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Direitos humanos, educação e interculturalidade

Direitos humanos, educação e interculturalidade:


as tensões entre igualdade e diferença*

Vera Maria Candau


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação

No mundo atual, a consciência de que estamos Neste contexto, extremamente vivo e plural de
vivendo mudanças profundas que ainda não somos discussão e busca, algumas questões podem ser iden-
capazes de compreender adequadamente é cada vez tificadas como ocupando uma posição central nos
mais aguda. Para muitos intelectuais e atores sociais, debates, sendo expressão de matrizes teóricas e polí-
não estamos simplesmente vivendo uma época de tico-sociais diferenciadas. Entre elas podemos citar a
mudanças significativas e aceleradas, e sim uma mu- problemática da igualdade e dos direitos humanos,
dança de época. Essa realidade provoca perplexidade em um mundo marcado por uma globalização neoli-
e suscita uma ampla produção científica e cultural, beral excludente, e as questões da diferença e do mul-
assim como um intenso e acalorado debate. Muitas ticulturalismo, em tempos de uma mundialização1 com
são as leituras da crise global de paradigma que esta- pretensões monoculturais.
mos atravessando. Cientistas políticos, sociólogos, Uma expressão dessa problemática pode ser evi-
economistas, filósofos, teólogos, psicólogos, informa- denciada pela natureza do recentemente publicado
tas, literatos, físicos, artistas, diferentes produtores Relatório do Desenvolvimento Humano 2004, do Pro-
intelectuais e culturais se dedicam a analisar essa pro- grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento
blemática.

*
Este texto é uma versão revisada da comunicação apresen- 1
Renato Ortiz (1994) distingue globalização de mundiali-
tada no painel sobre o tema “Direitos humanos numa perspectiva zação, concebendo a primeira como referida fundamentalmente à
multicultural e pluralista”, no Congresso Interamericano de Dire- economia, “à produção, distribuição e consumo de bens e de ser-
tos Humanos realizado em Brasília, em agosto de 2006, promovi- viços, organizados a partir de uma estratégia mundial e voltada
do pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Ministé- para um mercado mundial” (p. 16) e a segunda como um “fenô-
rio de Educação, com o apoio da Organização das Nações Unidas meno social total que permeia o conjunto das manifestações cul-
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). turais” (p. 30).

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(PNUD), intitulado Liberdade cultural num mundo Certamente todos estamos de acordo em afirmar que
diversificado, que associa explicitamente – pela pri- os direitos humanos são uma construção da moderni-
meira vez nos relatórios anuais publicados – as ques- dade e que estão profundamente impregnados com os
tões relativas ao desenvolvimento às culturais: processos, os valores, as afirmações que a moderni-
dade propôs/propõe, legou-nos e continua instigan-
O que é novo, hoje, é a ascensão de políticas de iden- do-nos a realizar. Vivemos imersos no seu clima polí-
tidade. Em contextos muito diferentes e de modos muito tico-ideológico e cultural. E, no entanto, para muitos
diversos – desde os povos indígenas da América Latina às autores essa construção está em crise no novo con-
minorias religiosas na Ásia do Sul e às minorias étnicas nos texto cultural, social e econômico, marcado pela glo-
Bálcãs e em África, até os imigrantes na Europa Ociden- balização, pelo impacto das novas tecnologias, pela
tal – as pessoas estão se mobilizando de novo em torno de construção de novas subjetividades e mentalidades,
velhas injustiças segundo linhas étnicas, religiosas, raciais por esse mundo complexo que muitos autores cha-
e culturais, exigindo que sua identidade seja reconhecida, mam – por mais ambíguo que este termo seja – pós-
apreciada e aceite pela sociedade mais ampla. Sofrendo de modernidade.
discriminação e marginalização em relação a oportunida- Um elemento que me parece fundamental na
des sociais, econômicas e políticas, também exigem justiça questão é essa tensão, presente hoje no debate públi-
social. (PNUD, 2004, p. 1) co e nas relações internacionais, entre igualdade e
diferença. De maneira um pouco simplificada, é pos-
Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas sível afirmar que toda a matriz da modernidade enfa-
para exigir respeito pela sua identidade cultural. Muitas tizou a questão da igualdade. A igualdade de todos os
vezes, o que exigem é justiça social e mais voz política. seres humanos, independentemente das origens ra-
Mas não é tudo. Também exigem reconhecimento e respei- ciais, da nacionalidade, das opções sexuais, enfim, a
to... E importam-se em saber se eles e os filhos viverão em igualdade é uma chave para entender toda a luta da
uma sociedade diversificada ou numa sociedade em que se modernidade pelos direitos humanos.
espera que todas as pessoas se conformem com uma única No entanto, parece que hoje o centro de interes-
cultura dominante. (p. 22) se se deslocou. Quando digo que houve um desloca-
mento, não estou querendo dizer que se nega a igual-
A relação entre questões relativas a justiça, re- dade, mas que se coloca muito mais em evidência o
distribuição, superação das desigualdades e democra- tema da diferença.
tização de oportunidades e as referidas ao reconheci- O professor Antonio Flavio Pierucci, no seu
mento de diferentes grupos culturais se faz cada vez instigante livro Ciladas das diferenças (1999), sinte-
mais estreita. Nesse sentido, a problemática dos di- tiza assim essa tensão:
reitos humanos, muitas vezes entendidos como direi-
tos exclusivamente individuais e fundamentalmente Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Quere-
civis e políticos, amplia-se e, cada vez mais, afirma- mos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo
se a importância dos direitos coletivos, culturais e que a resposta se abrigava segura de si no primeiro termo da
ambientais. disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta
Será que estamos vivendo hoje um deslocamen- se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, pas-
to de ênfase? Alguns autores talvez vão mais longe, samos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideoló-
chegando a afirmar que, nessa busca ou nessa crise gica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se, em
de paradigma que estamos vivendo na sociedade atual, ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os
também a questão dos direitos humanos fica de algu- humanos, somos diferentes de fato [...], mas somos também
ma forma em questão e precisa ser ressignificada. diferentes de direito. É o chamado “direito à diferença”, o

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direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente. internacionais assumidas são negados, desprezados
The right to be different!, como se diz em inglês, o direito à e “esquecidos”.
diferença. Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a que- Também no nosso país as violações se multipli-
remos menos, motiva-nos muito mais, em nossa conduta, em cam. No entanto, é necessário reconhecer, tem sido
nossas expectativas de futuro e projetos de vida comparti- feito um esforço sistemático orientado à defesa e pro-
lhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes teção dos direitos fundamentais, tanto pelo governo
uns dos outros. (Pierucci, 1999, p. 7) como por organizações da sociedade civil, pelo me-
nos nos últimos anos.
O autor parece colocar a questão em termos al- Outro elemento importante da problemática atual
ternativos: somos iguais ou somos diferentes? Sua tese dos direitos humanos diz respeito à relação entre in-
é a de que até recentemente nossas lutas tinham como divisibilidade e exigibilidade. A doutrina dos direitos
referência fundamental a afirmação da igualdade. O humanos que se desenvolveu principalmente a partir
direito à diferença não tinha ainda aparecido com a da Conferência de Viena (1993) colocou grande ên-
força que tem hoje. No entanto, atualmente a questão fase na idéia da indivisibilidade dos direitos das dife-
da diferença assume importância especial e transfor- rentes gerações – civis, políticos, econômicos, sociais
ma-se num direito, não só o direito dos diferentes a e culturais. No entanto, a exigibilidade desses direi-
serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença. tos, imprescindível para que a indivisibilidade não seja
Pessoalmente, inclino-me a defender que certamente meramente retórica, ainda é muito frágil, principal-
há uma mudança de ênfase e uma questão de articula- mente no que diz respeito aos direitos sociais, econô-
ção. Não se trata de afirmar um pólo e negar o outro, micos e culturais, o que provoca nos diferentes gru-
mas de articulá-los de tal modo que um nos remeta ao pos sociais descrédito e indiferença para com a
outro. proclamação de direitos que, como se afirma na lin-
Partindo dessa questão básica, que vai orientar guagem comum, “não saem do papel” ou somente
estas reflexões, considero fundamental que nos per- valem para algumas pessoas e classes sociais. Consi-
guntemos pela relevância dos direitos humanos no dero essa tensão entre indivisibilidade e exigibilida-
contexto que estamos vivendo. de muito importante no momento atual.
Um terceiro elemento da problemática, ao qual
Direitos humanos hoje: um discurso relevante? já nos referimos e que consideramos que ocupa lugar
central, é a tensão entre universal e particular. Desde
Assinalarei alguns aspectos que me parecem a Declaração Universal, os direitos humanos são apre-
importantes para a nossa reflexão. O primeiro diz res- sentados, como o próprio nome diz, como universais.
peito à ambivalência em relação à afirmação e, ao No entanto, a questão do universal e do particular, ou
mesmo tempo, à negação dos direitos. Por um lado, do universal e do relativo, suscitou uma discussão
tanto no plano internacional quanto no plano nacio- particularmente forte na Conferência de Viena. E, hoje
nal, existe um discurso reiterativo que afirma forte- em dia, vários grupos em diferentes países questio-
mente a importância dos direitos humanos. No en- nam a universalidade dos direitos tal como foi cons-
tanto, as violações multiplicam-se. No plano truída, considerando-a uma expressão do Ocidente e
internacional é possível identificar inclusive um re- da tradição européia. Partindo dessa perspectiva, é
trocesso grande, por exemplo, em relação a direitos possível reconhecer as diferenças culturais, os diver-
que pareciam profundamente assimilados pela huma- sos modos de situar-se diante da vida, dos valores, as
nidade, como o combate à tortura em qualquer cir- várias lógicas de produção de conhecimento etc.? É
cunstância. Direitos fundamentais que pareciam ple- possível construir uma articulação entre o universal e
namente assegurados na mentalidade e nas políticas o particular, o universal e o relativo?

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Diante dessa problemática, acredito, como o so- Nessa perspectiva, segundo o autor (Santos, 2006,
ciólogo Boaventura Sousa Santos, professor da Uni- p. 445-447), para que os direitos humanos possam
versidade de Coimbra, que é necessária uma ressig- verdadeiramente ser ressignificados hoje, numa pers-
nificação dos direitos humanos na contemporaneida- pectiva que não nega as suas raízes, não nega a sua
de. Sua tese é de que, história, mas quer trazê-los para a problemática de
hoje, eles terão que passar por um processo de
[...] enquanto forem concebidos como direitos humanos reconceitualização. Essa passagem supõe algumas
universais em abstrato, os Direitos Humanos tenderão a premissas que ele enumera da seguinte maneira:
operar como um localismo globalizado, e portanto como
uma forma de globalização hegemônica. Para poderem ope- 1. A superação do debate entre o universalismo e
rar como forma de cosmopolitismo insurgente, como glo- o relativismo cultural. O que se quer dizer com
balização contra-hegemônica, os Direitos Humanos têm de isso? Afirmar que todas as culturas ou grupos
ser reconceitualizados como interculturais. (Santos, 2006, culturais têm valores e idéias, elementos fun-
p. 441-442)2 damentais que aspiram a comunicar a outros e
universalizar, mas o universalismo é incorre-
Para Santos, a construção dos direitos humanos to, enquanto uma única cultura predomine e
foi feita dentro da perspectiva do “localismo globali- queira se impor a todos. No outro pólo está o
zado”. E essa era a matriz hegemônica própria da relativismo cultural, que afirma que todas as
modernidade, claramente presente no expansionismo culturas são relativas, nenhuma é absoluta,
europeu, portador da “civilização” e das “luzes”. É nenhuma é completa, mas é necessário propor
essa a óptica que tem predominado até hoje, com di- diálogos interculturais sobre preocupações
ferentes versões. convergentes, ainda que expressas a partir de
No entanto, o que ele chama de cosmopolitismo diversos universos culturais. Somente assim
insurgente e subalterno é um dos processos que ca- seremos capazes de construir algo juntos, um
racterizam a globalização que nasce de baixo para projeto comum. É necessário negar tanto o
cima. Essa globalização surge dos grupos locais, das universalismo quanto o relativismo absolutos.
organizações da sociedade civil, dos temas que nas- 2. Todas as culturas possuem concepções da dig-
cem verdadeiramente das inquietudes dos diferentes nidade humana. Nem todos os grupos cultu-
atores sociais. rais conhecem ou usam a expressão direitos
humanos, mas isso não quer dizer que não te-
nham uma idéia de dignidade humana, de vida
2
O autor distingue quatro formas de globalização: localismo digna, de querer uma vida melhor para os seus
globalizado – processo pelo qual determinada realidade local é habitantes ou para seus integrantes. Temos de
globalizada com sucesso; globalismo globalizado – impacto nas ter sensibilidade para descobrir em cada uni-
condições locais das práticas transnacionais; cosmopolitismo in- verso sociocultural essa idéia de dignidade hu-
surgente e subalterno – resistência organizada transnacionalmente mana que traduzimos como direitos humanos.
contra os localismos globalizados e os globalismos localizados; 3. Todas as culturas são incompletas e problemá-
e o patrimônio comum da humanidade – emergência das lutas ticas nas suas concepções de dignidade huma-
transnacionais por valores ou recursos que são tão globais como na. Afirmar que nenhuma cultura é completa,
o próprio planeta. Ele caracteriza as duas primeiras como globa- que nenhuma dá conta de toda a riqueza do
lização hegemônica, de cima para baixo; as duas últimas, como humano, leva-nos a, muito mais do que traba-
globalização contra-hegemônica ou a partir de baixo (Santos, lhar com a idéia de uma cultura verdadeira e
2006, p. 417-421). única, que tem de ser universalizada, desen-

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volver a sensibilidade para com a idéia da entre superar toda a desigualdade e, ao mesmo tem-
incompletude de todas as culturas e, portanto, po, reconhecer as diferenças culturais, que os desa-
da necessidade da interação entre elas. Nenhu- fios dessa articulação se colocam. Essa perspectiva
ma cultura dá conta do humano. “Aumentar a supõe discutir as diferentes concepções do multicul-
consciência de incompletude cultural é uma turalismo presentes nas sociedades contemporâneas.
das tarefas prévias à construção de uma con-
cepção emancipadora e multicultural dos di- As diferentes abordagens
reitos humanos” (Santos, 2006, p. 446). do multiculturalismo
4. Nenhuma cultura é monolítica. Todas as cul-
turas comportam versões diferentes da digni- A problemática do multiculturalismo suscita
dade humana, algumas mais amplas do que grande polêmica no momento atual. Defensores e crí-
outras, algumas mais abertas a outras cultu- ticos confrontam suas posições apaixonadamente.
ras do que outras. Os grupos culturais não são Uma das características fundamentais das ques-
homogêneos e padronizados. Algumas ver- tões multiculturais é exatamente o fato de estarem
sões dessa cultura podem ser rígidas, estrei- atravessadas pelo acadêmico e o social, a produção
tas e fechadas. É necessário identificar e po- de conhecimentos, a militância e as políticas públi-
tencializar aquelas versões mais abertas, cas. Convém ter sempre presente que o multicultura-
amplas e que apresentam um círculo de reci- lismo não nasceu nas universidades e no âmbito aca-
procidade mais amplo, que favoreçam o diá- dêmico em geral. São as lutas dos grupos sociais
logo com outras culturas. discriminados e excluídos de uma cidadania plena,
5. Todas as culturas tendem a distribuir as pessoas os movimentos sociais, especialmente os relaciona-
e os grupos sociais entre dois princípios com- dos às questões étnicas e, entre eles, de modo parti-
petitivos de pertença hierárquica: princípio da cularmente significativo, os relacionados às identi-
igualdade e princípio da diferença. Esta última dades negras, que constituem o locus de produção do
premissa situa-nos no âmago da questão da multiculturalismo. Sua penetração na academia deu-
ressignificação dos direitos humanos hoje. se num segundo momento e, até hoje, atrevo-me a
afirmar, sua integração no mundo universitário é frá-
Todas essas premissas estão voltadas para essa gil e objeto de muitas discussões, talvez exatamente
grande questão da articulação entre igualdade e dife- por seu caráter profundamente marcado pela intrín-
rença, isto é, da passagem da afirmação da igualdade seca relação com a dinâmica dos movimentos sociais.
ou da diferença para a da igualdade na diferença. Não Outra dificuldade para penetrar na problemática
se trata de, para afirmar a igualdade, negar diferença, do multiculturalismo se refere à polissemia do termo.
nem de uma visão diferencialista absoluta, que A necessidade de adjetivá-lo evidencia essa realidade.
relativize a igualdade. A questão está em como traba- Expressões como multiculturalismo conservador, libe-
lhar a igualdade na diferença, e aí é importante men- ral, celebratório, crítico, emancipador, revolucioná-
cionar o que Santos (2006) chama de o novo impera- rio podem ser encontradas na produção sobre o tema e
tivo transcultural, que no seu entender deve presidir multiplicam-se continuamente. Certamente são inúme-
uma articulação pós-moderna e multicultural das po- ras e diversificadas as concepções e vertentes multicul-
líticas de igualdade e diferença: “temos o direito a ser turais. Muitos autores, tanto de perspectiva liberal quan-
iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos to de inspiração marxista, 3 que levantam fortes
o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos
descaracteriza” (idem, p. 462). 3
Duas excelentes sínteses dessas críticas podem ser encon-
É nessa dialética entre igualdade e diferença, tradas em: Santos e Nunes (2003) e em Torres (2001b).

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questionamentos teóricos e em relação ao seu papel no sentido descritivo. Nessa sociedade multicultural
na sociedade, não levam devidamente esse fato em todos não têm as mesmas oportunidades; não existe
consideração ou, quando o fazem, referem-se a as- igualdade de oportunidades. Há grupos, como os in-
pectos mais superficiais, sem distinguir com maior dígenas, negros, homossexuais, pessoas oriundas de
profundidade as diferentes posições, ou fazem gran- determinadas regiões geográficas do próprio país ou
des generalizações. de outros países e de classes populares e/ou com bai-
Nesse sentido, considero imprescindível para xos níveis de escolarização, que não têm o mesmo
avançar na reflexão que estou fazendo explicitar a acesso a determinados serviços, bens, direitos funda-
concepção que privilegio ao tratar as questões susci- mentais que têm outros grupos sociais, em geral, de
tadas hoje pelo multiculturalismo. classe média ou alta, brancos e com altos níveis de
Considero que um primeiro passo nessa direção escolarização. Uma política assimilacionista – pers-
é distinguir duas abordagens fundamentais: uma des- pectiva prescritiva – favorece que todos se integrem
critiva e outra prescritiva. A primeira afirma ser o na sociedade e sejam incorporados à cultura hegemô-
multiculturalismo uma característica das sociedades nica. No entanto, não se mexe na matriz da socieda-
atuais. Vivemos em sociedades multiculturais. Pode- de, procura-se assimilar os grupos marginalizados e
mos afirmar que as configurações multiculturais de- discriminados aos valores, mentalidades, conhecimen-
pendem de cada contexto histórico, político e sociocul- tos socialmente valorizados pela cultura hegemôni-
tural. O multiculturalismo na sociedade brasileira é ca. No caso da educação, promove-se uma política de
diferente daquele das sociedades européias ou da so- universalização da escolarização, todos são chama-
ciedade estadunidense. Nesse sentido, enfatizam-se a dos a participar do sistema escolar, mas sem que se
descrição e a compreensão da construção da forma- coloque em questão o caráter monocultural presente
ção multicultural de cada contexto específico. A pers- na sua dinâmica, tanto no que se refere aos conteúdos
pectiva prescritiva entende o multiculturalismo não do currículo quanto às relações entre os diferentes
simplesmente como um dado da realidade mas como atores, às estratégias utilizadas nas salas de aula, aos
uma maneira de atuar, de intervir, de transformar a valores privilegiados etc. Simplesmente os que não
dinâmica social. Trata-se de um projeto, de um modo tinham acesso a esses bens e a essas instituições são
de trabalhar as relações culturais numa determinada incluídos nelas tal como elas são. Essa posição de-
sociedade e de conceber políticas públicas nessa di- fende o projeto de construir uma cultura comum e,
reção. Uma sociedade multicultural constrói-se a partir em nome dele, deslegitima dialetos, saberes, línguas,
de determinados parâmetros. crenças, valores “diferentes”, pertencentes aos gru-
Dessa forma, é necessário distinguir as diferentes pos subordinados, considerados inferiores explícita
concepções que podem inspirar essa construção. Mui- ou implicitamente. Segundo McLaren, “um pré-re-
tos têm sido os autores que têm oferecido indicações quisito para juntar-se à turma é desnudar-se,
nessa linha e enumerado uma grande quantidade de desracializar-se, e despir-se de sua própria cultura”
tipos de abordagens multiculturais. No contexto do pre- (1997, p. 115).
sente trabalho, vou-me referir unicamente a três pers- Uma segunda concepção pode ser denominada
pectivas que considero fundamentais e que estão na multiculturalismo diferencialista ou, segundo Amartya
base das diversas propostas: o multiculturalismo Sen (2006), monocultura plural. Essa abordagem parte
assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou da afirmação de que, quando se enfatiza a assimila-
monoculturalismo plural e o multiculturalismo ção, se termina por negar a diferença ou por silenciá-
interativo, também denominado interculturalidade. la. Propõe então colocar a ênfase no reconhecimento
A abordagem assimilacionista parte da afirma- da diferença e, para garantir a expressão das diferen-
ção de que vivemos numa sociedade multicultural, tes identidades culturais presentes num determinado

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contexto, garantir espaços em que estas se possam Uma terceira característica está constituída pela
expressar. Afirma-se que somente assim os diferen- afirmação de que nas sociedades em que vivemos os
tes grupos socioculturais poderão manter suas matri- processos de hibridização cultural são intensos e
zes culturais de base. Algumas das posições nessa li- mobilizadores da construção de identidades abertas,
nha terminam por ter uma visão estática e essencialista em construção permanente, o que supõe que as cultu-
da formação das identidades culturais. É então enfa- ras não são puras. Sempre que a humanidade preten-
tizado o acesso a direitos sociais e econômicos e, ao deu promover a pureza cultural e étnica, as conse-
mesmo tempo, é privilegiada a formação de comuni- qüências foram trágicas: genocídio, holocausto,
dades culturais homogêneas com suas próprias orga- eliminação e negação do outro. A hibridização cultu-
nizações – bairros, escolas, igrejas, clubes, associa- ral é um elemento importante para levar em conside-
ções etc. Na prática, em muitas sociedades atuais ração na dinâmica dos diferentes grupos sociocultu-
terminou-se por favorecer a criação de verdadeiros rais.
apartheids socioculturais. A consciência dos mecanismos de poder que
Essas duas posições são as mais desenvolvidas permeiam as relações culturais constitui outra carac-
nas sociedades em que vivemos. Algumas vezes con- terística dessa perspectiva. As relações culturais não
vivem de maneira tensa e conflitiva. São elas que, em são relações idílicas, não são relações românticas;
geral, são focalizadas nas polêmicas sobre a proble- estão construídas na história e, portanto, estão atra-
mática multicultural. No entanto, situo-me na tercei- vessadas por questões de poder, por relações forte-
ra perspectiva, que propõe um multiculturalismo aber- mente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito e
to e interativo, que acentua a interculturalidade, por pela discriminação de determinados grupos.
considerá-la a mais adequada para a construção de Uma última característica que gostaria de assi-
sociedades, democráticas e inclusivas, que articulem nalar diz respeito ao fato de não desvincular as ques-
políticas de igualdade com políticas de identidade. tões da diferença e da desigualdade presentes hoje de
modo particularmente conflitivo, tanto no plano mun-
A perspectiva intercultural dial quanto em cada sociedade. A perspectiva intercul-
tural afirma essa relação, que é complexa e admite
Algumas características especificam essa pers- diferentes configurações em cada realidade, sem re-
pectiva. Uma primeira, que considero básica, é a pro- duzir um pólo ao outro.
moção deliberada da inter-relação entre diferentes A abordagem intercultural que assumo aproxi-
grupos culturais presentes em uma determinada so- ma-se do multiculturalismo crítico de McLaren
ciedade. Nesse sentido, essa posição situa-se em con- (1997). O multiculturalismo crítico e de resistência
fronto com todas as visões diferencialistas que favo- parte da afirmação de que o multiculturalismo tem de
recem processos radicais de afirmação de identidades ser situado a partir de uma agenda política de trans-
culturais específicas, assim como com as perspecti- formação, sem a qual corre o risco de se reduzir a
vas assimilacionistas que não valorizam a explicita- outra forma de acomodação à ordem social vigente.
ção da riqueza das diferenças culturais. Entende as representações de raça, gênero e classe
Em contrapartida, rompe com uma visão essen- como produto das lutas sociais sobre signos e signifi-
cialista das culturas e das identidades culturais. Con- cações. Privilegia a transformação das relações so-
cebe as culturas em contínuo processo de elaboração, ciais, culturais e institucionais em que os significa-
de construção e reconstrução. Certamente cada cul- dos são gerados. Recusa-se a ver a cultura como
tura tem suas raízes, mas essas raízes são históricas e não-conflitiva e argumenta que a diferença deve ser
dinâmicas. Não fixam as pessoas em determinado afirmada “dentro de uma política de crítica e com-
padrão cultural. promisso com a justiça social” (p. 123).

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A perspectiva intercultural que defendo quer pro- vem desenvolvendo trabalhos interessantes e inova-
mover uma educação para o reconhecimento do “ou- dores sobre a questão intercultural hoje na América
tro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais Latina, especialmente a partir da experiência dos paí-
e culturais. Uma educação para a negociação cultu- ses andinos. Afirma que:
ral, que enfrenta os conflitos provocados pela
assimetria de poder entre os diferentes grupos so- O conceito de interculturalidade é central à (re)cons-
cioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favo- trução de um pensamento crítico – outro – um pensamento
recer a construção de um projeto comum, pelo qual crítico de/desde outro modo, precisamente por três razões
as diferenças sejam dialeticamente integradas. A pers- principais: primeiro porque está vivido e pensado desde a
pectiva intercultural está orientada à construção de experiência vivida da colonialidade [...]; segundo, porque
uma sociedade democrática, plural, humana, que ar- reflete um pensamento não baseado nos legados eurocên-
ticule políticas de igualdade com políticas de identi- tricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua
dade. origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica domi-
Para Catherine Walsh (2001, p. 10-11), a inter- nante do conhecimento que tem tido seu centro no norte
culturalidade é global. (Walsh, 2005, p. 25)

[...] um processo dinâmico e permanente de relação, Considero importante neste momento retomar o
comunicação e aprendizagem entre culturas em condições diálogo com Boaventura Sousa Santos. Para esse au-
de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. tor, as premissas anteriormente enumeradas constituem
Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, co- a base de um diálogo intercultural, imprescindível para
nhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, a ressignificação dos direitos humanos a partir das ques-
buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua tões colocadas pelo multiculturalismo. Esse diálogo vai
diferença. exigir o desenvolvimento do que ele denomina uma
Um espaço de negociação e de tradução onde as desi- hermenêutica diatópica, assim concebida:
gualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e
os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocul- A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que
tos e sim reconhecidos e confrontados. os topoi4 de uma dada cultura, por mais fortes que sejam,
Uma tarefa social e política que interpela o conjunto são tão incompletos quanto a própria cultura a que perten-
da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concre- cem [...]. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, po-
tas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e rém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas,
solidariedade. pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de
Uma meta a alcançar. incompletude mútua através de um diálogo que se desenro-
la, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra.
Para essa autora, apesar de vários países latino- Nisto reside seu caráter diatópico. (Santos, 2006, p. 448)
americanos terem introduzido a perspectiva intercul-
tural nas reformas educativas, “não há um entendimento A luta pelos direitos humanos hoje supõe o exer-
comum sobre as implicações pedagógicas da intercul- cício do diálogo intercultural que, por sua vez, exige
turalidade, nem até que ponto nelas se articulam as di-
mensões cognitiva, procedimental e atitudinal; ou o
próprio, o dos outros e o social” (p. 12). 4
Para Santos (2006, p. 447) “os topoi são os lugares comuns
Essa autora, coordenadora do programa de dou- retóricos mas abrangentes de determinada cultura. Funcionam como
torado em Estudos Culturais Latino-Americanos da premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua
Universidad Andina Simon Bolivar (sede Equador), evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos”.

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Direitos humanos, educação e interculturalidade

o exercício da hermenêutica diatópica. Esta constitui turais é um elemento fundamental sem o qual é im-
uma tarefa complexa e desafiante, que está dando possível caminhar. Outro aspecto imprescindível é
apenas seus primeiros passos. São poucos os autores questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo
e as iniciativas que se colocam nessa perspectiva. A que, explícita ou implicitamente, estão presentes na
análise da problemática dos direitos humanos e as escola e nas políticas educativas e impregnam os cur-
práticas sociais orientadas a trabalhá-las ainda estão rículos escolares; é perguntar-nos pelos critérios uti-
aprisionadas na matriz da modernidade. Além disso, lizados para selecionar e justificar os conteúdos es-
as concepções dominantes sobre o diálogo intercul- colares, é desestabilizar a pretensa “universalidade”
tural situam-se, em geral, numa perspectiva liberal e dos conhecimentos, valores e práticas que configu-
focalizam com freqüência as interações entre diferen- ram as ações educativas.
tes grupos socioculturais de modo superficial, sem Um segundo núcleo de preocupações relaciona-
enfrentar a temática das relações de poder que as per- se à articulação entre igualdade e diferença no nível
passam. das políticas educativas, assim como das práticas pe-
dagógicas. Essa preocupação supõe o reconhecimen-
Interculturalidade e educação em direitos to e a valorização das diferenças culturais, dos diver-
humanos: principais desafios sos saberes e práticas e a afirmação de sua relação
com o direito à educação de todos/as. Reconstruir o
Em diferentes trabalhos e pesquisas realizados que consideramos “‘comum” a todos e todas, garan-
nos últimos anos (Candau, 1997a, 1997b, 2000a, tindo que nele os diferentes sujeitos socioculturais se
2000b, 2002, 2003, 2004a, 2004b, 2005, 2006; Candau reconheçam, assegurando, assim, que a igualdade se
& Moreira, 2003), tenho procurado identificar e enu- explicite nas diferenças que são assumidas como re-
merar alguns dos desafios que temos de enfrentar se ferência comum, rompendo, dessa forma, com o ca-
quisermos promover uma educação intercultural em ráter monocultural da cultura escolar.
perspectiva crítica e emancipatória, que respeite e Quanto ao terceiro núcleo, ele vincula-se ao res-
promova os direitos humanos e articule questões re- gate dos processos de construção das identidades cul-
lativas à igualdade e à diferença. Eles apresentam um turais, tanto no nível pessoal como coletivo. Um ele-
caráter inicial e exploratório e querem situar-se em mento fundamental nessa perspectiva são as histórias
diálogo com a proposta do professor Boaventura de vida e da construção de diferentes comunidades
Sousa Santos. socioculturais. É muito importante esse resgate das
Foram agrupados em torno de determinados nú- histórias de vida, tanto pessoais quanto coletivas, e
cleos que considero fundamentais. que elas possam ser contadas, narradas, reconheci-
O primeiro está relacionado à necessidade de das, valorizadas como parte de processo educacional.
desconstrução. Para a promoção de uma educação Além disso, deve ser dada especial atenção aos as-
intercultural é necessário penetrar no universo de pre- pectos relativos à hibridização cultural e à constitui-
conceitos e discriminações que impregna – muitas ção de novas identidades culturais. É importante que
vezes com caráter difuso, fluido e sutil – todas as re- se opere com um conceito dinâmico e histórico de
lações sociais que configuram os contextos em que cultura, capaz de integrar as raízes históricas e as no-
vivemos. A “naturalização” é um componente que faz vas configurações, evitando uma visão das culturas
em grande parte invisível e especialmente complexa como universos fechados e em busca do “puro”, do
essa problemática. Promover processos de desnatu- “autêntico” e do “genuíno”, como uma essência prees-
ralização e explicitação da rede de estereótipos e pré- tabelecida e um dado que não está em contínuo movi-
conceitos que povoam nossos imaginários individuais mento. Esse aspecto relaciona-se também ao reconhe-
e sociais em relação aos diferentes grupos sociocul- cimento e à promoção do diálogo entre os diferentes

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Vera Maria Candau

saberes, conhecimentos e práticas dos diferentes gru- situam num enfoque amplo, desenvolvem estratégias
pos culturais. de fortalecimento do poder de grupos marginalizados
Um último núcleo tem como eixo fundamental para que estes possam lutar pela igualdade de condi-
promover experiências de interação sistemática com ções de vida em sociedades marcadas por mecanis-
os “outros”: para sermos capazes de relativizar nossa mos estruturais de desigualdade e discriminação. Têm
própria maneira de situar-nos diante do mundo e atri- no horizonte promover transformações sociais. Nes-
buir-lhe sentido, é necessário que experimentemos se sentido, são necessárias para que se corrijam as
uma intensa interação com diferentes modos de viver marcas da discriminação construída ao longo da his-
e expressar-se. Não se trata de momentos pontuais, tória. Visam melhores condições de vida para os gru-
mas da capacidade de desenvolver projetos que su- pos marginalizados, a superação do racismo, da dis-
ponham uma dinâmica sistemática de diálogo e cons- criminação de gênero, da discriminação étnica e
trução conjunta entre diferentes pessoas e/ou grupos cultural, assim como das desigualdades sociais. Ou-
de diversas procedências sociais, étnicas, religiosas, tro aspecto fundamental é a formação para uma cida-
culturais etc. Exige romper toda tendência à guetifi- dania aberta e interativa, capaz de reconhecer as
cação presente também nas instituições educativas e assimetrias de poder entre os diferentes grupos cultu-
supõe um grande desafio para a educação. Exige tam- rais e de trabalhar os conflitos e promover relações
bém reconstruir a dinâmica educacional. A educação solidárias.
intercultural não pode ser reduzida a algumas situa- O desenvolvimento de uma educação intercultu-
ções e/ou atividades realizadas em momentos especí- ral na perspectiva apresentada neste texto é uma ques-
ficos nem focalizar sua atenção exclusivamente em tão complexa, atravessada por tensões e desafios.
determinados grupos sociais. Trata-se de um enfoque Exige problematizar diferentes elementos do modo
global que deve afetar todos os atores e todas as di- como hoje, em geral, concebemos nossas práticas
mensões do processo educativo, assim como os dife- educativas e sociais. As relações entre direitos huma-
rentes âmbitos em que ele se desenvolve. No que diz nos, diferenças culturais e educação colocam-nos no
respeito à escola, afeta a seleção curricular, a organi- horizonte da afirmação da dignidade humana num
zação escolar, as linguagens, as práticas didáticas, as mundo que parece não ter mais essa convicção como
atividades extraclasse, o papel do/a professor/a, a re- referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar
lação com a comunidade etc. uma perspectiva alternativa e contra-hegemônica de
Outro elemento de especial importância refere- construção social, política e educacional.
se a favorecer processos de “empoderamento”, prin- A perspectiva intercultural quer promover uma
cipalmente orientados aos atores sociais que histori- educação para o reconhecimento do outro, o diálogo
camente tiveram menos poder na sociedade, ou seja, entre os diferentes grupos socioculturais. Uma edu-
tiveram menores possibilidades de influir nas deci- cação para a negociação cultural, o que supõe exerci-
sões e nos processos coletivos. O “empoderamento” tar o que Santos denomina hermenêutica diatópica.
começa por liberar a possibilidade, o poder, a potên- A perspectiva intercultural está orientada à constru-
cia que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito ção de uma sociedade democrática, plural, humana,
de sua vida e ator social. O “empoderamento” tem que articule políticas de igualdade com políticas de
também uma dimensão coletiva, trabalha com gru- identidade.
pos sociais minoritários, discriminados, marginaliza- Termino com umas palavras de Boaventura Sousa
dos etc., favorecendo sua organização e sua partici- Santos (2006), referidas à complexidade e às dificul-
pação ativa na sociedade civil. As ações afirmativas dades para uma ressignificação dos direitos humanos,
são estratégias orientadas ao “empoderamento”. Tan- para uma concepção intercultural das políticas eman-
to as concebidas no sentido restrito quanto as que se cipatórias de direitos humanos:

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Direitos humanos, educação e interculturalidade

Este projeto pode parecer bastante utópico. É, certa- GIMENO SACRISTÁN, José. Políticas de la diversidad para una
mente, tão utópico quanto o respeito universal pela digni- educación democrática igualadora. In: SIPÁN COMPAÑE, Anto-
dade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma nio (Coord.). Educar para la diversidad en el siglo XXI. Zaragoza:
exigência ética séria. Como disse Sartre, antes de concreti- Mira, 2001. p. 123-142.
zada, uma idéia apresenta uma estranha semelhança com a McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. Trad. Bebel Orofino
utopia. Nos tempos que correm, o importante é não reduzir Shaefer. São Paulo: Cortez, 1997.
a realidade apenas ao que existe. (p. 470) ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994.
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CAÇÃO INTERCULTURAL, GÊNERO E MOVIMENTOS SO- TORRES, Carlos Alberto. Democracia, educação e multicultura-
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cretas Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/
Desiderata, 2004b. p. 87-108.
VERA MARIA FERRÃO CANDAU realizou estudos de
. (Org.). Cultura(s) e educação: entre o crítico e o
pós-graduação em pedagogia e filosofia na Universidade Católi-
pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
ca de Louvain (Bélgica) e o doutorado e o pós-doutorado na
. (Org.). Educação intercultural e cotidiano escolar.
Universidad Complutense de Madrid (Espanha). É atualmente
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
professora titular do Departamento de Educação da Pontifícia Uni-
.; MOREIRA, Antônio Flávio. Educação escolar e
versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), membro do Co-
cultura(s): construindo caminhos. Revista Brasileira de Educa-
mitê Nacional de Educação em Direitos Humanos e consultora
ção, n. 23, p. 156-168, maio/ago. 2003.
de diferentes órgãos de fomento à pesquisa e à pós-graduação.

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Vera Maria Candau

Principais publicações: Magistério: construção cotidiana (Rio o Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s)
de Janeiro: Vozes, 1997); Reinventar a escola (Rio de Janeiro: (GECEC), no qual está desenvolvendo, desde 2006, com auxílio
Vozes, 2000); Educar em direitos humanos, construir cidadania do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
(Rio de Janeiro: DP&A, 2000); Escola e violência (Rio de Janei- lógico (CNPq), a pesquisa “Multiculturalismo, direitos humanos
ro: DP&A, 2001); Sociedade, educação e cultura(s) (Rio de Ja- e educação: a tensão entre igualdade e diferença”. E-mail:
neiro: Vozes, 2002); Discriminación, sociedad y escuela en vmfc@edu.puc-rio.br
America Latina (Bolivia: Runa, 2002); Cultura(s) e educação (Rio
de Janeiro: DP&A, 2005); Educação intercultural e cotidiano Recebido em setembro de 2007
escolar (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006). Coordena, desde 1996, Aprovado em novembro de 2007

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Resumos/Abstracts/Resumens

la represión del deseo sexual entre Key words: human rights; Palavras-chave: educação continuada;
padre e hijo y la proyección de la multiculturalism; intercultural política educacional; legislação educa-
diferencia sexual para los “Otros”. education; equality; difference cional; formação de professores; edu-
Las razones para la reconstrucción de Derechos humanos, educación e cação a distância
esa escena sobre la raza en Occidente interculturalidad: las tensiones entre Analysis of public policies for in-
son curriculares. Ella tiene como igualdad y diferencia service teacher training in Brazil, on
objetivo, que los profesores puedan Este artículo presenta algunas the last decade
entender las formas continuas y cuestiones relativas a la problemática This article discusses the way in which
mutantes del racismo blanco. de la(s) cultura(s) en el momento processes of continuing in-service or
Palabras claves: currículo; raza; actual. Discute la relevancia del distance education have been
sexualidad; gay studies discurso de los derechos humanos en implemented in the context of
este contexto, teniendo como educational policies developed by the
Vera Maria Candau interlocutor al sociólogo Boaventura Union, states and municipalities in the
Direitos humanos, educação e Sousa Santos. Analiza distintos last decade in Brazil. It presents the
interculturalidade: as tensões entre enfoques del multiculturalismo. Asume multiplicity of initiatives developed
igualdade e diferença la perspectiva intercultural y justifica employing different methodologies and
O artigo apresenta algumas questões esta opción. Señala algunos desafíos offering diverse kinds of training, with
relativas à importância da(s) cultura(s) que considera importantes para que se a focus on teachers in different levels
no momento atual. Discute a relevância trabajen en las relaciones entre and teaching specialties. It situates the
do discurso dos direitos humanos nesse educación intercultural y derechos question in the international context by
contexto, tendo como principal interlo- humanos. means of an analysis of documents
cutor o sociólogo Boaventura Sousa Palabras claves: derechos humanos; produced by different international
Santos. Analisa diferentes abordagens multiculturalismo; educación organisations. It discusses the role of
do multiculturalismo. Assume a pers- intercultural; igualdad; diferencia Brazilian legislation, the impulse
pectiva intercultural, justificando sua which favoured initiatives of
relevância. Assinala alguns desafios Bernardete A. Gatti continuing education in Brazil, the
que considera de especial importância Análise das políticas públicas para problems which emerged and the
para trabalhar as relações entre educa- formação continuada no Brasil, na emerging new legislation.
ção intercultural e direitos humanos. última década Key words: continuing education;
Palavras-chave: direitos humanos; Esse artigo discute a forma como pro- educational policy; educational
multiculturalismo; educação intercultu- cessos de educação continuada, presen- legislation; training of teachers;
ral; igualdade; diferença ciais ou a distância, têm sido imple- distance education
Human rights, education and mentados no contexto das políticas Análisis de las políticas públicas
interculturality: tensions between educacionais da União, de estados e para la formación continua en
equality and difference municípios, na última década. Mostra a Brasil, en la última década
This article presents some questions multiplicidade de iniciativas desenvol- Este artículo discute la forma como
related to the importance of culture in vidas em diferentes modalidades meto- procesos de educación continua,
the present moment. It discusses the dológicas, visando variados tipos de presenciales o a distancia, han sido
relevance of the human rights discourse formação, com foco em professores de implementados en el contexto de las
within this context, taking as its main diversos níveis de ensino e suas espe- políticas educacionales de la Unión, de
interlocutor the sociologist Boaventura cialidades. Coloca a questão no contex- los estados y municipios, en la última
Sousa Santos. It analyses different to internacional pela exposição de vá- década. Muestra la multiplicidad de
approaches to multiculturalism. It rios documentos de organismos iniciativas desarrolladas en diferentes
justifies the relevance of the internacionais. Discute o papel da le- modalidades metodológicas,
intercultural perspective adopted and gislação brasileira, o impulso que pro- intentando variados tipos de
points to challenges considered to be of piciou às iniciativas de educação conti- formación, con foco en profesores de
particular importance for developing nuada no Brasil, os problemas que diversos niveles de enseñanza y sus
the relationships between intercultural emergiram e as novas legislações especialidades. Coloca la cuestión en
education and human rights. emergentes. el contexto internacional a través de la

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