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«Estética» e sentir feminino na obra de Josefa de Ayala

Teresa Torres Eça


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Sempre me perguntei, como muitas outras pessoas, porque é que as pintoras


Portuguesas não eram tão referenciadas na literatura sobre história da arte em Portugal
como os pintores. Tinha algumas hipóteses sobre o assunto que se prendiam com o facto
de que a partir do século XIX e durante quase todo o século vinte as mulheres foram
discriminadas no mundo da arte, mundo masculino por excelência. Até agora nunca
busquei muitas respostas sobre o assunto, não porque as questões de género me não
interessassem mas porque nunca tive grande tempo e disponibilidade intelectual para
reflectir sobre o assunto. Tenho lido muitas teorias sobre o papel das mulheres nas artes
e tenho simpatizado com algumas interpretações feministas ou pós feministas sobre a
questão.

Devo confessar que sinto muito embaraço sobre esta questão porque como qualquer
outra artista da minha geração treinada numa escola de Belas Artes de Portugal fui
muito marcada por concepções modernistas e machistas da arte. E por isso de vez em
quando sinto necessidade de repensar algumas pintoras portuguesas e de tentar entender
porque foram tão mal tratadas pela memória colectiva registada nos textos sobre arte,
que nunca é reflexo de nenhuma colectividade cultural representativa de um povo mas
apenas uma visão elitista, representando a opinião subjectiva de um pequeno grupo de
pessoas consideradas peritas em apreciação artística por um punhado de gente.
Transverberação de Santa Teresa
c.1672, óleo sobre tela
108 x 140 cm
Igreja Matriz
Cascais, Portugal

Josefa de Ayala é para mim uma personagem fascinante. Os meus encontros com
algumas das suas obras têm sido sempre um encantamento. Sobretudo as naturezas
mortas e os meninos Jesus. Tanta frescura, tanta transparência singela, sensualidade nas
texturas e cores, dramatismo na sábia distribuição da luz e da sombra sem nunca chegar
aos excessos tenebrosos de alguns dos seus contemporâneos. Encanta-me a maneira
como repete um determinado tipo de rosto, olhos desmesuradamente grandes,
bochechas rosadas, bocas carnudas como se fossem um belo fruto maduro. Vagamente
fazem-me lembrar outros rostos vistos em outras pinturas renascentistas e barrocas
portuguesas e espanholas, mas têm um não sei quê que as torna únicas.

Nunca encontrei grandes estudos sobre esta pintora, o mais completo que eu conheça é a
publicação do catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco apresentada
na Galeria de Pintura do Rei D. Luis em Lisboa em 1991. O catálogo coordenado por
Vítor Serrão1 foi patrocinado pelos Telefones de Lisboa e do Porto. Neste livro afirma-
se mais uma vez que Josefa foi no seu tempo hiper valorizada, que afinal ela não era
nenhuma pintora de grande calibre, que muito do que se escreveu sobre ela antes da
chegada do grande ‘ connoisseur’ o conde Atanasio Raczynski era ‘ um acervo
fantasista de registos responsáveis pela legendária fortuna crítica de Josefa de
Ayala’ (Serrão, 1993, p. 15).

Tenho muitas dúvidas sobre a peritagem deste ‘connoisseur’ o tal conde Raczynski e
parece-me que o que de facto aconteceu foi que a mulher valorizada pela sociedade
barroca foi nos períodos seguintes vítima de discriminação, e que no século XIX e XX
era impossível pensar que uma mulher possa ter sido uma pintora de qualidade e ainda
mais grave, uma mulher que não vivia nos grandes centros da arte barroca, nem sequer
em Lisboa, uma mulher e ainda por cima periférica!!!

Entendamo-nos bem: uma pintora que limita a sua


existência à austeridade freirática de um recolhimento de
agostinhas, em Coimbra, e à tranquilidade bucólica das ruas
de Óbidos e dos campos vizinhos não pode ser explicada
artisticamente com artificiosos e deslocamentos cotejos
internacionais. A realidade artística de Josefa, mesmo
tomando em conta os anos da meninice passados em Sevilha
à sombra da oficina de Francisco de Herrera e olhos postos
na violenta modernidade naturalista dos quadros da catedral
sevilhana, esgota-se numa formação plástica seguramente
menos dilatada do que a de qualquer pintor lisboeta do seu
tempo’ ( Serrão, 1993, p. 25)1.

Discordo desta afirmação de Vítor Serrão, que apesar de ser para mim um dos maiores
conhecedores da obra de Josefa de Ayala deixa transparecer preconceitos de valor de
centro e periferia que nada têm a ver com a investigação plástica séria, embora solitária,
que a pintora efectuou durante a sua vida. Talvez porque não estivesse condicionada por
um vida social intensa tivesse mais tempo para pensar e praticar, talvez porque não
estivesse perto dos ditos ‘ grandes artistas’ ela tivesse conseguido criar uma linguagem
plástica única e tão válida como a dos seus contemporâneos habitantes de Sevilha ou de
Lisboa.

Este preconceito da centralidade geográfica infelizmente ainda hoje existe e não são
raros os artistas que vão viver para Amesterdão ou Nova York porque para eles é a
única maneira de poder ser artista. Confundir comercialização de produtos artísticos ou
de um nome com qualidades artísticas é um erro comum, a própria Paula Rego numa
entrevista à televisão portuguesa confessou que se não fossem os pais a terem mandado
para o estrangeiro ela não seria quem era. Sergio Mah2 numa conferência sobre arte
Honolulu (Julho de
2004) intitulada ‘Cultural (In) Difference: The Portuguese Contemporary Art Scene’2
referiu este complexo tão castrador da arte portuguesa, se um artista não vive e trabalha
nos grandes centros não é reconhecido pela crítica.

Claro que também acredito que a mudança da sociedade possa ter causado uma
mudança mais radical de valores como diz Vítor Serrão:

‘ O grosso dos valores caracterizadores do Seiscentismo


português, de que Josefa è um espelho particularmente clarificador,
com as suas composições feitas de trevas e de gula, de fumos
inquisitoriais e de prados tranquilos, de ingénua graciosidade e de
exaltante misticismo, de objectos singelos e de flores
emblemáticas, de uma reprimida carga sensorial e de uma
religiosidade veemente, passaram deste modo a ser
secundarizados’( Serrão, 1985, pp 17-183).

1
Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: TLP

2
[http://www.apexart.org/conference/mah.htm] 2007-02-15

3
Serrão, (1985). O essencial sobre Josefa de Óbidos. Lisboa: Col. Essencial da Imprensa
Nacional/ Casa
da Moeda.
De facto estes valores ou para ser mais precisa estas maneiras de estar no mundo foram
desaparecendo com o racionalismo típico da sociedade criada pelos iluministas. Mas
isso por si só não justifica o desprezo a que foi votada a obra de Josefa de Óbidos.
Outros pintores barrocos que viam o mundo deste modo sensual e místico não foram
desvalorizados e não me parece que tenham tido melhor perícia técnica que Josefa , mas
eram homens numa história contada por homens.

Preconceitos contra a mulher que para mim justificaram a marginalização da sua obra,
apelidada como ‘ medíocre’ pelo tal ‘connoissseur’ estrangeiro, ‘uma pintora menor’ ,
sem o talento de seu pai ou dos seus contemporâneos ‘ ingénua ’ , ‘ gulosa’ , ‘devota’,
‘donzela’ , ‘ patética inocência’… São inúmeros os nomes com que a sua obra e a sua
pessoa é desprezada. Só para dar um exemplo de crueldade e de crítica discriminadora
vejamos:

‘Pintava com devoção, sem dúvida: uma devoção ternurenta,


xaroposa… O universo mental e cultural de Josefa, dado a ver na
sua pintura, é pois anódino, dissolvido em açúcar, confirmando o
epíteto por que foi celebrada ‘ molher donzela que nunca
cazou’ ( José Fernandes Pereira, 1989, p.69)

Como poderá este senhor julgar o universo mental de uma pintora utilizando tais
metáforas? Reduzindo a pintora a xaropes, açúcar e virgindade. De todos os
comentários que li sobre a pintora este foi talvez o mais cruel e revoltante. Será que o
facto de ter sido apelidada de ‘ donzela’ é relevante nas suas obras? Será que Josefa quis
ser donzela por exemplo porque poderia não ser heterossexual ou será que Josefa foi
obrigada a ser donzela porque precisava de tomar conta dos pais? Terá alguma
importância o facto de Josefa não ter sido casada? Teria sido virgem? Será que isso teve
influência na sua pintura?

Talvez que sendo solteira tenha tido mais tempo e liberdade para pintar. Mas sabemos
que Josefa era empreendedora, geria negócios com mão de ferro , tomava conta de toda
a família, vendia, emprestava, pedia emprestado, comprava propriedades e géneros além
de vender o produto do seu trabalho artístico como barrista, gravadora, miniaturista,
pintora de retratos, naturezas mortas e de cenas religiosas. Pintar para Josefa era uma
profissão, não um passatempo de dona de casa .

“Josefa de Ayala e Cabrera, , além de pintora de quadros sacros,


naturezas mortas, miniaturas e retratos, além de gravadora e de
barrista, também ilustradora de livros, pintora de fresco, talhante de
imaginária avulsa e, ainda, autora de cartões para azulejo, facetas
essas que, como se sabe, persistem desconhecidas” ( Serrão, V., 1993,
pág.42)4

Josefa era uma profissional da pintura. Ela tinha uma oficina, tinha assistentes, era
parceira do pai Baltasar Gomes Figueira em grandes encomendas. Se fosse hoje diria
que Josefa era uma ‘empresária de sucesso’.
4
Serrão, Vítor (1993): “Josefa de Óbidos e o tempo Barroco” Catalogo da exposição
subsidiado pelos TLP, Lisboa, pág.42.
Dirigia a sua vida e a vida da sua família com mãos de ferro, comprava e alugava
terrenos, as suas obras eram muito procuradas e bem pagas.

“Josefa d´Óbidos, foi uma artista de merecimento, evidenciando-se


não apenas como pintora ilustre, mas também como miniaturista,
gravadora a água forte, debuxadora, calígrafa e lavrante de prata de
martelo, no género de que chamavam –de pontinho….

É vasta e dispersa a obra desta artista: retratos, imagens de santos,


naturezas mortas, frutos, flores, etc.,” Joaquim Silveira Botelho,
“Óbidos Vila Museu”,
Câmara Municipal de Óbidos, pág.85-86

A vida em Óbidos não deveria ser fácil, uma cidade pequena cheia de mexericos e cheia
de preconceitos. Josefa vivia recatada, porventura em ‘ intimismos de gula e rendas’
como sugere Serrão ( In: Pereira, José Fernandes ,1989, p.69).5

Não acredito muito numa Josefa anafada, comedora de doces conventuais e fazedora de
licores, acredito mais numa Josefa decidida, persistente no trabalho, passando horas e
horas tentando descobrir soluções plásticas, fabricando as tintas preciosas com rigor de
laboratório, ensinando os seus discípulos e assistentes de ambos os sexos , ao que
parece teria uma assistente negra , rabiscando esboços compositivos, copiando
gravuras, observando as formas reais com olhos de pintar, aquela observação que
sistematiza: ao mesmo tempo que olha está a ver como vai representar a textura, como
está situada a luz, como deveria estar, etc. Vejo Josefa de Ayala como uma boa
profissional, sabedora da sua arte aprendida em Sevilha com o padrinho, no convento
em Coimbra, com o pai, através de gravuras de outros artistas que na altura circulavam
por toda a Europa e através da sua experiência com o seu quotidiano. Vejo-a artista e
mestre terrivelmente independente. Ela não se sujeitaria à autoridade de um marido ou
às restrições da corte de Lisboa, que afinal de contas era tão provinciana como a de
Óbidos só que mais castradora.

“…na Capeleira, Josefa ganhava, notoriamente, a feição de uma


patriarca rural de província. Rejeitou uma inserção na corte de D.
Pedro II, receando talvez o ambiente e as exigências que não
deixariam de lhe ser feitas” Fernandes Pereira, José (1988):
“Óbidos”, Editorial Presença, Lisboa, pág.69

“Josefa era visitada por senhoras que lhe apreciavam a destreza


em captar, pela semelhança, a realidade, e se deixavam muitas
vezes retratar. Este público que a demandava seria provavelmente
gente da capital em trânsito para as Caldas; sabemos ter
retratado a princesa D. Isabel, filha de D. Pedro II”….“Josefa
teria também retratado a rainha D. Maria Francisca Isabel de
Sabóia” Fernandes Pereira, José (1988): “Óbidos”, Editorial
Presença, Lisboa, pág.69.
5
Pereira, José Fernandes ( 1989).‘Óbidos’, colecção Cidades e vilas de Portugal. Editorial
Presença,Lisboa, p.69.
Pergunto-me muitas vezes se Josefa fazia naturezas mortas porque gostava do género ou
porque tinha encomendas certas e nunca cheguei a conclusão nenhuma. Existem nas
suas frutas, nas suas flores uma verdadeira alegria de contemplação, de fruição da
natureza, será possível que Josefa pensasse as suas naturezas mortas como odes
religiosas, um imaginário piedoso como os poemas de Sóror Maria do Céu ? Tal como
Ana Hatherly nos chama a atenção pondo em paralelo os poemas de Sóror Maria do
Céu e as pinturas de Josefa de Ayala :
Na verdade, ambos são texto(s), ambos são imagem(s) ambos
pintam, ambos mostram, ambos falam, mas não obstante o seu
notável realismo, falam de algo neles ausente: a dimensão invisível
do real que ambos querem dar ver. Ambos querem dar a ver e
sobretudo ambos querem dar a pensar, porque ambos apelam para o
invisível, para esse outro real que só pode ser apercebido pelos olhos da
alma ( Hatherly, 1993)6
O texto de Ana Hatherly para o catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o tempo do
Barroco é muito interessante porque nos recorda como a contra reforma foi importante
na valorização dos sentidos e da natureza como celebração divina, e de como o aparente
naturalismo dramático do barroco e de Josefa não é um discurso mimético sobre a
natureza mas sim um discurso sobre os símbolos da natureza e sobre a divindade, trata-
se de facto de um meta discurso visual que Josefa invoca em cada uma das suas
naturezas mortas, na sua procura pela simetria, pela organização formal na colocação
das formas, por exemplo das açucenas ou dos lírios sobre a mesa ou em redor nas
cercaduras.

6
Hatherly, Ana ( 1993) In : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa:
TLP,p. 84.
Outra coisa que me fascina na obra de Josefa são os meninos, meninos rosados, bem
penteados, com vestes transparentes, com mãos rechonchudas e impecáveis unhas bem
aparadas. Josefa nunca foi mãe, pelo menos que se saiba, mas a sua casa em Óbidos
deveria estar repleta de sobrinhos e sobrinhas, de filhos da criadagem, dos assistentes da
oficina. Josefa pinta os meninos como pinta porque viveu com eles, pegou-lhes ao colo,
sentiu-lhes o peso e o cheiro.

Mas os meninos de Josefa não são meninos de verdade , são figuras religiosas, meninos
de talha barroca, meninos de altar e de procissões. Não têm talvez a sensualidade de
um menino de Juan de Ruelas , oscilam entre a carnosidade brincalhona dos sobrinhos
e a divindade que os estereotipa e eu os legitima num cena religiosa. São meninos de
rosto esquemático certamente tal como todos os rostos da pintora com aqueles olhos
esbugalhados desmesuradamente grandes que convidam o espectador a entrar para
dentro deles. Olhos por vezes adormecidos, que fixam o espectador, o infinito ou algum
personagem no espaço da pintura, os olhares na obra figurativa de Josefa são
extremamente ricos na medida em que por um lado eles revelam ou sublinham
trajectórias essenciais da composição e que por outro lado eles revelam dimensões para
além do tempo, de espiritualidade absoluta.

Os olhares das personagens nas cenas religiosas são típicos olhares barrocos, em rostos
barrocos tão barrocos como os dos seus contemporâneos, mas existe algo de
extremamente feminino neles, A Santa Face, O senhor da Cana verde são
impressionantes de uma delicadeza quase envergonhada . Nos esquemas dos rostos
femininos Josefa usa um olhar que meigo quase maternal tal como o olhar de Maria na
visitação de Peniche, bem diferente dos arrebatados olhares em transe de Francisco de
Herrera ou André Reinoso. E não é só o olhar dos personagens que torna Josefa única ,
é o esquema plástico que ela criou para representar a figura humana, quase sem
diferenciar masculino de feminino , exceptuando a roupa, santos e santas, virgens e
Cristos todos comungam de um esquema particular , andrógino . Todos salvo os
personagens secundários, mais característicos , bem ao modo do renascimento.

Josefa de Óbidos, natureza morta, s/data. Barros e cesto, queijo e cerejas. Este quadro pertence a uma
colecção particular e foi exposto na exposição da Galeria do Rei D. Luís em 1991.

Existe uma natureza morta de Josefa que me encanta de sobremaneira, representa um


prato com queijos, tipo queijo saloio, um pote de barro, uma taça de barro, dois figos,
um cesto de cerejas e um prato de esmalte branco florido também com cerejas, tudo
muito bem disposto em cima de uma mesa. A luz é tenebrista bem ao espírito da época,
o branco dos queijos e a transparência das cerejas são fontes de luz mas não irradiam,
pelo contrário parecem mais ‘atractores’ no sentido matemático, dois pólos geradores de
tensão. A composição em banda mostra quietude. Parece que o tempo parou e aquelas
coisas simples congelaram na memória. Entro numa dimensão espiritual, talvez para
Josefa os figos, as cerejas e o queijo tenham tido um significado místico, os figos talvez
conotados como na antiguidade a figueira com erotismo e fertilidade (a figueira era
dedicada a Mercúrio), nas Escrituras o figo aparece várias vezes com várias conotações.
Mas eu desconheço esses códigos e não consigo ler nesta obra um elogio ao divino, mas
consigo ver outras coisas, o queijo das refeições sóbrias mediterrâneas, das merendas
dos trabalhadores do campo, os figos que se apanham da figueira e se deixam
esquecidos em cima da mesa da cozinha numa tarde de verão. As cerejas colhidas pela
manhã, a água fresca, uma mesa posta para quem passar, uma mesa expectante , cheia
de iguarias para alguém que há-de vir, se vier. Penso no quadro das cerejas de Chardin
que me dá a mesma sensação de espera, de intemporalidade e de devir como as caixas e
as garrafas do Morandi no século vinte . As naturezas mortas, pelo menos algumas têm
para mim esse sentido de congelamento do tempo, como na fotografia. Há qualquer
coisa de falso, de ilusão de mensagem escondida, aquela fruta deveria apodrecer como
as cebolas greladas de Cezanne, os queijos deveriam cheirar mal, os figos deveriam em
breve apanhar bolor. Mas não eles estão lá e estarão contrariando a efemeridade
contrariando o poema de Ronsard
‘ Mignonne allons voir si la rose
Que ce matin sa robe avait déclose
N’a point perdu de son éclat ….‘
Ronsard (1524-1585) Sonnets pour Hélène.

É verdadeiramente um desafio à natureza, não tem nada de inocência ou de singeleza,


esta negação do tempo é a afirmação duma dimensão diferente, dum outro estado, o
estado da memória ou da alma e é por isso que este quadro me encanta tanto.

O período barroco foi um período onde algumas mulheres europeias7 puderam trabalhar
sem grandes entraves sociais. Outras pintoras, contemporâneas de Josefa foram e são
apreciadas pela crítica da arte europeia, embora poucas façam parte da história oficial
por razões de discriminação sexual e não por serem menos aptas, as suas obras tinham
imensa qualidade por exemplo:

Giovanna Garzoni (1600-1670) uma das primeiras a pintar naturezas mortas, trabalhou
na corte do Duique de Alcalá , do Duque de Savoia e em Florença para membros da
família Medici, foi pintora oficial do Grão Duque Ferdinando II. Judith Leyster
(1609-1660) a alemã cuja obra foi tantas vezes confundida com os irmãos Franz e Dick
Hals . A Francesa Louise Moillon (1610-1696), a grasvadora alemã Geertruydt
Roghman , a holandesa Maria van Oosterwyck (1630-1693) que nunca foi aceite na
guilda dos pintores , a inglesa Mary Beale (1632-1697) que acabou por ser o único
sustento da sua família , A precoce e multifacetada Elisabetta Sirani (1638-1665) ou
Maria Sibylla Merian (1647-1717) a primeira dos grandes da ilustração científica que
7
Ver em [http://womenshistory.about.com/library/weekly/aa021230a.htm] 2007-09-04
em pleno século dezassete se aventurou com a filha até Suriname para desenhar o seu
livro Metamorphosis.

Josefa faz parte desta lista de artistas notáveis. Josefa de Ayala foi uma importante
pintora portuguesa, tão meritória de fama e sucesso como os seus contemporâneos
machos André Reinoso, João de Avelar Rebelo ou Domingos Vieira. Ela legou-nos
uma visão única sobre o seu tempo, sobre os valores e crenças religiosas com que viveu
e sobre si própria. Deixou-nos um testemunho riquíssimo de grande qualidade pictórica
que seria bom não esquecer ou menosprezar através de preconceitos sexistas e de
periferia. Com este texto muito pessoal, visto que não sou crítica de arte, tentei mostrar
porque é que a obra de Josefa de Ayala, também conhecida por Josefa de Óbidos me
encanta tão profundamente.

Viseu, 2009-02-03
Teresa Torres Eça

Nota s: biografia de Josefa de Ayala por Vítor Serrão em: http://www.esec-


josefaobidos.
rcts.pt/josefa_ayala/vidobra.htm, acedido em 2007-09-04

Imagens reproduzidas a partir de : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco.
Lisboa: TLP.

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