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Uma

Temporada
No
Inferno
Jean Nicholas Arthur Rimbaud

Tradução(montagem): Marcelo Pacheco de Souza


*****

Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim aberto a todos


corações, onde todos os vinhos corriam.

Um dia, sentei a beleza no meu colo. – E achei-a amarga. – E injuriei-a.

Armei-me contra a justiça.

Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é que meu tesouro confiei.

Cheguei a dissipar de meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda


a alegria, para estrangulá-la, dei o salto surdo do animal feroz.

Invoquei os carrascos para, agonizando, morde-lhes as coronhas dos


fuzis. Invoquei as calamidades para me sufocar na areia, no sangue. A
desgraça foi o meu deus. Estendi-me na lama. Pus-me a secar na aura do
crime. E andei pregando peças à loucura.

E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.

Mas, como estive recentemente a beira de soltar o meu último engasgo!


sonhei reencontrar a chave do antigo festim, onde eu pudesse, talvez,
recuperar o apetite.

A caridade é essa chave. – Essa inspiração é prova de que sonhei!

“Sempre hás de ser hiena, etc...” exclamou o demônio que me coroou de


tão gentis papoulas. “Ganha a morte com todos os teus apetites, e o teu
egoísmo e todos os pecados capitais.”

Ah! que os provei demais: – Todavia, caro satã, eu vos conjuro, um olhar
menos irritado! e enquanto esperas minhas pequenas covardias em atraso,
para vós que apreciais no escritor as ausências das faculdades descritivas ou
instrutivas, destaco estas hediondas páginas de meu caderno de maldito.

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SANGUE MAU

De meus antepassados gauleses herdei os olhos azuis claros, a mente


estreita e a falta de jeito na luta. Acho-me no vestir tão bárbaro quanto eles.
Mas não besunto os cabelos.

Os gauleses foram os esfoladores de animais, os queimadores de ervas


mais ineptos de seu tempo.

Herdo, deles: a idolatria e o amor ao sacrilégio; - oh! todos os vícios,


cólera, luxúria – magnífica a luxúria – sobretudo mentira e preguiça.

Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários, todos rústicos,


ignóbeis. A mão na pena vale a mão no arado. – Que século de mãos! – Jamais
darei as minhas. Mesmo porque o servilismo leva a muito longe. A honradez da
mendicância me exaspera. Os criminosos repugnam-me como os castrados:
quanto a mim, estou intacto, e isso tanto faz.

Mas! quem fez a minha língua de tal modo pérfida, capaz de conduzir e
proteger até aqui a minha indolência? Sem me servir para viver nem mesmo
de meu corpo, e mais ocioso que o sapo, andei por toda parte. Não há uma
família da Europa que eu não conheça. – Entendam famílias como a minha, que
devem tudo à Declaração dos Direitos do Homem. – Conheci cada filho de
família.

__________

Se eu tivesse antecedentes num ponto qualquer da história da França!

Mas não, nenhum.

Para mim é bem evidente que sempre fui de raça inferior. Não posso
compreender a revolta. Minha raça não se rebelou jamais, a não ser para
pilhar: como os lobos ao animal que não mataram.

Evoco a história da França, filha mais velha da igreja. Devo ter feito,
camponês, a viagem à terra santa; na memória guardo rotas das planícies
suábias, paisagens de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o culto de Maria, a
compaixão pelo crucificado despertam em mim entre mil encantamentos
profanos. – Vejo-me, leproso, sentado sobre os vasos quebrados e as urtigas,
ao pé de um muro roído pelo sol. Mais tarde, cavaleiro, teria bivacado sob as
noites da Alemanha.

Ah! tem mais: danço o sabá numa rubra clareira, entre velhas e crianças.

Não me lembro de nada anterior a esta terra e ao cristianismo. Nunca iria


acabar de me rever nesse passado. Mas sempre só; sem família; além do mais,
que língua falaria? Não me vejo nunca nos concílios de Cristo; nem nos
concílios dos senhores, - representantes do Cristo.

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Quem quer que eu fosse no século passado: só hoje que me reencontro.
Não mais vagabundos nem guerras vagas. A raça inferior se sobrepôs a tudo –
o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.

Oh! a ciência! tudo foi revisto. Para o corpo e a alma, – o viático, – tem-
se a medicina e a filosofia, – os remédios de boas mulheres e as canções
populares adequadas. E os divertimentos dos príncipes e os jogos por eles
proibidos! Geografia, cosmografia, mecânica, química!...

A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha! Por que não


haveria ele de girar?

É a visão dos números. Vamos em direção ao espírito. É mais que certo,


oracular, o que falo. Compreendo, e sendo incapaz de me explicar sem
palavras pagãs, preferiria calar-me.

__________

O sangue pagão retorna! O espírito está próximo, por que Cristo não me
ampara, dando a minha alma nobreza e liberdade? Mas qual! o Evangelho
passou! o Evangelho! o Evangelho!

Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior, por toda a eternidade.

Aqui estou, na praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite.


Minha jornada terminou: deixo a Europa. A brisa marinha queimará os meus
pulmões; os climas perdidos bronzearão a minha pele. Nadar, macerar ervas,
caçar, sobretudo fumar; beber licores fortes como metal derretido, – como
faziam esses caros ancestrais em volta das fogueiras.

Voltarei, com os membros de ferro, a pele queimada, o olhar selvagem:


pela minha máscara, me julgarão de raça forte. Terei ouro; serei ocioso e
brutal. As mulheres assistem a esses ferozes enfermos em seu regresso dos
países quentes. Estarei envolvido nas questões políticas. Salvo.

Por ora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor, é um sono bem
embriagado, sobre a areia.

__________

Mas não há partida. – Retornemos os caminhos daqui, carregado de meu


vício, o vício que deitou suas raízes de sofrimento no meu flanco, desde a
idade da razão – que sobe ao céu, me açoita, me derruba, me arrasta.

A última inocência e a última timidez. Está dito. Não expor ao mundo os


meus desgostos e as minhas traições.

Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.

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A quem me alugar? A que animal é preciso adorar? Que santa imagem
iremos atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? – Sobre
que sangue marchar? Melhor, se resguardar da justiça. – A vida dura, o
embrutecimento simples, – erguer, com o punho endurecido, a tampa de um
caixão, entrar nele, sufocar. Assim nada de velhice, nem de perigos: o terror
não é francês.

– Ah! sinto-me de tal modo desamparado que ofereço, a não importa que
divina imagem os meus anseios de perfeição.

Ó minha abnegação, ó minha caridade maravilhosa! mas aqui, neste


mundo!

De profundis Domine, idiota que sou!

__________

Ainda criança, admirava o setenciado intratável sobre quem se cerram


sempre as portas da prisão; visitava os albergues e as pensões que ele teria
santificado com a sua estadia; via com o seu pensamento o céu azul e o
trabalho florido da campanha; farejava sua fatalidade nas cidades. Ele tinha
mais força que um santo, mais bom senso que um viajante – e ele, somente
ele! por testemunha de sua glória e de sua razão.

Nas estradas, em noites de inverno, sem abrigo, sem roupas, sem


comida, uma voz me oprimia o coração gelado: “Fraqueza ou força: aqui está,
é a força, não sabes nem aonde vais nem porque vais; entra em toda parte,
responde a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses um cadáver.” Pela
manhã eu tinha um olhar tão vago e uma fisionomia tão morta, que as pessoas
com quem me encontrei talvez nem me tenham visto.

Nas cidades a lama me aparecia subitamente vermelha e negra, como


um espelho quando uma lâmpada circula num quarto vizinho, como um
tesouro na floresta! bom sinal, exclamava, e via um mar de chamas e fumaça
no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas a flamejar como um bilhão
de raios.

Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me estavam proibidas. Nem


mesmo um companheiro. Eu me via diante de uma multidão exasperada,
frente ao pelotão de fuzilamento, chorando a desgraça de eles não terem
podido me compreender, e perdoando! – Como Joana d’Arc! – “Padres,
professores, patrões, enganai-vos entregando-me à justiça. Jamais pertenci a
este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício; não
compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou um bruto; vós vos
enganais...”

Sim eu tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um animal, um negro.


Mas posso ser salvo. Falsos negros que sois vós, maníacos, perversos, avaros.
Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro; general, tu és negro;
imperador, velho comichão, tu és negro; bebeste um licor clandestino, da

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fábrica de Satã. – Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. Inválidos e
velhos são de tal modo respeitáveis que pedem para serem atirados em água
fervente. – O mais sábio é deixar este continente, onde a loucura ronda a
prover reféns a esses miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam.

Ainda conheço a natureza? Será que me conheço? – Chega de palavras.


Sepulto os mortos em meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança!
Não vejo nem mesmo a hora em que, os brancos desembarcando, cairei no
vazio.

Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança.

__________

Os brancos desembarcam. O canhão! É preciso submeter-se ao batismo,


vestir-se, trabalhar.

Recebo no coração o golpe da graça. Ah! não o tinha previsto!

Nunca pratiquei o mal. Os dias me serão leves, o arrependimento me


será poupado. Não padecerei os tormentos de uma alma quase morta para o
bem, por onde ascende a luz severa como os círios fúnebres. A sorte do filho
de família, esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Sem dúvida a
devassidão é estúpida, o vício é estúpido; é preciso jogar de lado a podridão.
Mas o relógio só deixará de tocar na hora da pura dor. Vou ser arrebatado
como uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças.

Dizei! Há outras vidas? – O sono entre riquezas é impossível. A riqueza


sempre foi um bem público. Só o amor divino outorga as chaves da ciência.
Vejo que a natureza não passa de um espetáculo de bondade. Adeus,
quimeras, ideais, erros!

O canto racional dos anjos se eleva da nave salvadora: é o amor divino. –


Dois amores! posso morrer do amor terrestre, morrer de devotamento. Deixei
almas cujo sofrimento se acrescerá com a minha partida. Vós me escolheis
entre os náufragos; mas os que ficam não são acaso meus amigos?

Salvai-os!

Nasceu-me a razão. O mundo é bom. Bendirei a vida. Amarei meus


irmãos. Não são mais meras promessas de infância. Nem a esperança de
escapar à velhice e à morte. Deus fez minha força e eu louvo Deus.

__________

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O tédio não é mais meu amor. Os furores, os deboches, as loucuras, dos
quais conheço todos os impulsos e desastres – todo o meu fardo foi arriado.
Apreciemos sem limites a extensão de minha inocência.

Não serei mais capaz de reclamar o reconforto de uma bastonada. Não


me creio a caminho de núpcias tendo Jesus Cristo como sogro.

Não sou prisioneiro de minha razão. Já disse: Deus. Quero a liberdade da


salvação: como obtê-la? Os prazeres frívolos já me abandonaram. Basta de
devotamento e de amor divino. Não lastimo o século dos corações sensíveis.
Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: mantenho o meu lugar no alto
dessa angélica escada de bom senso.

Quanto a felicidade convencional, doméstica ou não... não, não agüento.


Sou muito dissipado, muito fraco. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade:
mas eu, não acho a vida assim pesada, ela voa e flutua longe muito acima da
ação, esse precioso centro do mundo.

Que solteirona estou me tornando, perdendo a coragem de amar a


morte!

Se Deus me concedesse a calma celestial, etérea, a prece, – como os


santos de outrora. – Os santos! uns fortes! os anacoretas, artistas como não se
deve mais fazer!

Farsa contínua! Minha inocência me faria chorar. A vida é uma farsa que
todos devem representar.

__________

Basta! eis a punição. – Em marcha!

Ah! os pulmões queimam, as têmporas latejam! a noite rola nos meus


olhos, por este sol! o coração... os membros...

Aonde vamos? ao combate? Sou fraco! os outros avançam. Os


equipamentos, as armas... o tempo! ...

Fogo! fogo sobre mim! Lá! ou me entrego. – Covardes! – Eu me mato!


Atiro-me às patas dos cavalos!

Ah! ...

Eu me habituarei.

Seria a vida francesa, o caminho da honra!

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NOITE DO INFERNO

Tomei um bom gole de veneno. – Três vezes abençoado o conselho que


me deram! – Ardem –me as entranhas. A violência do veneno contrai-me os
membros, me deforma, me derruba. Morro de sede, sufoco, não consigo gritar.
É o inferno, a pena eterna. Veja como o fogo se aviva! Ardo de verdade. Vai,
demônio.

Eu havia vislumbrado a conversão ao bem e à felicidade, a salvação.


Poderei descrever a visão, o ar do inferno não suporta os hinos! Eram um
milhão de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a força e a
paz, as nobres ambições, e que mais?

As nobres ambições!

E é ainda a vida! – Se a danação é eterna! Um homem que deseja


mutilar-se é bem um danado, não é mesmo? Creio-me no inferno, então estou
nele. É a execução do catecismo. Sou escravo de meu batismo. Pais, fizestes a
minha desgraça, e também a vossa. Pobre inocente! – O inferno não pode
atacar os pagãos. – É a vida ainda! Mais tarde, serão mais profundas as delícias
da danação. Um crime, rápido, que posso cair no nada, conforme a lei
humana.

Mas cala-te, cala-te!... É a vergonha, a reprovação, aqui: Satã diz que o


fogo é ignóbil e que minha ira é terrivelmente estúpida. – Basta!... Erros a que
me induziram, magias, perfumes falsos, músicas pueris. – E dizer que possuo a
verdade, que vejo a justiça: tenho um julgamento são e firme, estou pronto
para a perfeição... Orgulho. Meu couro cabeludo se resseca! Piedade! Senhor
tenho sede, tanta sede! Ah! a infância, a relva, a chuva, o lago sobre as
pedras, o luar quando o sino toca meia-noite... O diabo é o sineiro, nessa hora.
Maria! Virgem Santa!... – Horror de minha estupidez.

Lá embaixo, não estão almas honestas que me querem bem?... Vinde...


Tenho um travesseiro sobre a boca, elas não me ouvem, são fantasmas. Além
do mais, ninguém pensa nunca nos outros. Que não se aproximem. Cheiro a
queimado, é certo.

As alucinações são inumeráveis. É exatamente o que sempre tive: falta


de fé na história, descaso pelos princípios. Nada mais direi: poetas e visionários
morreriam de inveja. Sou de longe o mais rico, sejamos avaros como o mar.

Esta, agora! o relógio da vida acabou de parar. Não estou mais no


mundo. – A teologia é uma coisa séria, o inferno está certamente embaixo – e o
céu no alto. – Êxtase, pesadelo, sono em um ninho de chamas.

Quanta malícia na atenciosidade do campo... Satã, Ferdinando, corre com


os grãos selvagens... Jesus caminha sobre as sarças púrpuras, sem curvá-las...
Jesus caminhava sobre as águas iradas. A lanterna o mostrava de pé, pálido,
com suas tranças castanhas no flanco de uma onda de esmeralda...

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Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais,
morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em
fantasmagorias.

Escutai!...

Tenho todos os talentos! – Não há ninguém aqui e há alguém: não


gostaria de repartir o meu tesouro. – Querem cantos negros, danças de huris?
Querem que eu desapareça, mergulhe em busca do anel? Querem? Farei ouro,
remédios.

Confiai pois em mim, a fé alivia, guia, cura. Vinde todos – mesmo as


criancinhas, – para que se console, para que se derrame por vós seu coração –
o coração maravilhoso! – Pobres homens, trabalhadores! Não peço orações;
com vossa confiança somente, eu já estaria feliz.

– E pensemos em mim. Isso me faz sentir pouca falta do mundo. Tenho a


sorte de não sofrer mais. Minha vida não passou de doces loucuras, o que é
lamentável.

Ora essa! façamos todas as caretas imagináveis.

Decididamente, nós estamos fora do mundo. Nem mais um som. Meu


tato desapareceu. Ah! meu castelo, minha Saxônia, meu bosque de salgueiros.
As tardes, as manhãs, as noites, os dias... Como estou cansado!

Eu devia merecer meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, – e
o inferno da carícia; um concerto de infernos.

Morro de cansaço. É o túmulo, vou-me aos vermes, horror dos horrores!


Satã, farsante, queres dissolver-me com os teus encantos! Protesto. Protesto!
um golpe de forcado, uma gota de fogo.

Ah! retornar à vida! Lançar os olhos sobre as nossas monstruosidades. E


este veneno, este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do
mundo! Meu Deus, piedade, ocultai-me, me encontro debilitado! – Estou
escondido e não o estou.

É o fogo que se ergue, com o seu danado.

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DELÍRIOS

VIRGEM LOUCA

O esposo infernal

Ouçamos a confissão de um companheiro de inferno:

“Ó divino Esposo, meu senhor, não recuseis a confissão da mais triste de


vossas servas. Sou uma perdida. Uma bêbada. Uma impura. Que vida!

“Perdão, divino Senhor, perdão! Ah! perdão. Quantas lágrimas! E quantas


ainda por chorar mais tarde, espero!

“Mais tarde conhecerei o divino esposo! Nasci submissa a Ele. – O outro


pode bater em mim agora!

“Atualmente, estou no fundo do mundo! Ó minhas amigas!... não, não


sois minhas amigas... Jamais delírios ou torturas semelhantes... Que estupidez!

Ah! sofro, choro. Sofro realmente. No entanto tudo me é permitido,


carregado pelo desprezo dos mais desprezíveis corações.

Enfim, façamos esta confidência, que posso repeti-la vinte vezes mais, –
tão morna, tão insignificante é ela.

“Sou escrava do Esposo infernal, que levou à perdição as virgens loucas.


É naturalmente um demônio. Não é um espectro nem um fantasma. Quanto a
mim, que perdi a sabedoria, e estou danada e morta para o mundo, – a mim
não matarão! – Como descrevê-lo para vós! Já não sei nem mesmo falar. Estou
de luto, tenho medo, tremo. Uma brisa ao menos, senhor, por favor, eu vos
suplico!

“Eu sou viúva... – Eu era viúva... – mas sim, eu já fui bem séria, outrora, e
não nasci para virar um esqueleto!... – Ele era quase uma criança... Suas
misteriosas delicadezas tinham-me seduzido. Larguei todos meus deveres
humanos para segui-lo. Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos
no mundo. Vou para onde ele vai, tenho que ir. E freqüentemente ele se volta
contra mim, a pobre alma. O Demônio! – É um demônio, sabeis, não é um
homem.

“Ele disse: ‘Não amo as mulheres. O amor precisa ser reinventado, bem
sabemos. Tudo o que elas podem querer é uma situação segura. Uma vez
obtida, coração e beleza são postos de lado. Nada mais resta senão um frio
desdém, que alimenta ,hoje em dia, o casamento. Ou vejo então mulheres,
com todos os signos da felicidade, com quem poderia fazer camaradagem, de
início devoradas por uns brutamontes tão sensíveis quanto as fogueiras...’

“Eu o escuto fazendo da infância uma glória, da crueldade um encanto.


‘Sou de uma raça longínqua: meus pais eram escandinavos: eles se

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trespassavam as costas, bebiam o próprio sangue. – Farei incisões por todo o
corpo, me tatuarei, quero tornar-me horrendo como um mongol: tu verás,
urrarei pelas ruas. Quero enlouquecer de raiva. Nunca me mostre jóias, eu me
arrastaria pelo chão e me contorceria sobre o tapete. Minha riqueza, eu a
queria toda manchada de sangue. Jamais trabalharei...’ Em muitas noites, seu
demônio agarrando-me, rolávamos juntos, eu lutava com ele! – Em outras,
bêbado, postava-se nas ruas ou nas casas, para assustar-me mortalmente. –
‘Cortarão realmente o meu pescoço, será repulsivo’. Oh! esses dias em que ele
quer andar com um ar criminoso!

“Às vezes ele fala, numa espécie de gíria suavizada, sobre a morte que
traz o arrependimento, sobre os infelizes que certamente existem, dos
trabalhos penosos, das partidas que estraçalham os corações. Nos antros em
que nos embebedávamos, ele chorava, considerando aqueles que nos
rodeavam, miserável rebanho. Levantava os bêbados das vielas escuras. Tinha
a piedade de uma mãe perversa demonstra pelos filhos. – E lá se ia com a
graça de uma menina que vai ao catecismo. – Fingia estar por dentro de tudo,
comércio, arte, medicina. – Eu o seguia, era fatal.

“Eu via todo o cenário de que ele, mentalmente, se cercava: roupas,


lençóis, móveis; emprestava-lhe armas, e uma outra imagem. Eu via tudo o
que lhe dizia respeito, da maneira como ele teria querido criar pra si próprio.
Quando ele me parecia estar abatido, eu o seguia, eu, nos seus atos estranhos
e complicados, longe, bons ou maus; estava certa de que jamais entraria em
seu mundo. Ao lado de seu querido corpo adormecido, quantas noites passei
acordada, a indagar por que ele ansiava tanto se evadir da realidade. Jamais
um homem teve semelhante desejo. Eu reconhecia – sem temer por ele – que
ele poderia representar um sério perigo para a sociedade. – Possui talvez
segredos para mudar a vida? Não, só vive a procurá-los, replicava comigo.
Enfim, sua caridade é enfeitiçada, e eu sou sua prisioneira. Nenhuma outra
alma teria força bastante – força de desespero! – para suportá-la, – para ser
protegida e amada por ele. Aliás, não conseguia imaginá-lo com outra alma,
podemos ver o nosso anjo, jamais o anjo dos outros – eu creio. Eu vivia em sua
alma como em um palácio que esvaziamos para não ver ali ninguém tão pouco
nobre como nós: eis tudo. Ai de mim! Eu dependia muito dele. Mas que queria
ele com a minha existência pálida e covarde? Não a tornaria melhor para mim,
a menos que me fizesse morrer! Tristemente despeitada, eu lhe dizia às vezes:
“Eu te compreendo”. Ele erguia os ombros.

“Assim, renovando sem cessar a minha aflição, e me encontrando cada


vez mais perdida ante meus olhos – bem como aos de todos que tenham
desejado me fixar, não fosse eu condenada ao esquecimento de todos! – eu
sentia mais e mais fome de sua bondade. Com seus beijos e abraços amigos,
era mesmo num céu, num céu sombrio, que eu entrava, e onde eu gostaria de
ser deixada, pobre, surda, muda, cega. Já estava me habituando a isso. Eu nos
via como a duas crianças inocentes, às quais se dera a permissão de passear
no Paraíso da tristeza. Nós nos entendíamos. Cheios de emoção,
trabalhávamos juntos. Mas, ao fim de uma penetrante carícia, ele dizia: ‘Como
te parecerá estranho, quando eu não mais estiver aqui, tudo por que passaste.
Quando não tiveres mais meu braço em torno de teu pescoço, nem meu peito
para nele repousares, nem esta boca sobre os teus olhos. Pois será preciso que
eu parta, para muito longe, um dia. É preciso que eu ajude os outros: é meu

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dever. Mesmo que isso não me seja nada agradável... alma querida...’ Eu me
antevia então, tendo ele partido, presa na vertigem, precipitada na sombra
mais terrível: a morte. Forçava-o prometer que jamais me deixaria. E ele me
fez vinte vezes, essa promessa de amante. Tão frívola quanto eu ao lhe dizer:
‘Eu te compreendo’.

“Ah! jamais senti ciúmes dele. Não creio que me abandone. Que faria
ele? Não tem conhecimentos, não trabalhará jamais. Quer viver como um
sonâmbulo. Sozinhas, sua bondade e sua caridade lhe dariam direitos no
mundo real? Por instantes, me esqueço da miséria em que caí: ele me tornará
forte, viajaremos juntos, caçaremos nos desertos, dormiremos nas calçadas de
cidades desconhecidas, sem preocupações, sem cuidados. Ou despertarei de
repente, e as leis e os costumes terão mudado – graças ao seu poder mágico –
o mundo, permanecendo o mesmo, me deixará entregue aos meus desejos,
alegrias, despreocupações. Oh! me dará a vida de aventuras que existe nos
livros infantis, para me recompensar de tudo o que sofri? Ele não pode. Ignoro
o seu ideal. Disse-me ter remorsos, esperanças: mas não deve referir-se a
mim. Será que fala com Deus? Talvez eu devesse me dirigir a Deus. Estou no
mais profundo do abismo, e não sei mais rezar.

“Se me explicasse suas tristezas, eu poderia compreendê-las melhor que


seus escárnios? Ele me provoca, passa o dia fazendo-me ter vergonha de tudo
o que me emociona neste mundo, e se irrita quando choro.

“ ‘– Estás vendo aquele elegante rapaz, entrando na bela e calma


residência: chama-se Duval, Dufour, Armand, Maurice, sei lá. Uma mulher
dedicou-se a amar esse perverso idiota: ela está morta, e certamente é uma
santa no céu, atualmente. Tu me fará morrer, como ele fez morrer aquela
mulher. É o nosso destino, o nosso, dos corações caridosos...’ Pobre de mim!
havia dias em que todas as pessoas em atividade lhe pareciam joguetes de
delírios grotescos; ele ria horrivelmente, por longo tempo. – Depois voltava às
suas atitudes de jovem mãe, de irmã amada. Se ele fosse menos selvagem,
nós estaríamos salvos! Mas a sua doçura também é mortal. Eu o sigo
submissa. – Ah! eu estou louca!

“Um dia talvez ele desapareça maravilhosamente; mas é preciso que eu


saiba, se ele deve subir a um céu, para que eu veja um pouco da assunção de
meu companheiro!”

Que estranho casal!

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DELÍRIOS

II

ALQUIMIA DO VERBO

A mim. A história de uma de minhas loucuras.

Há muito tempo que eu me vangloriava de possuir todas as paisagens


possíveis, e considerava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia
modernas.

Eu amava as pinturas idiotas, bandeiras de portas, cenários, telões de


saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; a literatura fora de moda, latim
de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances do tempo de nossos avós,
contos de fadas, livrinhos infantis, óperas velhas, refrões piegas, ritmos
ingênuos.

Eu sonhava com cruzadas, viagens de descoberta das quais não existem


relatos, repúblicas sem história, guerras religiosas reprimidas, revoluções de
costumes, deslocamento de raças e de continentes: eu acreditava em todos os
encantamentos.

Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, O azul, U


verde. – Regulei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos
instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético acessível, um dia ou
outro, a todos os sentidos. Eu me reservava a tradução.

A princípio era apenas um estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o


inexprimível. Fixava vertigens.

__________

Longe de pássaros, de rebanhos e aldeãs,


Numa clareira, o que estava eu a beber de
Joelhos, tendo em volta uns bosques de avelãs,
Na cerração de um meio-dia úmido e verde?

O que haveria eu de beber nesse Oise infante,


– Olmos sem voz, relva sem flores, céu nublado –
Nas cabaças amarelas, longe de minha casa,
Algum licor, que faz suar, dourado.

A torpe placa do albergue eu parecia.


Um temporal varreu o céu. À luz do luar,
Sobre a areia branca a água dos bosques se perdia
E os ventos de Deus, lançou flocos sobre o mar.

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Chorando eu via o ouro – e não pude beber. –

__________

Verão, às quatro da madrugada.


O sono do amor dura até agora.
Sobre os arvoredos se evapora
O odor da noite festejada.

Ao sol das Hespérides, canteiros


Imensos de obras se mobilizam,
Chegando – em mangas de camisa –
Os carpinteiros.

Em seus desertos de serragem,


Tranqüilos, atentos,
Fazem lambris em que a cidade
Há de ver falsos firmamentos.

Deves, Vênus, abandoná-los,


Os teus coroados amores,
Por esses bons trabalhadores,
De um rei da Babilônia, vassalos.

Dá-lhes, Rainha dos Pastores,


A aguardente que alivia;
Pra que tenham forças quando forem
Ao seu banho de mar ao meio-dia.

__________

As velharias poéticas entravam em boa parte de minha alquimia do


verbo.

Habituei-me à alucinação simples: via francamente uma mesquita no


lugar de uma fábrica, uma escolta de tambores feita por anjos, carruagem a
rodar pelas estradas do céu, um salão no fundo de um lago; os monstros, os
mistérios; um título de peça teatral despertava assombros em mim.

Depois expliquei meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras!

Acabei achando sagrada a desordem de meu espírito. Eu era um ocioso,


presa de opressiva febre: invejava a felicidade dos animais, – as lagartas, que
representam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono da virgindade!

Meu caráter tornava-se azedo. Eu dizia adeus ao mundo, em certos tipos


de romances:

CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA

Que venha, que venha,

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O tempo que se empenha.

Tamanha paciência
Não hei de esquecer.
Temores e dores
Aos céus fiz erguer
E a sede malsã
Obscurece minhas veias.

Que venha, que venha,


O tempo que se empenha.

Assim a campina
Entregue ao olvido,
Extensa e florida,
De incenso e de joios,
Ao feroz zunir
Das moscas imundas.

Que venha, que venha,


O tempo que se empenha.

Amei o deserto, os pomares abrasados, as lojas decadentes, as bebidas


tépidas. Eu me arrastava pelos becos fedorentos e, de olhos fechados, me
oferecia ao sol, deus de fogo.

“General, se resta um velho canhão nos seus baluartes em ruínas,


bombardeia-nos com blocos de terra seca. Às vitrines das esplêndidas lojas!
contra os salões! Obriga a cidade a comer sua própria poeira. Enferruja as
gárgulas. Enche os toucadores de ardente poeira dos rubis...”

Oh! a mosca embriagada no mictório do albergue, apaixonada pela


borragem, e dissolvida por um raio de sol!

FOME

Meu gosto agora se encerra


Em comer pedras e terra.
Todo dia como ar,
Rochas, carvão e ferro.

Voltai, minhas fomes. Pastai


No prado dos sons.
Atraí o alegre
Veneno das campânulas.

Comei os cascalhos que seja


As velhas pedras de igrejas;
Os seixos dos velhos dilúvios,
Pães semeados em vales turvos.

19
__________

Uiva o lobo nas folhagens


Cuspindo as belas plumagens
Das aves de seu repasto:
Como ele eu me desgasto.

As hortaliças, as frutas
Esperam só a colheita.
Mas a aranha que sobe a hera
Não come senão violetas.

Que eu durma! que eu ferva


Nos altares de Salomão.
Corre a fervura na ferrugem,
E se mistura ao Cedrão.

Enfim, ó ventura, ó razão, eu removi do céu o azul, que é negro, e vivi,


dourada centelha de luz natural. Por prazer, eu adotava a expressão mais
ridícula e desvairada possível:

Ela foi reencontrada!


Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Minha alma eterna,


Observa o teu voto
Seja a noite apenas
E o dia em fogo.

Que não te avantajes


A humanos sufrágios,
A impulsos comuns!
E voas segundo...

– Jamais esperança
E jamais orietur.
Ciência e paciência,
O suplício é certo.

Mais o amanhã,
Brasas de cetim,
Vossa paixão

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É obrigação.

Ela foi reencontrada!


– Quem? – A Eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

__________

Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todos os seres têm uma fatalidade
de felicidade: a ação não é a vida, mas uma forma de dissipar qualquer força,
um enervamento. A moral é a fraqueza do cérebro.

À cada ser, muitas outras vidas me pareciam devidas. Este senhor não
sabe o que faz: é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Diante vários
homens, durante um momento conversei em voz alta com uma de suas outras
vidas. Assim, amei um porco.

Nenhum dos sofismas da loucura, – daquela que leva ao hospício, – foi


esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho o sistema.

Minha saúde foi ameaçada. Veio-me o terror. Caí no sono por vários dias,
e, acordado, continuava com os mais tristes sonhos. Estava maduro para a
morte, e por um caminho de perigos minha fraqueza me levava aos confins do
mundo e da Ciméria, pátria da sombra e dos turbilhões.

Tive de viajar, distrair os encantamentos acumulados em meu cérebro.


Sobre o mar, que eu amava como se fosse me lavar de toda mácula, via
erguer-se a cruz consoladora. Eu tinha sido condenado pelo arco-íris. A
felicidade era minha fatalidade, meu remorso, meu verme: minha vida seria
sempre demasiadamente imensa para ser dedicada à força e à beleza.

A felicidade! Seu dente, doce até a morte, me advertia ao canto do galo,


– ad matutinum, ao Christus venit, – nas mais sombrias cidades:

Ó castelos, ó tempos!
Que alma é sem defeitos?

Eu fiz o mágico estudo


Da ventura, que não se ilude.

Saudemo-la, toda vez


Que cante o galo gaulês.

Ah! não terei mais desejos:


Eu lhe entreguei a minha vida.

O encanto tomou alma e corpo


E dispensou os esforços.

21
Ó castelos, ó tempos!

Quando se for, ai de mim!


Será a hora de meu fim.

Ó castelos, ó tempos!

__________

Isso já passou. Sei hoje saudar a beleza.

22
O IMPOSSÍVEL

Ah! Essa vida de minha infância, a grande estrada para todos os tempos,
sobrenaturalmente sóbrio, mais desinteressado que o melhor dos mendigos,
orgulhoso de não ter nem pátria nem amigos, que tolice era. – Só agora me
apercebo!

– Tive razão em desprezar esses bons homens que não perderiam a


oportunidade de uma carícia, parasitas do asseio e da saúde de nossas
mulheres, hoje que elas estão tão pouco de acordo conosco.

Tive razão em todos os meus desdéns: visto que me evado!

Eu me evado!

Eu me explico.

Ainda ontem, eu suspirava: “Céus! já somos tantos os danados aqui


embaixo! E eu, há muito tempo faço parte desse bando! Conheço-os todos. Nós
nos reconhecemos sempre; e nos detestamos. A caridade nos é desconhecida.
Mas somos polidos; nossas relações com o mundo são bastante
convencionais.” É espantoso? O mundo! os negociantes, os ingênuos! – Não
estamos desonrados – Mas os eleitos, como nos receberiam? Pois há pessoas
rabugentas e debochadas, os falsos eleitos, e nos falta audácia ou humildade
para abordá-los. São os únicos eleitos. Não são os que abençoam!

Tendo eu recobrado dois dedos de razão – isso passa depressa! – vejo


que minha inquietude decorre de não haver me dado conta mais cedo de que
estamos no Ocidente. Os pântanos ocidentais. Não que eu creia estar a luz
alterada, a forma extenuada, o movimento desviado... Bem! eis que meu
espírito quer se responsabilizar por todos os refinamentos que alcançou o
espírito desde o fim do Oriente... é o que quer, meu espírito!

... Meus dois dedos de razão acabaram! – O espírito é autoritário, ele


insiste que eu permaneça no Ocidente. Eu precisaria fazê-lo calar para concluir
como eu gostaria.

Eu mandaria ao diabo as palmas dos mártires, os raios da arte, o orgulho


dos inventores, o ardor dos saqueadores; para retornar ao oriente e à
sabedoria primeira e eterna. – Parece com um sonho de indolente grosseria.

Todavia, eu não sonhava com o prazer de escapar aos sofrimentos


modernos. Nem tinha em vista a sabedoria bastarda do Alcorão. – Mas não há
um sofrimento real no fato de que, depois da declaração da ciência, do
cristianismo, o homem deboche de si mesmo, se cubra de evidências, se encha
de prazer em repetir tais provas, e não viva senão assim? Tortura sutil, piegas;
fonte de minhas divagações espirituais. A natureza poderia aborrecer-se,
talvez! O espírito burguês nasceu com o Cristo.

Não é porque cultivamos a bruma! Ingerimos a febre com os legumes


aquosos. E a embriaguez! e o fumo! e a ignorância! e os devotamentos! – isso

23
tudo está muito distante do pensamento e da sabedoria do Oriente, a pátria
primitiva? Para que um mundo moderno, se tais venenos são inventados!

Os fiéis da Igreja dirão: assim entendemos. Mas quereis falar do Éden.


Nada te diz respeito na história dos povos orientais. – É verdade, é com o Éden
que eu sonhava. Que vale para o meu sonho essa pureza das raças antigas!

Os filósofos: O mundo não tem idade. A humanidade se desloca,


simplesmente. Estás no Ocidente, mas livre para habitar no teu Oriente, tão
antigo quanto o desejares, – e lá viver bem. Não sejais um vencido. Filósofos,
sois de vosso Ocidente.

Meu espírito, tome cuidado. Nada de meios de salvação violentos.


Exercita-te! Ah! a ciência não avança rápido o suficiente para nós.

– Mas me apercebo que meu espírito dorme.

Se ele estivesse sempre bem desperto a partir desse momento, nós logo
alcançaríamos a verdade, que talvez nos rodeie com seus anjos em prantos!...
– Se tivesse se mantido acordado até este momento, eu não teria cedido aos
instintos deletérios, à uma época imemorial!... – Se tivesse ficado bem
acordado, eu vogaria em plena sabedoria!...

Ó pureza! pureza!

Foi esse momento de vigília que me deu a visão da pureza! – Pelo


espírito se chega a Deus!

Dilacerante infortúnio!

24
O RELÂMPAGO

O trabalho humano! eis a explosão que ilumina o meu abismo de tempos


em tempos.

“Nada é vaidade; rumo à ciência, e avante!” clama o Eclesiastes


moderno, ou seja Todo mundo. E contudo os cadáveres dos maus e dos ociosos
caem sobre os corações dos outros... Ah! rápido, mais rápido; lá embaixo, além
da noite, essas recompensas futuras, eternas... irão escapar-nos.

– Que posso fazer? Conheço o trabalho; e a ciência é muito lenta. Que a


prece galopa e a luz atroa... eu o vejo bem. É muito simples; e faz muito calor,
passarão bem sem mim. Tenho o meu dever, dele me orgulharei como fazem
muitos, pondo-o de lado.

Minha vida está gasta. Vamos! finjamos, vadiemos, ó piedade! E


viveremos a nos divertir, a sonhar amores monstruosos e universos fantásticos,
queixando-nos e criticando as aparências do mundo, saltimbanco, mendigo,
artista, bandido, – padre! No meu leito de hospital, o odor do incenso retornou
poderosamente; guardião dos aromas sagrados, confessor, mártir...

Aí reconheço a minha infame educação de infância. Depois, o quê!...


Alcançar os vinte anos, se os outros também o fazem...

Não! Não! agora eu me revolto contra a morte! O trabalho parece muito


leve para o meu orgulho: minha traição ao mundo seria um suplício muito
curto. No derradeiro momento, eu atacaria à direita, à esquerda...

Então, – oh! – pobre alma querida, a eternidade estaria perdida para nós!

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MANHÃ

Não tive eu uma vez uma juventude amável, heróica, fabulosa, para ser
escrita em folhas de ouro, – quanta chance! Por que crime, por que erro,
mereci a fraqueza atual? Vós que achais que as bestas possam soluçar de dor,
que os doentes desesperam-se, que os mortos têm pesadelos, tratai de
descrever minha queda e meu sono. Quanto a mim, já não me explico melhor
do que um mendigo com seus contínuos padre-nossos e ave-marias. Não sei
mais falar!

Contudo, hoje eu creio haver terminado a narração de meu inferno. E era


mesmo o inferno; o antigo, aquele cujas portas, o filho do homem abriu.

No mesmo deserto, à mesma noite, os meus olhos cansados sempre


despertam à luz da estrela de prata, sempre, sem que se comovam os Reis da
vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das
praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, a sabedoria nova,
a fuga dos tiranos e dos demônios, o fim da superstição, adorar – os primeiros!
– O natal sobre a terra!

O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos não amaldiçoemos a


vida.

26
ADEUS

Já é outono! – Mas por que desejar um eterno sol, se estamos


empenhados na descoberta da claridade divina, – longe das pessoas que
morrem com as estações?

O outono. Nossa barca elevada sobre as brumas imóveis se volta para o


porto da miséria, a cidade enorme com o céu manchado de fogo e lama. Ah! os
farrapos apodrecidos, o pão encharcado de chuva, a embriaguez, os mil
amores que me crucificaram! Ela não deixará nunca de existir, essa vampira
que é rainha de milhões de almas e de cadáveres que serão julgados! Eu me
revejo com a pele roída pela lama e pela peste, cheios de vermes os cabelos e
as axilas, e ainda por cima um verme bem maior no coração, estendido entre
desconhecidos sem idade, sem sentimentos... Eu podia ter morrido lá... A
terrível evocação! Execro a miséria.

E temo o inverno porque é a estação do conforto!

– Algumas vezes vejo no céu praias infinitas cobertas de brancas nações


em júbilo. Um grande navio de ouro, acima de mim, agita suas bandeiras
multicores ao sabor das brisas da manhã. Criei todas as festas, todos os
triunfos , todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas
carnes, novas línguas. Acreditei ter adquirido poderes sobrenaturais. Pois bem!
devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma bela glória de
artista e de narrador destruída!

Eu! eu que me dizia mago ou anjo, isento de toda moral, sou devolvido
ao solo, com um dever a cumprir, e a áspera realidade à abraçar! Camponês!

Estarei enganado? A caridade seria irmã da morte, para mim?

Enfim, pedirei desculpas por ter me alimentado de mentiras. E vamos


em frente.

Mas nenhuma mão amiga! e onde encontrar o socorro?

__________

Sim, a hora nova é pelo menos muito severa.

Pois posso dizer que minha vitória foi alcançada: o ranger de dentes, os
silvos de fogo, os suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças
imundas se esvanecem. Meus últimos pesares se retiram, – inveja dos
mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, retardados de toda a
espécie. – Malditos, se eu me vingasse!

Devemos ser completamente modernos.

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Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! O sangue
ressequido fumega no meu rosto, e já não há nada atrás de mim, a não ser
este horrível arbusto!... O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha
entre os homens; mas a visão da justiça é um prazer só de Deus.

Contudo é a vigília. Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura


real. E à aurora, armados de uma ardente paciência, entraremos nas
esplêndidas cidades.

Que falei a respeito de mão amiga! Uma grande vantagem é que posso
rir dos velhos amores enganosos, e cobrir de vergonha esses casais
mentirosos, – vi o inferno das mulheres lá embaixo; – e me será permitido
possuir a verdade em uma alma e um corpo.

Abril-agosto, 1873.

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