, seguiu-o
com o olhar e viu-o dirigir-se para uma zona do acampamento e desaparecer sem que conseguisse localizar para onde
se dirigia. Muitos estrangeiros adoptavam um guru e serviam-no afastando-se do materialismo ocidental e das suas
culturas originárias, dos seus bens pessoais, uns permaneciam toda a vida ligados à filosofia do seu mestre, outros
abandonavam e regressavam aos seus países de origem.

Abhay sentiu um cheiro estranho, alguns Sadhus fumavam Haxixe segurando com duas mãos os seus chilans de barro
no exterior de uma das tendas vizinhas, Amritananda e Babu perceberam o facto e começaram a comentar a postura
desses Sadhus sentindo alguma contrariedade.

Amritananda – Não compreendo Babu… uma tola são dez gramas de Hash, custam duzentas rupias, esses homens
consomem diariamente essa quantidade.

Babu – É o equivalente a uma semana de salário de um trabalhador qualificado, não revela uma atitude de ascetismo
perante a vida, mas existem outras questões que me fazem questionar essa postura.

Amritananda – A que te referes Baba?

Babu - Existem inúmeras questões, alem do seu consumo ser proibido pelo governo.
Amritananda – Sim, sou conhecedor desse facto, mas os Sadhus não se têm mostrado preocupados, os seus hábitos
de consumo são na generalidade tolerados pelas autoridades.Babu – Não me refiro apenas às questões legais, a
amplitude do problema ultrapassa as questões legais.
Amritanada – Compreendo, mas ao que te referes Babu?

Babu – Não devíamos comer carne, ovos, matar para sobreviver, fumar tabaco, ópio ou outras drogas. Quando o
fazemos quebramos todas as regras do ascetismo, deixamos de ser puros, tornamo-nos num mau exemplo para o
mundo que pretendemos melhorar, os discípulos imitam os nossos comportamentos, todo o discípulo segue
inquestionavelmente as pisadas do seu mestre.

Amritananda – Mas alguns argumentam que consomem para ter uma maior proximidade espiritual com o divino, pois
estas substâncias psicotrópicas abstraem da realidade.

Babu – Alguns argumentam que podem comer tudo e fumar, que vêm Brahama em tudo, podem ter a mesma
percepção da carne e dos legumes, da abstinência do fumo e de outras substâncias impuras como o tabaco ou
cannabis, mas será que podem ter a mesma visão do bem e do mal, da censura e do louvor, do calor e do frio, do
prazer e da dor, ou será que dispõem de duas percepções de valores opostas?

Amritananda - Uma simples palavra rugosa, a mais leve desconsideração, vai jogá-los fora de toda a harmonia da vida,
da concepção pura da existência.

Babu – Acertaste, aí reside o verdadeiro problema, além dos descaminhos das virtudes que os conduzem ao
verdadeiro conhecimento. Também me choca a obediência, submissão, a servidão excessiva utilizada por certos
mestres com os seus discípulos, tratando-os como escravos, ridicularizando-os, usufruindo dos seus bens materiais,
trata-se aqui de pura ética, como agir de forma justa perante os que nos olham como exemplos a seguir?

Amritananda – Sempre olhaste para a vida com fundamento, por essa razão sentes necessidade de vir aqui.

Babu – A única razão que me trás ao Khumba Mela é a minha percepção da condição humana. Aqui encontro o
caminho, os comportamentos das pessoas, as motivações de cada um. O nosso corpo é uma estrutura óssea com
ligamentos suportados pela carne e revestidos por uma pele, o nosso espírito habita esse corpo, que é o refúgio de
urina e fezes, excreta impurezas, e ingere tudo o que a nossa vontade e submissão permite. É nesse corpo imundo
que habitamos.

Outro pássaro caiu da árvore fulminado pelo veneno espalhado na noite anterior. Babu pediu a Abhay que os
enterrasse, abanou a cabeça e regressou à sua postura silenciosa. Amritananda exprimiu um esgar de desagrado e
levantou-se para ajudar o jovem. Voltou e sentou-se me frente a Babu que mostrava um rosto contrafeito pelo
acontecimento. Quebrou o silêncio e afirmou com uma voz poderosa:

Babu – Os seres humanos esqueceram tudo sobre religião em benefício da sua ignorância, pelo seu desejo de poder e
ambição desmedida, o homem embruteceu, perdeu todo o sentido de moralidade, tornou-se um selvagem. A religião
não é mais importante que Deus. Alguns pregam o Budismo mas não esquecem os seus desejos, outros o Cristianismo
mas não revelam amor nem capacidade de perdão, outros ainda pregam o Islão mas não reconhecem o homem como
uma irmandade, alguns falam no Hinduísmo mas sem o menor sentido do que é divino.

Amritananda escutava em silêncio, o velho mestre que concluía afirmando que os templos eram feitos pelo homem e
não por Deus. Nenhuma parede ou imagem aproxima-nos de Deus, o nosso templo é a vida, a família e a concepção
moral da nossa existência. A nossa santidade é revelada pelos comportamentos fora dos templos e não no seu interior.
Aí apenas colocamos máscaras que tombam do nosso rosto mal passamos as portas divinas que falsamente
construímos e caminhamos para o seu exterior supostamente purificados.

Um profundo sentimento de desgosto silenciou a vontade de diálogo quando o terceiro pássaro caiu da árvore
Gulmohar, a ira tomou conta de Babu cujos olhos outrora brancos agora irradiavam veios de sangue, murmurava
palavras inaudíveis e o seu rosto exprimia cólera, nunca Abhay o havia visto com expressões de exaltação em cada
prega da sua face. O seu descontentamento aumentou e pronunciou bem alto:
Babu – O mundo está moribundo, pérfido, não por falta de verdade, nem por causa de religiões, infelizmente é brutal
porque não existem verdadeiros seguidores de ideais e as religiões tornaram-se instrumentos de poder. Sem prática, o
idealismo cria o fatalismo no homem e o caminho da destruição, não existe amor sem entrega, por isso os pássaros
caiem dos céus ao sabor da iniquidade humana.

Amritanada – Já não queremos a proximidade de Deus, desejamos antes usurpar o seu poder igualarmos o poder da
criação divina.

O fim da tarde aproximava-se, os sons de música ecoavam por todo o lado, os últimos raios de sol passavam entre as
flores vermelho-coral agitadas pela brisa que afagava a majestosa árvore desabitada de vida. A chama da fogueira
sagrada ardia lambendo as memórias e o silêncio.

(In "O Templo Dos Homens")


Miguel Martins de Menezes

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