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Resumo:
1. Introdução
Tratar menos da querela (ou seria quimera?) representada pela questão da morte de
Deus versus sua ressurreição, e mais da transcendência de certa presença de um
deus movediço-revolucionário no interior daquilo que nos habituamos a chamar de
“religião”, assim poderíamos esboçar as primeiras palavras deste trabalho. O nome
“religião” já é um problema que deixamos escapar e que nos absteremos de uma
significação acabada ou universal, falando dela sempre entre aspas, mesmo quando
não as usarmos, por economia. Falar não de toda “religião” e tampouco de qualquer
tempo e lugar, mas uma que participe, antes, seja possível perceber sua emergência
na “religiosidade” ocidental, mormente em sua ebulição midiática no Brasil
contemporâneo. Contudo, e ademais, não somente não nos interessa o embate, neste
momento, entre morte e ressurreição de Deus, como, também, os produtos
fragmentados dos “ismos religiosos”, os quais cunham distâncias entre o católico, o
protestante, o pentecostal, o neopentecostal e os sem “religião”, precisas para
determinadas abordagens, mas não em nossa interpretação.
Assumindo estes contornos, então, diríamos que nosso ensaio intenciona apresentar
uma interpretação que seja plausível, mormente, introdutória, no tempo e espaço
possível deste encontro, de um fundamento aparentado, o qual sugere a fusão do
arcaico, aqui por nós tomado do Renascimento, e o contemporâneo, aqui nomeado,
por força de um diálogo pretendido, de pós-moderno. Perguntamo-nos, então, se não
estaríamos diante de uma trilha deixada pelo Motor Imóvel, o qual se moveu desde o
passado para salvar um fenômeno de nosso presente? Deslocamento astral e
perfeitamente circular que rapta uma cosmovisão passada pelo imperativo de crenças,
retomando-a como fundamento invisível deste “iceberg religioso”, pleno da misteriosa
alma de um mundo encantado.
3. O Encantamento do Mundo.
Mais adiante Cornélio nos diz que “os Platônicos sutentam que todas as coisas do
mundo inferior foram criadas a partir das idéias do mundo superior. Definem as idéias
como a forma que está por cima dos corpos, almas e montes [...] Afirmam que na
segunda noção inteligível, a dizer, a alma do mundo, as idéias estão em formas
diferentes daquelas que pertencem ao mundo superiro [...] Sustentam igualmente que
as idéias transmitem uma espécie de semente muito pequenas, que estão na matéria
como se fossem sombra.” (Agrippa, 1992, pg. 74) Há, nas coisas naturais, uma
semente da Alma do Mundo, a qual é algo como uma irradiação de Deus, que informa
a matéria com uma determinada essência. Daí podemos deduzir que as coisas
naturais são o que são por uma presença de uma semente espiritual. A existência
delas representa uma virtude obtida pelo influxo celeste, ou, “a matéria segue os
movimentos das almas celestes, em suas diversas formas” (Agrippa, 1992, pg. 76)
pois, “as coisas mostram seus efeitos, inclinações e formas variadas não porque a
matéria as disponha de modo distinto, mas como resultado de um influxo diferente.”
(Agrippa, 1992, pg. 77)
Certo que, para Henrique Cornélio, é Deus quem, por influxo, transmite a forma à
matéria mediante a Alma do Mundo. Há um Motor Imóvel (aristotélico, portanto e que
pela alma move as coisas), Uno e Inteligente (neoplatônico, mas que tanto é
responsável pelo movimento, quanto pela irradiação das idéias à matéria), que realiza
este ato puro desde o Ser até o não-Ser, por trazer ordenadamente à existência o ser
nas coisas, por meio da Alma do Mundo. Embora distante da tradição agostiniana,
numa questão ele é fiel a Agostinho: não há possibilidade maniqueísta em sua teoria,
não concebe a possibilidade do Ser digladiar com o não-Ser. Assim, diz ele, “está
claro que as propriedades ocultas existentes nas coisas não foram introduzidas pela
natureza dos elementos, senão através do céu, e, ocultas a nossos sentidos,
dificilmente podem ser conhecidas pela razão [...] somente podemos estudá-las pela
experiência e a hipótese.” (Agrippa, 1992, pg. 85) Contudo, nos diz que “as coisas
guardam entre si uma relação de simpatia e antipatia. Tudo tem um contrário e temível
inimigo [...]” (Agrippa, 1992, pg. 90). Estes contrários, para Henrique, se encontram
nos próprios elementos e nos astros, como forma de balancear o cosmos.
Nesta casa mágica da qual foi espulso o espírito do sacerdote, vindo ser habitada por
sete espíritos mercadológicos, é possível que estejamos diante da manutenção da
estrutura encantada, ainda que nos seja vedada a sensação material: organismo
holográfico. Toda uma absorção por resignificação de um edifício de representações
imaginativas, ou ainda, adotando a perspectiva baudrillardiana, “a sociedade de
consumo pretende ser uma Jerusalém rodeada de muralhas, rica e ameaçada – eis
sua ideologia.” Mais, como salienta em nota de rodapé: “[...] uma Grande Cidade
nacional e ‘afluente’, ameaçada de destruição por qualquer força hostil poderosa, do
exterior ou do interior” (Baudrillard, 2003, pg. 27), ou seja, há um medo e insegurança
intrínseca pela sociedade de consumo face a possibilidade de um inimigo oculto, mas
real, quer como joio se mistura ao trigal, quer como bárbaros ameaçam as fronteiras
da Cidade de Deus. Nesta visada diríamos que a sociedade de consumo poderia ser
pensada a partir da resignificação da sociedade mágica, ou encantada, movendo-se
do conceito de desencantamento para um de resignificação do encantamento.
Uma vez que o ponto de vista fixado por nós nos permitiu a interpretação da
sociedade de consumo como um edifício holográfico mágico ocupado por espíritos
resignificados, podemos, agora, procurar um ângulo complementar que nos permita
observar as luzes, os holofotes, a iluminação espetacular nesta morada. Guy Debord
diz que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de
produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que
era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (Debord, 1997, 13) A
representação deslizada por Debord deixa de ser um “tornar presente” aquilo que era
verdadeiro, vindo ser uma técnica sênica: representação como ensenação em que ator
e autor intercambiam os papéis. A própria representação é esvaziada de sua essência
cósmica, tornando-se mímese sem autoria, pois, “o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” em que “o
espetáculo constitui o modelo atual da vida dominate na sociedade.” (Debord, 1997,
pg 14) Mas, tal espetáculo sem a hierarquia autor-ator, cuja representação
generalizada não funda-se em uma existência verdadeira, implica numa produção do
real cuja finalidade é a prórpia produção do real. Em outros termos, “a linguagem do
espetáculo é constituída de sinais da produção reinante, que são ao mesmo tempo a
finalidade última dessa produção” e “a realidade surge no espetéculo, e o espetáculo é
o real.” (Debord, 1997, pg. 15) Por esta via podemos imaginar uma aproximação entre
o espetáculo e o simulacro.
Cabe nesta passagem rápida por Debord lembrar que “o espetáculo nada mais seria
que o exagero da mídia, cuja natureza, indiscutivelmente boa, visto que serve para
comunicar, pode às vezes chegar a excessos.” (Debord, 197, pg. 171) E, por fim,
salientar que uma dos aspectos principais da sociedade do espetáculo é o segredo
generalizado, o qual “mantém-se por trás do espetáculo como complemento decisivo
daquilo que mostra e, se formos ao fundo das coisas, como sua mais importante
operação.” No entanto, uma vez que o fundamento da magia espetacular de consumo
é uma cosmologia arcaica desenraizada pelo batismo na modernidade, o fundo da
coisa “religiosa” pode ser um sem fundo abissal, do qual não se pode fixar verdades
representáveis. Neste ponto podemos antever uma passagem para uma interpretação
plausível da sinergia entre magia, mídia e consumo, pela via dos simulacros
“religiosos”.
5. Simulacro: sinergia entre cosmovisão renascentista e produção
espetacular para o consumo.
Jean Baudrillard em seu Simulacro e Simulação (1991) diz que “o simulacro nunca é o
que oculta a verdade – é a verdade que oculta que não existe. O simulacro é
verdadeiro.” (Baudrillard, 1991, pg. 7). As categorias tradicionais de verdadeiro e falso
já não se aplicam quando nossa perspectiva é a dos simulacros. O simulacro é
verdadeiro à medida que não mais podemos nos referenciar no par falso-verdadeiro:
quando tudo é verdadeiro, nada é verdadeiro. O simulacro é a própria transcendência,
ou seja, ultrapassamento da verdade: ela já não mais se encontra ao final do caminho
para certificar e justificar uma crença. O edifício de crenças não é mais sustentado por
uma estrutura sólida, concreta, material, verdadeira, como aquele monumento
neoplatônico Renascentista, embora ele seja preciso, pois “precisamos de um
passado visível, um continuum visível, um mito de origem, que nos tranquilize sobre
nossos fins” (Baudrillard, 1991, pg 18); agora, porém, este edifício é holográfico,
embora verdadeiro: cremos na Alma do Mundo, cremos na matéria informada, cremos
no ser, cremos nos milagres, cremos na força de vida e morte que há nas palavras.
O refúgio midiático da ordem cósmica arcáica dá, entretanto, por esvaziamento, isto é,
ela é dessossada, desmembrada, restando uma tênue aparência exterior holográfica
que referencia sem sua essência. O pirata que varreu os mares do Caribe, agora é
Jack Sparrow! A cosmologia que ordenou o mundo teológico-científico Renascentista,
agora é fundamentalismo! “Nunca ficou tão claro que o conteúdo [...] é apenas o
suporte fantasma da operação do próprio medium, cuja função é sempre induzir
massas, produzir um fluxo humano e mental homogênio [...] Para isso é preciso que a
massa dos consumidores seja equivalente ou holóloga da massa dos produtos.”
(Baudrillard, 1991, pg. 89)
Assim, podemos pensar nas três categorias do simulacro: a primeira que corresponde
ao imaginário da utopia, é o simulacro que visa “a restituição ou instituição ideal de
uma natureza à imagem de Deus”; a segunda que corresponde a ficção científica, é o
simulacro que se baseia na energia, na força e namáquina e no sistema de produção;
a terceira, que já correponde ao uma transcendência do transcendente, é o simulacro
da “hiper-realidade, objetivo de controle total.” (Baudrillard, 1991, pg. 151) Estas
categorias, no entanto, não são excludentes ou cronológicas, mas associativas e
cumulativas. Agora, da maneira como passamos pelo Renascimento, devemos pensar
na produção e no marketing.
No quarto século da era cristã santo Agostinho não apenas deixa o maniqueísmo que
por tanto tempo esteve envolvido, como torna-se um ferrenho confrontador desta
crença cósmica. Nas Confissões do Bispo de Hipona podemos obter algumas
informações não somente de algumas das crenças básicas dos Maniqueus, como as
refutações que, aquele que viria ser um dos mais célebres pensadores cristãos de
todos os tempos, apresenta. Basicamente a filosofia cristã em Agostinho e a partir de
Agostinho entende um Deus Uno, que gerou Seu Filho e criou as coisas trazendo à
existência o ser na matéria. O homem, como ser intermediário, existe como animal
racional, trazendo em si a matéria e a razão. Esta criatura tem na vontade a
possibilidade de conhecer o ser das coisas e este conhecimento absoluto, cósmico, é
o conhecimento de Deus. Em contra-partida, o pecado é a inclinação da vontade para
o não-ser, opondo-se à possibilidade do conhecimento do Ser. Não há neste desenho
básico nenhuma condição de haver um embate cósmico entre o Bem e o Mal, entre o
Ser e o não-Ser. Antes, um ascetismo para o Ser ou uma volúpia para o não-Ser. O
Mal radical é uma inclinação absoluta do animal racional ao não-Ser; nem mesmo o
mundo ou a carne são maus, mas apenas há uma vontade má.
Ainda que nos primeiros séculos da igreja, os deuses pagãos tenham sido tomados
por demônios, estava na vontade humana inclinada para estes deuses que nada-são o
problema segundo a perspectiva agostiniana. Os deuses não digladiavam para obter a
alma humana, como num Fausto, antes, a inclinação a eles era uma inclinação da
vontade ao não-Ser. Sabemos que o grande pecado de Agostinho foi o roubo de uma
pêra!
Contudo, este tema precisou ser ajustado a outros temas complementares a fim de dar
um “corpo doutrinário” ou “teológico” auto-sustentado. Tal Verdade na pós-
modernidade não mais se enraiza, ou se fundamenta, mas se sustenta organicamente.
Entretanto, antes, foi necessário resignificar o maniqueísmo. É por meio do confronto
entre o reino das trevas e o Reino da Luz e da possibilidade de trânsito da impiedade
para a santidade que podemos perceber o ajuste entre a doutrina da batalha espiritual
e da prosperidade. Duas das doutrinas-chave sobre as quais ergue-se o edifício
holográfico “pós-religioso”. De um lado há um mundo pleno de almas demoníacas, que
promovem o caos humano por meio de uma ordem infernal, encontrando em seu
príncipe a Satanás, cuja função é matar, roubar e destruir, manifesto na pobreza,
doença e vícios. De outro há o reino do Filho, princípio de toda prosperidade, saúde e
restauração física, mental, sociel e financeira.
8. Apoteose “Pós-Religião”
AGRIPPA, Henrique Cornélio; Filosofia oculta, Magia natural; Madrid, Es; Aliança
Editorial; 1992;
DELLA PORTA, John Baptist; Natural Magic; New York, USA; Nu Vision Publications
Inc., 2005