Professional Documents
Culture Documents
LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA
ETNOGRAFIA PORTUGUESA
2007/2008
ENSAIO FINAL
Autoportrait en mendiant
(Rembrandt van Rijn)
Fonte: http://www.wittert.ulg.ac.be/fr/flori/opera/rembrandt/rembrandt_auto.html
ANA CANHOTO
N.º 27685
TURMA AB2
Introdução
Tomando como ponto de partida o livro de Susana Pereira Bastos O Estado Novo e os
Seus Vadios – Contribuição para o Estudo das Identidades Marginais e da Sua
Repressão, pretende-se, com este ensaio, desenvolver a temática do simbolismo que
envolve a mendicidade. Mais concretamente, no que concerne à liminaridade identitária
dos mendigos, quer como representantes do sagrado e quer do profano, e tendo como
referência a transformação discursiva operada após a implantação do Estado Novo em
Portugal. No final é efectuada uma pequena abordagem à forma como é descrita a
mendicidade em algumas culturas não ocidentais.
2
Nos dicionários consultados, a definição de marginalidade remete para a qualidade de
quem vive à margem da lei ou da sociedade, não se encontrando outras descrições a
acrescentar.
Através da análise dos conceitos acima referidos, observados em vários dicionários,
constata-se que unicamente nas enunciações de marginalidade foi detectada a prédica da
exclusão social e na afinidade com os conflitos socioculturais. Nos restantes termos –
mendicidade e vadiagem – esta relação não se encontra assinalada.
3
através do acto da dádiva – a riqueza de quem pode dar e a pobreza de quem necessita
de pedir.
A importância atribuída ao mendigo, quer na mediação do sagrado, quer no papel
preponderante na definição de estatutos sociais, permitia-lhe ser aceite pela sociedade e
não existia, qualquer interesse esconder a mendicidade. No entanto, este quadro foi
sofrendo alterações, desde o final do século XIX até à consolidação do Estado Novo.
A via da modernização da sociedade, promovida pela 1.ª República Portuguesa, tornou-
se um factor de mudança na forma de representar o mendigo. Caracterizado pelo mau
aspecto físico, o desmazelo, a sujidade da roupa e do corpo e os problemas de saúde
originados por estes factores, o mendigo espelhava a existência de obstáculos ao
desenvolvimento social. Vivendo em condições degradáveis, o mendigo não trabalhava
e a sua ociosidade transformava-o, aos olhos da sociedade, em mão-de-obra
desperdiçada. Convertia-se numa imperfeição da sociedade que era necessário debelar.
Esta alteração sociopolítica no país originou, no mendigo, a perca do seu estatuto
sagrado, modificando o seu papel social e a mendicidade acabou por «... ser equiparada
a uma «verdadeira indústria e escola de crimes».» (Bastos, 1997: 47). Os mendigos,
principalmente nas cidades, começaram a ser descritos como incómodos, inoportunos,
malcriados e por vezes desordeiros.
O acto de pedir passou, também, a ser referido como uma indústria proveitosa, bens
ganhos sem esforço de trabalho operário à custa da boa vontade de alguns indivíduos
caridosos.
Menciona Susana Pereira Bastos que a 20 de Julho de 1912 a lei apresentava o vadio
como um falso mendigo, equiparado aos praticantes de vícios contra natura, ou seja, aos
homossexuais, aos proxenetas e aos criminosos. Existindo já, na legislação, vigente
desde 1852, uma separação entre a «mendicidade exercida por necessidade» e «falsa
mendicidade», estes falsos mendigos eram sujeitos a castigo com pena de prisão (1997:
49). Assim, com base na lei de 1912, assente nas políticas republicanas, foi prevista a
criação da «colónia penal agrícola» e da «casa correccional de trabalho» (Pinto, 1999:
106). Este normativo incluía a excepção da autorização da mendicidade a quem
obtivesse licença.
O acto de entregar a esmola ao mendigo, como caridade e sobretudo expressando
prestígio, quer social quer religioso, tornava-se agora controverso. Ao doador levantava-
se a questão se não estaria a alimentar uma falsa mendicidade punível por lei, ao invés
4
de cumprir uma acção de bondade, que lhe proporcionaria o salvamento perante o seu
Deus.
Para além deste discurso de indivíduo «perigoso», foi atribuída à mendicidade e à
vadiagem uma nova identidade, relacionada com a saúde mental. Os vadios e mendigos,
como inadaptados da sociedade, sofriam de demência mental, vivendo numa diferente
realidade.
Com a questionação da noção de caridade ocorrida desde o final século XIX e, em
1905, a tentativa de centralizar no Estado a beneficência, foram criados, em Lisboa,
asilos e albergues destinados aos pedintes que mendigavam por razões de necessidade.
A caridade deixava de ser uma virtude dos generosos e passaria a ser uma obrigação do
Estado, consolidada após 1910 (Pinto, 1999).
Entretanto, estas medidas não foram suficientes para resolver a situação do aumento da
mendicidade, agravada fundamentalmente pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial. As
difíceis condições socioeconómicas da indústria, a sazonalidade do trabalho agrícola e
consequente escassez em determinados períodos, e as vicissitudes do trabalho piscatório
faziam da mendicidade uma indispensabilidade para a sobrevivência. Era, nestas
condições sociais, consentido e tolerado como «normal» recorrer ao acto de pedir
esmola. Também aos idosos, mendigar era encarado como uma «normalidade». Não
aceites como mão-de-obra e não possuindo propriedades, não lhes era possível
sobreviver sem recorrer à caridade. A estes acrescentavam-se os doentes, que
ocasionalmente praticavam a mendicância.
É de destacar que no meio rural, contrariamente às zonas urbanas, o mendigo não
perdeu o seu papel social simbólico, conservando a sua relação com o sagrado. Devido
ao afastamento do desenvolvimento urbano, nas aldeias manteve-se no imaginário
colectivo o mendicante como figura mediadora entre o pecador e a salvação.
5
fechados, em instituições às quais seriam entregues doações, permitindo aos caridosos
manter a sua prática simbólica de solidariedade cristã.
No Estado Novo procurava-se que a mendicidade deixasse de ser realizada nas ruas,
tendo sido responsabilizada a Policia de Segurança Pública pela intervenção nesta área.
Muito embora à Igreja Católica tivesse sido concedida a implementação e gestão de
instituições de assistência social, ao Estado competia promover o dever dessa
assistência, se necessário recorrendo à coerção. Ambos organismos tinham deveres no
que concerne ao propiciar das melhores condições de assistência social.
Assim, o Estado Novo tentou, perante a sociedade portuguesa em geral, clarificar a
entrega da responsabilidade da vadiagem e da mendicidade à Polícia de Segurança
Pública. Consta do historial desta instituição de segurança, o papel relevante ao nível da
mendicidade, responsabilidade de quem visava a segurança pública:
6
Comummente ao acontecido após 1918, os resultados da Segunda Guerra Mundial
reflectiram-se num incremento da mendicidade (Pinto, 1999). O desemprego, a fome e a
miséria originaram uma grande migração da população rural para as cidades e, se em
épocas sazonais de crise de emprego era frequente a mendicidade, após 1941 esta
tornou-se numa estratégia «normal» de sobrevivência. Aumentaram os comportamentos
considerados ilegais – os assaltos, a prostituição, qualquer tipo de mendicidade, entre
outros. E, nem o facto desta última ser por «necessidade» foi factor impeditivo de serem
encarcerados. Eram enviados para os albergues da P.S.P. por serem considerados como
criminosos.
Esta actuação da P.S.P. era, junto da população urbana, alvo de críticas. Com origem
rural, a maioria dos habitantes das cidades não deixaram de representar no seu
imaginário a mendicidade como prática «normal». O acto de dar esmola não perdera o
seu simbolismo, e a actuação da polícia, mesmo perante quem praticava pequenos furtos
por pobreza, era reprovada. A ideia de que qualquer cidadão poderia ser arrastado para a
mendicidade, por desemprego, doença ou velhice, impressionava quem assistia à
«violência» perpetrada sobre os mendigos.
Para além desta censura por parte da população em geral, a crise despoletada pela
Segunda Guerra Mundial, ocasionara, devido ao aumento da delinquência, uma escassez
de efectivos na Polícia de Segurança Pública e a subsequente sobrecarga de funções
desta. Como também, os albergues sofriam de sobrepopulação, referindo Susana Pereira
Bastos a provável recorrência a atitudes restritivas nas admissões no que se refere à
Mitra. Postura esta que terá alterado pós-guerra, devido à criação, na Quinta do Pisão,
de uma colónia agrícola (1997: 126).
7
A Mitra, após os anos quarenta do século XX, era ocupada fundamentalmente por uma
heterogeneidade de crianças, mulheres, idosos, adultos cujos actos provinham de todo o
tipo de vadiagem e incumprimento da lei. Já colónia do Pisão fora criada para encerrar
mendigos com psicoses, reincidentes, desrespeitosos das autoridades, homossexuais,
entre outros considerados irrecuperáveis. Estes teriam hipótese de regeneração através
da imposição do trabalho rural e artesanal realizado na colónia.
Aspiravam que o trabalho originasse, nos «rebeldes», disciplina, humildade, obediência,
hábitos de trabalho, sentimentos de culpa e de gratidão perante o internador (Bastos,
1997: 297).
Assim, a P.S.P. mostrava-se como «conselheira», «educadora», «humanitária»,
«paternal», a instituição que se dedicava a proteger os «pobres» e suas famílias. Este era
o discurso transmitido pelo Estado Novo, defensor do «bom povo português».
8
com a qual todo o cidadão se depara. Ouvem-se vozes de quem considera que deveria
haver uma nova Mitra, com outros moldes, para afastar quem perturba a ordem social.
Mas, ao mesmo tempo se afirma que é anti-constitucional retirar a liberdade a quem a
Constituição Portuguesa a concede. Ou é afirmado que a liberdade é um Direito
Humano inalienável, como tal não lhes deve ser imposta qualquer tipo de violência.
Segundo o actual Código Penal, revisto em 4 de Setembro de 2007, no Capítulo V,
referente aos crimes contra a tranquilidade e a ordem públicas, vem referido no artº
269º, como passível de pena de prisão até três anos, a utilização de menores ou pessoas
psiquicamente incapazes, na mendicância, no sentido de retirar lucro da sua utilização
(Almeida, 2007). Outro tipo de mendicidade ou vadiagem não vem referido como
punido, demonstrando uma mudança no discurso estatal.
9
Social da Universidade de Delhi apontou que nem sempre é necessária e por vezes a
inveja faz as pessoas iniciar a mendicância.» (Kumar, 2007 – tradução minha).
Na actualidade, o governo Indiano proíbe qualquer tipo de mendicidade, no entanto, a
Sannyasa ou mendicidade religiosa consta dos textos sagrados do Mahabharata, no qual
está descrito que aqueles que não tem casa devem entrar nas aldeias e pedir comida
suficiente para o próprio dia. Existe, também, nos textos antigos referências aos
śrāmahas, brâmanes ascetas heterodoxos que vagueavam pelos caminhos, ocupando o
seu tempo a praticar a contemplação e sobrevivendo da mendicidade.
Apesar de proibido, o facto de constar de textos religiosos antigos, torna a prática do
gesto de pedir um acto sagrado, permitindo o discurso da sua tolerância e aceitação.
São frequentes pedintes as crianças e as viúvas. Estas últimas, rejeitadas pelas suas
famílias e destinas ao abandono e ao degredo, vêem-se na obrigação de recorrer à
mendigagem, sendo esta situação aceite pela população em geral.
Os hijras, homossexuais indianos, transportadores de um simbolismo mágico, vivem da
prostituição e da mendicidade. Param às portas das casas e dançam, até que os
residentes destas lhes dêem dinheiro. A sua atitude é tolerada pelas autoridades,
conhecedoras da lei, pois é crença comum que podem ditar a boa ou a má sorte de quem
os enfrenta.
10
BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA, Carlota Pizarro de & José Manuel Vilalonga (Org.) 2007 [12ª Edição]
Código Penal. Coimbra: Almedina.
BASTOS, Susana Pereira 1997 O Estado Novo e os Seus Vadios: Contribuições para o
Estudo das Identidades Marginais e da Sua Repressão. Lisboa: Publicações Dom
Quixote.
COSTA, J. Almeida & A. Sampaio e Melo s.d. [5ª Edição] Dicionário da Língua
Portuguesa. Porto: Porto Editora
11
RIVOTTI, Adília 2007 «Estratégias de Sobrevivência e Existência da Cidade Nua»
First International Conference of Young Urban Researchers (FICYUrb).
http://conferencias.iscte.pt/viewpaper.php?id=42&cf=3http://conferencias.iscte.pt/
viewpaper.php?id=42&cf=3 (acedido em 7 de Janeiro de 2008).
12