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ISCTE

LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA
ETNOGRAFIA PORTUGUESA
2007/2008
ENSAIO FINAL

O mendigo: entre o sagrado e o profano

Autoportrait en mendiant
(Rembrandt van Rijn)
Fonte: http://www.wittert.ulg.ac.be/fr/flori/opera/rembrandt/rembrandt_auto.html

ANA CANHOTO
N.º 27685
TURMA AB2
Introdução
Tomando como ponto de partida o livro de Susana Pereira Bastos O Estado Novo e os
Seus Vadios – Contribuição para o Estudo das Identidades Marginais e da Sua
Repressão, pretende-se, com este ensaio, desenvolver a temática do simbolismo que
envolve a mendicidade. Mais concretamente, no que concerne à liminaridade identitária
dos mendigos, quer como representantes do sagrado e quer do profano, e tendo como
referência a transformação discursiva operada após a implantação do Estado Novo em
Portugal. No final é efectuada uma pequena abordagem à forma como é descrita a
mendicidade em algumas culturas não ocidentais.

Mendicidade, vadiagem e marginalidade: definições


Para dar início ao desenvolvimento deste tema, mostrou-se fundamental pesquisar
definições de mendigo e de mendicidade. Do averiguado foram encontrados alguns
adjectivos comuns, como pedinte e indigente, assim como similitudes na descrição do
mendigo como o «Indivíduo que anda a pedir esmolas; aquele que vive de esmolas, …»
(Machado, 1991a: 97).
Quanto ao termo mendicidade este evidencia outras implicações, principalmente porque
é, com alguma frequência, referida a obrigação do acto de mendigar e neste constam
palavras como miséria e pobreza. Nestas duas últimas expressões é de realçar a noção
de estímulo da piedade e da compaixão, revelador do vínculo da mendicidade com o
campo do sagrado.
Como refere Susana Pereira Bastos, a proeminência do papel sacrossanto do mendigo
até ao início do século XX está directamente relacionada com a religião católica. A
função do mendigo era receber a esmola e retribuir através de uma «contraprestação»,
muitas vezes declarada sob a forma de prece (1997: 39). O mendigo era uma figura
mediadora entre Deus e os crentes, o pobre que pedia e quem os pecadores retribuíam
para atingirem a salvação.
Analogamente, foi realizada uma pesquisa sobre os termos vadio e marginal, por se
encontrarem relacionados com a mendicidade. Quanto ao primeiro, detectou-se
uniformidade no discurso do desocupado e do vagabundo. Já o marginal comunga,
nalguns dicionários, da relação com a margem, que vive entre culturas em conflito.
No que se refere à vadiagem, esta mantém uma relação directa com a ociosidade, mas
também com o nomadismo. Um vadio não se fixa num determinado local, vagueando
sem residência permanente e vive uma vida errante.

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Nos dicionários consultados, a definição de marginalidade remete para a qualidade de
quem vive à margem da lei ou da sociedade, não se encontrando outras descrições a
acrescentar.
Através da análise dos conceitos acima referidos, observados em vários dicionários,
constata-se que unicamente nas enunciações de marginalidade foi detectada a prédica da
exclusão social e na afinidade com os conflitos socioculturais. Nos restantes termos –
mendicidade e vadiagem – esta relação não se encontra assinalada.

A oratória discursiva do mendigo até ao Estado Novo


Retomando o exposto por Susana Pereira Bastos, constata-se que, até ao primeiro
triénio do século XX, a mendicidade era encarada como um acto «normal»,
indispensável na rectificação das contrariedades económicas resultantes das
adversidades da vida. Era uma possível solução para quem estava sujeito ao
desemprego, na velhice, ou cujo salário não cobria as necessidades familiares, não
podendo escapar à inevitabilidade da procura de outras formas compensatórias (Bastos,
1997).
Quer no meio rural quer no seio das cidades, a mendicidade era tolerada e considerada
lícita por parte das autoridades, desde que fossem cumpridas certas regras. Aos
mendigos era-lhes permitido pedir em romarias e festas, em procissões e em feiras.
Representantes simbólicos dos mortos, vagueando pelas aldeias, os mendigos
apresentavam-se frequentemente nos funerais e em cerimónias relacionadas com os
antepassados falecidos, recebendo alimentos e peças de vestuário. Em conformidade
com a religião católica, este acto de caridade proporcionava «... a sobreposição
simbólica entre o pobre a quem se dá esmola e as almas do purgatório, atribuindo-lhe
um efeito benéfico sobre as almas dos antepassados vivos.» (Bastos, 1997: 43). A sua
presença era, também, frequente noutros rituais de passagem, tornando-se, por vezes,
indispensáveis.
Ligada à figuração do sagrado, o mendigo representava uma certa magia, auspiciando
com as suas orações protectoras a quem o compensava e aplicando ofensas orais a quem
não o satisfazia.
A dimensão sagrada da mendicidade, ligada à harmonização dos ricos com Deus através
de um donativo ao mendigo, facultava, ainda, a demarcação da estratificação social
vigente, conservando a separação entre pobres e ricos. Definiam-se estatutos sociais

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através do acto da dádiva – a riqueza de quem pode dar e a pobreza de quem necessita
de pedir.
A importância atribuída ao mendigo, quer na mediação do sagrado, quer no papel
preponderante na definição de estatutos sociais, permitia-lhe ser aceite pela sociedade e
não existia, qualquer interesse esconder a mendicidade. No entanto, este quadro foi
sofrendo alterações, desde o final do século XIX até à consolidação do Estado Novo.
A via da modernização da sociedade, promovida pela 1.ª República Portuguesa, tornou-
se um factor de mudança na forma de representar o mendigo. Caracterizado pelo mau
aspecto físico, o desmazelo, a sujidade da roupa e do corpo e os problemas de saúde
originados por estes factores, o mendigo espelhava a existência de obstáculos ao
desenvolvimento social. Vivendo em condições degradáveis, o mendigo não trabalhava
e a sua ociosidade transformava-o, aos olhos da sociedade, em mão-de-obra
desperdiçada. Convertia-se numa imperfeição da sociedade que era necessário debelar.
Esta alteração sociopolítica no país originou, no mendigo, a perca do seu estatuto
sagrado, modificando o seu papel social e a mendicidade acabou por «... ser equiparada
a uma «verdadeira indústria e escola de crimes».» (Bastos, 1997: 47). Os mendigos,
principalmente nas cidades, começaram a ser descritos como incómodos, inoportunos,
malcriados e por vezes desordeiros.
O acto de pedir passou, também, a ser referido como uma indústria proveitosa, bens
ganhos sem esforço de trabalho operário à custa da boa vontade de alguns indivíduos
caridosos.
Menciona Susana Pereira Bastos que a 20 de Julho de 1912 a lei apresentava o vadio
como um falso mendigo, equiparado aos praticantes de vícios contra natura, ou seja, aos
homossexuais, aos proxenetas e aos criminosos. Existindo já, na legislação, vigente
desde 1852, uma separação entre a «mendicidade exercida por necessidade» e «falsa
mendicidade», estes falsos mendigos eram sujeitos a castigo com pena de prisão (1997:
49). Assim, com base na lei de 1912, assente nas políticas republicanas, foi prevista a
criação da «colónia penal agrícola» e da «casa correccional de trabalho» (Pinto, 1999:
106). Este normativo incluía a excepção da autorização da mendicidade a quem
obtivesse licença.
O acto de entregar a esmola ao mendigo, como caridade e sobretudo expressando
prestígio, quer social quer religioso, tornava-se agora controverso. Ao doador levantava-
se a questão se não estaria a alimentar uma falsa mendicidade punível por lei, ao invés

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de cumprir uma acção de bondade, que lhe proporcionaria o salvamento perante o seu
Deus.
Para além deste discurso de indivíduo «perigoso», foi atribuída à mendicidade e à
vadiagem uma nova identidade, relacionada com a saúde mental. Os vadios e mendigos,
como inadaptados da sociedade, sofriam de demência mental, vivendo numa diferente
realidade.
Com a questionação da noção de caridade ocorrida desde o final século XIX e, em
1905, a tentativa de centralizar no Estado a beneficência, foram criados, em Lisboa,
asilos e albergues destinados aos pedintes que mendigavam por razões de necessidade.
A caridade deixava de ser uma virtude dos generosos e passaria a ser uma obrigação do
Estado, consolidada após 1910 (Pinto, 1999).
Entretanto, estas medidas não foram suficientes para resolver a situação do aumento da
mendicidade, agravada fundamentalmente pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial. As
difíceis condições socioeconómicas da indústria, a sazonalidade do trabalho agrícola e
consequente escassez em determinados períodos, e as vicissitudes do trabalho piscatório
faziam da mendicidade uma indispensabilidade para a sobrevivência. Era, nestas
condições sociais, consentido e tolerado como «normal» recorrer ao acto de pedir
esmola. Também aos idosos, mendigar era encarado como uma «normalidade». Não
aceites como mão-de-obra e não possuindo propriedades, não lhes era possível
sobreviver sem recorrer à caridade. A estes acrescentavam-se os doentes, que
ocasionalmente praticavam a mendicância.
É de destacar que no meio rural, contrariamente às zonas urbanas, o mendigo não
perdeu o seu papel social simbólico, conservando a sua relação com o sagrado. Devido
ao afastamento do desenvolvimento urbano, nas aldeias manteve-se no imaginário
colectivo o mendicante como figura mediadora entre o pecador e a salvação.

A mendicidade no Estado Novo


Com o estabelecimento do Estado Novo novas leis foram criadas, tendo em vista o
desenvolvimento da beneficência social por parte do Estado. Esta passou a ser
executada de duas formas: através da assistência a crianças, aos idosos e aos doentes.
Aos desordeiros, a protecção social era aplicada recorrendo à reeducação. Todos os
vadios, «falsos mendigos» e «mendigos por necessidade», perturbadores da ordem
social, seriam então reeducados. A reeducação passava pela encarceração em espaços

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fechados, em instituições às quais seriam entregues doações, permitindo aos caridosos
manter a sua prática simbólica de solidariedade cristã.
No Estado Novo procurava-se que a mendicidade deixasse de ser realizada nas ruas,
tendo sido responsabilizada a Policia de Segurança Pública pela intervenção nesta área.
Muito embora à Igreja Católica tivesse sido concedida a implementação e gestão de
instituições de assistência social, ao Estado competia promover o dever dessa
assistência, se necessário recorrendo à coerção. Ambos organismos tinham deveres no
que concerne ao propiciar das melhores condições de assistência social.
Assim, o Estado Novo tentou, perante a sociedade portuguesa em geral, clarificar a
entrega da responsabilidade da vadiagem e da mendicidade à Polícia de Segurança
Pública. Consta do historial desta instituição de segurança, o papel relevante ao nível da
mendicidade, responsabilidade de quem visava a segurança pública:

«Esta realidade social, com dimensão considerável, levou o Estado a legislar no


sentido de se estabelecerem normas e processos de acção policial adequados à
prevenção e repressão da mendicidade nas ruas de todo o País.
Assim e, visando combater este fenómeno social, em 20 de Abril de 1940, são
criados - em todas as Cidades sedes de Distrito e para funcionarem na dependência
directa dos Comandos Distritais da PSP - os albergues distritais para mendigos.
Os indivíduos que se encontravam na situação de mendicidade, desamparados ou
suspeitos de exercerem a mendicidade eram então detidos e temporariamente
internados nos albergues distritais, até se averiguar e definir a real situação por
forma a ser dado o adequado destino.» (MAI, s.d.)

À P.S.P. estava atribuído o cargo de retirar da rua os mendigos e os distribuir, mas


também de gerir os asilos. A eles pertencia a decisão da escolha de quem deveria ser
detido e para onde devia ser levado. Era da sua competência banir as «vagas de
mendigos» das ruas, de forma a eliminar a «doença pestilenta» da mendicidade aos
olhos de quem visitava a capital de Portugal (Bastos, 1997). Havia que afastar a
presença inoportuna destas «personagens» das portas das igrejas, dos teatros, dos
estabelecimentos comerciais, das casas dos ricos e beneméritos e dos funerais, entre
outros eventos e espaços públicos (Pinto, 1999). Nos albergues, longe do olhar, os
mendigos não «feriam a alma nacional», assim discorriam as elites.

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Comummente ao acontecido após 1918, os resultados da Segunda Guerra Mundial
reflectiram-se num incremento da mendicidade (Pinto, 1999). O desemprego, a fome e a
miséria originaram uma grande migração da população rural para as cidades e, se em
épocas sazonais de crise de emprego era frequente a mendicidade, após 1941 esta
tornou-se numa estratégia «normal» de sobrevivência. Aumentaram os comportamentos
considerados ilegais – os assaltos, a prostituição, qualquer tipo de mendicidade, entre
outros. E, nem o facto desta última ser por «necessidade» foi factor impeditivo de serem
encarcerados. Eram enviados para os albergues da P.S.P. por serem considerados como
criminosos.
Esta actuação da P.S.P. era, junto da população urbana, alvo de críticas. Com origem
rural, a maioria dos habitantes das cidades não deixaram de representar no seu
imaginário a mendicidade como prática «normal». O acto de dar esmola não perdera o
seu simbolismo, e a actuação da polícia, mesmo perante quem praticava pequenos furtos
por pobreza, era reprovada. A ideia de que qualquer cidadão poderia ser arrastado para a
mendicidade, por desemprego, doença ou velhice, impressionava quem assistia à
«violência» perpetrada sobre os mendigos.
Para além desta censura por parte da população em geral, a crise despoletada pela
Segunda Guerra Mundial, ocasionara, devido ao aumento da delinquência, uma escassez
de efectivos na Polícia de Segurança Pública e a subsequente sobrecarga de funções
desta. Como também, os albergues sofriam de sobrepopulação, referindo Susana Pereira
Bastos a provável recorrência a atitudes restritivas nas admissões no que se refere à
Mitra. Postura esta que terá alterado pós-guerra, devido à criação, na Quinta do Pisão,
de uma colónia agrícola (1997: 126).

Do mendigo-vilão ao mendigo-regenerado: uma ideologia política


Descrito pelas elites do Estado Novo como um «selvagem», recusando a família e a
sociedade, ao mendigo foi-lhe atribuído o «mito da individualidade», da indiferença
perante o mundo que o rodeava. Segundo essas mesmas elites governantes, haveria que
o reeducar e de o fazer regressar à sociedade sob a forma do «bom povo português»,
referido por Susana Pereira Bastos. Só assim, as entidades dirigentes atingiriam o seu
objectivo, justificando o discurso de «bom governante» (1997: 280, 281).
Para cumprir este propósito, foram criadas colónias agrícolas, afastando os desordeiros
das urbes, dos meios sociais em que podiam reincidir.

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A Mitra, após os anos quarenta do século XX, era ocupada fundamentalmente por uma
heterogeneidade de crianças, mulheres, idosos, adultos cujos actos provinham de todo o
tipo de vadiagem e incumprimento da lei. Já colónia do Pisão fora criada para encerrar
mendigos com psicoses, reincidentes, desrespeitosos das autoridades, homossexuais,
entre outros considerados irrecuperáveis. Estes teriam hipótese de regeneração através
da imposição do trabalho rural e artesanal realizado na colónia.
Aspiravam que o trabalho originasse, nos «rebeldes», disciplina, humildade, obediência,
hábitos de trabalho, sentimentos de culpa e de gratidão perante o internador (Bastos,
1997: 297).
Assim, a P.S.P. mostrava-se como «conselheira», «educadora», «humanitária»,
«paternal», a instituição que se dedicava a proteger os «pobres» e suas famílias. Este era
o discurso transmitido pelo Estado Novo, defensor do «bom povo português».

O discurso actual da mendicidade


Tomando em linha de conta a actualidade, a prédica da mendicidade mostra-se
descoincidente com o acima descrito. Em todos os sentidos o discurso parece ter
alterado.
Com o fim do Estado Novo e a entrada em vigor do Decreto Lei n.º 365/76 de 15 de
Maio, modificou-se a forma de ver a mendicidade. Pode-se ser, no preâmbulo do
Decreto:

(Fonte: INCM-DRE, 2007)

Em Portugal, à semelhança dos restantes países europeus, a mendicidade está


directamente relacionada com situações económico-sociais. Toxicodependentes, idosos,
deficientes, doentes mentais e essencialmente emigrantes ilegais, são muitos dos
mendigos que enchem as ruas das cidades. Não lhes é atribuída nenhuma simbologia
sagrada, no entanto também não são escondidos e encarcerados. São uma realidade,

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com a qual todo o cidadão se depara. Ouvem-se vozes de quem considera que deveria
haver uma nova Mitra, com outros moldes, para afastar quem perturba a ordem social.
Mas, ao mesmo tempo se afirma que é anti-constitucional retirar a liberdade a quem a
Constituição Portuguesa a concede. Ou é afirmado que a liberdade é um Direito
Humano inalienável, como tal não lhes deve ser imposta qualquer tipo de violência.
Segundo o actual Código Penal, revisto em 4 de Setembro de 2007, no Capítulo V,
referente aos crimes contra a tranquilidade e a ordem públicas, vem referido no artº
269º, como passível de pena de prisão até três anos, a utilização de menores ou pessoas
psiquicamente incapazes, na mendicância, no sentido de retirar lucro da sua utilização
(Almeida, 2007). Outro tipo de mendicidade ou vadiagem não vem referido como
punido, demonstrando uma mudança no discurso estatal.

Formas de olhar a mendicidade nas culturas não ocidentais


Analisando outras formas de olhar a mendicidade, é de referir, tal como no ocidente
outrora a religião cristã atribuía à mendicidade um papel sacrossanto, ainda hoje noutras
religiões, se mantém esta simbologia. O que ao olhar ocidental lhe pode parecer um acto
de mendicidade, é uma prática fundamental noutras crenças. A referir: a mendicância no
budismo.
Takihatsu, ou mendicidade religiosa é, no Budismo Zen um acto frequente. O mesmo se
repete em Myanmar, onde monges budistas Theravāda saem dos mosteiros e, em grupo
enfileirados, dirigem-se às populações vizinhas pedindo alimentos.
Tendo em vista uma conduta e actividade correcta, o budismo encerra um conjunto de
regras, nas quais se inclui a importância da oferta. Como forma comportamental
essencial para que um indivíduo não se torne invejoso e avarento, a dádiva é, no
budismo um acto indispensável. Como tal e no sentido de apelar à oferenda, os monges
percorrem as ruas e, levando nas suas mãos uma malga, abordam comerciantes e
residentes, pedindo comida e dinheiro e repetindo continuamente o termo «Ho»,
designativo do Dharma ou ensinamento do Buda. Esta é uma prática meditativa,
simbolizadora da troca dos ensinamentos pelos monges a quem pratica a generosidade
através do simples acto da doação.
Na edição online, de 2 de Junho de 2007, do jornal The Hindu pode-se ler: «A
mendicidade parecer ter-se tornado para alguns em algo como uma “profissão”
lucrativa… vista como símbolo da extrema pobreza, da velhice, da deficiência e da falta
de oportunidades de emprego. Mas um recente estudo do Departamento de Acção

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Social da Universidade de Delhi apontou que nem sempre é necessária e por vezes a
inveja faz as pessoas iniciar a mendicância.» (Kumar, 2007 – tradução minha).
Na actualidade, o governo Indiano proíbe qualquer tipo de mendicidade, no entanto, a
Sannyasa ou mendicidade religiosa consta dos textos sagrados do Mahabharata, no qual
está descrito que aqueles que não tem casa devem entrar nas aldeias e pedir comida
suficiente para o próprio dia. Existe, também, nos textos antigos referências aos
śrāmahas, brâmanes ascetas heterodoxos que vagueavam pelos caminhos, ocupando o
seu tempo a praticar a contemplação e sobrevivendo da mendicidade.
Apesar de proibido, o facto de constar de textos religiosos antigos, torna a prática do
gesto de pedir um acto sagrado, permitindo o discurso da sua tolerância e aceitação.
São frequentes pedintes as crianças e as viúvas. Estas últimas, rejeitadas pelas suas
famílias e destinas ao abandono e ao degredo, vêem-se na obrigação de recorrer à
mendigagem, sendo esta situação aceite pela população em geral.
Os hijras, homossexuais indianos, transportadores de um simbolismo mágico, vivem da
prostituição e da mendicidade. Param às portas das casas e dançam, até que os
residentes destas lhes dêem dinheiro. A sua atitude é tolerada pelas autoridades,
conhecedoras da lei, pois é crença comum que podem ditar a boa ou a má sorte de quem
os enfrenta.

O mendigo: entre o sagrado e o profano


Este parece ser o estatuto do mendigo, imagem do sagrado para uns, o mais ímpio dos
profanos para outros, ou apenas marginalizado para alguns, encontrando-se a sua
identidade no limiar dos dois mundos.
Na forma de o representar pesa a influência da religião professada no local onde se
encontra. Mesmo onde impera a laicização do Estado, o mendigo, pedinte, vadio ou
outra designação que lhe seja atribuída, vive na margem de dois mundos – o dele e o
dos outros. Quer por razões económicas, sociais ou culturais, é marginalizado pela
sociedade, sendo projectado para a mendicidade. Não pode seguir as mesmas regras,
faltando-lhe um vínculo social, condição base para se identificar com essa
colectividade. Este facto torna, ao nosso olhar, a sua identidade ambígua e indefinida.
Questionamos se é marginalizado ou se também ele marginaliza a sociedade, mas
esquecemo-nos de nos perguntar que condições tem ele para afirmar uma identidade,
seja ela qual for.

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BIBLIOGRAFIA:

ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA 2001 Dicionário da Língua Portuguesa


Contemporânea. 2 Volumes. Lisboa: Editorial Verbo.

ALMEIDA, Carlota Pizarro de & José Manuel Vilalonga (Org.) 2007 [12ª Edição]
Código Penal. Coimbra: Almedina.

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COSTA, J. Almeida & A. Sampaio e Melo s.d. [5ª Edição] Dicionário da Língua
Portuguesa. Porto: Porto Editora

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Lisboa: Publicações Alfa.

MACHADO, Pedro (Org.) 1991b Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Vol 6.


Lisboa: Publicações Alfa.

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PINTO, Maria de Fátima 1999 Os Indigentes: Entre a Assistência e a Repressão. A


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RIVOTTI, Adília 2007 «Estratégias de Sobrevivência e Existência da Cidade Nua»
First International Conference of Young Urban Researchers (FICYUrb).
http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=42&cf=3http://conferencias.iscte.pt/
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SHATTUCK, Cybelle 2001 Hinduísmo. Lisboa: Edições 70.

SKILTON, Andrew 2000 Breve História do Budismo. Lisboa: Editorial Presença.

UNIVERSITÉ DE LIÈGE 2007 «Rembrandt van Rijn – Autoportraits» Collections


artistiques – Florilège. http://www.wittert.ulg.ac.be/fr/flori/opera/rembrandt/
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