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Devo confessar que sinto muito embaraço sobre esta questão porque como qualquer
outra artista da minha geração treinada numa escola de Belas Artes de Portugal fui
muito marcada por concepções modernistas e machistas da arte. E por isso de vez em
quando sinto necessidade de repensar algumas pintoras portuguesas e de tentar entender
porque foram tão mal tratadas pela memória colectiva registada nos textos sobre arte,
que nunca é reflexo de nenhuma colectividade cultural representativa de um povo mas
apenas uma visão elitista, representando a opinião subjectiva de um pequeno grupo de
pessoas consideradas peritas em apreciação artística por um punhado de gente.
Transverberação de Santa Teresa
c.1672, óleo sobre tela
108 x 140 cm
Igreja Matriz
Cascais, Portugal
Josefa de Ayala é para mim uma personagem fascinante. Os meus encontros com
algumas das suas obras têm sido sempre um encantamento. Sobretudo as naturezas
mortas e os meninos Jesus. Tanta frescura, tanta transparência singela, sensualidade nas
texturas e cores, dramatismo na sábia distribuição da luz e da sombra sem nunca chegar
aos excessos tenebrosos de alguns dos seus contemporâneos. Encanta-me a maneira
como repete um determinado tipo de rosto, olhos desmesuradamente grandes,
bochechas rosadas, bocas carnudas como se fossem um belo fruto maduro. Vagamente
fazem-me lembrar outros rostos vistos em outras pinturas renascentistas e barrocas
portuguesas e espanholas, mas têm um não sei quê que as torna únicas.
Nunca encontrei grandes estudos sobre esta pintora, o mais completo que eu conheça é a
publicação do catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco apresentada
na Galeria de Pintura do Rei D. Luis em Lisboa em 1991. O catálogo coordenado por
Vítor Serrão1 foi patrocinado pelos Telefones de Lisboa e do Porto. Neste livro afirma-
se mais uma vez que Josefa foi no seu tempo hiper valorizada, que afinal ela não era
nenhuma pintora de grande calibre, que muito do que se escreveu sobre ela antes da
chegada do grande ‘ connoisseur’ o conde Atanasio Raczynski era ‘ um acervo
fantasista de registos responsáveis pela legendária fortuna crítica de Josefa de
Ayala’ (Serrão, 1993, p. 15).
Tenho muitas dúvidas sobre a peritagem deste ‘connoisseur’ o tal conde Raczynski e
parece-me que o que de facto aconteceu foi que a mulher valorizada pela sociedade
barroca foi nos períodos seguintes vítima de discriminação, e que no século XIX e XX
era impossível pensar que uma mulher possa ter sido uma pintora de qualidade e ainda
mais grave, uma mulher que não vivia nos grandes centros da arte barroca, nem sequer
em Lisboa, uma mulher e ainda por cima periférica!!!
Discordo desta afirmação de Vítor Serrão, que apesar de ser para mim um dos maiores
conhecedores da obra de Josefa de Ayala deixa transparecer preconceitos de valor de
centro e periferia que nada têm a ver com a investigação plástica séria, embora solitária,
que a pintora efectuou durante a sua vida. Talvez porque não estivesse condicionada por
um vida social intensa tivesse mais tempo para pensar e praticar, talvez porque não
estivesse perto dos ditos ‘ grandes artistas’ ela tivesse conseguido criar uma linguagem
plástica única e tão válida como a dos seus contemporâneos habitantes de Sevilha ou de
Lisboa.
Este preconceito da centralidade geográfica infelizmente ainda hoje existe e não são
raros os artistas que vão viver para Amesterdão ou Nova York porque para eles é a
única maneira de poder ser artista. Confundir comercialização de produtos artísticos ou
de um nome com qualidades artísticas é um erro comum, a própria Paula Rego numa
entrevista à televisão portuguesa confessou que se não fossem os pais a terem mandado
para o estrangeiro ela não seria quem era. Sergio Mah2 numa conferência sobre arte
Honolulu (Julho de
2004) intitulada ‘Cultural (In) Difference: The Portuguese Contemporary Art Scene’2
referiu este complexo tão castrador da arte portuguesa, se um artista não vive e trabalha
nos grandes centros não é reconhecido pela crítica.
Claro que também acredito que a mudança da sociedade possa ter causado uma
mudança mais radical de valores como diz Vítor Serrão:
1
Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: TLP
2
[http://www.apexart.org/conference/mah.htm] 2007-02-15
3
Serrão, (1985). O essencial sobre Josefa de Óbidos. Lisboa: Col. Essencial da Imprensa
Nacional/ Casa
da Moeda.
De facto estes valores ou para ser mais precisa estas maneiras de estar no mundo foram
desaparecendo com o racionalismo típico da sociedade criada pelos iluministas. Mas
isso por si só não justifica o desprezo a que foi votada a obra de Josefa de Óbidos.
Outros pintores barrocos que viam o mundo deste modo sensual e místico não foram
desvalorizados e não me parece que tenham tido melhor perícia técnica que Josefa , mas
eram homens numa história contada por homens.
Preconceitos contra a mulher que para mim justificaram a marginalização da sua obra,
apelidada como ‘ medíocre’ pelo tal ‘connoissseur’ estrangeiro, ‘uma pintora menor’ ,
sem o talento de seu pai ou dos seus contemporâneos ‘ ingénua ’ , ‘ gulosa’ , ‘devota’,
‘donzela’ , ‘ patética inocência’… São inúmeros os nomes com que a sua obra e a sua
pessoa é desprezada. Só para dar um exemplo de crueldade e de crítica discriminadora
vejamos:
Como poderá este senhor julgar o universo mental de uma pintora utilizando tais
metáforas? Reduzindo a pintora a xaropes, açúcar e virgindade. De todos os
comentários que li sobre a pintora este foi talvez o mais cruel e revoltante. Será que o
facto de ter sido apelidada de ‘ donzela’ é relevante nas suas obras? Será que Josefa quis
ser donzela por exemplo porque poderia não ser heterossexual ou será que Josefa foi
obrigada a ser donzela porque precisava de tomar conta dos pais? Terá alguma
importância o facto de Josefa não ter sido casada? Teria sido virgem? Será que isso teve
influência na sua pintura?
Talvez que sendo solteira tenha tido mais tempo e liberdade para pintar. Mas sabemos
que Josefa era empreendedora, geria negócios com mão de ferro , tomava conta de toda
a família, vendia, emprestava, pedia emprestado, comprava propriedades e géneros além
de vender o produto do seu trabalho artístico como barrista, gravadora, miniaturista,
pintora de retratos, naturezas mortas e de cenas religiosas. Pintar para Josefa era uma
profissão, não um passatempo de dona de casa .
Josefa era uma profissional da pintura. Ela tinha uma oficina, tinha assistentes, era
parceira do pai Baltasar Gomes Figueira em grandes encomendas. Se fosse hoje diria
que Josefa era uma ‘empresária de sucesso’.
4
Serrão, Vítor (1993): “Josefa de Óbidos e o tempo Barroco” Catalogo da exposição
subsidiado pelos TLP, Lisboa, pág.42.
Dirigia a sua vida e a vida da sua família com mãos de ferro, comprava e alugava
terrenos, as suas obras eram muito procuradas e bem pagas.
A vida em Óbidos não deveria ser fácil, uma cidade pequena cheia de mexericos e cheia
de preconceitos. Josefa vivia recatada, porventura em ‘ intimismos de gula e rendas’
como sugere Serrão ( In: Pereira, José Fernandes ,1989, p.69).5
Não acredito muito numa Josefa anafada, comedora de doces conventuais e fazedora de
licores, acredito mais numa Josefa decidida, persistente no trabalho, passando horas e
horas tentando descobrir soluções plásticas, fabricando as tintas preciosas com rigor de
laboratório, ensinando os seus discípulos e assistentes de ambos os sexos , ao que
parece teria uma assistente negra , rabiscando esboços compositivos, copiando
gravuras, observando as formas reais com olhos de pintar, aquela observação que
sistematiza: ao mesmo tempo que olha está a ver como vai representar a textura, como
está situada a luz, como deveria estar, etc. Vejo Josefa de Ayala como uma boa
profissional, sabedora da sua arte aprendida em Sevilha com o padrinho, no convento
em Coimbra, com o pai, através de gravuras de outros artistas que na altura circulavam
por toda a Europa e através da sua experiência com o seu quotidiano. Vejo-a artista e
mestre terrivelmente independente. Ela não se sujeitaria à autoridade de um marido ou
às restrições da corte de Lisboa, que afinal de contas era tão provinciana como a de
Óbidos só que mais castradora.
6
Hatherly, Ana ( 1993) In : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa:
TLP,p. 84.
Outra coisa que me fascina na obra de Josefa são os meninos, meninos rosados, bem
penteados, com vestes transparentes, com mãos rechonchudas e impecáveis unhas bem
aparadas. Josefa nunca foi mãe, pelo menos que se saiba, mas a sua casa em Óbidos
deveria estar repleta de sobrinhos e sobrinhas, de filhos da criadagem, dos assistentes da
oficina. Josefa pinta os meninos como pinta porque viveu com eles, pegou-lhes ao colo,
sentiu-lhes o peso e o cheiro.
Mas os meninos de Josefa não são meninos de verdade , são figuras religiosas, meninos
de talha barroca, meninos de altar e de procissões. Não têm talvez a sensualidade de
um menino de Juan de Ruelas , oscilam entre a carnosidade brincalhona dos sobrinhos
e a divindade que os estereotipa e eu os legitima num cena religiosa. São meninos de
rosto esquemático certamente tal como todos os rostos da pintora com aqueles olhos
esbugalhados desmesuradamente grandes que convidam o espectador a entrar para
dentro deles. Olhos por vezes adormecidos, que fixam o espectador, o infinito ou algum
personagem no espaço da pintura, os olhares na obra figurativa de Josefa são
extremamente ricos na medida em que por um lado eles revelam ou sublinham
trajectórias essenciais da composição e que por outro lado eles revelam dimensões para
além do tempo, de espiritualidade absoluta.
Os olhares das personagens nas cenas religiosas são típicos olhares barrocos, em rostos
barrocos tão barrocos como os dos seus contemporâneos, mas existe algo de
extremamente feminino neles, A Santa Face, O senhor da Cana verde são
impressionantes de uma delicadeza quase envergonhada . Nos esquemas dos rostos
femininos Josefa usa um olhar que meigo quase maternal tal como o olhar de Maria na
visitação de Peniche, bem diferente dos arrebatados olhares em transe de Francisco de
Herrera ou André Reinoso. E não é só o olhar dos personagens que torna Josefa única ,
é o esquema plástico que ela criou para representar a figura humana, quase sem
diferenciar masculino de feminino , exceptuando a roupa, santos e santas, virgens e
Cristos todos comungam de um esquema particular , andrógino . Todos salvo os
personagens secundários, mais característicos , bem ao modo do renascimento.
Josefa de Óbidos, natureza morta, s/data. Barros e cesto, queijo e cerejas. Este quadro pertence a uma
colecção particular e foi exposto na exposição da Galeria do Rei D. Luís em 1991.
O período barroco foi um período onde algumas mulheres europeias7 puderam trabalhar
sem grandes entraves sociais. Outras pintoras, contemporâneas de Josefa foram e são
apreciadas pela crítica da arte europeia, embora poucas façam parte da história oficial
por razões de discriminação sexual e não por serem menos aptas, as suas obras tinham
imensa qualidade por exemplo:
Giovanna Garzoni (1600-1670) uma das primeiras a pintar naturezas mortas, trabalhou
na corte do Duique de Alcalá , do Duque de Savoia e em Florença para membros da
família Medici, foi pintora oficial do Grão Duque Ferdinando II. Judith Leyster
(1609-1660) a alemã cuja obra foi tantas vezes confundida com os irmãos Franz e Dick
Hals . A Francesa Louise Moillon (1610-1696), a grasvadora alemã Geertruydt
Roghman , a holandesa Maria van Oosterwyck (1630-1693) que nunca foi aceite na
guilda dos pintores , a inglesa Mary Beale (1632-1697) que acabou por ser o único
sustento da sua família , A precoce e multifacetada Elisabetta Sirani (1638-1665) ou
Maria Sibylla Merian (1647-1717) a primeira dos grandes da ilustração científica que
7
Ver em [http://womenshistory.about.com/library/weekly/aa021230a.htm] 2007-09-04
em pleno século dezassete se aventurou com a filha até Suriname para desenhar o seu
livro Metamorphosis.
Josefa faz parte desta lista de artistas notáveis. Josefa de Ayala foi uma importante
pintora portuguesa, tão meritória de fama e sucesso como os seus contemporâneos
machos André Reinoso, João de Avelar Rebelo ou Domingos Vieira. Ela legou-nos
uma visão única sobre o seu tempo, sobre os valores e crenças religiosas com que viveu
e sobre si própria. Deixou-nos um testemunho riquíssimo de grande qualidade pictórica
que seria bom não esquecer ou menosprezar através de preconceitos sexistas e de
periferia. Com este texto muito pessoal, visto que não sou crítica de arte, tentei mostrar
porque é que a obra de Josefa de Ayala, também conhecida por Josefa de Óbidos me
encanta tão profundamente.
Viseu, 2009-02-03
Teresa Torres Eça
Imagens reproduzidas a partir de : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco.
Lisboa: TLP.