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Todos os dias passava à minha porta muito cedo. No Inverno, ouvia-o cumprimentar
jovialmente o padeiro com um “bom dia nos dê Deus!” seguido de um esfregar de mãos
aquecido pelo bafo da própria boca. Ficava-se, então, balançando alternadamente entre
um e outro pé, numa espera costumada de animal doméstico adivinhando alimento. E o
pão lá vinha, acompanhado de um “-Tome lá homem! Seja pelas almas!”
Também invariavelmente lhe ouvia:
- Passo na capela! Quer que leve o pão da ti Maria do Azeiteiro?
Hoje não vi nem ouvi o Sr. Palha. Mas isso não admira, porque o meu acordar desta
manhã foi especialmente agitado e invulgar.
Ainda não eram 7 horas quando os meus ouvidos sonolentos foram sacudidos por sons e
movimentos pouco habituais àquela hora no meu bairro. Moro no Largo das Flores, uma
pracinha acolhedora, rodeada de casas com sardinheiras nas varandas.
Curioso, fui à janela e o que vi deixou-me verdadeiramente interessado. O meu olhar foi
imediatamente atraído pelas enormes letras coloridas do camião estacionado, de portas
abertas, no centro da praça. De lá de dentro saíam quilómetros de fios enrolados às
costas de uns rapazes musculosos de boné e colete à jornalista.
À porta da padaria, um indivíduo baixinho gesticulava energicamente para duas pessoas
que, de costas para a minha janela, pareciam ouvi-lo atentamente. Entretanto, ouve-se o
som de uma campainha e uma voz grita:
- Vamos começar. Acção!
Todos se dirigem para a porta da casa do Zé Ferreiro e, nessa altura, eu reconheço no
trio que anteriormente conversava
o Tim dos Xutos e Pontapés. O meu entusiasmo foi enorme, mas continuei à janela pois
queria conhecer os próximos desenvolvimentos desta manhã tão emocionante.
Felizmente era feriado. Não tinha por isso que ir às aulas na Universidade.
Entretanto, à porta do Zé Ferreira, a movimentação era cada vez maior. Instalavam-se
câmaras, mediam-se ângulos e distâncias e o “baixinho” com ar de mandão entrou na
casa acompanhado pela Alexandra Rafaela, a filha do Zé Ferreiro. Não aguentei mais de
curiosidade e mesmo de pijama desci à praça.
Toca o despertador e… Afinal a manhã estava como qualquer outra, pois tudo não
passou de uma sonho.
Preparava-me para sair da cama, quando batem à porta… Quem seria?
Fui ver, deparei-me com o padeiro. Perguntei-lhe, curioso:
- Que o traz por cá?
- Viu o Sr. Palha? Não o encontrei hoje! O que terá acontecido?
Na verdade, intrigou-me aquela figura, tão insólita que era e questionei-me. “- o que
fará por estas bandas tão bizarra criatura?”; “- que assuntos terá em comum com o pobre
Palha?”. Sem mais delongas, decidi averiguar. Em vão. Apenas descobri o casaco
esfarrapado do Sr. Palha envolto em pedaços de jornal deixando exalar um cheiro
oriental…
Mas do Sr. Palha nem rasto.
De repente avista-se o Sr. Palha muito bem vestido. Trazia uma gabardina preta, sapatos
de verniz e uma gravata com bolinhas cor-de-laranja. Fazia-se acompanhar por um
caniche. Na sua mão direita sobressaíam dois anéis de diamantes esplendorosos.
A aldeia estava estupefacta. Todos inquiriam: “É o Sr. Palha? Ter-lhe-á saído a lotaria?”
Intrigado, dirigi-me ao Sr. Palha e estupefacto apercebi-me que era muito parecido com
o Sr. Palha, mas mais bem tratado pela vida. Ao cumprimentá-lo mostrou-me uma foto
do Sr. Palha, um pouco mais novo, dizendo que era um familiar desaparecido há muito.
Alguns dias depois, ao deslocar-me a uma aldeia vizinha, encontrei o desaparecido Sr.
Palha. Ao interrogá-lo sobre aquele familiar, respondeu-me que tinha deixado a família
para trás. Não concordara com o modo como tinham enriquecido. Quando o questionei
sobre que modo era esse, ele respondeu:
- Ninguém merece ver a sua vida destruída devido à ambição da família – disse num
tom de voz triste e revoltado.
Fiquei intrigado com as suas palavras e sem saber o que dizer. Então, o Sr. Palha
continuou:
- Há muitos anos atrás, vivíamos numa casa humilde, mas éramos felizes. Na aldeia
vizinha, vivia um homem rico mas com péssima reputação, que fez saber que desejava
constituir família. O meu irmão mais velho, que era ganancioso, tratou imediatamente
de convencer o meu pai a casar a minha irmã com aquele homem, apesar de saber que o
seu desejo não era esse. Tentei mostrar-lhes, mas sem êxito, que a felicidade da minha
irmã deveria estar acima de qualquer fortuna.
- Como não me ouviram decidi partir. Não conseguia assistir à vida fácil e luxuosa que
levavam à custa da infelicidade da minha irmã.
- Queria partilhar comigo a sua fortuna. Insistiu para que morasse com ela e deixasse de
viver na miséria. Recusei. Aconselhei-a a oferecer uma parte do dinheiro a instituições
de caridade.
- A minha irmã Maria, que sempre teve um coração bondoso, achou a ideia maravilhosa
e fomos entregar a maior parte do dinheiro ao orfanato do distrito. O meu irmão,
obcecado como é por dinheiro, deve andar a rondar por aí a ver se descobre onde foi
parar a herança.