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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Verítatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
A IN U IV

42
J U N H C

19 6
ÍNDICE

Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Os fenómenos de psicografia ou de escrita automática


nao seriam flagrantes testemunhos de que os espirites baixam
sobre determinadas pessoas ?" S27

II. DOGMÁTICA

2) "Na Suécia, o Sínodo Luterano e o Parlamento resolve-


ram promover as mulheres ao sacerdocio (luterano). Éste exem-
plo nao merecerá ser imitado em outros países, mesmo entre
católicos ?"

III. MORAL

3) "Que se pode dizer de certo sobre a castracáo de meninos


outrora efetuada a fim de se Ihes conservar a voz infantil de
soprano ?"

IV. LITURGIA

U) "Que sentido tém as procissóes t&o estimadas pela pie-


dade popular ?

Nao seráo concessóes indevidamente feitas a religiosidade


primitiva ou á mentalidade paga ?"

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

5) "Diz-se que os católicos tém perseguido os protestantes


na Colombia. Que ká de certo nos diversas noticias espalhadas
257
sobre o caso ?

CORRESPONDENCIA MIÚDA 27^

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

IV — N? 42 — Junho de 1961

I. CIENCIA E RELIGIAO

VIDENTE (Curitiba) :

1) «Os fenómenos de psicografia ou de escrita automá


tica nao seriam flagrantes testemunhos de que os espiritos bai-
xam sobre determinadas pessoas ?»

Acontece que certos «médiuns» em sessáo espirita (ou


mesmo fora desta) se póem a escrever mensagens como se fós-
sem provenientes de um espirito desencarnado. O conteudo
surpreendente dessas comunicagóes (que por vézes revelam
acontecimentos ocultos ou futuros), o estilo em que sao redi-
gidas e outras circunstancias levam muitas pessoas a crer
que realmente se trata de intervencóes de espíritos que bai-
xam sobre o respectivo «médium» e lhe movem a mao para
escrever Tal fenómeno se chama «escrita automática» ou
«psicografia». Alian Kardec e sua escola, dependentes dos
conceitos de psicología do sáculo passado, tém essa mamfes-
tacáo na conta de urna das provas mais importantes de que,
em verdade, existem espiritos desencarnados que se comum-
cam aos homens em sessóes espiritas. A ciencia moderna, po-
rém explica a escrita automática potf via meramente natural,
como desencadeamento de um processo psicológico que dis
pensa por completo a interferencia de «guias» do Além.
É o que verificaremos abaixo mediante breve considera
rán das tres expressóes de alma que geralmente concorrem
para a produgáo da escrita automática : o automatismo psi
cológico, a percepcáo extra-sensorial e o desdobramento da
personalidade.

1. O automatismo psicológico

1 É fato averiguado que os nossos processos de conhe-


cimento (quer realizados pelos sentidos, quer pela inteligen
cia) próvocam movimentos musculares correspondentes, dos
quais geralmente nao temos consciéncia. É a este fenómeno
que se dá o nome de «automatismo psicológico».

Urna experiencia bem clara comprova a afirmacao:


Toma-se urna 161ha de papel branco sdbre a qual se traca,um
circulo O e duas linhas perpendiculares AOB e COD. Esta fólha é

_ 227 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu.

colocada sobre u'a mesa, ficando a linha AOB na direcáo esquerda-


direita A seguir chega-se ao papel um observador portador de um
pindufo, ou slfa^'de um fio a cuja extremidade inferior está preso
Sm pequeño corpo pesado (e, se possível, brilhante ; o observador
devele conservar de pér sem apoiar muito o cotovelo ao corpo. Su-
eere-se entáo a essa pessoa que concentre a sua atengao na linha
AOB- deixe o péndulo cair na direcáo do centro O, sem, porém, to
car o papel; procure outrossim com cuidado conservar o péndulo
imóvel, evitando oscilagSes do braco.
Verifica-se que, ao termo de alguns segundos ou, no máximo, de
alguns minutos, o péndulo comeca a balancar na direcáo AB, per-
cofrendo um arco que recobre toda a linha; a velocidade e a ampli-
tude dessas oscilagoes tendem a se aumentar, principalmente se o
observador fizer esfórgo especial para se conservar mais e mais rijo
ou imóvel.
Urna vez obtidos ésses resultados, sugerir-se-á á mesma pessoa
pense na linha COD; se o paciente de fato obedece logo as oscila-
coes AB diminuem de amplitude e velocidade; o péndulo chega mes-
mo a um momento de repouso, para, sem demora, lecomecar a ba
lancar dessa vez no sentido COD !
Em urna terceira experiencia, pede-se ao individuo, concentre a
sua atencSo no círculo O; observará que, em breve, o péndulo estará
percorrendo a periferia désse globo. Se, por fim, o observador se
decidir a fazer todos os esforgos para imobilizar o fio pendente, vera
aue toda a sua luta so servirá para ativar a movimentac&o do ins-
tTumento. Se, ao contrario, deixar de se empenhar1 por deter o pén
dulo nao se importando com as oscilag5es respectivas, o objeto em
breve recuperará sua estabilidade inicial.
Estas experiencias bem mostram que as nossas atividades mais
profundas e secretas de concentraeao e raciocinio podem, sem que o
saibamos. desencadear na superficie do corpo e no n°sso própr o
ambiente movimentos que parecem inexplicáveis... (inexplicáveis
simplesmente pelo fato de nao termos consciéncia da relagao que
existe entre a referida atividade interna e as oscilacoes externas).
De resto repetidas experiencias no mesmo setor de pesquisas evi-
denciaram que, mediante concentracao do pensamento, se podem
obter movimentos musculares e nervosos assaz complexos.

Digamos agora que o operador, em vez de tomar um pén


dulo, se sirva de um lápis, urna pena ou um estilete qualquer,
para exprimir os movimentos musculares desencadeados pela
sua atividade mental. A conseqüencia será bem compreensí-
vel: com tal instrumento, o individuo comeeará a escrever, e
escreverá algo referente ao objeto para o qual sua atengáo
está voltada; essa escrita exprimirá naturalmente os racioci
nios e também as divagacóes da fantasía do escritor; conheci-
mentos, imagens e afetos contidos na subconsciencia ou ñas
profundidades da alma viráo assim á tona, provocando sur-
présa e admiragáo tanto no sujeito como nos seus observa
dores.
Eis um primeiro passo dado para explicar o fenómeno da
psicografia : pode alguém pór-se a escrever por efeito automa-

— 228 —
A ESCRITA AUTOMÁTICA OU PSICOGRAFIA

tico e inconsciente de concentracáo de pensamento ou de aten-


cao dispensada a algum objeto.
Demos agora novo passo.

2. Sabe-se que os processos de automatismo psicológico


ácima referidos podem ser provocados nao sómente

por concentracáo do pensamento empreendida voluntariamente


pelo operador, mas também
por sugestSes inconscientemente recebidas de íora, sugestfies
fortes, capazes de motivar um comportamento totalmente novo da
parte do paciente; outrossim
por irrupcao imprevista de conhecimentos latentes na subcons
ciencia do individuo.

Vejamos de perto o alcance de cada urna dessas tres


causas:

1) Concentracáo voluntaría da atencao sobre determi


nado objeto. Era esta a causa que no referido exemplo do
péndulo provocava as oscilagóes do objeto.
No setor da psicografia, verifica-se o seguinte : há certas
pessoas particularmente vibráteis e sugestionáveis, as quais
basta sentar-se a u'a mesa, pegar um lápis, colocar a máo
sobre urna fólha de papel e deter seu pensamento sobre deter
minado assunto, para que se ponham a discorrer por escrito
sobre ésse assunto. Nao é necessário que pensem em escrever
determinada frase; é-lhes suficiente conceber a idéia de escre
ver alguma coisa...; tomem, a seguir, urna atitude meramen
te passiva, e sua máo comegará realmente a escrever. Muito
menos será necessário que tais pessoas sejam colocadas em es
tado de transe ou de sonó hipnótico. Na maioria dos casos,
as referidas pessoas, ainda que se achem acordadas, váo es-
crevendo sem saber, o que estáo escrevendo.
Os individuos que tém temperamento táo vibrátil, podem culti
var ésse dom, tornando-se cada vez mais capazes de exprimir auto
máticamente o que lhes vai no fundo da consciéncia e da subcons
ciencia. É ésse cultivo que em linguagem espirita se chama «desen-
volvimento da mediunidade».

A segunda causa de automatismos vem a ser

2) Sugest5es inconscientemente recebidas de fora e as-


similadas pelo paciente. Essas sugestóes podem ter influencia
extraordinaria, seja positiva (impelindo a agir), seja negati
va (inibindo o sujeito). Para obter automatismos de tal espe
cie, nao é necessário provocar, no paciente, estado de hipno-

— 229 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 1

se: a certas pessoas, particularmente vibráteis, basta que se


lhes dé a conhecer com algumas minucias e alguma motiva-
gáo, o nome e o estilo de algum escritor bem caracterizado;
a seguir, caso se lhes sugira, em circunstancias apropriadas,
que elas sao realmente tal escritor, passam a escrever de
acordó com o estilo e as demais características do mencionado
autor.

De resto, o próximo número de «P.R.» apresentará urna resposta


sobre a fórca da sugestSo.

Deve-se mencionar outrossim, como causa de automa


tismos,

3) A imipcáo espontanea de conhecimentos latentes na


subconsciencia do individuo. Tal irrupgáo se dá principalmen
te quando a pessoa sofre grave choque ou traumatismo psí
quico, seja por efeito de urna noticia abaladora, seja por mo
tivo de hipnose ou transe. Entáo, com muito mais facilidade
do que no estado de vigilia e de dominio de si, vém á tona
da consciéncia nogóes contidas habitualmente em estado la
tente na subconsciencia; essas nogóes, que o paciente adqui-
riu talvez por meio de leituras, conversas ou observagóes dos
anos de infancia e que nunca mais utilizou desde táo remota
época, afloram á consciéncia, associando-se livremente entre
si e induzindo a pessoa a narrar historias estranhas, visóes,
«revelagóes»...; a associagáo de idéias e imagens faz-se en
táo desimpedidamente porque está cancelada a censura que a
pessoa habitualmente exerce sobre si mesma quando se acha
consciente.
Estas observagóes concorrem, sem dúvida, para explicar
a índole maravilhosa de certos casos de psicografia. Mas ain-
da nao bastam para dar conta do fenómeno em toda a sua
extensáo. Será preciso considerar outra fonte de automatis
mos (mais nova no conhecimento dos estudiosos e ainda mais
surpreendente), que é a chamada

2. Percepgao extra-sensorial

1 As tres causas de automatismos até aqui enunciadas supSem


que a pessoa só manifesté nocñes que ela pode ter adquirido pelas
vias normáis de conhecimento, seja em idade adulta, seja nos pri-
meiros anos de vida. É grande o número de idéias que guardamos
em nossa subconsciencia sem fazer uso délas; chega mesmoa cons
tituir 7/8 dos nossos conhecimentos. Em outros termos: habitual
mente só lidamos com urna oitava parte das nocoes que) adquirimos
desde os anos da infancia; 7/8 ficam armazenados, latentes, em nos-
so subconsciente.

— 230 —
A ESCRITA AUTOMÁTICA OU PSICOGRAFIA

Há, porém, inegávelmente casos nos quais a pessoa, em


psicograíia, escreve noticias plenamente verídicas que, de cer-
to, nao pode adquirir por alguma das vias comuns e que, por
isto, parecem ser testemunho irrefragável de que um espirito
do Além, baixando sobre o médium, as quis revelar.

É o que se dá, por exemplo, quando alguém, em mensagem psi-


cografada, comunica aos seus companheiros de sess&o que Fulano
acaba de soírer grave acídente de automóvel ou está morto em lo-
calidade muito distante, sem que se tenha podido de modo algum
prognosticar a desgrasa.

Como explicar tal íenómeno pelas íaculdades naturais de conhe-


cimento de que dispSe a alma humana ?

Os estudiosos modernos, dispensando o recurso a espíri-


tos do Além, apelam para a «percepgáo extra-sensorial» (tam-
bém dita «fenómeno psi-gama»). Trata-se de um tipo de co-
nhecimento que que nao é o dos cinco ou seis sentidos habi-
tualmente utilizados por nos e que chega a ultrapassar as li-
mitagóes que o espago (as distancias) e o tempo (o passado
e o futuro) impóem aos sentidos.
E como se poderia provar que de fato existe tal percepgáo
e que ela está contida dentro das potencialidades naturais da
alma humana ?

A investigagáo dos íenómenos de percepcáo extra-sensorial se


deve principalmente a J.B. Rhine, professor da Universidade de Duke
nos Estados Unidos da América. Eis, em rápidos traeos, a experi
encia clássica empreendida e milhñes de vézes repetida pelos estu
diosos neste setor (desenvolvemos aquí aspectos do mesmo assunto
já tratado em «P.R.» 13/1959, qu. 8):

Toma-se um baralho (dito «de Zener») constituido por


cinco series de cinco cartas cada urna, sendo cada serie dotada
de um símbolo próprio: respectivamente cruz, estréla, quadrado,
círculo e linhas onduladas. Estas 25 cartas sao bem baralha-
das por meio de aparelho especial, de modo a ficarem numa
ordem totalmente fortuita. Feito isto, o operador pede a um
percipiente colocado atrás de urna cortina ou mesmo em ou-
tra sala ou casa, queira indicar sucessivamente os símbolos
das cartas, observando a ordem em que estáo amontoadas
sobre determinada mesa; todas as vézes que o percipiente
enuncia urna carta, tomam-se as medidas necessárias para que
nao chegue a saber se respondeu certo ou nao. Em tais con-
dicóes, é obvio que a pessoa tem em cinco lances urna pro-
babilidade de acertar e, em 25 lances, cinco probabilidades.

— 231 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 1

Aumentando-se o número de provas, a media de acertos pelo


cálculo das probabilidades guardará sempre a proporgáo
de 1/5.
Pois bem; na prática verifica-se que o número de casos
de acertó ultrapassa esta cota,... e ultrapassa táo notoria
mente que o excesso já nao pode ser explicado pelas oscila-
góes que as leis da probabilidade admitem; em conseqüéncia,
os estudiosos foram levados a admitir, dentro da naturezá hu
mana, urna auténtica faculdade de conhecer que nao é a dos
sentidos e que recebe o nome de «via ou faculdade extra-sen
sorial».

Eis alguns dos resultados obtidos. Em seu primeiro livro, «Ex-


tra-Sensory Perception», de 1934, Rhine afirmava que, numa serie
de 700 experiencias complexas, o mesmo percipiente acertara na pro-
porcáo de 8/25, em vez de 5/25 (portante com um excesso de 3, cor
respondente a mais de 50% do que se esperaría).
De 1934 a 1940, a escola de Rhine realizou 2.966.348 ensaios de
tal tipo; os resultados obtidos sempre se avantajaram considerável-
mente sobre aquilo que se podia aguardar. As cifras mais impres-
sionantes foram alcancadas pelo Prof. B.F. Riess, do «Hunter Col-
lege» de Nova Iorque. Experimentador e percipiente colocaram-se
em predios diferentes, sendo no caso utilizados relógios sincroniza
dos. O dr. Riess dava ao «adivinhador» um minuto para enunciar
cada carta. As series de lances foram repetidas num total de 74 en
saios; ora em um déstes ensaios o percipiente acertou todas as car
tas; em outros, acertou mais de 20, obtendo a media geral de 18
acertos (em lugar dos cinco previstos pelo cálculo das probabilidades).

Para nao nos alargarmos, citamos aqui a conclusa© que dos fa-
tos deduziram os dentistas reunidos no 1» Coloquio Internacional de
Parapsicología em Utrecht (Holanda) no ano de 1953, sob a presi
dencia do Prof. H. Price, da Universidade de Oxford. Diante de 62
congressistas (físicos, químicos, médicos, engenheiros, psicólogos,
psicanalistas, etc.) provenientes de 14 países, declarou o Dr. Thou-
less, psicólogo de Cambridge:

«Juntando-se ao conjunto dos testemunhos já recolhidos, as re


centes experiencias de Rhine, de seus colaboradores, de Soal, de Tyr-
rell e de W. Carington fazem desaparecer toda dúvida tanto sobre a
realidade do fenómeno (psl-gama) como sobre a possibilidade de o
demonstrar por métodos experimentáis... As provas em favor da
realidade do fenómeno sao agora tao decisivas que) sómente a igno
rancia dos resultados experimentáis pode explicar o ceticismo».

Urna vez admitida a realidade de urna faculdade de conhe


cer natural á alma humana e independente dos cinco ou seis sen
tidos, pergunta-se, em vista de elucidar o fenómeno mesmo
da psicografia: como, em que circunstancias, se exerce essa
potencialidade da alma ? Eis o que as experiencias permitem
dizer em resposta:

— 232 —
A ESCRITA AUTOMÁTICA OU PSICOGRAFIA

a) A percepcáo extra-sensorial parece independente das


limitacóes do espaco. Com efeito, as experiencias de Rhine fo-
ram instituidas até mesmo entre individuos colocados em ci-
dades e em continentes diversos (a mais significativa regis-.
trou-se entre um grupo de estudiosos situados na Universida-
de de Duke dos Estados Unidos e o Dr. Marchesi, que se acha-
va em Zagreb na Iugoslávia, a urna distancia de mais de
6.000 km). Tais ensaios deram a ver que os obstáculos mate-
riais, como paredes, montanhas, etc., nao afetam os resulta
dos das experiencias nem dificultam o conhecimento extra-
-sensorial. Doutro lado, nao se pode dizer que vínculos físicos,
como fios de ligagáo entre o operador e o percipiente, fadli-
tem a percepgáo.

b) A percepcao extra-sensorial é independente também


das categorías de tiempo (passado, presente e futuro). Com
relacáo aos acontecimentos do passado e do presente, as
experiencia de Rhine nao deixam dúvida de que éles
estáo dentro da aleada do conhecimento extra-sensorial: as
pessoas testadas pelos estudiosos mostraram ter conhecimento
preciso de fatos acerca dos quais elas nao podiam normalmen
te colhér informacóes nem no momento passado em que ocor-
reram, nem no instante presente em que elas davam a res
pectiva noticia.
Mais surpreendente ainda é a predicáo de acontecimen
tos futuros. Usando-se o baralho de Zener, por exemplo, al-
guns percipientes foram convidados a anunciar o tipo de car
ta que seria tirada 24 h mais tarde ; ora a proporgáo de acer-
tos, também em tais casos, ultrapassou de longe a expecta
tiva, chegando-se a calcular que resultado igual por via do
acaso só poderia ser obtido em 1035 experiencias.
Outro exemplo muito significativo é o que narra o Prof. W.H.C.
Tenhaeff, da Universidade de Utrecht (Holanda) :

«No dia 17 de Janeiro de 1952 mostret a0 Sr. Croiset urna sala


de Rotterdam, na qual devia realizar-se urna reuniáo no dia 20 de
Janeiro. Nessa sala havia trinta lugares. Perguntei ao Sr. Croiset
quem haveria de assentar-se, no dia 20, no assento n' 18. Este nume
ro Idra escomido ao acaso, por sorte. Depois de alguna instantes, o
Sr Croiset me disse que nao recebia nenhuma impressao e pediu
que indicasse outro assento. Foi o que liz. Revelou entáo Croiset
que nesse outro lugar se sentaría urna senhora com cicatrizes na
face, em conseqüénda de um acídente automobilistico soirido durante
urna temporada na Italia. Em relacao a esta senhora, yeio-lheá men
te a «Suonata al chiaro di luna». No dia 20 de jane.-ro, ás 20,45 h,
verificou-se que dos 28 convidados á reuniáo haviam comparecido

— 233 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 1.

apenas 27 e precisamente o lugar n' 18 estava desocupado. No lugar


previsto por Croiset assentou-se a senhora de um médico. Tinha ci-
catrizes no rosto, resultados de um acídente de automóvel na Italia,
durante as ferias. Seu marido informou que, de fato, a «Suonata al
chiaro di luna» incomodava muito a senhora, porque se associáva a
urna questao intima de sua vida».
O Prof. Hans Bender, da Universidade de Friburgo (Alemanha),
fez experiencias igualmente surpreendentes com o mesmo percipien-
te holandés, Gerard Croiset; cf. H. Bender, Parapsychologie, Ihre
Ergebnisse und Probleme. Bremen 1954, pág. 31.

c) A percepcao extra-sensorial é comum a todos os ho-


mens. Em uns, porém, apresenta-se mais agugada ; em ou-
tros, menos. Nada tem de patológico ou anómalo. Rhine ape
nas verificou que os melhores resultados foram obtidos em pes-
soas de temperamento mais emotivo e intuitivo; acentuado ri
gor intelectual e exacerbado espirito crítico dificultam tal mo-
dalidade de conhecimento. Por isto, de modo geral, as mulheres
sao melhores percipientes do que os homens; e as criancas,
melhores que os adultos.

d) O conhecimento extra-sensorial pode ser favorecido


por fatóres extrínsecos. Observa-se que tem grande importan
cia positiva urna atitude de confianza do percipiente em suas
faculdades ; espontaneidade e alegría muito valem no caso,
ao passo que constrangimento e pessimismo inibem ; por isto,
pequeñas doses de ingredientes que despertam o animo, favo-
recem a percepgáo extra-sensorial, enquanto drogas deprimen
tes a sufocam. Certa conoentragáo do percipiente sobre o
objeto a ser percebido é necessária ; demasiada concentracáo,
porém, toma-se prejudicial. Verifica-se também que no mes
mo individuo o vigor da percepgáo extra-sensorial vacila bas
tante de um dia para outro ou até de momento para momen
to; a repetigáo freqüente das experiencias parece cansar a fa-
cuídade de perceber extra-sensorialmente, acabando mesmo
por sufocá-la. Esta foi urna das conclusóes mais decepcionan
tes a que chegaram os experimentadores. — Doutro lado, cons
ta que a índole pessoal do operador também tem sua influen
cia na produgáo do fenómeno; dois experimentadores podem
obter resultados bem diversos com um mesmo percipiente.
Os estudiosos aínda nao se podem pronunciar com muita preci-
sáo sobre a percepcáo extra-sensorial. Contudo o que hoje em día
se sabe sobre tal assunto já é suficiente para explicar em ter
mos científicos os casos de psicograíia que, por suas mensagens pro-
féticas ou surpreendentes, parecen» depender da mspiracao de espl-
ritos provenientes do Além.

— 234 —
A ESCRITA AUTOMÁTICA OU PSICOGRAFIA

Recapitulando tudo quanto acaba de ser exposto, conclui-


-se que as noticias psicografadas, quando tém aspecto mara-
vilhoso,

ou sao conhecimentos adquiridos normalmente pelo pa


ciente em época muito remota e guardados em estado latente
na subconsciencia, de modo que, quando sao projetados me
diante a devida provocagáo, parecem totalmente novos ao
sujeito mesmo e aos seus observadores,

ou sao conhecimentos adquiridos por via extra-sensorial


na ocasiáo mesma em que o paciente os profere por escrito,
impelido pelo correspondente automatismo ou movimento
muscular.

Ainda para explicar os fenómenos de psicografia, íaz-se misíer


levar em conta um tercelro elemento, que, com o automatismo e o
conhecimento extra-sensorial, dá conta adequada dos casos de escri
ta automática. É o chamado

3. Desdobramento da personalidade

É fato comumente aceito que todo estado de consciéncia


tende a tomar uma forma pessoal, ou seja, a se afirmar como
estado de determinado sujeito ou «eu». Ora, quando um su
jeito normal é afetado por conhecimentos que lhe parecem
novos ou estranhos (provenientes do subconsciente ou da per-
cepgáo extra-sencorial), ele nao se reconhece mais; por isto,
tende a atribuir tais conhecimentos a um outro «eu», ou seja,
tende a afirmar que dentro déle há uma outra personalidade,
responsável pelos efeitos que surpreendem o «eu» normal ou
consciente; essa nova personalidade chega mesmo a ser de
signada por um nome próprio, que, conforme o espiritismo, e
o apelativo do «espirito guia» ou do espirito desencarnado que
baixa sobre o médium a fim de o inspirar. Tal fenómeno
é chamado «personificagáo» ou «desdobramento da persona
lidade». — Todavía, como bem se vé, essa mudanca ou du-
plicacáo da personalidade nao yem a ser senáo mudanca de
estado da mesma alma ou variacáo do modo de agir de tal
alma ; ña verdade, o «eu» substancial, substrato das varias
atividades psíquicas, fica sendo sempre o mesmo.
Estas observacóes já bastam para dar a ver que a escri
ta automática de modo nenhum constituí comprovante da dou-
trína espirita. A luz da ciencia de nossos días, é fenómeno
que se reduz perfeitamente ás potencialidades naturais da alma

— 235 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961. qu. 1

humana (é fenómeno «anímico», dir-se-ia em linguagem es


pirita), tornando-se entáo vá ou fantasista a hipótese de in-
tervencóes do Além.

Apéndice

Á guisa de complemento e espécimen, segue-se u'a men-


sagem psicografada, ... e psicografada pelo famoso médium
Francisco Cándido Xavier, de Pedro Leopoldo (MG); consti
tuí o conteúdo do livro «Nosso Lar», pretensa revelacáo do
espirito «André Luis» a Francisco (Chico) Xavier. — Tais
noticias, lidas com imparcialidade, longe de sugerir o trans
cendente e o espiritual, apresentam-se profundamente marca
das pelas notas de banalidade e vá imaginacáo.

«André Luís» seria o pseudónimo «que encobre a personalidade


de distinto médico patricio desencarnado no Rio de Janeiro». Relata
na obra «Nosso Lar» urna serie de acontecimentos ocorridos desde
a marte carnal de André Luis até o ingresso déste, a titulo de ge
nuino cidadáo, na colonia espiritual chamada «Nosso Lar».
Imediatamente depois da separacao do corpo (morte), o espi
rito já desencarnado, do dito médico passou por um periodo assaz
difícil, confuso e desorientado, sempre vagueando, sem saber por onde
nem para onde. «Persistiam — conta ele — as necessidades fisio
lógicas sem modificagáo. Castigava-me a fome todas as fibras, e,
nada obstante o abatimento progressivo, nao chegava a cair defini
tivamente em absoluta exaustáo. De quando em quando, deparavam-
-se-me verduras que me pareciam agrestes, em torno de humildes
filetes d'água a que me atirava sequioso. Devorava as ídlhas desco-
nhecidas, colocava os labios á nascente turva, enquanto mo permi-
tiam as fórcas irresistíveis, a impelirem-me para frente. Muita vez
suguei a lama da estrada, recordei o antigo pao de cada dia, ver-
tendo copioso pranto. Nao raro era imprescindivel ocultar-me das
enormes manadas de seres animalescos, que passavam em bando,
quais feras insaciáveis...» (pág. 17).
Essa peregrinacao durou oito anos... Finalmente André Luís
encontrou outro espirito, Claréncio, «um velhinho simpático que sor-
riu paternalmente» e se apoiava num cajado de substancia lumino
sa Foi entáo transportado. Pararam «á frente de grande porta en-
cravada em altos muros, cobertos de trepadeiras floridas e gracio
sas» (pág. 20). Acomodaram-no num leito de emergencia, «no pa-
vilháo da direita». Viu-se entáo num confortável aposento, «ricamen
te mobiliado». Serviram-lhe «caldo reconfortante, seguido de agua
muito fresca», portadora «de fluidos divinos». A noite ouviu «divina
melodía». Levantou-se e chegou a enorme saláo, «onde numerosa as-
sembléia meditava em silencio». Soube que era a hora da oracáo,
dirigida pelo govemador, a través do radio e da televisáo, «com pro-
cessos adiantados».
No dia seguinte encontrou-se com o «irmáo Henrique de Luna»,
do Servico de Assisténcia Médica daquela Colonia Espiritual. Soube
entáo que, só naquela seccao, «existiam mais de mil doentes espiri-
tuais». Examinado, recebeu o seguinte diagnóstico : «A zona dos seus

— 236 —
A ESCRITA AUTOMÁTICA OU PSICOGRAFIA

intestinos apresenta lesdes serias com vestigios muito exatos de cán


cer; a regiao do ligado revela dilacerares; a dos rins demonstra ca-
cacteristicas de esgotamento prematuro» (pág. 30). Recebeu como
remedios passes magnéticos.
Um dia loi passear. «Quase tudo, memorada copia da Térra.
Cores mais harmónicas, substancias mais delicadas. Forrava-se o
solo de vegetacáo... Aves de plumagens policromas cruzavam os
ares.... Identiíicava animáis domésticos» (pág. 38). Viu «vastas ave
nidas, enfeitadas de árvores frondosas». Entidades numerosas iam e
vinham...
Afinal soube que estava numa das mu itas Colonias espirituais.
Aquela chamava-se «Nosso Lar», consagrada ao Cristo (pág. 22) e
iundada por portugueses distintos, desencarnados no Brasil no séc.
XVI segundo constava dos «arquivos do Ministerio do Esclareci-
mento» (pág. 47). A Colonia era dirigida por um Governador (que
naqueles dias comemorava o 114» aniversario de governanca), assis-
tido por 72 colaboradores. Dividia-se em seis ministerios, orientados
cada qual por doze ministros: o Ministerio da Regeneracáo, o do Auxi
lio o da ComunicacSo, o do Esclarecimento, o da Elevacáo e da Uniáo
Divina... É no Ministerio do Auxilio que preparam as «reencarna-
coes terrenas». Havia na Colonia «mais de um milhao de criaturas»
(pág. 207).
No passado, a Colonia teve que enfrentar muitas tribulacSes.
Houve maus governos, com muita oposicáo, inclusive assaltos por
parte de outros espíritos, «que ter.taram invadir a cidade, aprovei-
tando brechas nos servicos de Regeneracáo, onde grande número de
colaboradores entretinha certo intercambio clandestino» (pág. 48).
Mas o govemadar «mandou ligar as baterías elétricas das mura-
lhas da cidade, para emissao dos dardos magnéticos» (pág. 49).
Um dia foi de aerobús ao bosque das aguas,. Era um «grande
carro, suspenso! do solo a urna altura de cinco metros mais ou me
nos e repleto de passageiros» (pág. 50). Outro dia visitou urna casa
particular: «Movéis quase idénticos aos terrestres». Quadros, pia
nos, livros. Com relacáo aos livros, recebeu a seguinte informacáo:
«Os escritores de má fé, os que estimam o veneno psicológico, sao
conduzidos ¡mediatamente para as zonas obscuras do Umbral». Ha
via também urna sala de banho. Ao almógo serviram «caldo recon
fortante e frutas perfumadas, que mais pareciam concentrados de
fluidos deliciosos» (pág. 86).
Também o problema da propriedade recebera sua solucáo. «Nos-
sas aquisicóes sao feitas a base de horas de trabalho. O bónus-hora,
no fundo, é o nosso dinheiro. Quaisquer utilidades sao adquiridas
com ésses cupons». Cada familia espiritual pode conquistar um lar
(nunca mais que um), «apresentando trinta mil bonus-hora» (pág. 100).
Em «Nosso Lar» existe também o Servigo de RecordacSes. Apli-
cam-se passes no cerebro, que restituem «trezentos anos de memo
ria integral» (pág. 103).
Certa vez, André Luis encontrou um anciáo, gesticulando, agar
rado ao leito, como se fdsse louco, gritando por socorro, pedindo ar,
muito ar! O homem estava sendo vitima de urna «carga de pensa-
mentos sombríos, emitidos pelos parentes encarnados» (pág. 127).
Recebeu entáo passes de prostracáo. Há também «agua magnetiza
da» e «operacSes magnéticas» (pág. 136).
Num daqueles dias apareceu na Colonia urna católica desencar
nada na Térra. Chegou, benzendo-se e dizendo: «Cruzes ! Credo !

— 237 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 2

Gracas á Providencia Divina, afastei-me do purgatorio...» Revelpu


que, na Térra, lora mulher de muito bons costumes, rezara inces-
santemente e deixara uns dinheirinhos para celebracáo de missas
mensais; em suma, íizera o possível para ser boa católica. Confes-
sara-se todos os domingos e comungara. Mas maltratava os escra-
vos. «Padre Amáncio, nosso virtuoso sacerdote, disse-me na confis-
sáo que os africanos sao os piares entes do mundo, nascidos exclu
sivamente para servirem a Deus no cativeiro». Morrera em 1888 e
só em 1939 alcancara o «Nosso Lar». Fóra longo seu «esfórco pur-
gatorial» (pág. 164).
Num domingo, o governador resolveu realizar o «culto evangé
lico» no Ministerio da Regeneracáo. Havia meninos cantores das es
colas de Esclarecimento, que cantavam o hiño «Sempre contigo, Se-
nhor Jesús», exccntado por duas mil vozos. Depois de outra cerimó-
nia do culto evangélico, entoaram o hiño «A Ti, Senhor, nossas vidas».
No fim, a Ministra Veneranda introduziu a melodía «A Grande Je-
rusalém» (pág. 208).
Tal é o «Nosso Lar».

Em outros volumes psicografados, André Luis continua


a descrever a vida e a atividade do mundo «depois da morte»,
mantendo-se sempre nesse estilo.
Ora bem parece que nao é o Além, mas um «Aquém» con
fuso e imaginario que a mensagem descreve. Assim se des
yenda o misterio da psicografia...

(O trecho ácima foi transcrito da obra de B. Kloppenburg, O


Espiritismo no Brasil. Petrópolis 1960, pág. 251-253).

H. DOGMÁTICA

GEKALDO (Rio de Janeiro) :

2) «Na Suécia, o Sínodo Luterano e o Parlamento re-


solveram promover as mulheres ao sacerdocio (luterano). Éste
exemplo nao merecerá ser imitado em outros países, mesmo
entre católicos ?»

Aos 10 de abril de 1960, domingo de Ramos, tres mulhe


res, Margit Sahlin, Elizabeth Djurle e Ingrid Presson, foram
instituidas «sacerdotizas» das comunidades luteranas da Sué
cia. Éste fato punha termo final a um movimento anterior
assaz agitado, no qual as autoridades luteranas e o Parlamen
to (Riksdag) tiveram íntimas partes (sabe-se que a Igreja Lu
terana na Suécia é Igreja Oficial ou do Estado).
Já em 1920 se tratou publicamente de dar o sacerdocio
luterano as mulheres naquele país setentrional; contudo, a

— 238 —
PROMOCAO DE MULHERES AO SACERDOCIO

opiniáo geral nao estando preparada para acolher tal inova-


gáo, b projeto nao foi adiante.
Em 1946, a questáo tornou-se de novo atual, merecendo
mais e mais a atengáo de teólogos luteranos, parlamentares e
civis, que manifestaran! opinióes divergentes sobre o assunto.
Ern 1955 o Parlamento comegou a estudar um projeto de lei
que autorizava o acesso das mulheres ao sacerdocio. Todavía
o Sínodo Luterano da Suécia, usando de plenos direitos seus,
opós o veto a essa tentativa, por 62 vozes contra 36 (12 de
outubro de 1957). Diante de tal atitude, a opiniáo pública se
levantou em solene protesto : os movimentos feministas da na-
cáo, em nome de seus 800.000 membros, desencadearam am
pia atividade para reivindicar o debatido favor, nao se conten
tando com substitutivo algum que, embora desse á mulher
mais iniciativa na igreja do que antes, nao chegasse a equi
parar a mulher ao varáo no exercício do sacerdocio. A pres-
sáo foi tal que o Parlamento resolveu recomegar o estudo do
projeto de lei: convocou mais urna vez o Sínodo Luterano, o
qual finalmente houve por bem aprovar a inovagáo por 69
vozes contra 29, aos 27 de setembro de 1958. Corrió se com-
preende, mesmo após éste alvitre as opiniñes nao se acalma-
ram ; formou-se em novembro de 1958 a «Frente Confessio-
nal», a qual considerava a nova lei como indevida acomoda-
gáo aos caprichos do Govérno e á mentalidade naturalista
moderna.

Tal medida chama realmente a atencáo¡ pois, nos países escan


dinavos em geral, o Cristianismo, sob a forma luterana; (rejeitando
decididamente o calvinismo), conservou multas das suas leis e obser
vancias tradicionais : os luteranos, por exemplo, ainda tém sua hie-
rarquia de arcebispos, bispos e presbíteros; a arquitetura de urna
igreja luterana assemelha-se muito á de um templo católico, até
mesmo no tocante ao altar e á sua posicáq; os trechos de epístolas
e Evangelhos lidos no culto dominical luterano sao muitas vézes os
mesmos que ocorrem contemporáneamente na Liturgia católica...
Diz-se alias que o rei Gustavo I Wasa (1523-1560), sob o qual se
introduziu a «Reforma» na Suécia, teve que lutar táo enérgicamente
contra os ¡novadores calvinistas como contra Roma !

Pergunta-se entáo : que fatóres teráo motivado a táo re


volucionaria medida de setembro de 1958 na Suécia ? Será
um auténtico desabrochar das riquezas do Cristianismo ou an
tes um desvio reprovável ?
Para chegar a conclusáo adequada, analisaremos abaixo
sumariamente os argumentos debatidos pelos teólogos na con
troversia : 1) a doutrina do Novo Testamento; 2) Feminis
mo naturalista e Feminismo cristáo.

— 239 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 2

O sacerdocio feminino já foi focalizado num plano mais espe


culativo em «P.R.» V1957, qu. 4. As consideracóes abaixo comple
tarlo o que ai foi dito.

1. A doutrina do Novo Testamento

Mais de urna vez os teólogos luteranos suecos, em nome


da S. Escritura, rejeitaram o sacerdocio das mulheres.

Um dos pronunciamentos mais notáveis deu-se em 1951: sete


dentre oito professóres de Exegese do Novo Testamento dasj Facul-
dades de Lund e Upsala entregaram á imprensa um comunicado de
clarando que «a promocjio de mulheres ao sacerdocio nai Igreja se
ria inconciliável com as conceptees do Novo Testamento e consti
tuiría urna infidelidade á Escritura Sagrada».

E quais teráo sido as razóes precisas evocadas no caso ?

Reduzem-se a duas: a) a escolha dos Apostólos ; b) o


mandamento do Senhor citado por Sao Paulo em 1 Cor 14,37.
Vejamo-las de per si.

a) A escolha dos Apostólos

A atitude de Jesús para com as mulheres é algo de iné


dito no ambiente judaico e grego em que o Senhor viveu ; de
fato, Cristo atribuiu a ambos os sexos os mesmos direitos e
as mesmas obrigacóes perante Deus (haja vista Mt 18,3 : «fa-
zer-se espiritualmente como crianga»; Mt 19,5: «dois numa
só carne»; Gal 3,28: «nem judeu, nem grego; nem servo, nem.
livre; nem varáo, nem mulher»). Quando, porém, quis esco-
lher os Apostólos, que haveriam de continuar a sua obra,
Jesús só escolheu varóes. De modo particular, a intencáo do
Senhor aparece na última ceia : só os Apostólos foram admi
tidos a esta, embora estivessem presentes na Cidade Santa
mulheres do círculo de colaboradores assiduas de Cristo (cf.
Le 8,1-3). A praxe judaica reconhecia a mulheres e enancas
o direito de participaren! da ceia de Páscoa ; Jesús, nao obs
tante, derrogou a ésse costume. Entregou apenas aos Apostólos
a Eucaristía e o poder de a celebrar futuramente ñas, assem-
bléias de culto (cf. Le 22,14-20); reservou também aos varóes as
incumbencias de pregar, conferir o batismo (cf. Mt 28,19s) e
administrar o poder das chaves (cf. Jo 20,19-23); de resto,
confiou aos Apostólos nao sómente a funcáo de pregadores,
mas também a de chefes do povo de Deus, encarregados de
representar o Senhor após a sua partida (cf. Mt 18,18;
19,27-29; Le 22,27-30).

— 240 —
PROMOCAO DE MULHERES AO SACERDOCIO

Ora, já que nao se véem razóes nem de. necessidade prá-


tica, nem de conveniencias, que justifiquen! a limitagáo da es-
colha feita por Jesús, conclui-se que, no caso, o Senhor esta-
belecia um principio ou urna norma independente de circuns
tancias históricas.

A escolha do Senhor bem pode ser ilustrada pelo íato- de que


Cristo queria fazer dos seus escolhidos os scus representantes atra-
vés dos séculos (el. Mt 28,19s). Ora é multo rica a nocáo judaica
de «representante», shaUach: designa um mandatario dotado dos
mesmos direitos e poderes que tocam ao mandante. Supondo-se tal
concertó na mente de Jesús, deve-se dizer que há continuidad© en
tre o ministerio de Jesús e os diversos encargos confiados aos Apostó
los e aos seus sucessores. Além disto, note-se que no Novo Testa
mento o ministro de Cristo nao é apenas Iugar4enente do Senhor
(em virtude de urna instituicáo jurídica), mas ele também simboli
za (por traeos de semelhanca ou afinidade) o Senhor Jesús (na epís
tola aos Hebreus e no Apocalipse a liturgia terrestre é apresentada
como imagem da Liturgia celeste): ao desempenhar as suas íunefies
sacerdotais, o ministro do altar é, portanto, urna imagem do Senhor;
é Cristo que néle e por ele consagra o pao e o vinho, perdoa os pe
cados, derrama a graca santificante no batismo e nos demais sacra
mentos ...

E Sao Paulo nota bem que, para representar o Cristo, só


o varáo é diretamente apto; á mulher toca representar ou re-
fletir a dignidade do varáo, indiretamente a de Cristo:

«O chefe de todo varáo é Cristo; o chefe da mulher é o varáo...


O varáo é a Imagem e o reflexo de Deus (Cristo); quanto k mulher,
é o reflexo do varáo. Em verdade, nao o varáo foi tirado da mulher,
mas a mulher é que foi tirada do varáo. O varáo nao foi criado
para a mulher, mas a mulher é que foi criada para o varáo. Sendo
assim, deve a mulher... ter sobre a cabeca o sinal de submissáo»
(1 Cor 11,3.7-10).

Mais ainda: na epístola aos Efésios, c. 5, referindo-se ao


matrimonio, Sao Paulo distribuí com exatidáo as fungóes de
«representar»: no lar, quem representa Cristo, desempenhando
conseqüentemente o papel de chefia, é o marido; quanto á es
posa, ela é revestida também de grande dignidade, dignidade
porém, de representante da Igreja (cf. Ef 5,22-32).

Destas consideragóes alguns luteranos mesmos da Suécia


(inclusive mulheres que entraram nos debates) depreenderam
claramente que o ministerio sacerdotal nao poderia ser esten
dido ás mulheres. Muito significativas sao, por exemplo, as
palavras de Magda Wollter:

«Os Apostólos, como se compreende, nao se tornam o Cristo;


éles apenas O representan!. Contudo a mera idéia de que u'a mulher

— 241 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 2

possa representar um homem já par si parece estranha, desde que


naja var6es que o possam íazer. Ó caráter masculino de Cristo apa
rece de modo particular em certos aspectos da representagáo, como
seiam a celebracáo da ceia e a reíeicáo pascoal» (Annorlunda, texto
citado por F.-R. Reíoulé, Le probléme des femmes-prétres en Sué-
de, em «Lumiére et Vie» VII 43, pág. 66).

b) O mandamiento do Senhor

Em 1 Cor 14, Sao Paulo exorta :

«Como se faz em tSdas as igrejas dos santos, estejam caladas


as mulheres ñas reunioes, pois nao lhe é permitido íalar (lalein). De-
vem estar submissas, conforme diz a Leí. Se quiserem esclareci-
mentos sóhre algum ponto, perguntem a seus maridos em casa, pois
é indecoroso para a mulher íalar em assembléia...» (33-35).

Ao que o Apostólo acrescentaí «Se alguém julga ser profeta ou


possuir dons espirituais, reoonheCa, ñas coisas que vos escrevo, um
precelto do Senhor» (v. 37).

A proibigáo de falar nao pode visar apenas a tagarelice,


pois esta nem ao varáo é lícita. O verbo grego" lalein, utiliza
do por Sao Paulo, tem sentido quase técnico no epistolario do
Apostólo, designando a pregagáo ou o ensino da Palavra de
Deus. Em 1 Cor 14,34, portante, o santo quer lembrar as
mulheres nao lhes ser lícito exercer urna fungáo que Cristo
cortamente confiou aos seus ministros. Esta interpretacáo é
confirmada por um confronto com os dizeres do Apostólo em
1 Tim 2,lls :

«Durante a instrucáo, a mulher deve ficar em silencio, com in-


teira submissáo. Nao permito que a mulher ensine ou tenha domi
nio sobre o varáo; deve permanecer em silencio».

Para corroborar a sua exortagáo, o Apostólo em 1 Cor


14 faz questáo de dizer que ela representa urna ordem do
Senhor Jesús mesmo. Alias, em toda esta epístola Sao Paulo
costuma distinguir entre as prescricóes ou as recomendagóes
que ele dá com a sua autoridade de Apóstelo, e as que ele
transmite qual mero arauto de Cristo; veja-se 1 Cor 7,10.12.25;
9,14; 11,23; cf. também 2 Cor 8,10. Donde se depreende que,
ao evocar em 1 Cor 14,37 a ordem do Senhor, Sao Paulo ten-
ciona dar autoridade absoluta á proibigáo formulada nos ver-
siculos anteriores.
É o que perceberam também varios dos teólogos lutera
nos suecos.

— 242 —
PRQMOCAO DE MULHERES AO SACERDOCIO

2. «Feminismo» e Feminismo

Os exegetas que nao quiserarrí reconhecer o alcance dos textos


bíblicos ácima citados, apelaram para o íato de que nem todas as
admoestacñes da Biblia gozam de igual autoridade e valor; existem
préscrigSes escrituristicas referentes nao a dogmas, mas a discipli
na, formuladas em vista de determinadas pessoas ou circunstancias,
destinadas a vigorar por tempo limitado, etc. Em particular, no to
cante á posigáo da mulher na sociedade, seja civil, seja religiosa,
dizem que o Novo Testamento supSe urna ordem de coisas hoje era
dia superada ou anacrónica, ordem de coisas, portento, que a socie
dade crista já nao pode observar ao pé da letra; de modo especial,
Sao Paulo teria sido influenciado por sua formacáo rabínica e pelas
concepcóes patriarcais do judaismo pré-cristáo.

Positivamente, apelaram para o fenómeno moderno cha


mado «feminismo», que tende a emancipar totalmente a
mulher, dando-lhe solene equiparagáo com o homem. Prin
cipalmente na Suécia tal movimento se tem acentuado : lá se
encontram mulheres em quase todas as profissóes e tarefas,
inclusive na de guarda civil... Seria entáo a Igreja a última
instancia a reconhecer a dignidade da mulher assim expres-
sa ? Houve também quem apontasse para vantagens de apos
tolado : a mulher «sacerdotiza» poderia executar melhor cer
tas funcóes junto a outras mulheres, junto a criangas, ou em
hospitais, em cárceres, etc. Em conclusáo, nada justificaría
que, em pleno séc. XX, as mulheres nao pudessem ter aces-
so, como os varóes, ao ministerio sacerdotal. Foi a razáo
principal, se nao única, que moveu apaixonadamente a opi-
niáo pública sueca em favor da inovagáo...

2. Que se poderia dizer diante de argumentacáo, a pri-


meira vista, táo justa e sensata ?

a) A atitude do Senhor, que inspirou a do Apostólo Sao


Paulo e a das subseqüentes geragóes cristas até hoje, nao pa
rece, como já notamos oportunamente, depender de precon-
ceitos patriarcais ou antifeministas, mas, sim, de um princi
pio geral ou de urna valorizagáo do varáo e da mulher náo>
sujeita.a circunstancias de época e local.

De resto (e isto algunsl luteranos mesmos o reconhecem) quem,


por conta proprla, tenta discernir a letra (elemento passageiro, aci-
dental) e o Espirito (elemento perene, essenoial) da S. Escritura, ar-
risca-se a desviar-se ou a deixar-se influenciar por nog6es heterogé
neas quicá pelos conceitos sociais e moráis da nossa época; atribuí
entáo a S. Escritura o que ela nSo quer dizer, em vez de deduzir
déla a genulna mensagem. Nao é fácil, em se tratando da conduta

— 243 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961. nu. 2

da mulher, distinguir entre o que é ensinamento divino universal e


o que é costume social de certa época, sujeito a evoluir.

b) Estas advertencias sao corroboradas pela considera-


gáo do que vem a ser o feminismo auténtico, inspirado tanto
pela ordem natural das coisas como pela S. Escritura mesma.
Em verdade, Deus fala aos homens nao apenas pela Bi
blia, mas também pela ordem natural das coisas ou pela cria-
gáo. Ora o Criador fez o ser humano em dois sexos : o mas
culino e o feminino. Quaisquer que sejam a época, a regiáo
e as modas sociais em meio as quais um individuo venha a
nascer, cada qual possui desde a sua origem, antes mesmo
de abrir os olhos ao mundo, um corpo de varáo ou de mulher,
dotado de fungóes próprias. Tal corpo, com as suas capacida
des individuáis de agir e reagir, vem a ser o grande sinal
das intengóes de Deus a respeito de cada um de nos.
Justamente um dos grandes méritos da psicología moder
na foi o de mostrar o nexo íntimo e a mutua dependencia do
físico e do psíquico no ser humano. Isto quer dizer, em úl
tima análise, que o varáo nao se realiza plenamente se nao
procurando desenvolver cada vez mais o que ele tem de típi
camente viril ou tornando-se cada vez mais varáo ; vice-ver-
sa, a mulher só se consuma desdobrando progressivamente a
sua entidade característica de mulher, nao... tornando-se
masculina.
Ora poder-se-ia assinalar alguma característica que defi
na em linhas gerais cada um dos dois seres ?
Sim. O corpo masculino, em urna palavra, significa a ini
ciativa (é ao varáo que compete iniciar, desencadear, comuni
car); correspondentemente, o corpo feminino, «vis-á-vis» do
corpo masculino, significa a receptividade, a acolhida e, conse-
qüentemente, a interioridade que fecunda com respeito e ter
nura o dom recebido do varáo. Isto nao quer dizer que a
mulher nao tenha iniciativas a tomar, mas, sim, que mesmo as
suas iniciativas seráo, de parto ou de longe, norteadas pala sua
vocagáo fundamental a receber e acolher: «A interioridade
parece ser realmente a dimensáo... que caracteriza dema-
neira especial a mulher», observa a escritora francesa Michele
Aumont (La chance d'étre femme. 1960, pág. 242).
Disto se depreende que nao pode concorrer para o bem
da mulher a tendencia a equipará-la em tudo ao varáo ou a
fazer déla como que urna duplicata do homem na sociedade;
a mulher que queira entrar em concorréncia cega e indistin
ta com o homem nos setores da profissáo, da política, da ca-
maradagem e da amizade, tal mulher acaba perdendo o que

— 244 —
PROMOCAO DE MULHERES AO SACERDOCIO

a caracteriza como mulher na sociedade — o que nao se dá


sem detrimento para ela mesma e para o bem comum.
Emmanuel Mounier, ao reproduzir recentemente impressóes de
urna viagem á Escandinávia, observava que o comportamento
quase indiferenciado de homens e mulheres na Suécia torna-
va «a mulher sueca... mais infeliz do que ela mesma freqüen-
temente reconhece» (Notes scandinaves, em «Esprit», février
1960, pág. 283).
Estas consideragóes dáo suficientemente a ver que, qual-
quer que seja a evolugáo da sociedade, a conduta do varáo
e da mulher jamáis será dependente simplesmente das leis ou
das concepgóes humanas; o cqrpo humano e suas fungóes
biológicas (que sao verdadeiros sinais pelos quais se manifes-
ta a personalidade) nao poderáo ficar sem significado; em
particular, o corpo da mulher deverá caracterizar as modali
dades de «emancipagáo» da mulher na sociedade.

3. Estas verdades, que pertencem ao setor meramente


natural, sao corroboradas e altamente valorizadas pela ideo-
logia crista. Com efeito; o Cristianismo vé no comportamen
to típico da mulher um símbolo muito rico — o símbolo da
atitude receptiva que compete a toda criatura frente ao Cria
dor; a qualquer individuo humano toca, sim, o papel de re-
ceber aberta e generosamente os dons de Deus, a fim de os
guardar e deixar desabrochar numa atitude de reverencia e
ternura. É ésse papel espiritual que a mulher, por sua natu-
reza física mesma, simboliza. Ésse papel, Maria SSma., Máe
de Cristo, o realizou por excelencia; ele se prolonga na Igre-
ja, metafóricamente apresentada por S. Paulo como mulher
ou como Esposa de Cristo isenta de mancha ou ruga (cf. Ef
5,27). — Nao é, pois, sem motivo que os feministas moder
nos geralmente «ignoram» (ou nao reconhecem) as posigóes
de Maria SSma. e da Igreja dentro da ideología crista.
Assim a mulher é, para o cristáo, como que um «vis-á-
-vis» de Deus; ela significa urna personalidade (ou, mais am-
plamente, ela significa a alma humana) chamada a dialogar
com eDus numa atmosfera de amor. Essa fungáo da mulher
ou ésse seu valor simbólico está longe de implicar humilhacao
ou 'degradagáo para a mulher; implica, antes, urna fungáo ex
tremamente rica ou digna : a mulher, por sua constituigáo
psico-somática, representa na sociedade crista nao o Cristo,
mas a Igreja,... a Igreja que gera o Cristo ñas almas.
Quanto á fungáo de representar o Cristo, Esposo, ela tem
que ficar naturalmente reservada ao varáo; a éste por insti-

— 245 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 2

tuigáo da natureza e por disposigáo explícita de Jesús, é que


se deve abrir o acesso ao ministerio sacerdotal, ministerio
pelo qual Cristo continua sua atividade de Chefe ou de Co-
municador da vida sobrenatural que as almas deveráo fe
cundar dentro de si.
Eis ai a razáo mais profunda pela qual tanto a Escritura
Sagrada como o ensinamento antigo e atual da Igréja se
opóem á promogáo das mulheres ás fungóes sacerdotais. Lon-
ge de significar mentalidade arcaica, esta posigáo negativa
vem a ser precisamente a garantía necessária para que a
mulher possa mais e mais afirmar as riquezas de sua índole
feminina, sem, porém, se desvirtuar.

3. Reflexáo final

Notam os observadores que a inovacáo instaurada na Suécia


tende a se generalizar por toda a Escandinávia : na Dinamarca, alias,
já loi introduzida há alguns anos, embora com menos alarde; na No
ruega, a lei de acesso das mulheres ao sacerdocio luterano já foi
votada e aprovada pelos poderes públicos, aguardando-se apenas a
sua execugáo; quanto á Finlandia, nao se vé como poderia licar alheia
ao movimento. Os progressos da inovacao váo causando mal-estar
e divisóes entre os próprios cristaos luteranos dessas e de outras
nacóes, pois mu i tos consideram a nova praxe como clamorosa der-
rogagáo aos principios formulados peía S. Escritura. A éste protes
to os ¡novadores respondem, como vimos, asseverando que o Senhor,
os Apostólos e os antigos cristaos só excluiram do sacerdocio as
mulheres por motivos acidentais de mentalidade, de estrutura so
cial.. ., motivos que tém de ceder as circunstancias da vida moderna.

Diante de tal situagáo, aflora-nos espontáneamente a


questáo : afinal quem será capaz de dizer de que lado está
a auténtica interpretagáo da S. Escritura ? Quem estará ha
bilitado para distinguir, sem desvirtuamento, o que na S. Bi
blia é proposigáo essencial, intangivel aos homens, e o que é
acidental, condicionado por circunstancias históricas transi
torias ?
Nao se vé como responder a tais questóes a menos que
se admita um magisterio infalivel dentro da Igreja, a quem
Cristo assista (como Ele mesmo prometeu em Mt 28,19), ma
gisterio mediante o qual os fiéis possam sempre interpretar
genuinamente a S. Escritura, evitando todo desvio, seja para
a direita, seja para a esquerda.
Assim o problema do acesso das mulheres ao sacerdocio
leva a focalizar um tema ainda mais central e importante, ou
seja, o principio de que «só a Escritura constituí fonte de fé».
O impasse criado no caso que acabamos de analisar, bem mos-

— 246 —
CASTRACAO PE CANTORES

tra que tal principio é falho, é .10 portador dos gérmens


de dissolugáo de que mais e mais se vem ressentindo a Re
forma iniciada no séc. XVI.
Pelos frutos se reconhece a árvore... Assim pelas tristes
conseqüéncias se reconhece a precariedade do principio.
Seja esta a conclusáo a que cheguem os cristáos envol
vidos nos debates do sacerdocio feminino!

III. MORAL

JOSÉ (Ilha do Governador) :

3) «Que se pode dizer de certo sobre a castracao de me


ninos outrora efetuada a fim de se lhes conservar a voz in
fantil de soprano ?»

1; Já na era pré-cristá conheciam-se os efeitos da cas-


tragáo (ou seja, da amputagáo dos órgáos genitais). A puber-
dade acarreta naturalmente alteragóes da voz do menino, tor
nando-a típicamente varonil; verificou-se, porém, que a cas-
tragáo possibilita a colaboragáo de um tipo de laringe de cri-
anga com tórax e pulmóes de varáo, o que produz a beleza
e o vigor da voz de soprano infantil no adulto.
Era conseqüéncia, a mutilagáo sexual de meninos em vista
de fins musicais e artísticos era praticada desde os tempos an
teriores a Cristo.

2. A Moral crista e, por conseguinte, a legislagáo da


Igreja sempre reprovaram a castragáo, fósse qual fósse o seu
motivo, pois tal operacáo implica grave retoque infligido as
leis da natureza, ou seja, intervengáo do homem em setor que
nao é do seu alcance.

No decorrer da historia, houve, por exemplo, ascetas cristáos


que se castraram voluntariamente a íim de se isentarem das tenta-
cóes da carne e, portanto, do pecado de incesto. Aplicavam literal
mente a si as palavras do Senhor em Mt 19,12: «Há eunucos que se
castraram por causa do reino dos céus», palavras que, como se de-
preende do contexto, visam apenas inculcar a vida celibatária e a
conseqüente pureza de pensamentos e aíetos. A Igreja reprovou ésse
tipo de «violentacáo piedosa», vedando aos que o praticavam o aces-
so as ordens sacerdotais: «Se alguémi se castrar, desejando reprimir
as concupiscencias da carne, nao pela disciplina da religiáo e da absti
nencia, mas pela mutilacao do corpo que Deus criou, nao poderá, por
determinacao nossa, ser admitido a exercer alguma funcáo clerical»
(can. 21 dito «de S. Martinho de Braga» [t 580], que reproduzia o
can. 1» do concilio ecuménico de Nicéia [325]).

— 247 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 3

Houve quem praticasse a castragao por motivos menos elevados,


como sejam os de eugenia e racismo. Também a ésses se fez ouvir
a palavra da Igreja, que vai aqui interpretada por S. S. o Papa
Pió XII:

«Nosso predecessor Pío XI e Nos mesmos fomos levados a de


clarar contraria a lei natural... a esterilizagáo direta de um inocente,
seja definitiva, seja temporaria, seja do sexo masculino, seja do sexo
feminino. A nossa oposicao á esterilizacSo era e permanece firme,
pois, embora o racismo tenha perdido a sua atualidade, os homens
nao deixam de procurar suprimir pela esterilidade qualquer possi-
bilidade de descendencia carregada de doencas hereditarias» (Pió XII,
Directives... 1230).

«Nem mesmo a'*autoridade pública, sob qualquer pretexto que


seja, tem o direito de permitir ou, muito menos ainda, de prescrever
ou de mandar executar a esterilizacao em detrimento de inocentes»
(Pió XII, Directives... 1130).

A castragáo também foi praticada entre cristáos por mo


tivos artísticos, como no caso dos cantores com voz de so
prano (que os documentos da época moderna designam como
«eunucos», eunuchi). Foi principalmente • o Renascimento do
séc. XVI, com seu espirito naturalista e mais ou menos paga
nizante, que deu voga a ésse costume ; a praxe se alastrou
largamente pelo século XVII até meados do século XVm, nao
sómente pela Italia, mas também ñas grandes cortes e nos
teatros da Europa em geral, atingindo tanto a música profana
como a música religiosa (tenha-se em vista, como exemplo
frisante, a cápela da corte da Baviera); podia acontecer que
os mesmos artistas executassem nos teatros as óperas clássi-
cas e ñas igrejas certas pegas religiosas.

O público muito estimava os cantores eunucos, pois, como se


entende, só era castrado quem possuisse boas credenciais para se
tornar cantor de escol; além disto, o tirocinio praticado desde a in
fancia com assiduidade muito concorria para que tais artistas de-
sempenhassem de maneira esmerada as suas funches. O periodo
de maior popularidade dos eunucos vai dos tempos de Hándel
(1685-1759) aos de Gluck (t 1787) e Mozart (t 1791). Foi notável a
sua influencia na historia da ópera, para cuja decadencia concorre-
ram, pois a colaboracSo de cantores castrados nao podia deixar de
imprimir, cedo ou tarde, um caráter de «virtuosismo» ou «precio
sismo» as representac5es artísticas (a técnica e os meios passaram
a ter maior importancia do que os fins da arte).

3. Como se compreende, as autoridades da Igreja nunca


aprovaram a castragáo de cantores. Em fins do século XVII,
o tráfego de meninos castrados, muitos dos quais nunca se
tornaram sopranos de valor, tomou proporgóes vergonhosas
nos ambientes comerciáis e profanos. Conseqüentemente, em

— 248 —
O SIGNIFICADO DAS PROCISSOES

1755 o Papa Bento XIV condenou explícitamente a castra?áo


de cantores. O fato, porém, é que o costume chegou a ser
aplicado até mesmo a participantes do coro da Cápela Sixti-
na, onde as mais belas vozes eram muitas vézes devidas a va
rees castrados ; o Papa Leáo XIII (1878-1903) interyeio, proi-
bindo de maneira definitiva tal praxe no coro da Sixtina. Os
últimos cantores castrados que se exibiram em teatros pro
fanos, foram Crescentini (t 1846) e Velluti (t 1861). Pre-
cederam-nos, gozando de grande fama: Baldassare Ferri
(1610-1680), cujas representagóes foram disputadas por va
rios soberanos de corte a porfía ; Francesco Bernardi, dito Se-
nesino (1680-1750), um dos artistas mais admirados no sé
quito de Hándel; Gaetano Maiorano, chamado Caffarelli
(1703-1780), o qual tanto dinheiro ganhou que pleiteou a pos-
se de um Ducado; Cario Broschi, cognominado Farinelli,
(1705-1782), cuja pureza de voz nao pode ser reproduzida
nem por outra voz humana nem por algum instrumento
musical...
Do ponto de vista moral, a castragáo de meninos canto
res constitui nao sómentel grave falta contra a natureza, mas
também clamorosa injustiga, pois prejudica a evolugáo psico-
-somática de criangas, tornando-as ineptas para a vida con
jugal. Mesmo que a crianga consinta em sua castragáo, a ope-
ragáo fica sendo ilícita, pois o menino só a pode aceitar por
efeito de um processo persuasivo que equivale a verdadeira
sedugáo do inocente para o mal.
Na medida em que individuos cristáos cederam á praxe
da castragáo infantil, merecem reprovagáo. Saiba, porém, o
historiador distinguir entre aquilo que os cristáos praticaram
e praticam, de um lado, e aquilo que, de outro lado, a Igre-
ja oficialmente ensina e manda; os erros dos cristáos nao re-
caem sobre a Igreja, que é a primeira a apontá-los aos seus
filhos.

IV. LITURGIA

JOÁO SANTOS (Monte Alegre, Para) :

4) «Que sentido tém as procissoes táo estimadas pela


piedade popular ?
Nao seráo concessoes indevidamente feitas á religiosida-
de primitiva ou á mentalidade paga ?»

«Frocissáo» vem a ser o caminhar cerimonioso e público


de um grupo de pessoas que assim visam exprimir um estado

— 249 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 4

de alma todo particular. Tal tipo de cerimónia, quando apa


rece no decorrer da historia, costuma ter caráter religioso ; é
mesmo de uso muito comum nos diversos cultos que o género
humano conhece. Assim se entende que faca parte também
do culto cristáo tradicional. O cerimonial, porém, de procis-
sóes é, por vézes, táo exuberante que certos observadores, em
nome de elevado ideal religioso, se surpreendem por ver que
a piedade católica dedica estima as procissóes ; daí julgarem
que se trata de ritos heterogéneos, indevidamente importados
do paganismo para dentro do Cristianismo.
Tal modo de interpretar, porém, é erróneo. Para o re
mover, ponderaremos abaixo o significado que possam ter em
geral gestos e atitudes do corpo no culto divino ; a seguir, vol-
tar-nos-emos para as procissóes tais como elas sao realizadas
pela liturgia católica. Para terminar, mencionaremos urna ou
outra das procissóes usuais no paganismo antigo, a fim de
permitir confronto com as do Cristianismo.

1. Piedade e sinais sensíveis

1. As procissóes constituem um rito externo, visível. Na


turalmente ésse aspecto nao define todo o seu valor; ao con
trario, o aparato sensível de urna procissáo tem que ser en
tendido como sinal de realidade mais profunda, mais espiri
tual e, por isto, mais proporcionada á dignidade do homem e
ao louvor de Deus, o Sumo Espirito.
Somos assim levados a dizer, antes do mais nesta expla-
nagáo, urna palavra sobre o papel dos sinais corpóreos ou sen
síveis no culto religioso.

Passamos assim a desenvolver idéias já esbozadas em «P.R.»


15/1959, qu. 3 e 28/1960, qu. 8, a propósito do culto em espirito e
verdade e a respeito das posigóes dos liéis durante a S. Missa.

2. Sendo o homem essencialmente um composto de cor


po e alma, Deus quis muito sabiamente que a alma humana
nao se una ao Supremo Senhor sem utilizar o corpo ou a ma
teria ; o corpo é o órgáo natural de aperfeigoamento e, por
conseguinte, de santificagáo da alma. Disto se segué que a
alma humana por sua natureza tende a se elevar a Deus nao
só mediante afetos meramente interiores ou invisíveis, mas
também mediante sinais emanados do corpo ; entre estes se
deve mencionar

a palavra oral: expressáo geralmente aprimorada dos sentimen-


tos internos;

— 250 —
O SIGNIFICADO DAS PROCISSOES

os gestos e as atltudes do carpo: manifestac5es de alma mais


primitivas, mais espontáneas e de mais ampio significado.

Consideremos agora o papel que possam desempenhar os


gestos do corpo na expressáo dos afetos da alma.

3. Quintiliano (i 95), no mundo pagáo, dizia que os


gestos sao «a linguagem comum a todos os homens (omnium
hominum communis sermo)».
No inicio da civilizagáo crista, era S. Ambrosio (f 397)
quem escrevia: «Os movimentos do corpo vém a ser como
a voz da alma (Vox quaedam animi est corporis motus)»; cf.
S. Tomaz, S. Teol. II/II 168, 1 ad 1.
Nos tempos modernos, os psicólogos nao hesitaram em
subscrever a tais afirmagóes, pois é fato comprovado que, en-
quanto a linguagem oral se diferencia de povo para povo, a
linguagem dos gestos1 ou a mímica é comum a todos os povos
e é mais ou menos idéntica em todos os tempos. Ela consti
tuí a via primitiva e mais característica pela qual o homem
se exprime ; tenha-se em vista o desenvolvimento da crianga,
a qual comeca a se manifestar por gestos antes que por pa-
lavras.

Deve-se mesmo reconhecer que os gestos sao «um produto es


pecíficamente humano», como observa o psicólogo W. Wundt (Voel-
kerpsychologie 13. Sprache 231), o quaí faz notar que os animáis ir-
racionais efetuam movimentos para se exprimir, nao própriamente
gestos (o que quer dizer :... sao sujeitos a reílexos condicionados,
mas nao sao capazes de concatenar os movimentos. de seu corpo de
modo a manifestar idéias e raciocinios elaborados pelo próprio
animal).

Se a tendencia a se exprimir por gestos é táo espontanea


á natureza humana, compreende-se que ela esteja intimamen
te relacionada com a oragáo (que é outra expressáo caracte
rística da alma humana). Pode-se mesmo asseverar que nao
há oracáo sem gesto correspondente ou sem correlativa ati-
tude do corpo ; nao constituí excecáo a essa regra nem mesmo
a prece mais íntima e mais mística, que parece exigir» toda a
tranqüilidade, excluindo qualquer participagáo do corpo; com
efeito, também nesse tipo de oracáo o corpo exerce urna fun-
gáo visível, sómente diversa da que exerceria em outros casos
(o corpo entra numa posigáo própria ; fica artificialmente imó-
vel; é por vézes arrebatado ácima do solo, respira segundo um
ritmo próprio, etc.).

— 251 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 4

A fim de ilustrar esta proposicao, pode-se citar o que se da na


China. Os sons da linguagem chinesa, sendo em número relativa
mente pequeño, nao bastam para exprimir tudo que vai dentro da'
alma de um chinés. Éste íato tem repercussáo importante no setor
religioso; os gestos desempenham papel de especial relevo na pieda-
de chinesa, de tal modo que os chineses nSo. possuem vocábulo pró-
prio para designar «Religiáo»; recorrem conseqüentemente ao ter
mo «Li», que significa «ritos, costumes, reta forma, ritual», isto é,
algo que se relaciona com formas sensiveis de culto sagrado.

Os autores chegam a observar qué os gestos concomitantes


da oracáo sao mais ou menos os mesmos em toda a parte e
em todos os povos, apesar das diferen<jas de credo que cada
orante professa :

«Quem viaja de país para país e de povo para povo, fica sur-
préso por verificar a variedade e diversidade de crencas religiosas
e, ao mesmo tempo, a grande unidade de gestos religiosos.
Muitíssimos gestos (de oracao), e certamente os mais importan
tes, sao comuns a todas ou a quase todas as nagóes e religioes. Mes
mo religiSes como o Budismo e o Cristianismo, que por abismos se
distanciam um do outro, tém numerosos gestos em comum; assim...
o de abengoar com a mao direita.. .* (Th. Ohm, Die Gebetsgebaerden
der Voetker und das Christentum. Leiden 1948, 31).

Dentre os gestos comuns a todas as religifies, podem-se aínda


enunciar: o de bater no peito. o de velar ou ocultar a face, o de es
tender as máos para o alto, para a frente ou para os lados, o de
prostrar-se por térra, o de inclinar-se profundamente, o de se sentar
em atitude meditativa, etc.

Esta verificagáo nao sugere de modo algum relativismo em ma


teria religiosa; apenas implica que fazer gestos, e determinados ges
tos na oracao, nao é própriamente nem cristáo, nem judaico, nem.
budista, mas é simplesmente humano; ... vem a ser, como diziamos,
espontánea expressao da natureza do homem.

4. No séc. XVI, a Reforma protestante, baseando-se prin


cipalmente em piedade subjetiva, disseminou nos seus adeptos
aversáo aos gestos e as manifestacóes religiosas sensiveis.

Eis como um escritor protestante contemporáneo, Wilhelm Stah-


lin, comenta tal atitude :

«'Eu sou a vida', diz Cristo. A Igreja (protestante) responde, em-


baragada e hesitante: 'Sim; mas... apenas a vida espiritual1. O Pro
testantismo de tal modo cedeu á desastrosa separagáo de alma e
corpo... que ele quase por completo perdeu a visáo do conjunto
humano» (Vom Sinn des Leibes 118).

O racionalismo do séc. XVm contribuiu para acentuar o


menosprézo das expressóes corpóreas. Os seus protagonistas,

— 252 —
O SIGNIFICADO DAS PROCISSCES

valorizando ao máximo a inteligencia ou a razáo, negligencia-


ram o cultivo das atitudes do corpo e do seu simbolismo, como
se isto fósse algo de grosseiro ou infantil.
Em nossos dias, enquanto boa parte dos homens, sejam
doutos, sejam simples, se ressente de tal mentalidade unilate
ral, nota-se o surto de nova estima dos gestos do corpo para
exprimir os afetos religiosos da alma. O Protestantismo, prin
cipalmente nos últimos vinte e cinco anos, vem redescobrindo
os valores da Liturgia ou do culto ritual. Haja vista o de-
poimento do autor protestante Robert Will em sua obra de
tres volumes intitulada «Le cuite» :

«Todo culto exige formas expressivas, imagens, sons, palavras,


gestos, ritos, pessoas. Essas formas,... de um lado, objetivam e
levantam as aspiracóes da alma; de outro lado, concretizam e cana-
lizam as gragas que descem do céu... Sem essas formas sensiveis,
a religiáo se tornaría meramente subjetiva e correría o risco de
perder-se... em frió sistema filosófico ou em código de preceitos
éticos... A religiáo que nao dá aprego ao culto, definha na atmos
fera rarefeita de um esplritualismo exagerado» (II pág. 13. 26s).

Ainda um depoimento parece particularmente significativo. Fale


o já citado Prof. Wilhem Stahlin, luterano:

«Muitos louvam a nossa Igreja, por se preocupar com a interio-


rtdadc, em oposigáo á exagerada estima que os católicos dedicam as
farmas externas; dizem mesmo que o Protestantismo é a face mais
interiorizada do Cristianismo. Nao haveria, porém, na base de todo
ésse ideal de interioridade um erro profundo, urna dolorosa auto-
-ilusáo ? Nao se podem separar táo rígidamente 'o interior' e o ex
terior'. A vida é um todo indivisivel, no qual se entrelacam em indis-
solúvel unidade os elementos mais extrínsecos e os mais intrínsecos.
De um lado, os movimentos Íntimos do coragáo e os mais secretos
acontecimentos da historia costumam manifestar-se em formas ex
ternas; de outro lado, episodios que parecem só afetar a superficie
dos seres, chegam a exercer sua influencia rías mais recónditas pro
fundidades. Quanto mais um homem vive realmente, tanto mais es-
treitos e firmes sao os vínculos que ligam a sua vida exterior e a
vida interior... Somos naturalmente impelidos a dar expressao ao
que nos vai na alma, através das atitudes de nosso corpo, através
do nosso oihar ou dos tragos da nossa fisionomía, através do nosso
tom de voz, através dos gestos de nossas máos, até mesmo através
da manélra de nos vestirmos e de ornamentarmos o aposento em
que vivemos» (Form und Gebárde in Gottesdienst und Gebet ls).

As consideragóes até aqui propostas já evidenciam o valor


dos gestos corpóreos e dos sinais visiveis ñas afirmagóes da pie-
dade. É á luz dessas idéias que nos deteremos abaixo sobre tal
forma sensível de piedade que sao as procissóes.

— 253 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 4

2. Piedade e procissóes cristas

1. Se as procissóes constituem u'a modalidade sensivel


de culto, torna-se oportuno perguntar sem delongas : qual o
seu significado ? quais as atitudes de alma que elas exprimem ?
Responderemos lembrando em primeiro lugar que sómente
o homem, entre os demais viventes neste mundo, tem o corpo
erguido, capaz de se adiantar em passo firme e disciplinado. O
caminhar de estatura erecta constituí verdadeira arte, e arte
cheia de nobreza; sendo particularidade exclusiva da criatu
ra humana, significa própriamente o «ser homem».

Na verdade, quantos sentimentos do íntimo da alma nao se ex


primem mediante o caminhar! Existe, sim, o andar leviano, desi
gual, indisciplinado, que revela superíicialidade, despreocupacáo des-
regrada desordem de afetos interiores. Existe também o andar fir
me, bem compassado, que manifesta tranqüilidade e equilibrio inte
riores, harmonía e coragem de ánimo...

Pois bem; caminhando disciplinadamente em procissáo re


ligiosa, um grupo de homens pode exprimir duas atitudes :

a) Vitoria, triunfo.

Já o «ficar em pé» simboliza Vitoria ; é normalmente a po-


sicáo de quem venceu a luta. Ora diga-se que urna assembléia
religiosa afirme solenemente essa posigáo dando passos disci
plinados, numa caminhada processional; tal assembléia signi
fica entáo que ela venceu ou que ela reconhece ter recebido
grandes gracas de Deus. A procissáo assim empreendida equi
vale a louvor e agradecimento ao Pai Celeste ; é um culto de
adoragáo e glorificagáo a Deus.
Tal é o significado das procissóes festivas que a Sagrada
Liturgia celebra: a assembléia crista caminha entáo osten
tando o sinal ou o símbolo das gragas recebidas que sao o
motivo especial do louvor. Tal sinal é geralmente a cruz ou
o crucifixo, instrumento-fonte de Redengáo e de qualquer vi-
tória dos cristáos. Dada a importancia capital da cruz, o Ri
tual (tit. IX) prescreve seja levada a cruz a frente de qualquer
procissáo. — Além da cruz, costuma-se levar o objeto que ex
prime o tema preciso do louvor do dia :

a') ou o SSmo. Sacramento, a mais preciosa dádiva do


Amor Divino,
b') ou urna reliquia, estatua ou imagem do Senhor. Está
claro que reliquias e imagens, no culto, desempenham papel

— 254 —
O SIGNIFICADO DAS PROCISSÓES

meramente relativo; tém a fungáo de lembrar o Senhor


Jesús rnesino, Deus feito homem, a Quem o povo* católico em
procissáo dirige sua adoragáo e seus louvores ;

A luz destas proposicoes, a procissáo de palmas rio domingo ini


cial da Semana Santa vem a ser a expressáo da complacencia do
pova cristáo no triunfo ou na Redencáo que Cristo obteve mediante
a própria morte. Semelhantemente, a procissáo das velas na lesta
da Candelaria (2 de fevereiro) manifesta o júbilo pela vinda de Cristo,
luz da verdade, ao mundo que jazla ñas trevas do erro.

c') ou urna reliquia, imagem, estatua de Santo. Também


éste objetos sao relativos; visam chamar a atencáo dos fiéis
para a Virgem SSma. ou algum dos amigos de Deus que es-
táo na gloria do céu.

Considerando os santos, os fiéis nao os adoram; mas prestam


sua adoracao e gratidáo a Deus pelas gracas que Ele concedeu a tais
justos, pedindo ao mesmo tempo queira o Senhor também a nos,
peregrinos na térra, conceder semelhantes gracas para chegarmos á
plenitude da Redencáo. Os santos vém a ser assim motivo de glori-
íicacao e súplica fervorosas dirigidas ad Senhor Deus; nunca se de-
vem tornar o termo final que detenha a nossa atencáo e a nossa
piedade a ponto de nao nos voltarmos ulteriormente para Cristo e
para o Pai do Céu; sejam meros veiculos ou estímulos para mais
conscientemente conhecermos e amarmos o Senhor Deus. Nada im
pede, porém, que 1-oguemos aos Santos, intercedam por nos junto ao
Senhor; sao os amigos qualificados de Deus, que por si nada podem
dar, mas pelas suas preces muito podem obter.

A respeito dos santos e das imagens na piedade crista, veja


«P.R.» 3/1958, qu. 5.

Contudo as procissóes nao tém apenas o papel de expri


mir Vitoria, triunfo e, conseqüentemente, louvor ou agradeci-
mento a Deus. Elas podem constituir também

b) urna afirmacáo mais intensa e sensível da comunida-


de crista afetada por urna situagáo extraordinaria de indigen
cia ou de arrependimento. Realizam-se, pois, procissóes que
significam

— súplica mais ardente. Tais sao as procissóes ditas «das


Rogagóes» ou «das Ladaínhas maiores e menores», celebradas
a 25 de abril e nos tres dias anteriores á festa da Ascensáo;
tiveram origem em períodos calamitosos, nos quais o povo de
Deus visava obter especial protngáo da parte do Senhor, prin
cipalmente para os campos e as colheitas ; até boje conservam
tal significado. Outras procissóes há que exprimem

— 255 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961. qu. 4

penitencia. Na Idade Media, mormente em épocas


de peste, viam-se imponentes cortejos de «Flagelantes», ou seja,
de fiéis que, vestidos de capa e capuz especiáis, desfilavam in
vocando a Misericordia Divina e flagelando-se, cheios de com
pungió.

2. A idéia de procurar a Deus e suas gracas mediante um des-


locamento processional é antiqüSssima na historia do género humano.
Corresponde ao que os historiadores chamam «a nostalgia do paraí
so», isto é, ao ardente anelo de chegar a um estado de harmonia
perfeita dos elementos dentro do hornern e em torno do homem, ane
lo a que os povos sempre procuraram satisfazer demandando «o lugar
ideal» aqui na térra, o paraíso outrora possuido, hoje em dia, porém,
perdido. Alias, nao há quem nao tenha consciéncia de ser um pe
regrino espiritual, isto é, alguém que ainda nao possui a saciedade
das aspiragóes de seu espirito; tal consciéncia tendeu multas vézes,
e ainda tende a se externar mediante peregrinacfles e procissóes co-
letivas a um templo ou a um lugar sagrado.

Sobre o significado das peregrinacóes religiosas, cf. «P.R.»


24/1959, qu. 7.

O fato de tais tendencias existirem e se afirmarem atra-


vés de formas semelhantes no Cristianismo e fora déste está
longe de significar que peregrinacóes e procissóes no Cristia
nismo sao expressóes desvirtuadas ou «paganizantes»; ao con
trario, significa que em toda alma humana, anteriormente á
profissáo de determinado credo religioso (cristáo ou náo-cris-
táo), existe a mesma sede de Deus. Acontece, porém, que o
pagáo deu, e dá, expressáo a essa sede a luz de urna ideología
grosseira e errónea; o cristáo, ao invés, exprime-a norteado
pelo claráo da verdadeira teología ou de auténticas nogóes re-
refentes a Deus e seu plano salvífico.
A guisa de complemento das consideracües até aqui propostas,
serao apresentadoa abaixo alguns tipos de procissSes pagas, que re-
velam a ideología característica de povos náo-cristáos. O confronto
concorrerá para remover a tese de que o ritual cristáo se inspira
do paganismo (no caso, ritual cristáo e ritual pagáo se inspiram am
bos, em última análise, da religiosidade espontánea da alma humana).

3. Procissóes pagas

A tribo Arunta, da Australia, pratica o rito chamado intieluma,


o qual com nomes diferentes, é usual também em outros clás. Con
siste em realizar urna procissáo ao lugar onde se eré tenha sede o
antepassado totémico (animal ou vegetal genitor) da tribo; chega-
dos a ésse lugar, que a populacao julga rico de poderes fertilizantes,
os devotos se póem a espalhar fragmentos da pedra ai encontrada,
a fim de favorecer a fecundidade da vida !

— 256 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

No Egito, o ritual permitía retirar do santuario onde geralmente


licava encerrada, a estatua da Divindade; os devotos colocavam-na
sobre um prestito em forma de barco (o deus Rea do Egito era um
deus navegante!) e transportavam-na pelas cldados ou íazíam-na
descer petes aguas do Nilo, íicando o povo ñas margens do rio a
cantar e dancar. .

Na Grecia, famosas eram as procissóes das Panatenéias, por


ocasiao das quais todas as classes sociais de Atenas subiam ao tem
plo do Partenon a íim de oferecer suas homenagens á deusa Atenas.
Também eram solenes as prociss5es que precediam os jogos olímpi
cos: magistrados, sacerdotes e representantes de varias cidades se
reuniam sobre o monte Atlas para apresentar um sacrificio ao deus
Júpiter.

Dentre os costumes da Roma pré-cristá, chamam a atencáo as


chamadas «pompas» (cortejos), das quais urna das mais exuberan
tes era a pompa «circense». A frente do cortejo achava-se um ma
gistrado, vestido de toga, portador de coroa na cabeca e do cetro
com a águia simbólica na máo. Seguiam-se-lhe jovens, cujos geni
tores deviam estar todos aínda em vida; vinham, depois, os que
iam tomar parte nos jogos públicos, os ministros inferiores do culto,
portadores de turíbulos fumegantes, os sacerdotes, as imagens dos
deuses e símbolos religiosos arrumados em préstitos. Chegando ao
Circo Máximo de Roma, a pompa dava um giro a fim de ser con
templada pelo povo estupefato. Finalmente celebrava-se um sacri
ficio e dava-se inicio aos jogos de circo.

Nao será necessário acentuar o fato de que em todos ésses ritos


se afirmavam, ora com mais, ora com menos evidencia, concepcSes po
liteístas e idólatras, das quais se distancia radicalmente o monoteísmo
cristáo.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

ESTUDIOSO (Rio de Janeiro):

5) «Diz-se que os católicos tem perseguido os Protestan-


tantes na Colombia. Que ha de certo ñas diversas noticias es-
palhadas sobre o caso ?»

Antes do mais, em se tratando de assunto melindroso, parece


oportuno indicar as íontes das quais se podem colhér informacñes
sobre o tema. Ei-las :

1) Da parte protestante :

os impressos periódicos intitulados «Reports on Religious Per-


secution in Columbia», publicados pela Confederacáo Evangélica da
Colombia (C.E.D.E.C.) desde o inicio de 1952, em inglés. Espalha-
ram-se amplamente pelo mundo, sendo suas noticias sinistras lar
gamente divulgadas pela imprensa internacional, com as naturais
conseqüéncias de ínquietacáo e perplexidade tanto em países cató-

— 257 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 5

lieos como em protestantes; no interior, porém, da Colombia mesma,


tais periódicos nao foram difundidos;

os «Boletins Informativos da Confederacáo Evangélica da


Colombia» («News Service oí the Evangelical Confederation oí Co-
lumbia»), em inglés, também destinados ao estrangeiro, nao ao uso
da populacáo nacional.

2) Da parte católica :

na Colombia mesma apareceu em 1954 o livro «Las sectas


protestantes en Colombia» do Prof. Eduardo Ospina S.J., da Uni-
versidade Xaveriana de Bogotá ;

nos Estados Unidos da América do Norte, um artigo expres-


sivo na revista «América» de 26/VI/1954 ;

na Inglaterra, dois relatónos em «The Tablet» de¡ 16/1/1954


e 24/111/1954 ;

na Franca, ótima doeumentacáo no periódico «L'actualité re-


ligieuse dans le monde», de l/V/1955 ;

na Suiga, dois artigos em «Orientierung» de 15/1/1954 e


30/XI/1956 ;

na Italia, estudo minucioso e ricamente documentado de G.


Capriie S.J. em «La Civilitá Cattolica» (1954, n°s. 2503/2505);

na Espanha, um resumo désse estudo em «Hechos y Di


chos», de abril e maio de 1955.

Na base de tais documentos, podem-se reconstituir com certa


clareza as idéias e os acontecimentos que ocuparam o cenário reli
gioso da Colombia nos últimos tempos. É o que vamos tentar fazer
rápidamente, observando as seguintes etapas :

1) Análise da situacáo dita «de perseguieáo».


2) As idéias e os agentes envolvidos :
a) a realidade tanto do Catolicismo como do Protestantismo
na Colombia ;
b) a guerra civil.
3) Alguns episodios do quadro geral.
4) Conclusáo.

Nao poderíamos deixar de registrar, desde já, que a celeuma


religiosa em foco está atualmente apaziguada, tendo-se dado na Co
lombia encontros muito amistosos de católicos e protestantes.

1. A situagáo «de perseguigáo»

Desde 1948 aos últimos tempos registrou-se delicado pano


rama religioso na Colombia, panorama que os Boletins da Con-
federagáo Evangélica Colombiana compararam ao de urna per
seguieáo antiprotestante semelhante á que se verifica nos paí-

— 258 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

ses ditos «da Cortina de Ferro»: de 1948 a inicio de 1953, ha-


veriam sido destruidos por fogo ou por dinamite 42 templos
protestantes; 31 teriam sido dañineados e 10 confiscados; 110
escolas primarias protestantes teriam sido fechadas, 54 por or-
dem do Govérno, as restantes por atos de violencia; outras
casas e predios evangélicos, num valor total de 148.000 dó
lares, haveriam sofrido destruicáo, deterioragáo ou confisca-
cáo ; por fim, teriam mesmo padecido a morte violenta 51 ci-
dadáos, entre os quais homens, mulheres e enancas (cf. «News
Service» n' 10, de 17/VIII/1953; cifras reproduzidas pelo heb
domadario norte-americano «Time» de 5/X/1953).

Os dados déste relatório tém sido, por vézes, aumentados de ma-


neira surpreendente, a ponto mesmo de se poder ler na revista «La
tín América Today» (Nova Iorque, junho de 1953) a¡ noticia de que
a Colombia, térra de bárbaros e intolerantes, «massacrou 100.000
protestantes, unionistas e democráticos*. Comunicagoes e protestos
foram levados até á ONU, sob a alegacáo de que nem os direitos
da pessoa humana sao respeitados na Colombia.

Estes poucos densos tragos já sao suficientes para se per-


ceber em que consiste, segundo os rumores comuns, a «perse
guirlo antiprotestante» da Colombia. Faz-se mister agora exa
minar mais de perto o desenrolar dos acontecimentos, os agen
tes e as idéias que os tém movido, a fim de se poder formular
um juízo objetivo sobre táo debatida situagáo.

2. O Catolicismo na Colombia

A Colombia é país de populagáo 99,5 % católica. Já nos


inicios do séc. XVII, como narra um cronista dessa época mes-
ma, a maioria dos aborígenes era balizada e religiosamente
assistida por missionários católicos.
Ao contrario do que se deu na maioria dos povos hispa-
no-americanos, a campanha de independencia nacional lá nao
teve caráter antieclesiástico, mas, foi, antes, em boa parte,
orientada por clérigos. Já a primeira Constituigáo do país,
dita «de Cundinamarca», em 1812 declarava ser o Catolicismo
a religiáo da nagáo. O muito estimado «Libertador», Simón
Bolívar, em 1819 procurou entrar em concordata com a Santa
Sé. As Constituicdes de 1843 e 1886 confirmaram ser o Catoli
cismo a religiáo do povo colombiano. No ano de 1887 foi assi-
nada a Concordata ainda hoje vigente entre a Colombia e o
Vaticano, estipulando :

art. 1. O Catolicismo é a religiáo oficie.1 da nacáo. O Estado


a deve respeitar e proteger ;

— 259 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

art. 12. A educacáo se fará de acordó com a íé e a moral cristas.

Em 1953 acrescentou-se a essa Concordata um estatuto re


ferente as missóes entre indios no país: aos missionários cató
licos era assinalada, além da tarefa religiosa, urna obra de ci-
vilizacáo dos aborígenes, em vista da qual o govérno se com
prometía a prestar recursos financeiros e direitos administra
tivos aos eclesiásticos. Ás denominagóes religiosas náo-católi-
cas ficava proibido exercer o proselitismo nos territorios de
missóes (o que nao quer dizer que pastores protestantes tenham
sido expulsos de suas sedes; é-lhes plenamente lícito ai ficar,
dedicando-se aos seus fiéis, contanto que nao empreendam con
quistas religiosas). Esta convengáo se entende, em parte, pelo
desejo que o Estado possui, de assegurar homogeneidade e éxi
to na civilizagáo dos aborígenes.

De resto, governos nao-católicos até épocas recentes tém proce


dido de maneira análoga, reservando certos territorios coloniais á.
acáo de denominacdes evangélicas: assim íéz, por exemplo, a Ho
landa na Indonesia; a Alemanha, até 1900, na África Ocidental do
Sul e na Nova Pomeránia (Arquipélago de Bismarck).

Estes precedentes explicam que a vida católica seja hoje


em dia próspera na Colombia. O número de dioceses, entre
1938 e 1954, passou de 29 a 42. Em 1938 contavam-se 1397 sa
cerdotes (1 para 6230 habitantes); em 1953 já havia 3326 pa
dres (1 para 3440 almas). Duas Universidades Católicas, com
um total de 4000 estudantes, imprimem certo cunho ao setor
académico do país: a «Javeriana» em Bogotá, e a «Bolivariana»
em Medellín. Ao magisterio primario e secundario dedicavam-
-se, em 1954, 1369 escolas católicas, com 124.219 alunos ; 459
colegios, com 11.557 alunos, e 22 instituigóes paroquiais com
890 discípulos. Notável é a obra de educagáo rural pelo ra
dio estabelecida em Sutatenza por Monsenhor J.J. Salcedo, a
qual já em 1954 havia distribuido mais de 6.000 receptores
de pilha a um conjunto de 200.000 camponeses : fornece cur
sos diarios de leitura, grafía, aritmética, higiene, agricultura,
religiáo e conhecimentos gerais. — Entre outras obras católi
cas, podiam-se assinalar, em 1954, 145 impressos periódicos,
510 instituigóes de beneficencia e 2 leprosarios.
Nos territorios de missóes calcula-se que apenas 4 % dos
aborígenes ainda nao hajam sido catequizados, ficando urna
única tribo refratária aos missionários. Donde se vé a impro
cedencia da afirmagáo evangélica (cf. Boletim da CEDEC de
30/XI/53) segundo a qual o govérno, entravando os pregado-
res protestantes, deixava entregues ao paganismo «ainda mui-

— 260 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

tas tribos de indios, como, alias, vem acontecendo no decor-


rer de quatro sáculos de dominio católico !».

3. O Protestantismo na Colombia

Em 1856 estabeleceu-se em Bogotá a primeira missáo presbite


riana, proveniente dos Estados Unidos da América do Norte ; 24 anos
se passaram sem que algüm colombiano lhe aderisse. Até 1942 mais
onze denominacoes'evangélicas entraram na Colombia, algumas das
quais (anglicana, metodista...) restringindo suas atividades á as-
sisténcia de correligionarios.

De 1942 em diante, porém, as atividades protestantes se


incentivaram : em 1954 havia 26 denominagóes bíblicas, algu
mas de caráter proselitista muito aceso. Estáo assaz dividi
das entre si (1); após varias tentativas frustradas, 17 se con-
gregaram na Confederagáo Evangélica da Colombia, sendo es
tas em geral as mais ferrenhas dentre todas : Menonistas, As-
sembléia de Deus, Tabernáculos Unidos, Santidade do Calva
rio, Cruzada Evangélica Universal, Igreja Independente de
Vila Rica, etc Ora seja licito lembrar que a Confederagáo
Evangélica assim constituida foi a única fonte que langou ao
mundo as noticias de «perseguigáo aos protestantes em nome
de Cristo Reb, «indizivel barbarie na Colombia», etc—

Os Batistas rejeitaram explícitamente a proposta de coníederar-


-se alegando que o plano de apresentar ao mundo urna írente tinica
lhes parecía ser hipocrisia contraria á Hberdade fundamental do
Evangelismo (cf. Heraldo Bautista», Cali, agosto de 1949).

Quanto ao número de protestantes na Colombia, as fon-


tes católicas indicavam 20.000 em 1954, ou seja, 0,17% da
populacáo total. As informagóes protestantes vacilavam mui
to : o pastor inglés W. T. T. Millham contava em 1948 23.655
evangélicos; dois anos mais tarde, porém, a Confederagáo
Evangélica declarava representar um total de 50.000 adeptos;
tres anos depois, o Boletim Oficial da Confederagáo anunciava
que o número de protestantes de 1948 a 1952 crescera de 7908

(1) No «World Christian Handbook», anuario protestante, se ¡é:


«Em nenhum pais da América Latina, é táo agudo como na Co
lombia o problema de um conjunto de pequeñas seitas missionárias
autónomas que se combatem mutuamente, guiadas por cheíes irres-
ponsáveis, cujo principal objetivo parece ser o de desacreditar os
outros obreiros ou grupos missionários» (citado por J. B. Sniven, em
«The Priest», julho de 1952).

— 261 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qü. 5

a 11.958. Como quer que seja, calcula-se que, na melhor hipó-


tese, os evangélicos na Colombia possam atingir a proporgáo
de 0,2 % da populacho total.
As comunidades protestantes tém sua existencia jurídica
mente garantida pelo art. 53 da Constituicáo Colombiana, que
assim reza :

«O Estado garante liberdade de consciéncia. Ninguém será in


comodado por motivq de suas opinióes religiosas nem será obrigado
a professar urna íé ou a observar práticas contrarias á sua consci
éncia. Fica assegurada a liberdade de todos os cultos que nao sejam
contrarios á moral crista ou ás leis vigentes».

Usando de sua liberdade, os protestantes desencadearam


nos últimos tempos campanhas de propaganda veemente, que
nao receam atacar os valores religiosos mais caros ao povo co
lombiano.

Eis alguns dos tópicos mais salientes désse movimento :

O jornal «El Heraldo Bautista» em setembro de 1949 assevera-


va • «Nao há nada táo anticristáo e táo oposto ás virtudes pratica-
das por Cristo quanto a Igreja Católica. Ela é o contrario do ver-
dadeiro Cristianismo».

Pode-se dizer que nao há urna só das proposigóes da fé católica


que nao seja ridicularizada em termos babeos pela propaganda pro
testante : a Missa é tida como «abominável idolatría» (Catecismo
Evangélico, Cali); «o sistema papal nao vem a ser outra coisa do
que urna invencáo de Satanaz, pela qual se vai preparando o cami-
nho para a vinda do Anticristo» (Roma y los papas, reseña histórica,
Cali, Ed. Progresso, pág. 191). «O demonio suscitou o Papa para
governar a parte ocidental do Imperio Romano reconstituido, as
sim como suscitou Maomé para governar a parte oriental» (De Sima
a Cima, julho de 1949, pág. 4). Pió XII, chamado «Senhor. Pacelli»,
foi acusado de ser inimigo da paz em urna carta falsamente atribui
da ao Presidente Truman («Definiendo responsabilidades», carta do
Presidente Truman ao Papa). A fábula da Papisa Joana é frequen-
temente explorada, como se fóra historia verídica (cí. «P.R.» 3/1958,
qu. 12). O confessionário vem apresentado como «trono donde o con-
fessor... governa o povo e rege os destinos do país; rede para apa-
nhar borboletas se o confessor é jovem e de bom... apetite; cloaca
das imundices moráis de todo o povo» (El Heraldo Bautista n' 75,
pág. 8). A Virgem Maria é comparada a u'a mulher de ma vida
(Las balanzas de oro, pág. 86 e 108).

Compreende-se que tal linguagem seja apta a provocar,


independentemente de qualquer palavra de ordem superior, a
reagáo espontánea da gente simples católica, de mais a mais que
se trata de assunto religioso (tema sempre muito ardente). Pre-

— 262 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

gando o Protestantismo sem conhecer a Colombia e suas con-


digóes de vida, sem respeitar as antigás tradicóes locáis, fa-
lando mal o castelhano, dotados, porém, de ampio lastro fi-
nanceiro, os «missionários» evangélicos norte-americanos sao
as vézes considerados como agentes de urna pouco simpática
«diplomacia do dólar».

Alias entre os protestantes mesmos tém-se feito ouvir vozes que


rejeitam a tática agressiva, e muito pouco evangélica, de seus corre
ligionarios. Assim, por exemplo, se exprimía em 1954 após urna via-
gem de inspeccáo, o Dr. Stewart W. Hermán, dirigente do Comité
latino-americano da Federacáo Luterana Mundial:

«Há protestantes sinceros que nao estáo cientes dos métodos


agressivos de varios dos seus missionários... As violentas reacóes
contra protestantes sao ireqüentemente o resultado de provocacSes
desnecessárias da parte de missionários apaixonados, cuja mensagem
se reduz a acerbos ataques contra a Igreja Romana» («The Mobile
Press Register», Alabama/USA, 24/1/54).

Quase contemporáneamente (9/II/54) escrevia o periódico pro


testante «Christian Science Monitor» : «Os dirigentes norte-america
nos do movimento missionário nao de reconhecer- que nem todas as
perturbacoes foram causadas pela intolerancia dos católicos colom
bianos. Por vézes pequeña minoría de missionário9 protestantes, in
flamados de zélo, proferiu duras invectivas contra a Igreja Romana,
provocando a reacáo».

Note-se, de resto, que os evangélicos mais tradicionais, como os


luteranos eos anglicanos ou episcopais, desenvolvendo tranquilamen
te a sua vida no seio de suas comunidades religiosas, nunca tiveram
motivo de queixa. Eis o testemunho áo Dr. H. U. Bretscher, datado
de 1955 :

«Há mais de um ano, moro aqui em Medellin. Nessa temporada


nunca percebi a minima maniíestacáo de hostilidade ao Protestantis
mo Sou membro da Igreja protestante daqui, e tive muitas vézes
a ocasiáo de me externar como protestante convicto. Nunca luí, em
conseqüéncia, molestado ou prejudicado. É o que podem atestar ou-
tros suicos e demais estrangeiros» («Junge Kirche», dezembro de
1955).

A tal situagáo religiosa na Colombia sobreveio um ele


mento novo, ou seja, a guerra civil, a qual concorreu para le
var ao auge as tensóes vigentes entre o povo.

4. A guerra civil

Desde 1948, a Colombia se acha agitada por paixóes po


líticas divididas entre dois partidos : os conservadores, de prin
cipios católicos ; e os liberáis, de tendencias variadas, chegando
ao extremismo da esquerda.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 5

Aos 9 de abril de 1948 rebentou urna revolugáo liberal,


durante a qual foi ateado fogo á Nunciatura, á residencia ar-
quiepiscopal de Bogotá, a edificios da üniversidade Católica e
ao Colegio dos Irmáos das Escolas Cristas; outros atos de vio
lencia foram cometidos contra casas paroquiais, escolas cató
licas e instituigóes religiosas. Após urna semana, estava sufo
cado o levante ; contudo muitos revoltosos civis e militares
(em grande parte, encarcerados antigos, aos quais as prisóes
foram abertas) conseguiram refugiar-se em territorios de flo
restas ou montanhas chamados «llanos», donde passaram a
exercer um sistema de guerrilhas dito «bandolerismo»; os
«bandoleros» sao abundantemente reabastecidos de armas mo
dernas (cuja origem parece ser comunista) e mantém a nacáo
num estado de inquietagáo continua, sempre sujeita a escara-
mucas e invectivas mais ou menos arbitrarias.
Ora, em tal situagáo política, os protestantes tém tomado
o seu partido (como, alias, bem se compreende). O Dr. Al
berto Rambo, assessor do Comité latino-americano do Conse-
lho das Igrejas nos Estados Unidos, declarou á «United Press»
em 14/111/1952 : «Problemas políticos entram em jógo (na
perseguigáo da Colombia). O Protestante na Colombia é auto
máticamente um liberaí». Isto quer dizer que o protestante é
espontáneamente movido a pertencer ao partido da oposigáo
e a fazer, em certo grau, causa comum com os «bandoleros»,
o que nao pode deixar de o envolver em conflitos ; em tais
atritos as violencias infligidas aos protestantes por seus conci-
dadáos civis ou pela polícia foram geralmente motivadas por
razóes políticas ; podiam, porém, tomar a aparéncia de perse-
guigóes religiosas, e como tais foram muitas vézes apresenta-
das ao público internacional.

O Presidente da República Colombiana Rojas Pinilla, de resto,


numa entrevista dada a jornalistas norte-americanos, declarava: «Os
últimos conflitos com os protestantes íoram provocados por estes
mesmos, os quais se envolveram na política interna e auxiliaram os
combatentes que lutavam contra o govérno constitucional» («El Es
pectador», Bogotál 19 de agosto de 1953).

Por sua vez, o Sr. Daniel Pattison, tesoureirodas MissSes Pres


biterianas na América Latina, após urna visita á Colombia, se dirigia
em carta ao Senado e ao Departamento de Estado dos Estados Uni
dos nos seguintes termos :

«A mudanca de situacáo (na Colombia) só se dará ou por re


volucáo interna ou por pressáo exercida pela opiniáo pública
internacional. Em conseqüéncia, julgamos necessário, seja o público
norte-americano informado das perseguicñes sofridas por protestan-

— 264 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

tes e liberáis na Colombia» (D.M. Pattison, To the Members oí the


State Department and all the U. S. Senators, Washington 10 de
abril de 1950).

Estes dizeres significam, em última análise, que o noticiario re


ligioso protestante difundido internacionalmente visava, entre outras,
também urna finalidade política. Nao contestaremos que esta íina-
lidade seja legítima aos olhos dos protestantes, mas reconheceremos
que era ofensiva ao govérnó colombiano, que pela autoridade de seu
Chanceler assim se pronunciou :

«O Sr. Pattison... declarou em Nova Iorque que era necessá-


rio divulgar no estrangeiro os fatos de perseguigao religiosa a fim
de provocar a pressáo exterior destinada a derrubar o govérno da
Colombia» (Iníormagáo do Chanceler Sourdis ao Embaixador da Co
lombia em Washington, em 20/IV/1950, pág. 5).

O mesrr.o Chanceler, de resto, nesse relatório acrescenta o se-


guinte caso: nd cantáo de El Secreto (Casanare), aos 4 de abril de
1950, um pastor evangélico agitou bandeira branca, a fim de fazer
descer um aviáo; este, ao aterrissar, ío\ atacado pelos «bandoleros»,
que feriram o comandante militar e dois capitaes que o acompa-
nhavam.

A afinidade de causa religiosa e causa política, tío caso


dos protestantes da Colombia, explica que as queixas dos pro
testantes só datem de 1948 para diante, isto é, da irrupcáo da
guerra civil...; explica outrossim, tenharn os protestantes po
dido apontar, de 1948 a 1953, 52 vítimas entre os seus cor
religionarios (o número total de falecidos na guerra civil su-
bia em 1953 a 20.000, quase todos católicos; contudo nem os
mortos protestantes nem os católicos poderáo, em tais.circuns
tancias, ser tidos como mártires da fé ou vítimas de persegui-
cáo religiosa). A referida afinidade explica ainda outro fato,
que os documentos protestantes mesmos reconhecem : a Polí-
cia Nacional é que tem desferido bom número dos golpes de
que os evangélicos se ressentem ; os soldados teráo assim pro
cedido aplicando medidas policiais extensivas a todo e qual-
quer cidadáo depreendido em desordem política ; váo seria as-
severar que hajam atacado por mandato ou inspiracáo das au
toridades eclesiásticas.
A situafiáo geral do Catolicismo, a do Protestantismo e o
desenrolar político, eis os tres grandes fatóres que iluminam
o fenómeno da apregoada «perseguicáo religiosa» na Colom
bia. Antes, porém, de passar á conclusáo final do que temos
até aqui ponderado, importa-nos ainda considerar

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 5

5. Alguns episodios particulares do quadro geral

1. Os evangélicos denunciam o fechamento de 110 esco


las primarias protestantes, 54 por ordem do govérno, as res
tantes por atos de violencia...
A violencia se explica (embora nao se justifique aínda) á
luz de quanto acabamos de dizer sobre o fenómeno político do
país. O observador católico reconhecerá e reprovará os abu
sos que, por parte de cidadáos católicos, hajam sido cometidos
nos choques e ñas arruagas populares, desde que tais abusos
fiquem realmente comprovados. Nao se poderia, porém, atri
buir á autoridade da Igreja os males praticados por tais ou
tais dos católicos ; a Igreja será sempre a primeira a denun
ciar o mal, por quem quer que ele seja praticado.
Quanto ao fechamento de escolas por parte do govérno,
observe-se que o Ministerio da Educagáo, usando de poderes
constitucionais, exige sejam as escolas particulares devidamen-
te registradas antes de abrir as suas portas. Ora, conforme
se apurou, os educandários fechados careciam de tal registro
e continuavam a funcionar, apesar das advertencias das auto
ridades.

Além disto, para se avaliar se há de fat» pressáo contra as es


colas protestantes, leve-se em conta o seguinte: o Boletim n» 10 da
Confederacáo Evangélica da Colombia comunicava :

«O Ministro da Educacáo Dr. M. Mesquera Garcés mandou ao


Colegio Americano feminino de Barranquilla (Escola da MissSo pres
biteriana, que conta 662 alunas), desse ao estabelecimento um cá-
peláo católico1 e professóres católicos para os cursos de Religiáo. Os
Diretores declararam estar prontos a fechar o educandário antes
que a obedecer a semelhante ordem» (pág. 3).
Esta recusa teve conseqüéncias notáveis, visto que nos dois Co
legios Americanos de Barranquilla assim como no de Bogotá, cérea
de 60/75 % dos 1900 alunos eram católicos. O Ministerio só exigía
capelao e aulas de religiáo para os alunos católicos, nao para os
protestantes. Pergunta-se entáo; a recusa de obedecer a tal ordem
nao signiíicava que os colegios protestantes nao visavam própria-
mente educar as criancas colombianas segundo as instituyeses de
suas familias, mas tendiam muito mais a fazer proselitismo ?
De resto, dois fatos interessantes ainda vém á baila : os progra
mas oficiáis de curso secundario e colegial na Colombia incluem
urna cadeira de Religiáo Católica. Ora éste dispositivo sofreu exce-
cáo por parte dos Colegios protestantes, que, durante varios anos,
distribuiram diplomas oficialmente reconhecidos pelo Estado sem en-
sinar Religiáo Católica aos alunos católicos. Referem mesmo algu-
mas fontes que o «American College», assim como o «Central Baptist
College» exigiram de seus alunos católicos a freqüéncia de cursos

— 266 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA

bíblicos protestantes. Tais íatos concorrem para dissipar a impres-


sáo de intolerancia escolar católica na Colombia.

2. Para se poder melhor aínda julgar a situagáo religio


sa désse país, seja aqui feita mengáo de certos tópicos a respei-
to dos quais as informacóes protestantes nao resistiram a con
trole, mas, após inquérito, foram comprovadas como equívocas
ou falsas (1).

a) Em junho de 1953, o periódico «Latin América Today», de


Nova Iorque, publicava a seguinte noticia : «Fotografías exclusivas!
Colombia: 100.000 vitimas, protestantes, unionistas, demócratas».
A ésse titulo (cuja cifra é evidentemente exagerada) estava ane
xo um documento fotográfico: apareciam urna cabeca de mulher
separada do busto e um grupo de homens com as- extremidades dos
bragos enfaixadas; a estes as foreas governam-íntais católicas have-
riam amputado a máo direita, ao passo que teriam assassinado a
mulher; o local do crime indicado pela revista seria Sogamoso. —
Ora, foram interrogados a respeito os pastores das duas únicas de-
nominacóes existentes nessa localidade: ambos responderam peremp-
tóriamente, aos 23 de fevereiro de 1954, que tal episodio jamáis se
dera. Como resultou, alias, do confronto com outra fotografía pos-
suida pela policía, a cabeca decolada pertencia a pobre mulher ca
tólica morta pelos «bandoleros» em 1952; é o que explica, tenham os
editores da revista deixado de mencionar o nome da vitima e a data
do crime (noticia transmitida por Ospina, Las sectas protestantes...
pág. 104).

b) Tornou-se famoso o «caso Morales* tido como episodio de


rapto de criancas praticado por católicos contra protestantes...
Acontece, porém, que a imprensa católica colombiana pu'ilicou lado
a lado duas versees désse episodio: a primeira, protestante, muitas
vézes vaga e destituida de nomes de testemunhas; a outra católica,
assinada muitas vézes com juramento por bispos que em inquéritos
procederam á averlguagáo dos respectivos fatos.
O relato protestante se segué abaixo á esquerda; os resultados
do inquérito, á direita:

1. Em Manizales morava a A familia era católica, e nao


familia Morales: pai, máe e onze protestante. A máe abjurou o
filhos Gente piedosa e fiel á Catolicismo depois da morte do
igreja protestante. Há alguns marido, que sempre fóra católi-
anos, católicos fanáticos pene- co, e morreu como católico, re-
traram em seu domicilio, ata- cebendo os santos sacramentos

(1) Nao é sem constrangimento que referimos os episodios que


se seguem pois isto poderla significar mesquinhez e espirito taca-
nho da nossa parte. Nao obstante, a fim de orientar o público, per-
mitindo-lhe avaliar melhor o alcance de quanto ouvd dizer, transmi
timos sobriamente algo do que encontramos na bibliografía do as-
sunto tratado. Visamos únicamente desfazer equívocos e proporcio
nar a todos a verdade, na medida em que ela se acha impressa e do
cumentada.

— 267 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 5

caram o pai, íerindo-o com cin (2). O seu assassinato nao foi
co golpes e gritando: «Éste é o de modo algum devido a moti
teu tratamento por seres protes vos religiosos.
tante». O homem morreu ime-
diatamente.

2. Dois dos filhos da casa, Os dois meninos eram católi


Abraáo e Obdulio, freqüentavam cos, batizados e educados por
durante a semana a escola pú seus pais no Catolicismo, até a
blica, de inspiragáo católica. Por abjuraeáo de sua genitora. É
muito tempo, houve pressáo so falso dizer que houve pressao
bre os dois meninos para que sobre éles; foram éles mesmos
assistirem á Missa; éles, porém, que manifestaram o desejo de
permaneceram firmes na íé pro preparar-se para a Primeira Co-
testante, e por isto na escola fo- munhao, á semelhanca dos ou-
ram escarnecidos como filhos de tros meninos de sua idade.
protestantes, e ameacados de ir
para o inferno, caso ficassem na
heresia.

3. Aos 7 de julho de 1953, os Os dois meninos se apresenta-


meninos nao voltaram para ram na escola a 1 h da tarde,
casa; em váo a máe pediu no afirmando estar em jejum, por
ticias déles ao Diretor da esco que sua máe, sabendo que se
la. No dia seguinte, porém, éste preparavam para a Primeira Co
lhe disse : «Volte para a Virgem, munháo, os havia expulso de
e seus filhos lhe seráo restituí- casa, dizendo-lhes que nao mais
dos»; revelou também que ha- os receberia. O professor entáo
via coníiado os dois jovens a um expós o fato ao Pe. Guzman, o
jesuíta, sob o pretexto de que qual, com o consentimento dos
desejavam fazer a Primeira Co- dois meninos, conseguiu que fós-
munháo na Igreja Católica e a sem recebidos no orfanato, onde
genitora o impedia. se lhes daría alimento e teto.
Informado da situacáo, o bispo
de Manizales aconselhou ao pa
dre, pedisse a intervencáo do
Juiz de Menores para solucionar
o caso de acordó com a lei. O
Juiz tomou sob a sua responsa-
bilidade os dois meninos, man
dando que continuassem, a títu
lo provisorio, no orfanato.

4. Só a muito custo e após Aos meninos foi dada a liber-


varios dias, a genitora conse- dade de ver a máe todas as vé-
guiu rever os meninos; estavam, zes que o quiseram. Foram vi
porém, t§o apavorados que nao sitados também por ministros
quiseram fazer declaracSes, ii- protestantes, que tiveram opor-
mitando-se apenas a chorar. tunidade de conversar com éles
Mais tarde um déles disse tcr e de os fotografar. É falso di-
sido levado á fdrca, espancado ' zer que os jovens foram, de al
e constrangido a fazer a Primei gum modo, constrangidos ou
ra Comunháo. maltratados.

(2) Pode-se ver o atestado déste fato no 9' Registro dos de-
funtos da paróquia da Imaculada em Manizales, pág. 46, n' 263.

— 268 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

5. Um dos meninos lugiu, Estando os dois meninos sob


quando estava internado, mas a a tutela do Juiz de Menores, a
policía o prendeu e levou de direcáo do orfanato era obriga-
volta ao orfanato. da a comunicar ás autoridades
a fuga e a seguir as ordens que
recebesse. Desde, porém, que
os irmaos Morales declararam
ao bispo que haviam mentido,
afirmando ter sido expulsos de
casa, e mostraram a vontade de
nao ficar no orfanato, o bispo
determinou fóssem sem demora
devolvidos á sua genitora.

Nao é o caso de se acrescentarem comentarios. Apenas importa


citar a documentacáo.
Da parte protestante: Boletim da CEDEC n* 11; «Le Messager
Social» (Genebra) de 10/X/1953; <rLa Vie Protestante» de 25 de se-
tembro de 1953.
Da parte católica: «Servicio Nacional de Noticias Católicas»
(S.N.N.C.) n» 103, de 31 de outubro de 1953; Ospina, Las sectas
protestantes 145-152; «Giornale del Popólo» (Lugano), de 3/XII/1953;
«Le Courrier» (Genebra), de 19/XI/1953.

c) Das fontes históricas também consta o seguinte episodio :

O Boletim da Confederacáo Evangélica Colombiana de 28 de fe-


vereiro de 1953 pág. 4 relatou desavenga ocorrida entre católicos e
protestantes aos 25 de Janeiro de 1953 em Barrancabermeja, acres-
centando os seguintes tópicos: «Poucos momentos antes do choque,
loi visto o sacerdote jesuíta Aureliano Busto, vestido á paisana, na
esquina da rúa mais próxima da igreja (evangélica). Dois outros
jesuítas Hugo Villegas e Vitório Grillo, entraram na igreja (evan
gélica) em trajes civis, juntamente com a policía, e ajudaram a
depredar o templo. O Pe. Villegas espancou e deu um ponta-pé no
estómago de um dos fiéis».
Pois bem Ficou averiguado que os dois sacerdotes, Pe. Busto
e Pe Grillo na hora do referido conflito, se achavam de hábito re
ligioso na residencia episcopal, ocupados com um grupo de pessoas.
Quanto a «Padre Hugo Villegas», nao existe nenhum com éste nome
entre os jesuítas colombianos; há, sim, um Pe. Villegas que no dia
do choque, se encontrou o tempo todo em Bogotá, a 280 Km de Bar
rancabermeja !

Nao prosseguiremos esta lista de episodios particulares, embora,


de ac&rdo com a documentacáo até hoje publicada, ela aínda pudesse
ser prolongada. — Passamos, pois, a fixar alguns pontos a guisa de

6. Breve conclusáo

1. A tesa situagáo religiosa na Colombia de 1953 parece


dever-se, em última análise, a tres fatóres principáis :

1) Duas premissas:

— 269 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961, qu. 5 .

a) a estima antiga, constante e homogénea, dedicada


pelo povo colombiano á fé católica; essa estima se cristalizou
sempre em cláusulas das Constituigóes sucessivamente vigen
tes no país ;

b) o ardor tumultuario e pouco reverente da recente


propaganda protestante, ardor apto a ferir a sensibilidade es
pontánea do povo.

2) Um elemento decisivo :

c) a guerra civil, que desencadeou violencias ñas quais


motivos políticos e motivos religiosos foram fácilmente con
fundidos.

A exacerbada propaganda da «perseguigáo» feita pelos evangé


licos se deve a urna única entidade protestante (a CEDEC) e se vol-
ta sómente para o estrangeiro em língua inglesa, nao para o inte
rior do país; colima entre outros, também um objetivo político re
volucionario (liberal, «bandolero», assaz favorável aos comunistas).

2. Na análise dos acontecimentos, será preciso reconhe-


cer a injustica onde quer que ela ocorra, tanto da parte de
protestantes como da parte de católicos. Contudo náa será lí
cito identificar a agáo de individuos ou grupos católicos com
a própria Igreja Católica. Esta se manifesta por suas instru-
góes e normas oficiáis, as quais, principalmente no caso da Co
lombia, só tém visado apaziguar os ánimos e favorecer a paz
no país. Tenham-se em vista, por exemplo :
as Cartas Coletivas do Episcopado colombiano de 3 de outubro
de 1949 e 30 de novembro de 1951, publicadas respectivamente nos
periódicos «Cathedra» de 1949, pág. 401, e «Revista Javeriana» de
Janeiro de 1952;

a «Mensagem de Pió XII ao povo colombiano em favor da Cruza


da Nacional da Paz», em «Discorsi e Radiomessaggi» XIV, Roma,
pág. 217.

Em tudo que tem ocorrido, a Igreja Católica guarda a


consciéncia de nao haver cedido a instintos mesquinhos, mas,
ao contrario, de haver defendido um patrimonio que nao é
própriamente católico nem protestante, mas é de todo o géne
ro humano. É o que dava a entender com sabedoria o Car-
deal Crisanto Luque de Bogotá em 1954 :

«A Iereja nunca tendeu, e nunca tenderá, a abolir legítimos di-


reitos. A doutrina de Jesús Cristo, da qual ela é fiel depositarla, é

— 270 —
PERSEGUICAO RELIGIOSA NA COLOMBIA ?

a íonte da qual a dvilizacáo crista se tem inspirado para respeitar


conscienciosamente os direitos de todos os homens. Por isto, nao na
autoridade mais habilitada do que a Igreja, para assegurar o respei-
to aos direitos e a maneira de o sustentar...

Doutro lado, a Igreja sabe, e sempre ensinou, que a liberdade,


para ser construtiva, frutuosa e abencoada, tem que se manter den
tro dos limites da verdade e da justica. Liberdade concebida fora
désses limites faria do pais urna anarquía e reduziria os individuos
á escravidáo. Tal liberdade, nunca a houve, nem íoi jamáis possl-
vel, em setor algum das atividades humanas».

Liberdade, salvaguardadas a Verdade e a Justiga, eis um


principio a respeito do qual irmáos católicos e protestantes
certamente estáo de acordó !...

A guisa de complemento, vai aquí consignado ainda o seguinte


trecho de carta dirigida pelo mesmo Cardeal Luque, em 17 de no-
vembro de 1958 (poucos meses antes de morrer), á comunidade pro
testante de Taizé (Franga), que interpelava S. Eminencia a respeitb
dos acontecimentos na Colombia:

«1. Nunca a hierarquia da Igreja na Colombia baixou determi-


nacao alguma para se perseguirem protestantes ou quem quer que
ídsse.

2 Nao há dúvida, porém, veriíicaram-se, isolada e esporádica


mente lamentáveiá acontecimentos. Tiveram suas raízes, muitas vé-
zes em motivos políticos; outras vézes exprimiam reacio contra os
termos injuriosos com que alguns protestantes se refenam a Igreja
Católica Romana, aos seus dogmas, sacramentos e sacerdotes. Estas
referencias em alguns casos ocasionaram a perturbacSo da ordem
pública, o que levou o govérno do meu país a fechar provisoriamente
casas de culto protestante.

3. Seria vivo desejo meu que urna Comissáo de um católico e


um protestante percorresse o pais e, com toda a liberdade, redigisse
um estudo objetivo sobre a situacáo religiosa da Colombia. Repeti
damente tenho manifestado tal desejo; até agora, porém, nao obtive
resposta... Regozijar-me-ia pela realizacao de tal viagem de ins-
peccao.

4. Caso por motivos religiosos tenha sido derramado o sangue


de cidadáos protestantes, como muitas vézes se diz (nao tenho, go-
rém nem provas disto nem noticias fidedignas), seria eu o pnmeiro
a lamentar o ocorrido e a pedir perdao a Nosso Senhor pelos auto
res dos feitos...

6 Em todos os lempos, imutável até hoje, nutri espirito de to


lerancia. Posso assegurar, sem restricáo, que os protestantes na Co
lombia possuem plenas garantías para celebrar seu culto ñas igre-
jas e nás localidades destinadas a isso, assim como para educar seus
filhos de acordó com a sua crenca.

— 271 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 42/1961

7. Nao posso compreender (e ninguém o pode) por que há pes-


soas que querem, de preferencia, vir para a Colombia, a fim de di-
v°dir listaos católicos que professam, sem mais, a doutnna do Evan-
gelho e íazem caso de sua unidade na fé, enquanto há aínda tantos
homens nao cristáos no mundo» (texto transcrito de «Herder-Kor-
respondenz» XIV, fevereiro de 1960, pág. 209).

CORRESPONDENCIA MlODA

A F (Laguna, SC) : Sobre a origem do homem e a Biblia, veja


"P.R." 4/1957, qu. 1 ; 29/1960, qu. 1.
ESCANDALIZADA (Rio de Janeiro): O adulterio em caso nenhum
é permitido. Deve ter havido equívoco, na referencia.

VM INTERESSADO (Redfe): Será fácil obter resposta consul


tando a última edicáo do índice. Poderá dirigir-se ao R. Pe. Zefenno
de Oliveira, Reitor do Seminario de Ohnda.
A. T. H. e Feo. T. de Salvador, assim como a Ivo (SC), pedimos
enderecos.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT OS.B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual de 1961 Cr$ 200,00


Assinatura anual de 1961 (via aérea) ...... Cr$ 250,00
Número avulso de 1961 Cr$ 20,00
Número de ano atrasado Cr$ 25,00
Colecáo encademada de 1957 Cr? 320,00
Colero encadernada de 1958, 1959, 1960 .. Cr? 450,00 (cada urna)
REDACAO ADMINISTRADO
Caixa Postal 2666 »• R^1 Grandeza, 108 - Botafogo
Rio üe Janeiro Tel. 26-1823 - Rio de Janeiro

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