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seni [AQUISIGAO DE L1 E L2: 0 CONTEXTO DA PESSOA SURDA, O CONTEXTO ESCOLAR DO ALUNO SURDO E 0 PAPEL DAS LINGUAS Ronice Miller de Quadros!) AQUISIGAO DA LINGUAGEM ‘Ao longo da histéria da educagao de surdos no Brasil sempre houve uma preocupagao exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. As propostas pedagégicas sempre foram calcadas na questo da linguagem. Essa preocupag4o com a questo da linguagem, nao menos importante que quaisquer outras na area da educaco, tonou-se quase que exclusiva, perdendo- se de vista 0 processo educacional integral da crianga surda. Ha varias razées para tal fato, dentre elas, 0 fato das criangas serem surdas torava fundamental a discussao sobre 0 processo de aquisico da linguagem, tendo em vista que tal processo era traduzido por linguas orais-auditivas. As criangas surdas dotadas das capacidades mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por essa raz4o, até os dias de hoje, ha pesquisas que procuram um meio de garantir o desenvolvimento da linguagem em criangas surdas através de métodos de oralizagdo. "Fazer o surdo falar e ler os labios permitird 0 acesso a linguagem’, frase repetida ao longo da histéria e que tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologia que favorecam esse processo, ha muitos anos, com alguns avangos. Entretanto, apesar de todo esse empenho, os resultados que advém de tal esforgo so drasticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstra o fracasso das inmeras tentativas de se garantir linguagem através da lingua oral-auditiva do pais, a lingua portuguesa. Todos os profissionais envolvides na educagéo de surdos que conhecem surdos adultos admitem o fracasso do ensino da lingua portuguesa, nao somente enquanto lingua usada para a expresso escrita, mas, principalmente, enquanto lingua que permite o desenvolvimento da linguagem Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente ‘salvar’ 0 seu processo de aquisigao da linguagem através da lingua brasileira de sinais - LIBRAS. A raga humana privilegia tanto a questo da linguagem, isto é, a linguagem é tdo essencial para o ser humano que, apesar de todos os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relagdes através dela, os seres humanos buscam formas de satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais independentes da escola e da familia, buscam relagdes com outros surdos através da lingua de sinais. No Brasil, as associagdes de surdos brasileiras foram sendo ctiadas e tornando-se espago de “bate-papo” e lazer em sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais “oralizavam’ ou as escolas “integravam’ criancas surdas nas escolas regulares de ensino. Percebe-se, aqui, um movimento de resisténcia natural por parte dos surdos a um processo social, politico e lingtiistico que privilegiou o parametro do normal. As pesquisas sobre a aquisicao da linguagem avangaram muito a partir dos anos 60. Os estudos envolvendo a andlise do processo de aquisigao de varias criangas comecaram a indicar a universalidade desse processo (Fletcher & Garman, 1986; Ingram, 1989; Slobin, 1986). O estudo da Lingua de Sinais Americana - ASL - comecou exatamente neste mesmo perlodo através de uma descrigao realizada por Willian Stokoe, publicada em 1965 pela primeira vez (Stokoe et alli, 1976). Esse trabalho representou uma revolucao sociale lingliistica. A partir dessa obra, varias outras pesquisas foram publicadas apresentando perspectivas completamente diferentes do estatuto das linguas de sinais (Bellugi & Klima, 1972; Siple, 1978; Lillo-Martin, 1986) culminando no seu reconhecimento linglistico nas investigagdes da Teoria da Gramatica virtual udese.brMidateca/Publicacaes, Educacae_de_Surdosiarigo08 him ana sevosii2 /AQUISIGAO DE L1 EL2: 0 CONTEXTO DA PESSOA SURDA com Chomsky (1995:434, nota 4) ao observar que o termo “articulatério" ndo se restringe a modalidade das linguas faladas, mas expressa uma forma geral da linguagem ser representada no nivel de interface articulatorio-perceptual incluindo, portanto, as linguas sinalizadas. Quase que em paralelo a esses estudos, iniciaram-se as pesquisas sobre o processo de aquisigao da linguagem em criangas surdas filhas de pais surdos (Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo Martin, 1986; Petitto, 1987). Essas criangas apresentam o privilégio de terem acesso a uma lingua de sinais em iguais condigées ao acesso que as criangas ouvintes tém a uma lingua ora auditival'], No Brasil, a LIBRAS comegou a ser investigada na década de 80 (Fereira-Brito, 1986) e a aquisigdo da LIBRAS nos anos 90 (Kamopp, 1994; Quadros, 1995)/21. Todos esses estudos concluiram que o processo das criangas surdas adquirindo lingua de sinais ocorre em periodo andlogo a aquisi¢ao da linguagem em criangas adquirindo uma lingua oral-auditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de aquisigao da linguagem indicam universais lingUisticos. O fato do processo ser concretizado através de linguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em criangas surdas, exige uma mudanga nas formas como esse processo vem sendo tratado na educacao de surdos A aquisigao da linguagem em criangas surdas deve ser garantida através de uma lingua visual-espacial. No caso do Brasil, através da LIBRAS. isso independe de propostas pedagégicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetizagao, aquisicao do portugués, aquisigo de conhecimentos, etc.), pois é algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das criangas surdas virem para a escola sem adquirirem uma lingua, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso a LIBRAS. O processo educacional ocorre mediante interagao lingliistica e deve ocorrer, portanto, na LIBRAS. Se a crianga chega na escola sem linguagem, é fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisicao da linguagem através de uma lingua visual-espaciall3l. A aquisicao da LIBRAS por criangas surdas brasileiras ¢ algo inquestionavel. No entanto, a educagio de surdos continua apresentando inimeros problemas mesmo quando as criangas tm acesso a lingua de sinais. No Brasil, essa constatagao ¢ comparavel a situagao das criangas ouvintes que vao para escola com a aquisicéo da linguagem garantida através do portugués e, no entanto, os indices de repeténcia e evasdo escolar s4o dos mais altos do mundo. As propostas pedagégicas devem ir além das linguas envolvidas no proceso educacional A tradigao na educacdo de surdos de se pensar somente na linguagem todo o tempo precisa acabar. A escola deve se constituir no em funcdo das linguas que permeiam a vida escolar dos surdos, mas para muito além disso, ou seja, cumprir com seu papel enquanto instituigao educacional, Parlindo das quest6es abordadas até o presente, quando se reflete sobre a lingua que a crianga surda usa, a LIBRAS, e o contexto escolar, imediatamente pensa-se em alfabetizagao. ALFABETIZAGAO © processo de alfabetizagéo é essencialmente natural. As criangas passam pelos diferentes niveis desse processo mediante interagéo com a escrita construindo hipéteses e estabelecendo relagées de significagao que parecem ser comuns a todas as criangas. Obviamente esse mesmo processo deve acontecer com as criancas surdas. Entretanto, as criangas surdas devem estabelecer visualmente relagdes de significagéo com a escrita. Assim sendo, toda a energia dos alfabetizadores de surdos é canalizada para a autonomia da escrita, mas nos niveis propostos por Ferreiro e Teberosky (1985), ou seja, niveis propostos com base em sistemas escritos alfabéticos. Interessantemente, tais niveis esto descritos como pré- virtual udese.brMidateca/Publicacaes, Educacae_de_Surdosiarigo08 him sevosii2 /AQUISIGAO DE L1 EL2: 0 CONTEXTO DA PESSOA SURDA silabico, silébico, silébico-alfabético e alfabético (com suas respectivas subdivisdes). Inquestionavelmente, esse trabalho representa um avanco nos estudos sobre a alfabetizago. No caso espectfico da alfabetizacao de surdos, varios professores tentaram visualizar esse mesmo processol4, Apesar de todos esses esforgos parece haver um “buraco-negro” no processo de alfabetizag&o de criangas surdas. Os professores fazem alguns relatos: “As criangas chegam em um determinado nivel e trancam”, “As criangas ndo conseguem sair da representagéo da palavra’, “Nao consigo fazer com que eles escrevam um texto’, “Eles conseguem escrever somente as palavras trabalhadas em aula’, e assim por diante. Ferreiro & Teberosky (1985) usaram a nomenclatura mencionada acima para identificar © processo de alfabetizagao alfabético em que as criangas estabelecem relagao de significagao entre o que é dito € o que é escrito, embora haja autonomia da escrita. O nivel silabico envolve a compreenséo da crianga de que as diferencas das representagées escritas esto relacionadas com as diferengas nas representacdes sonoras. Sonoras que para os surdos devem ser visuais. Apela-se entéo para a leitura labial que, ocuparia o lugar das representagdes sonoras. No entanto, apresenta-se a seguinte constatagao: Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos (Duffy, 1987) constataram que, apesar do investimento de anos da vida de uma crianga surda na sua oralizagao, ela somente 6 capaz de captar, através da leitura labial, cerca de 20% da mensagem e, além disso, sua produgdo oral, normalmente, ndo 6 compreendida por pessoas que n&o convivem com ela (pessoas que n&o esto habituadas a escutar a pessoa surda) (Quadros, 1997:23) © primeiro problema que deve ser reconhecido é que a escrita alfabética da lingua portuguesa no Brasil néo serve para representar significagdo com coneeitos elaborados na LIBRAS, uma lingua visual espacial, Um grafema, uma silaba, uma palavra escrita no portugués no apresenta nenhuma analogia com um fonema, uma siaba e uma palavra na LIBRAS, mas sim com o portugués falado. A lingua portuguesa ndo é a lingua natural da crianga surda. Ja foi abordado no presente trabalho que a lingua em que 0 processo de aquisicao da linguagem ocorre naturalmente em criangas surdas brasileiras é a LIBRAS. As linguas de sinais apresentam uma escrita que foi desenvolvida para representar formas e movimentos num espaco definido. No Brasil, esse sistema escrito est sendo aplicado a LIBRAS e usado por alguns surdos a partir de um projeto de pesquisa que esté sendo desenvolido na PUCRS!®] Da mesma forma que ha alguns anos, os estudos das linguas de sinais revolucionaram a vise quanto A aquisigo da linguagem por criangas surdas, o reconhecimento de que as linguas de sinais néo sao linguas agrafas transforma a visao do processo de alfabetizacao dessas criangas Todos os niveis do processo de alfabetizagdo devem aparecer em criangas surdas alfabetizando-se mediante interacdo com a escrita da lingua de sinais, ou seja, com grafemas, com silabas e com palavras que representam diretamente a LIBRAS. Para que seja melhor visualizada essa representagao escrita da lingua de sinais, serd escrito um pardgrafo em sinais com a traducdo para o portugués logo a seguir. virtual udese.brMidateca/Publicacaes, Educacae_de_Surdosiarigo08 him

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