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Inferno
Jean Nicholas Arthur Rimbaud
Ah! que os provei demais: – Todavia, caro satã, eu vos conjuro, um olhar
menos irritado! e enquanto esperas minhas pequenas covardias em atraso,
para vós que apreciais no escritor as ausências das faculdades descritivas ou
instrutivas, destaco estas hediondas páginas de meu caderno de maldito.
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SANGUE MAU
Mas! quem fez a minha língua de tal modo pérfida, capaz de conduzir e
proteger até aqui a minha indolência? Sem me servir para viver nem mesmo
de meu corpo, e mais ocioso que o sapo, andei por toda parte. Não há uma
família da Europa que eu não conheça. – Entendam famílias como a minha, que
devem tudo à Declaração dos Direitos do Homem. – Conheci cada filho de
família.
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Para mim é bem evidente que sempre fui de raça inferior. Não posso
compreender a revolta. Minha raça não se rebelou jamais, a não ser para
pilhar: como os lobos ao animal que não mataram.
Evoco a história da França, filha mais velha da igreja. Devo ter feito,
camponês, a viagem à terra santa; na memória guardo rotas das planícies
suábias, paisagens de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o culto de Maria, a
compaixão pelo crucificado despertam em mim entre mil encantamentos
profanos. – Vejo-me, leproso, sentado sobre os vasos quebrados e as urtigas,
ao pé de um muro roído pelo sol. Mais tarde, cavaleiro, teria bivacado sob as
noites da Alemanha.
Ah! tem mais: danço o sabá numa rubra clareira, entre velhas e crianças.
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Quem quer que eu fosse no século passado: só hoje que me reencontro.
Não mais vagabundos nem guerras vagas. A raça inferior se sobrepôs a tudo –
o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.
Oh! a ciência! tudo foi revisto. Para o corpo e a alma, – o viático, – tem-
se a medicina e a filosofia, – os remédios de boas mulheres e as canções
populares adequadas. E os divertimentos dos príncipes e os jogos por eles
proibidos! Geografia, cosmografia, mecânica, química!...
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O sangue pagão retorna! O espírito está próximo, por que Cristo não me
ampara, dando a minha alma nobreza e liberdade? Mas qual! o Evangelho
passou! o Evangelho! o Evangelho!
Por ora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor, é um sono bem
embriagado, sobre a areia.
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A quem me alugar? A que animal é preciso adorar? Que santa imagem
iremos atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? – Sobre
que sangue marchar? Melhor, se resguardar da justiça. – A vida dura, o
embrutecimento simples, – erguer, com o punho endurecido, a tampa de um
caixão, entrar nele, sufocar. Assim nada de velhice, nem de perigos: o terror
não é francês.
– Ah! sinto-me de tal modo desamparado que ofereço, a não importa que
divina imagem os meus anseios de perfeição.
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fábrica de Satã. – Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. Inválidos e
velhos são de tal modo respeitáveis que pedem para serem atirados em água
fervente. – O mais sábio é deixar este continente, onde a loucura ronda a
prover reféns a esses miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam.
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Salvai-os!
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O tédio não é mais meu amor. Os furores, os deboches, as loucuras, dos
quais conheço todos os impulsos e desastres – todo o meu fardo foi arriado.
Apreciemos sem limites a extensão de minha inocência.
Farsa contínua! Minha inocência me faria chorar. A vida é uma farsa que
todos devem representar.
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Ah! ...
Eu me habituarei.
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NOITE DO INFERNO
As nobres ambições!
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Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais,
morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em
fantasmagorias.
Escutai!...
Eu devia merecer meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, – e
o inferno da carícia; um concerto de infernos.
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DELÍRIOS
VIRGEM LOUCA
O esposo infernal
Enfim, façamos esta confidência, que posso repeti-la vinte vezes mais, –
tão morna, tão insignificante é ela.
“Eu sou viúva... – Eu era viúva... – mas sim, eu já fui bem séria, outrora, e
não nasci para virar um esqueleto!... – Ele era quase uma criança... Suas
misteriosas delicadezas tinham-me seduzido. Larguei todos meus deveres
humanos para segui-lo. Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos
no mundo. Vou para onde ele vai, tenho que ir. E freqüentemente ele se volta
contra mim, a pobre alma. O Demônio! – É um demônio, sabeis, não é um
homem.
“Ele disse: ‘Não amo as mulheres. O amor precisa ser reinventado, bem
sabemos. Tudo o que elas podem querer é uma situação segura. Uma vez
obtida, coração e beleza são postos de lado. Nada mais resta senão um frio
desdém, que alimenta ,hoje em dia, o casamento. Ou vejo então mulheres,
com todos os signos da felicidade, com quem poderia fazer camaradagem, de
início devoradas por uns brutamontes tão sensíveis quanto as fogueiras...’
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trespassavam as costas, bebiam o próprio sangue. – Farei incisões por todo o
corpo, me tatuarei, quero tornar-me horrendo como um mongol: tu verás,
urrarei pelas ruas. Quero enlouquecer de raiva. Nunca me mostre jóias, eu me
arrastaria pelo chão e me contorceria sobre o tapete. Minha riqueza, eu a
queria toda manchada de sangue. Jamais trabalharei...’ Em muitas noites, seu
demônio agarrando-me, rolávamos juntos, eu lutava com ele! – Em outras,
bêbado, postava-se nas ruas ou nas casas, para assustar-me mortalmente. –
‘Cortarão realmente o meu pescoço, será repulsivo’. Oh! esses dias em que ele
quer andar com um ar criminoso!
“Às vezes ele fala, numa espécie de gíria suavizada, sobre a morte que
traz o arrependimento, sobre os infelizes que certamente existem, dos
trabalhos penosos, das partidas que estraçalham os corações. Nos antros em
que nos embebedávamos, ele chorava, considerando aqueles que nos
rodeavam, miserável rebanho. Levantava os bêbados das vielas escuras. Tinha
a piedade de uma mãe perversa demonstra pelos filhos. – E lá se ia com a
graça de uma menina que vai ao catecismo. – Fingia estar por dentro de tudo,
comércio, arte, medicina. – Eu o seguia, era fatal.
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dever. Mesmo que isso não me seja nada agradável... alma querida...’ Eu me
antevia então, tendo ele partido, presa na vertigem, precipitada na sombra
mais terrível: a morte. Forçava-o prometer que jamais me deixaria. E ele me
fez vinte vezes, essa promessa de amante. Tão frívola quanto eu ao lhe dizer:
‘Eu te compreendo’.
“Ah! jamais senti ciúmes dele. Não creio que me abandone. Que faria
ele? Não tem conhecimentos, não trabalhará jamais. Quer viver como um
sonâmbulo. Sozinhas, sua bondade e sua caridade lhe dariam direitos no
mundo real? Por instantes, me esqueço da miséria em que caí: ele me tornará
forte, viajaremos juntos, caçaremos nos desertos, dormiremos nas calçadas de
cidades desconhecidas, sem preocupações, sem cuidados. Ou despertarei de
repente, e as leis e os costumes terão mudado – graças ao seu poder mágico –
o mundo, permanecendo o mesmo, me deixará entregue aos meus desejos,
alegrias, despreocupações. Oh! me dará a vida de aventuras que existe nos
livros infantis, para me recompensar de tudo o que sofri? Ele não pode. Ignoro
o seu ideal. Disse-me ter remorsos, esperanças: mas não deve referir-se a
mim. Será que fala com Deus? Talvez eu devesse me dirigir a Deus. Estou no
mais profundo do abismo, e não sei mais rezar.
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DELÍRIOS
II
ALQUIMIA DO VERBO
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Chorando eu via o ouro – e não pude beber. –
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O tempo que se empenha.
Tamanha paciência
Não hei de esquecer.
Temores e dores
Aos céus fiz erguer
E a sede malsã
Obscurece minhas veias.
Assim a campina
Entregue ao olvido,
Extensa e florida,
De incenso e de joios,
Ao feroz zunir
Das moscas imundas.
FOME
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As hortaliças, as frutas
Esperam só a colheita.
Mas a aranha que sobe a hera
Não come senão violetas.
– Jamais esperança
E jamais orietur.
Ciência e paciência,
O suplício é certo.
Mais o amanhã,
Brasas de cetim,
Vossa paixão
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É obrigação.
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Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todos os seres têm uma fatalidade
de felicidade: a ação não é a vida, mas uma forma de dissipar qualquer força,
um enervamento. A moral é a fraqueza do cérebro.
À cada ser, muitas outras vidas me pareciam devidas. Este senhor não
sabe o que faz: é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Diante vários
homens, durante um momento conversei em voz alta com uma de suas outras
vidas. Assim, amei um porco.
Minha saúde foi ameaçada. Veio-me o terror. Caí no sono por vários dias,
e, acordado, continuava com os mais tristes sonhos. Estava maduro para a
morte, e por um caminho de perigos minha fraqueza me levava aos confins do
mundo e da Ciméria, pátria da sombra e dos turbilhões.
Ó castelos, ó tempos!
Que alma é sem defeitos?
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Ó castelos, ó tempos!
Ó castelos, ó tempos!
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O IMPOSSÍVEL
Ah! Essa vida de minha infância, a grande estrada para todos os tempos,
sobrenaturalmente sóbrio, mais desinteressado que o melhor dos mendigos,
orgulhoso de não ter nem pátria nem amigos, que tolice era. – Só agora me
apercebo!
Eu me evado!
Eu me explico.
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tudo está muito distante do pensamento e da sabedoria do Oriente, a pátria
primitiva? Para que um mundo moderno, se tais venenos são inventados!
Se ele estivesse sempre bem desperto a partir desse momento, nós logo
alcançaríamos a verdade, que talvez nos rodeie com seus anjos em prantos!...
– Se tivesse se mantido acordado até este momento, eu não teria cedido aos
instintos deletérios, à uma época imemorial!... – Se tivesse ficado bem
acordado, eu vogaria em plena sabedoria!...
Ó pureza! pureza!
Dilacerante infortúnio!
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O RELÂMPAGO
Então, – oh! – pobre alma querida, a eternidade estaria perdida para nós!
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MANHÃ
Não tive eu uma vez uma juventude amável, heróica, fabulosa, para ser
escrita em folhas de ouro, – quanta chance! Por que crime, por que erro,
mereci a fraqueza atual? Vós que achais que as bestas possam soluçar de dor,
que os doentes desesperam-se, que os mortos têm pesadelos, tratai de
descrever minha queda e meu sono. Quanto a mim, já não me explico melhor
do que um mendigo com seus contínuos padre-nossos e ave-marias. Não sei
mais falar!
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ADEUS
Eu! eu que me dizia mago ou anjo, isento de toda moral, sou devolvido
ao solo, com um dever a cumprir, e a áspera realidade à abraçar! Camponês!
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Pois posso dizer que minha vitória foi alcançada: o ranger de dentes, os
silvos de fogo, os suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças
imundas se esvanecem. Meus últimos pesares se retiram, – inveja dos
mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, retardados de toda a
espécie. – Malditos, se eu me vingasse!
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Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! O sangue
ressequido fumega no meu rosto, e já não há nada atrás de mim, a não ser
este horrível arbusto!... O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha
entre os homens; mas a visão da justiça é um prazer só de Deus.
Que falei a respeito de mão amiga! Uma grande vantagem é que posso
rir dos velhos amores enganosos, e cobrir de vergonha esses casais
mentirosos, – vi o inferno das mulheres lá embaixo; – e me será permitido
possuir a verdade em uma alma e um corpo.
Abril-agosto, 1873.
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