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Caros
amigos
e
colegas,
Lembrei‐me
de
vos
enviar
um
texto
que
escrevi
para
uma
antologia
de
Medicina
Popular,
a
editar
pelo
IELT,
Instituto
de
Estudos
de
Literatura
Tradicional.
Rodeados
de
música
que
não
pedimos
e
nos
invade
por
todos
os
lados,
dos
lugares
públicos
aos
repetitivos
e
enfadonhos
media,
quase
esquecemos
a
maravilha
que
é
podermos
usufruir
de
um
bem
imaterial
sem
o
qual
a
vida
não
seria,
seguramente,
tão
interessante.
Com
os
votos
de
uma
boa
lavagem
musical
que
vos
livre
do
lixo
que
vos
entope
os
sentidos.
“Quem
canta,
seus
males
espanta”
(diz
o
povo)
Do som e da música, bálsamos do corpo, alimentos da alma
Num
livro
que
busca
nexo
nos
ditos
e
recursos
populares
para
os
males
que
nos
afligem,
pelo
olhar
atento
e
exigente
da
Ciência,
nada
pior
do
que
um
artista
‐
músico,
actor,
bailarino,
acrobata,
palhaço,
e
outras
tantas
e
desvairadas
distinções
–
para
dar
sentido
e
convencer,
se
possível,
do
bem
que
se
alcança
com
matéria
tão
improvável
como
a
sonora
e
a
musical.
Pior,
não
sinto
qualquer
necessidade
de
fundamentar
ou
demonstrar
o
que
para
mim
(para
nós,
artistas)
é
evidente,
embora
seja
sensível,
curioso
e
agradeça
o
que
a
investigação
permite
na
compreensão
do
que
é
complexo.
Sem
querer
demonstrar
nada,
nem
submeter
ao
crivo
da
fiabilidade
o
que
nunca
poderei
provar,
alinhei
algumas
evidências
que
apenas
a
boa
vontade
do
editor
permitiu
que
figurassem
neste
livro.
E
passo
de
imediato
a
esse
exercício
semi‐
delirante
de
intuir
dos
“comos”
e
“porquês”
do
contributo
do
som
e
da
música
para
a
nossa
felicidade.
Uma
primeira
constatação,
feita
por
quem
olhou
as
práticas
musicais
dos
povos
e
culturas
da
Terra,
é
a
sua
(omni)presença
e
papel
relevante
em
todos
os
actos
que
marcam
a
existência
humana,
“do
berço
à
cova”,
com
gostava
de
dizer
Michel
Giacometti.
Dos
instrumentos
sonoros
inventados
e
usados
diz‐nos
Bruno
Netl
que
nenhuma
actividade
humana
criou
tanta
variedade
de
formas
e
procedimentos,
descritos
pela
organologia
musical
e
documentados
pelos
estudos
de
etnomusicologia
e
musicologia
comparada.
A
que
se
deve
tal
interesse
e
domínio?
Não
somos
uma
espécie
particularmente
dotada
para
ouvir
(somos
quase
surdos
para
sons
muito
agudos
e
só
de
corneta
acústica
somos
capazes
de
perceber
o
que
se
passa
a
100
ou
200
metros
de
nós).
Mas
o
nosso
cérebro
ajudou‐nos
a
distinguir
no
pouco
que
escutamos
subtilezas
que
nos
salvaram
de
sermos
trucidados
por
predadores
vários,
incluindo
os
nossos
semelhantes,
com
quem
a
competição
pelo
território,
as
fêmeas
e
os
recursos
foi
de
morte.
1
de
3
Berrar
como
possessos
para
impressionar
os
possíveis
predadores,
utilizar
pedras,
paus,
arcos
e
peles
para
construir
chamarizes
de
caça
e
empurrar
as
presas
para
armadilhas,
impressionar
o
grupo
com
as
habilidades
de
que
eram
capazes,
entreter
e
brincar
com
os
juvenis
do
bando
que
assim
aprendiam
ao
faz
de
conta
a
sobrevivência
futura,
foram
práticas
(embora
pouca
evidência
documental
exista)
que
nos
tornaram,
como
espécie,
exímios
no
domínio
da
produção
sonora,
no
domínio
da
voz,
da
própria
linguagem
que
terá
sido
som
e
melodia
antes
de
ser
palavra
e
frase.
Natural
(para
mim
é‐o)
que
a
voz
tenha
sido
um
dos
primeiros
recursos
terapêuticos
a
que
a
humanidade
terá
recorrido
nos
primórdios
dos
grupos
de
humanos.
Com
tanta
desgraça
e
desconhecimento
das
causas,
a
mobilização
no
doente
da
vontade
de
viver
e
curar‐se,
pelo
apelo
ao
que
hoje
sabemos
serem
recursos
da
vida
que
podem
ser
desencadeados
por
actos
de
manipulação
e
afecto,
como
as
massagens
e
a
repetição
de
gestos
transportados
por
melopeias
e
cadências
ritmadas.
Basta
referir
que
o
acto
de
respirar
foi
e
é
considerado
por
muitas
culturas
como
a
forma
mais
perfeita
de
autoconhecimento
e
domínio,
estando
ligado
habitualmente
à
emissão
sonora
com
e
sem
instrumentos
e
ao
controlo
da
voz.
Para
o
recém‐nascido
é
o
grito
ou
o
choro
que
lhe
abre
os
pulmões
para
a
vida
e
anuncia
a
quem
o
quer
ouvir
que
chegou
para
ficar.
É
também
pelo
som
que
vai
comunicar
o
que
quer
e
sente.
E
as
vozes
que
ouve
ganham
gradualmente
significado
trazendo‐lhe
bem‐estar
ou
insegurança.
À
sua
volta,
as
formas,
cores,
cheiros
e
sabores
e
os
sons
das
coisas
e
da
natureza
vão‐lhe
dando
as
chaves
para
a
compreensão
do
Mundo.
É
pela
voz
e
ao
colo
dos
adultos
e
desses
espantosos
alimentos
do
conhecimento
que
são
as
rimas,
lengalengas,
jogos
e
canções
que
vai
construindo
as
representações
primordiais
para
aceder
à
comunicação
com
palavras
e
antecipar
o
futuro
pela
arte
de
pensar.
E
dançam.
Os
humanos
de
tanto
esbracejarem
descobriram
o
gosto
dos
gestos
que
se
repetem,
das
formas
desenhadas
pelo
corpo
no
espaço,
do
poder
do
desejo
transfigurado
em
dança
que
lhes
trazia
boas
caçadas,
colheitas
abundantes,
saúde
e
muitos
filhos.
Tudo
lhes
deve
ter
servido
para
alimentar
as
danças
e
os
instrumentos
musicais
foram
o
suporte
da
dança
colectiva
que
teve
(e
continua
a
ter)
uma
presença
em
todos
os
momentos
que
valem
a
pena
ser
vividos
com
intensidade
e
entrega.
Não
admira
que
o
gosto
alcançado
com
o
domínio
dessas
formas
de
expressão
e
de
afirmação
do
grupo
tenham
tido
outras
utilidades.
É
quase
certo
que
terá
havido
desde
muito
cedo,
nas
comunidades
humanas,
a
convicção
de
que
o
som,
a
música,
o
movimento,
a
dança,
deviam
ter
propriedades
terapêuticas.
E
que
a
sua
simples
prática,
sem
mais,
seria
propiciadora
das
maiores
venturas.
O
que
mais
nos
pode
surpreender
são
as
ligações
que
se
foram
estabelecendo
entre
os
gestos
e
actos
que
curam
e
a
ritualização
de
procedimentos
aparentemente
desnecessários,
como
as
palavras
que
se
dizem
ou
cantam,
os
objectos
que
têm
de
estar
presentes
em
determinados
momentos
da
cura,
a
sua
manipulação
com
movimentos
que
criam
como
que
coreografias
à
medida
de
cada
paciente
e
padecimento.
2
de
3
Parece‐nos
estar
nos
antípodas
de
uma
medicina
exercida
pela
prescrição
ao
telefone
ou
pela
internet
de
remédios
embalados
e
entregues
ao
domicílio.
Mas
não
estamos.
A
cura
dos
padecimentos
(não
as
doenças,
que
essas
parecem
ser
comuns
a
toda
a
espécie)
que
cada
cultura
reconhece,
faz‐se
também
com
a
convicção
que
se
tem
na
sua
eficácia
e
nas
culpas
atribuídas
aos
insucessos
registados.
Pelo
sim,
pelo
não,
poucos
são
os
doentes
que
não
recorrem
a
alguns
suplementos
em
que
reconhecemos
velhas
práticas.
São
chás,
unguentos,
palavras
e
frases
especiais,
orações,
esconjuros
e
saberes
que
receberam
das
gerações
anteriores
ou
foram
buscar
a
outras
culturas,
todas
impropriamente
designadas
por
medicinas
alternativas
por
quem
se
pensa
detentor
de
um
saber
absoluto
do
sofrimento
humano.
Talvez
seja
ainda
possível
aprender
com
os
povos
que
souberam
encontrar
resposta
para
a
incessante
procura
da
felicidade,
bem‐estar
e
realização
que
todos
procuramos.
E
de
como
a
relação
de
ajuda
e
o
acto
terapêutico
só
podem
ser
exercidos
por
quem
sabe
ouvir
e
tenta
compreender
aqueles
que
sofrem.
Os
meios
de
que
dispomos,
se
carecerem
de
adequação
e
sentido
de
oportunidade,
podem
revelar‐se
pouco
eficazes
ou
serem
mesmo
recusados,
com
resultados
por
vezes
fatais.
Nas
modernas
unidades
hospitalares
estão
em
curso
mudanças
que
permitem
o
renascer
da
esperança.
Nas
enfermarias
de
pediatria,
ouvem‐se
histórias
e
canções
por
familiares
a
quem
se
reconheceu
finalmente
o
direito
a
acompanhar
e
ajudar
as
suas
crianças
a
enfrentarem
os
tratamentos.
A
vida
chega
a
doentes
acamados,
alguns
em
situações
de
coma
prolongado,
pela
voz
e
presença
de
amigos
que
acreditam
que
são
ouvidos
e
não
desistem.
As
paredes
ganharam
cor
e
até
actores,
malabaristas,
palhaços
e
ilusionistas
são
bem
vindos,
com
narizes
vermelhos,
música
nos
olhos
e
coelhos
na
cartola.
Mesmo
na
morte
é
hoje
aceite
a
presença
de
alguém
próximo,
seja
a
que
horas
for.
Por
isso
atrevo‐me
a
recomendar
que
os
profissionais
de
saúde
não
ignorem
os
saberes
das
artes
e
que
na
sua
formação
lhes
dediquem
algum
tempo.
Só
quem
tem
prazer
em
cantar,
dançar,
colocar
um
nariz
de
palhaço,
tocar
um
instrumento
mesmo
que
elementar,
pode
compreender
o
benefício
proporcionado
por
esses
bálsamos
do
corpo.
Alguns
desses
saberes
são
hoje
reconhecidos
e
permitem,
a
quem
o
desejar,
utilizá‐los
com
rigor.
Musicoterapia,
dançoterapia,
dramoterapia,
arte
terapia,
ludoterapia,
são
disciplinas
que
conquistaram
credibilidade
e
cujos
benefícios
estão
descritos
em
literatura
que
merece
aceitação
junto
de
insuspeitos
fóruns
científicos.
Mesmo
sem
falarem
em
alimentos
da
alma,
deram‐se
por
vencidos
(e
talvez
convencidos)
face
a
alguns
dos
resultados
alcançados.
Oeiras, 1 de Outubro de 2008
Domingos
Morais
3 de 3