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Uma questão de competências, de

concorrência... ou de projetos?
Luiz Inácio Germany Gaiger

O Conselho Wallon de Economia Social, berço na Bélgica de práticas e de um conceito de


economia social adotado posteriormente em outras regiões e países, comemora em 2007 os
seus 25 anos. Por isso, resolveu convidar estudiosos de vários países a participarem de uma
reflexão sobre o sentido e o futuro da solidariedade, especialmente no campo econômico (ver
La Revue Nouvelle, 1-2, 2007 - Bruxelas). Nossa contribuição enfatiza o papel histórico que
as formas coletivas de ação econômica desempenharam para os trabalhadores e advoga a
atualidade desse projeto, uma vez que se orienta pelo atendimento das necessidades humanas
e sustenta-se em dinamismos de cooperação e reciprocidade, fomentadores de eqüidade e de
justiça social.

Encontrar respostas que assegurem a renovação e a atualidade da economia social é sempre uma
tarefa crucial. Sobretudo hoje, diante das mutações recentes da economia mundial, nas quais a
aceleração dos movimentos do capital, liberado que se encontra de suas raízes e de seus
compromissos sociais, choca-se com uma satisfação decrescente de necessidades humanas
elementares e com a perenização da pobreza em amplas regiões do planeta.
A economia social desde suas origens cumpriu um papel de alargamento da experiência humana
de reprodução da vida, ao contrapor-se às determinações e às limitações impostas pela
racionalidade estrita do capital. Manteve assim vigentes outros princípios e outras lógicas de
organização do trabalho, de criação de bens e de circulação da riqueza. No cenário com que se
depara atualmente, as suas iniciativas em muitos países diversificam-se e fomentam novos e
crescentes movimentos de vocação alter-mundialista, repetidamente afirmada nas edições do
Fórum Social Mundial. Encontramos um cenário pulsante de debate crítico e de tendências à
revitalização dos princípios associativos e cooperativos, o que justifica as sucessivas designações
desse campo, como nova economia social, economia social solidária e, na América Latina,
economia solidária tout court.
Esse mesmo cenário está no entanto carregado de desafios, posto que não apenas se amplia o
leque de carências e de aspirações humanas, descreditando cada vez mais as suas possibilidades
de atendimento através da produção incessante de mercadorias. Ao mesmo tempo, introduzem-se
requisitos novos cada vez mais exigentes, de competências e de desempenho competitivo, para a
viabilidade de formas alternativas de organização social e econômica. Olhando desde o Sul,
particularmente da América Latina, para a questão proposta pela Fédération Belge d’Economie
Sociale, quanto ao prognóstico para a economia social nos próximos 25 anos, o desafio maior,
nos dias atuais, parece ser aquele de evitar a tentação de seguir os passos do capital, para
competir com ele segundo suas próprias regras, no intuito de garantir um lugar ao sol, de ocupar
ao menos posições secundários nos circuitos cada vez mais amplos, mais destrutivos e mais anti-
sociais criados pelo capital globalizado, a fim de amealhar resíduos da riqueza assim extraída e
concentrada.
Sendo lapidar, situações de trabalho infantil ou escravo ainda persistem em muitos lugares e as
primeiras ilhas oceânicas condenadas pelo aquecimento global já estão afundando. Ao capital,
vale a pena transladar interinamente seus investimentos e transportar caixas de kiwis e de sapatos
de um continente a outro, embora seja exceção quem não possa produzi-los. Mesmo quando
trata-se de produção limpa, a transumância massiva de capitais é catastrófica nas regiões de saída
e, a médio prazo, igualmente nas de chegada, a que se soma o brutal consumo de energia
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empregada no transporte de bens. Ademais, não se conhecem casos em que o capital tenha
gerado desenvolvimento social prévio e bem-estar, para depois transplantar-se; situações assim,
naturalmente atrativas para futuros investimentos, decorreram de esforços nacionais de monta,
mediante soluções amargas, cabendo perguntar-se se foram recompensadas.
A economia solidária – para utilizar a denominação latino-americana – nasceu de um outro lugar
social na sociedade e no mundo econômico; por conseguinte, a partir de outro ponto de vista.
Compete-lhe, nos dias de hoje, resgatar tais valores para atualizar a fidelidade a seu projeto:
brindar segurança material, reconhecimento e vida significativa à imensa maioria de pessoas que
vivem primordialmente da sua capacidade de trabalho, a quem, não fossem as circunstâncias já
bem instituídas pelo capital, pouco sentido haveria em imaginar uma economia exógena e
contraposta ao trabalho.
Desde o séc. XIX, essa outra economia - significando à época aquela apartada do trabalho, a
seguir fundante da sociedade produtora de mercadorias - introduziu-se de forma progressiva,
repentina ou violenta, aplastando as economias então existentes, havendo os indivíduos que por
ampla maioria viviam da renda do seu próprio esforço produtivo reagido por diferentes vias. Na
América Latina, a mais recorrente foi persistirem tanto quanto possível em seus modos de vida,
em seus exíguos lotes de terra, em suas modestas empresas domésticas, com seus savoir-faires
modelados pela experiência, o que originou gradativamente o amplo fenômeno da economia
popular. Embora tenha sido banalizada sob o rótulo de economia informal, pela qual recebeu
uma ênfase unilateral em suas faces negativas de subalternidade e precariedade, foi a partir da
economia popular que ganharam forma as experiências genuínas de economia social na América
Latina, como alternativas para trabalhadores rurais e urbanos, indígenas e imigrantes que
valorizaram as práticas associativas autóctones de ajuda mútua e fizeram seu sentimento
comunitário prelavecer contra a desordem introduzida pelo capital. Desde então, mesmo sob
formas mitigadas, a cooperação permaneceu um elemento estruturante da vida econômica e
social de parcelas importantes da população.
Nesse continente, salvo exceções em poucos países, a solidariedade social institucionalizada,
representada pelos mecanismos de distribuição e de equilibragem do Estado, jamais substituiu os
laços reciprocitários cevados a partir de organizações e sistemas locais, nos quais a produção da
riqueza subordina-se a necessidades de grupos e coletividades, adquirindo portanto uma natureza
primordialmente social. Assim por exemplo, as regiões historicamente mais desenvolvidas no
Brasil do ponto de vista social, não necessariamente as mais ricas, são aquelas com maior
tradição associativa e cooperativa. Nelas também se observa uma economia plural, de maior
complexidade produtiva e mais resistente a crises.
Os dados recentes do Primeiro Mapeamento da Economia Solidária no Brasil demonstram que os
empreendimentos solidários hoje se multiplicam e se diversificam no país: grupos de produção
agroecológica, associações rurais, cooperativas, empresas autogestionárias, iniciativas de
poupança e crédito, redes de comercialização, etc.1 Ademais, confirmam duas virtudes dessas
iniciativas, típicas da economia social em geral: diante de empresas capitalistas privadas
similares, os empreendimentos solidários operam no sentido de reduzir os níveis de desigualdade
entre os seus membros e de assegurar-lhes níveis de renda e de segurança econômica melhores.
Eles propiciam condições minimamente dignas de vida, assim como redes de amparo e
oportunidades de aquisição de novas competências. Se a preservação do trabalho está na origem
do empreendimento e se o trabalho associado faz a diferença, trabalhar por auto-determinação

1
O Mapeamento corresponde a uma primeira tentativa de censo nacional. Abrangeu todas as Unidades da Federação
e 40% dos municípios, cadastrando cerca de 15 mil empreendimentos. Essa Base de Dados, inédita, está sendo
analisada pelo Grupo de Pesquisa em Economia Solidária da UNISINOS (www.ecosol.org.br), por solicitação da
Secretaria Nacional de Economia Solidária (www.sies.mte.gov.br).
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coletiva promove uma nova identidade e um novo status para o trabalhador. Em segundo lugar, o
seu funcionamento depende decisivamente da integração positiva entre seus princípios solidários
e participativos e as soluções adotadas com vistas à eficiência econômica. Na simbiose entre
solidarismo e empreendedorismo residem suas chances de sobrevivência e sua viabilidade a
longo prazo.
Essas características apresentam ainda virtudes adicionais, à medida que acarretam interdições
positivas para os empreendimentos: de um lado, eles não podem desfazer-se do trabalho como se
esse fora um mero instrumento de produção, descartável; a natureza dos empreendimentos os
impele a serem agentes de combate à crise do mercado de trabalho. De outro lado, sua dinâmica
encontra-se ancorada em relações e circuitos sociais e econômicos externos, que amplificam e
consolidam laços de reciprocidade, sustentando modalidades de concorrência cooperativa nos
mercados locais e regionais. Os empreendimentos tampouco podem romper essas relações com
seu entorno, no intuito de drenarem unilateralmente a riqueza para si ou de transladarem seus
ativos a outros territórios, em cujos circuitos de reciprocidade social não estejam integrados. O
papel de agentes de desenvolvimento local lhes é inerente.
Por não se submeter à lei férrea da acumulação ampliada, a economia solidária pode expandir-se
em setores de baixo interesse para o capital, mas de importância social inquestionável. Face à
impossibilidade de deslocalizarem-se e face à inconveniência de integrarem cadeias produtivas
de larga escala, no inevitável papel de elo pobre subcontratado, os agentes da economia solidária
têm como alternativa aprofundarem sua inserção local e encetarem redes de cooperação mais
amplas, brindando ademais outros serviços, de eduçação, saúde, habitação e poupança. Parece
ser essa a lição das experiências em que a economia solidária logrou uma dinâmica sistêmica, a
exemplo do cooperativismo de crédito ou dos arranjos produtivos em assentamentos da reforma
agrária2.
Nos dias hoje, o problema fundamental que vocaciona e justifica a presença da economia social
segue o mesmo, ou mais que dantes: precisamos exatamente dela, ou seja, de uma economia não
apenas subsidiariamente preocupada com o desenvolvimento social, ou tolerante a mecanismos
compensatórios de distribuição da riqueza, mas cuja lógica intrínseca e cujas condições externas
objetivas de funcionamento ensejem e dependam de dinamismos de cooperação e reciprocidade,
fomentadores de eqüidade e justiça social. Essa não virá, nem a tempo nem suficientemente, da
solidariedade redistributiva do Estado. Não virá tampouco do crescimento econômico provocado
pela lógica mercantil, pois nela predominam ainda mais os fatores de concentração da riqueza e
menos ainda importa ao capital a sorte ou o simples abandono a que relega seus colaboradores.
Não virá por fim das meritórias porém supletivas iniciativas de solidariedade social voluntária, à
medida que não alteram as regras do jogo econômico e não suscitam verdadeiramente os agentes
protagonistas de uma nova outra economia.
A economia do capital mostra-se inigualável apenas quando examinada em seus próprios termos.
A razão instrumental que a preside propõe soluções simples que a tornaram plausível, atraente e
bem sucedida, como forma pretensamente espontânea de arbitragem e meio privilegiado de
garantir as melhores soluções. Contudo, ela possui uma contradição fatal, pois apenas preserva
sua racionalidade como sistema ao preço da eliminação sistemática dos fatores que geram
impasse ou perturbações à sua continuidade. Custo desprezível para quem nela se mantém, mas
extremamente caro para quem o paga. Diante disso, do ponto de vista sistêmico, a via que se
apresenta conduz a um novo sistema de regulação, à institucionalização social da economia, que

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Um dos casos históricos mais interessantes, embora bruscamente interrompido e ainda carente de estudos sob esse
ponto de vista, corresponde às empresas socializadas durante a Unidad Popular, no Chile. Não deve ser
coincidência que a reação popular de luta pela sobrevivência nesse país, já sob o regime militar, tenha inspirado a
primeira teorização sobre a economia solidária na América Latina.
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discipline a liberdade imanente à conduta econômica, o que é factível somente a partir de


fundamentos éticos conscientes e de uma deliberação política, como aliás aconteceu cada vez
que o pêndulo moderno oscilou do mercado para o Estado. A economia social é um dos
movimentos a operar nesse sentido, de lenta e incerta alteração na relação de forças, além de
representar, por suas lições e por suas possibilidades futuras, uma de suas fontes de energia e de
exemplificação.

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