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EPS. Para atingir o patamar em que estas articulações estejam amadurecidas, faz-se
necessário: i) uma maior integração entre os grupos rurais e urbanos e as entidades de
apoio; ii) capacitar as experiências de sócio-economia solidárias, através do debate e
análise dos seus limites e das suas potencialidades como alternativa à exclusão social; iii)
expandir as feiras de exposições e vendas dos produtos, além de constituir um portal na
Internet das redes de EPS, de forma a ampliar a visibilidade do setor e cimentar a criação
de um mercado solidário; iv) realizar pesquisas e socializar os conhecimentos e
informações oriundos da sócioeconomia solidária através dos mais variados meios
(edição de livros, criação de uma revista, produção de vídeos, etc.).
Por outro lado, constata-se a inserção neste campo de novos e poderosos atores
institucionais, como é o caso das Universidades que, através da Rede UNITRABALHO,
desenvolve o programa de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares6.
Também é o caso da CUT, a qual criou no final de 1999 a Agência de Desenvolvimento
Solidário, presente em todos os seus regionais. Destaca-se ainda o robusto esforço
promovido por diversas prefeituras pelo Brasil7, bem como o surgimento da ANTEAG8 e,
mais recentemente, também o envolvimento do Governo Estadual do RS (gestão Olivio
Dutra). Pode-se salientar ainda o sistema cooperativista do MST, apesar de que a
CONCRAB (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil) e suas
cooperativas, em geral, ao invés de exercer uma postura ativa na construção de redes
com os demais atores da EPS, comporta-se conforme a racionalidade de uma grande
empresa rural, o que é aparentemente paradoxal.
O caso da formação das redes da economia solidária na Região Metropolitana de Porto
Alegre, e no RS de forma geral, é um dos mais ricos no Brasil, e extremamente fecundo
para percebemos como se dão as dinâmicas que permitem emergir este novo setor. É
fundamental constatar, por exemplo, que a EPS envolve processos de longo prazo,
exigindo um olhar histórico-cultural para visualizar o seu lento amadurecimento.
Um dos elementos para o vigor da EPS no RS é a “espessura institucional”, ou seja, o
apoio institucional de diferentes organizações (inclusive de algumas das próprias
iniciativas de EPS) – indicando o caráter extremamente sincrético das mesmas – as quais
formam uma grande rede de suporte (seja técnico, financeiro, político, ou mesmo como
rede de consumidores dos seus produtos e serviços) para estes empreendimentos. Uma
característica chave é que nenhuma entidade trabalha de forma isolada, mas sempre
através de parcerias. Destaque-se também que entre todos os atores estabelece-se uma
configuração multipolar (ou seja, não há um ator que seja o centro de gravidade) num
contexto cooperativo, em que pese existir uma relativa competição entre alguns. A EPS é
construída especialmente através das relações de cooperação. Ou seja, trata-se de uma
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Este programa, que hoje é o principal desenvolvido pela UNITRABALHO nacional, reúne 15
incubadoras surgidas em 15 universidades brasileiras nos últimos 5 anos. A UNITRABALHO é
uma rede interuniversitária que articula os núcleos de pesquisa sobre o Trabalho presentes nas
universidades brasileiras. Ver: <www.ilea.ufrgs.br/unitrab/unitrab.htm>
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Como o caso da Prefeitura de Porto Alegre, a qual (com 12 anos de administração contínua do
PT) criou o Setor de Economia Popular na Secretaria Municipal da Indústria e Comércio. Além
de gestar o primeiro banco de crédito popular do Brasil (criado em 01/96 com o nome de
"Instituição Comunitária de Crédito PortoSol”), mantém uma Incubadora de Cooperativas
Populares (sendo que até ao final de 2000 pretende criar outras três, todas através do Orçamento
Participativo e em parceria com outras instituições), e o Projeto Etiqueta Popular, o qual estimula
a comercialização de artigos advindos da EPS.
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Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão: <www.anteag.org.br>.
Recentemente a ANTEAG abriu um escritório no RS e está em vias de abrir outro em SC.
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Sobre este desafio ver a contribuição de E. Mance: A revolução das redes (Vozes, 2000).
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Um dos maiores perigos para o futuro da EPS reside no seu próprio crescimento caótico
e ser atropelada pelas crescentes demandas. Para ela não se autonomizar e ser tragada
pelo buraco negro do mercado capitalista, faz-se necessário superar o atual imediatismo,
fragmentação e voluntarismo ainda presentes na mesma, e realizar escolhas políticas
sobre quais segmentos e cadeias produtivas apresentem maior complementaridade e
possibilidades conforme os diferentes potenciais locais. Assim passaríamos das criativas
soluções pontuais para um sistema inter-empresarial articulado da EPS10. O predomínio
de iniciativas isoladas, sem construir soluções sistêmicas, pode engendrar uma
competição fagocitária entre as mesmas, além de piorar a situação do conjunto da EPS.
A EPS possui um caráter marcadamente geográfico como componente essencial da
mesma. Trata-se de uma economia comprometida com seu entorno, primeiramente com a
comunidade na qual está inserida, e que utiliza fundamentalmente de recursos localmente
disponíveis! O caráter territorial da EPS impõe-se uma vez que ela origina-se em resposta
à exclusão, a qual sempre é delimitada territorialmente. A EPS é uma construção cidadã,
que promove a cidadania, centrada na melhoria da qualidade de vida, no desenvolvimento
humano, no benefício real que pode produzir para pessoas concretas (e não nos fluxos
dos valores financeiros em circulação), adaptada as potencialidades e especificidades das
condições locais.
Na última década assistimos à uma reconfiguração das relações entre o local, o nacional e
o global. Um novo papel para o município se impôs tanto devido a redefinição do
Estado-Nação, quanto em face das novas tecnologias (discute-se muito as virtudes da
governace). Mesmo a globalização perversa exige, cada vez mais, uma maior capacidade
de articulação das localidades (fenômeno da “glocalização”). Contrastando com o
modelo de desenvolvimento neoliberal hegemônico fundado num estilo excludente e na
competitividade espúria (engendrando uma competição predatória entre cidades e regiões
– guerra fiscal), afirma-se progressivamente a perspectiva do desenvolvimento desde o
local, construído de baixo para cima, vetor de uma outra globalização, solidária. A EPS
tem sido induzida e potencializada pela ação política dos cidadãos, pelo crescimento do
poder local, de um processo de construção cidadã do espaço público através da
democracia direta, participativa (com os fóruns de participação popular, com o
orçamento participativo...). Na medida em que inúmeros governos locais/estaduais vão
dando prioridade à EPS, esta é alavancada para novos patamares, saindo da sua escala
experimental.
Entretanto, a opção política pela EPS por parte de um governo, como progressivamente
ocorre hoje no RS através de diversas prefeituras e do próprio Estado gaúcho, envolve
vários riscos e coloca novos desafios. Um deles é o do horizonte temporal: ainda que
relevante, a curta duração de um governo não é suficiente para, isoladamente, dar vigor
ao setor da EPS, dado o manifesto caráter de longa duração com que se levanta o
mesmo. Pode-se aqui inflar artificialmente a EPS, sendo que o próprio governo corre o
risco de não obter os frutos políticos que almeja. Por mais necessário que seja, uma
política de governo não é auto-suficiente. Não é a ação governamental que será decisiva
para construir o setor solidário: este é uma construção coletiva e autônoma por parte da
sociedade organizada, ou não é EPS. Ao desequilibrar o conjunto das forças entre os
atores da EPS, corre-se o risco de instrumentalizá-los ao projeto de manutenção no
poder do partido (ou da fração do mesmo que gerencia a política do governo para a EPS)
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Aliás, a produção dentro do setor capitalista em geral não se organiza competitivamente, mas é
administrada através de um sistema articulado de dependências interempresariais, no qual a
prática do just in time engendra, em cada segmento econômico, um tecido complexo de relações
distante do anonimato da mão invisivel. No coração das grandes corporações, forja-se um
“capitalismo de alianças” com base em arranjos de cooperação permanentes entre as mesmas.
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hegemônico, além de criar novas clivagens e reacender as velhas disputas políticas que
absorverão as frágeis energias deste incipiente setor.
Ainda que seja fruto de uma conquista por parte da sociedade organizada, um governo
popular não pode perder de vista que, por nascer desta mesma organização, tem por
missão contribuir para devolver o poder à sociedade, pois a ela pertence.
Uma questão vital, tanto para a economia local ser um organismo ativo, quanto para a
EPS efetivar sua vocação para ser um setor econômico, é a do desafio do controle sobre
a intermediação financeira. Há que, potencializando as crescentes experiências de
cooperativas de crédito e bancos do povo (estes hoje são, na verdade, pequenos fundos
de micro-crédito), gestar bancos cooperativos e bancos éticos (ou solidários)11 vinculados
à EPS e comprometidos com a sócio-economia de suas regiões, evitando
progressivamente o centralizado sistema financeiro capitalista, grande draga dos recursos
gerados localmente.
Assim, se a EPS está cada vez mais solidamente ancorada em dinâmicas locais/regionais
de desenvolvimento, ela se fortalece como um dos atores que constróem, a médio prazo,
uma verdadeira política nacional de enfrentamento da pobreza, amparada numa sólida
opção por um modelo de desenvolvimento endógeno e uma conseqüente inserção ativa
na mundialização. Este provável quadro impulsionará ainda mais a EPS, podendo
transformá-la num eixo estratégico do desenvolvimento do país. Entretanto, optar pela
EPS, pelo pequeno e médio capital e pelo cooperativismo como prioridades do modelo
de desenvolvimento, não significa excluir a possibilidade de alianças econômicas com a
grande empresa12. Em que pese existir profundas diferenças, interesses específicos e
conflitos entre o núcleo das mega-empresas capitalistas e a economia dos setores
populares, não existe entre as mesmas (pelo menos com certa fração do grande capital)
um antagonismo radical. A base para estabelecer parcerias e forjar as soluções sistêmicas
que o mercado não propicia, é a evidência de que as exigências da competitividade
sistêmica (que envolve as dimensões social e ambiental, e não apenas a econômica)
predominam no longo prazo, requerendo uma sociedade mais coesa e com maior
qualidade de vida. A EPS não está vocacionada para ser um sub-sistema fechado, mas
constrói-se de forma aberta, mesmo sendo organicamente integrada13.
Alguns dos desafios da EPS, como o da construção de um grande marco legal para a
economia social, transcendem em muito a capacidade dela própria para transpô-los,
exigindo uma ampla articulação de forças. Assim, além da EPS buscar se consolidar
enquanto um setor sócio-econômico próprio, ela deve ser um ator ativo na construção do
campo mais amplo da economia social (também denominado de Terceiro Setor) de cada
país, o que exige que ela saia dos seus interesses imediatos, deixe de olhar apenas para o
seu umbigo, e saiba quebrar os preconceitos que hoje dificultam estabelecer um diálogo
mais amplo com o sistema cooperativista tradicional, ou até mesmo com entidades mais
próximas (como a ANTEAG). Apesar do cooperativismo se tornar cada vez mais um
verdadeiro campo minado, não se pode fugir do desafio de pensar todo o sistema
cooperativista na perspectiva de articular o grande campo da economia social, o
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Como os exemplos do Banco Ético italiano, do Triodosbank holandês e do Ökobank alemão.
12
Esta é a posição de Celso Daniel (“A gestão local no limiar do novo milênio”. In: Magalhães,
I.; Barreto, L.; Treva, V. Governo e cidadania. São Paulo: Fund. Perseu Abramo, 1999),
prefeito (PT) de St. André, município situado no ABC industrial paulista.
13
“Sua atividade produtiva deve poder satisfazer diretamente parte das necessidades das
maiorias locais, mas também competir exitosamente pelas vontades dos consumidores no
mercado nacional ou global”. Coraggio, J. Política social y economía del trabajo. Buenos
Aires/Madrid: Univ. Nac. General Sarmiento – Niño y Dávila, 1999, p. 184.
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que impõe enfrentar as difíceis relações entre o velho cooperativismo e as novas formas
cooperativistas populares.
bem como reconhecemos os seus limites (além de ser incompatível com certas
necessidades coletivas, este mecanismo não pode tomar decisões de longo alcance nem
resolver questões centrais da humanidade, como as ecológicas); por outro somos
chamados a adentrar no mesmo. Como atravessá-lo sem ouvir o canto da sereia?
A EPS faz parte de movimentos sociais mais amplos, de uma intensa corrente
antiutilitarista que luta pela reintegração da atividade econômica nas relações sociais
através da desmercantilização da terra, do trabalho e do dinheiro. Superar a barbárie
advinda da desordem do mundo do trabalho é o grande desafio deste final de milênio.
Em que medida a EPS pode contribuir na recusa da sociedade dual? Representa
efetivamente a EPS uma alternativa nova, ou será que ela não se reduz a uma velha
forma de incorporar uma parte da humanidade através do trabalho precário,
reproduzindo a dualização social? O que impede à racionalidade hegemônica considerar
e valorizar o modo de vida dos marginalmente integrados? Possibilita a EPS um marco
conceitual novo para pensar a superação do utilitarismo-produtivista, ou significa a
mesma um ajuste subordinado das sociedades periféricas à globalização, se restringindo à
soluções paliativas que possibilitarão a sustentabilidade do modo de vida consumista dos
mais ricos? Não representaria a EPS um romântico projeto de restauração e regresso
arcaico à antiga sociedade, com uma catastrófica subestimação do ocidente? Estas são
questões centrais que a EPS está desafiada a responder.
outros. Sem ignorar, é claro, os clássicos nesta discussão (Polanyi, Martínez Alier, Godelier,
Desroche, Myrdal, Illich, Lebret, Pesch e S. Amin).