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História da Filosofia

Primeiro volume
Nicola A bbagnano

~DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

2.a Edição

VOLUME I

TRADUÇÃO DE:
ANTÓNIO BORGES COELHO
FRANCO DE SOUSA
MANUEL PATRÍCIO

EDITORIAL PRESENÇA

Título original
STORIA DELLA FILOSOFIA

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Esta História da Filosofia pretende mostrar a essencial humanidade


dos filósofos. Ainda hoje perdura o preconceito de que a filosofia
se afadiga com problemas que não têm a mínima relação com a
existência humana e continua encerrada em uma esfera longínqua e
inacessível aonde não chegam as aspirações e necessidades dos
homens. E junto a este preconceito vem o outro, que é ser a
história da filosofia o panorama desconcertante de opiniões que se
sobrepõem -e contrapõem, privada de um fio condutor que sirva de
orientação para os problemas da vida. Estes preconceitos são sem
dúvida reforçados por aquelas orientações filosóficas que, por amor
de um mal entendido tecnicismo, pretenderam reduzir a filosofia a
uma disciplina particular acessível a poucos e assim lhe
menosprezaram o valor essencialmente humano. Trata-se, todavia,
de preconceitos injustos, fundados em falsas aparências e na
ignorância do que condenam. Demomstrá-lo é a pretensão desta
obra.

Parte ela da convicção de que nada do que é humano é alheio à


filosofia e de que, ao contrário, esta é o próprio homem, que em si
mesmo se faz problema e busca as razões e o fundamento do ser

que é o seu. A essencial conexão entre a filosofia e o homem é a


primeira base da investigação historiográfica empreendida neste
livro. Sobre tal base, esta investigação inclina-se a considerar a
pesquisa que há 26 séculos os homens do ocidente conduzem acerca
do próprio ser e do próprio destino. Através de lutas e conquistas,
dispersões e retornos, esta pesquisa acumulou um tesouro de
experiências vitais, que urge redescobrir e fazer reviver para além
da indumentária doutrinal que muito frequentemente o oculta, ao
invés de revelá-lo. E isto porque a história da filosofia é
profundamente diferente da da ciência. As doutrinas passadas e
abandonadas já não têm para a ciência significado vital; e as ainda
válidas fazem parte do seu corpo vivo e não há necessidade de nos
voltarmos para a história para apreendê-las e torná-las nossas. Em
filosofia a consideração histórica é, ao invés, fundamental; uma
filosofia do passado, se foi verdadeiramente uma filosofia, não é um
erro abandonado e morto, mas uma fonte perene de ensinamento e
de vida. Nela se encarnou e exprimiu a pessoa do filósofo, não
apenas em o*, que tinha de mais, seu, na singularidade da sua
experiência de pensamento e de vida, mas ainda nas suas relações
com os outros e com o mundo em que viveu. E à pessoa devemos
volver se queremos redescobrir o sentido vital de toda doutrina. Em
cada uma de elas devemos estabelecer o centro em torno do qual
gravitaram os interesses fundamentais do filósofo, e que é ao
mesmo tempo o centro da sua personalidade de homem e de
pensador. 'Devemos fazer reviver perante nós o filósofo na sua
realidade de pessoa histórica se queremos compreender
claramente, através da obscuridade dos séculos desmemorizados ou
das tradições deformadoras, a sua palavra autêntica que pode ainda
servir-nos de orientação e de guia.

Por isso não serão apresentados, em esta obra, sistemas ou


problemas, quase substantivados e considerados como realidades
autónomas, mas figuras ou pessoas vivas, serão feitas emergir da
lógica da pesquisa em que quiseram exprimir-se e consideradas nas
suas relações com outras figuras e pessoas. A história da filosofia
não é o domínio de doutrinas impessoais que se sucedem
desordenadamente ou se concatenam dialecticamente, nem a esfera
de acção de problemas eternos, de que cada doutrina é
manifestação contingente. É um tecido de relações humanas, que se
movem no plano de uma comum disciplina de pesquisa, e que
transcendem por isso os aspectos contingentes ou insignificantes,
para se fundar nos essenciais e constitutivos. Revela a
solidariedade fundamental dos esforços que procuram tornar clara,
tanto quanto é possível, a condição e o destino do homem;
solidariedade que se exprime na afinidade das doutrinas tanto como
na sua oposição, na sua concordância tanto como na sua polémica. A
história da filosofia reproduz na táctica das investigações
rigorosamente disciplinadas a mesma tentativa que é a base e o
móbil de todas as relações humanas: compreender-se e
compreender. E reprodu-lo quando colhe êxitos como quando colhe
desenganos, nas vicissitudes de ilusões renascidas como nas de
clarificações orientadas, e nas de esperanças sempre renascentes.
A disparidade e a oposição das doutrinas perdem assim o seu
carácter desconcertante. O homem tem ensaiado e ensaia todas as
vias para compreender-se a si mesmo, aos outros e ao mundo.
Obtém nisso mais ou menos sucesso. Mas deve e deverá renovar a
tentativa, da qual depende a sua dignidade de homem. E não pode
renová-la senão voltando-se para o passado e extraindo da história
a ajuda que os outros podem dar-lhe para o futuro.

Eis por que não se encontrarão nesta obra críticas extrínsecas, que
pretendem pÔr a claro os erros dos filósofos. A pretensão de
atribuir aos filósofos lições de filosofia é ridícula, como a de fazer
de uma determinada filosofia o critério e a norma de julgamento
das outras. Todo o verdadeiro filósofo é um mestre ou companheiro
de pesquisa, cuja voz nos chega enfraquecida através do tempo,
mas pode ter para nós, para os problemas que ora nos ocupam, uma
importância decisiva. Necessário é que nos disponhamos à pesquisa
com sinceridade e humildade. Nós não podemos alcançar, sem a
ajuda que nos vem dos filósofos do passado, a solução dos
problemas de que depende a nossa existência individual e em
sociedade. Devemos, por isso, propor historicamente esses
problemas, e na tentativa para compreender a palavra genuína de
Platão ou de Aristóteles, de Agostinho ou de Kant e de todos os
outros, pequenos ou grandes, que hajam sabido exprimir uma
experiência humana fundamental, devemos ver a própria tentativa
de formular e solucionar os nossos problemas. O problema de o que
nós somos e devemos ser é fundamentalmente idêntico ao problema
de o que foram e quiseram ser, na sua substância humana, os
filósofos do passado. A separação dos dois problemas tira ao
filosofar o seu alimento e à história da filosofia a sua importância
vital. A unidade dos dois problemas garante a eficácia e a força do
filosofar e fundamenta o valor da historiografia filosófica. A
história da filosofia liga simultaneamente o passado e o futuro da
filosofia. Esta ligação é a essencial historicidade da filosofia.
Mas justamente Por isso a preocupação da objectividade, a cautela
crítica, a investigação paciente dos textos, o apego às intenções
expressas dos filóSOfos, não são na historiografia filosófica outros
tantos sintomas de renúncia ao Weresse teorético,

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mas as provas mais seguras da seriedade do empenho teorético.


Visto que a quem espera da investigação histórica uma ajuda
efectiva, a quem vê nos fIlósofos do passado mestres e
companheiros de pesquisa, não interessa falsear-lhes o aspecto,
camuflar-lhes a doutrina, mergulhar-lhes na sombra traços
fundamentais. Todo o interesse tem, ao invés, em reconhecer-lhes o
verdadeiro rosto, assim como quem empreende uma viagem difícil
tem interesse em conhecer a verdadeira índole de quem lhe serve
de guia. Toda a ilusão ou engano é, neste caso, funesta. A seriedade
da investigação condiciona e manifesta o empenho teorético.

É evidente, deste ponto de vista, que não se pode esperar


encontrar na história da filosofia um progresso contínuo, a
formação gradual de um único e universal corpo de verdade. Este
progresso, tal como se verifica nas ciências, uma por uma, que uma
vez implantadas nas suas bases se acrescentam gradualmente pela
soma dos contributos individuais, -não pode encontrar-se em
filosofia, uma vez que não há aqui verdades objectivas e impessoais
que possam tornar-se e integrar-se em um corpo único, mas pessoas
que dialogam acerca do seu destino; e as doutrinas não são mais que
expressões deste dialogar ininterrupto, perguntas e respostas que
às vezes se respondem e se correspondem através dos séculos. A
mais alta personalidade filosófica de todos os tempos, Platão,
exprimiu na própria forma literária da sua obra-o diálogo-a
verdadeira natureza do filosofar. Por outro lado, na história da
filosofia não há, no emtanto, uma mera sucessão desordenada de
opiniões que alternadamente se amontoam e destroem. Os
problemas em que se verte o dialogar incessante dos filósofos têm
uma lógica sua, que é a própria disciplina a que os filósofos
livremente sujeitam a sua pesquisa: pelo que certas directivas
persistem em dominar um

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período ou uma época histórica, porque lançam uma luz mais viva
sobre um problema fundamental. Adquirem, então, uma
impessoalidade aparente, que faz delas o património comum de
gerações inteiras de filósofos (pense-se no agostinismo ou no
aristotelismo durante a escolástica); mas em seguida declinam e
apagam-se, e todavia a verdadeira pessoa do filósofo não mais se
apaga, e Todos podem e devem interrogá-lo para dele tirar luz.

A história da filosofia apresenta deste modo um estranho


paradoxo. Não há, pode dizer-se, doutrina filosófica que não tenha
sido criticada, negada, impugnada e destruída pela crítica
filosófica. Mas quem quereria sustentar que a obliteração definitiva
de um só dos grandes filósofos antigos ou modernos não seria um
empobrecimento irremediável para todos os homens? É que o valor
de uma filosofia não se mede pelo quantum de verdade objectiva
que ela contém, mas tão só pela sua capacidade de servir de ponto
de referência (porventura somente polémico) a toda a tentativa de
compreender-se a si e ao mundo. Quando Kant reconhece a Hume o
mérito de o ter despertado do "sono dogmático" e de o ter
encaminhado para o criticismo, formula de maneira mais imediata e
evidente a relação de livre interdependência que enlaça
conjuntamente todos os filósofos na história. Uma filosofia não tem
valor enquanto suscita o acordo formal de UM Certo número de
pessoas sob determinada doutrina, mas somente enquanto suscita e
inspira nos outros aquela pesquisa que os conduz a encontrar cada
qual o próprio caminho, assim como o autor nela encontrou o seu. O
grande exemplo é aqui ainda o de Platão e de Sócrates: durante
toda a sua vida procurou Platão realizar o significado da figura e do
ensinamento de Sócrates, prosseguindo, quando era necessário,
além do invólucro doutrinal em que estavam encerrados,- e

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desta maneira a mais alta e bela filosofia nasceu de um reiterado


acto de fidelidade histórica.

Tudo isto exclui que na história da filosofia se possa ver somente


desordem e sobreposição de opiniões; mas exclui, não obstante, que
se possa ver nela uma ordem necessária dialecticamente
concatenada, em que a sucessão cronológica das doutrinas equivalha
ao desenvolvimento racional de momentos ideais constituindo uma
verdade única que se mostre em sua plenitude no fim do processo. A
concepção hegeliana faz da história da filosofia o processo infalível
de formação de uma determinada filosofia. E assim suprime a
liberdade da pesquisa filosófica, que é condicionada pela realidade
histórica da pessoa que indaga; nega a problematicidade da própria
história e faz dela um círculo concluso, sem porvir. Os elementos
que constituem a vitalidade da filosofia perdem-se deste modo
todos.

A verdade é que a história da filosofia é história no tempo, logo


problemática; e é feita, não de doutrinas, ou de momentos ideais,
mas de homens solidamente encadeados pela pesquisa comum. Nem
toda a doutrina sucessiva no tempo é, só por isto, mais verdadeira
que as precedentes. Há o perigo de se perderem ou esquecerem
ensinamentos vitais, como frequentemente aconteceu e acontece;
de onde decorre o dever de inquirir incessantemente do seu
significado genuíno.

Obedece a este dever, dentro dos limites que me são concedidos, a


presente obra. Que o leitor queira compreendê-la e julgá-la dentro
deste espírito.

N. A.

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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

A segunda edição desta obra constitui uma actualização da primeira


com base em textos ou documentos ultimamente publicados, em
novas investigações historiográficas e em novos caminhos da crítica
histórica ou metodológica. As partes que sofreram maiores revisões
ou ampliamentos são as que concernem ' à lógica e à metodologia
das ciências, à ética e à política. As investigações historiográficas
contemporâneas voltam-se, de facto, preponderantemente para
estes campos, obedecendo aos mesmos interesses que solicitam
hoje a pesquisa filosófica. Aqui como ali a exigência de ter em conta
os novos dados historiográficos e de apresentar todo o conjunto
numa forma ordenada e clara tornou oportunas alterações de
extensão ou de colocação dos autores tratados, em conformidade
com certas constantes conceptuais que demonstraram ser mais
activas, ou verdadeiramente decisivas, na determinação do
desenvolvimento ou da eficácia histórica das filosofias. óbviamente,
as maiores modificações teve que sofrê-las o desenvolvimento da
filosofia contemporânea, no intuito de oferecer um sintético quadro
de conjunto da riqueza e da variedade dos caminhos que hoje dis-

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putam o campo, e dos problemas em volta dos quais se concentram
as discussões polémicas adentro de cada caminho.

Mas a estrutura da obra, os seus requisitos essenciais, as


inscrições e os critérios interpretativos fundamentais não
sofreram modificações substanciais, porque conservaram a sua
validade. Às notas bibliográficas, embora acttualizadas, foi
conservado o carácter puramente funcional de selecção orientadora
para a pesquisa bibliográfica.

Agradeço a todos os que fizeram chegar até mim sugestões e


conselhos e sobretudo aos amigos com quem discuti alguns pontos
fundamentais do trabalho. A três deles, a quem mais
frequentemente recorri, Pietro Rossi, Pietro Chiodi e Carlo A.
Viano, tenho gosto em exprimir públicamente a minha gratidão.

Turim, Setembro de 1963.

N. A.

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PRIMEIRA PARTE

FILOSOFIA ANTIGA

ORIGENS E CARÁCTER DA FILOSOFIA GREGA

§ 1. PRETENSA ORIGEM ORIENTAL

Uma tradição que remonta aos filósofos judaicos de alexandria


(século I a.C.) afirma que a filosofia derivou do Oriente. Os
vrincivais filósofos da Grécia teriam extraído da doutrina hebraica,
egípcia, babilónica e indiana não somente as descobertas científicas
mas também as concepções filosóficas mais pessoais. Esta opinião
divulgou-se progressivamente nos séculos seguintes; culminou na
opinião do neo-pitagórico Numénio, que chegou a chamar a Platão um
"Moisés ateicizante"; e passou dele aos escritores cristãos.

Contudo, não encontra ela qualquer fundamento nos testemunhos


mais antigos. Fala-se, é verdade, de viagens de vários filósofos ao
Oriente, especialmente pela Pérsia teria viajado Pitágoras;
Demócrito, pelo Oriente; pelo Egipto, segundo testemunhos mais
verosímeis, Platão. Mas o próprio Platão (Rep., IV, 435 e) contrapõe
o espírito científico dos Gregos ao amor da utilidade, carac-

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terístico dos Egípcios e dos Fenicios; e assim exclui da mesma


maneira clara a possibilidade de que se tenha podido e se possa
trazer inspiração para a filosofia das concepções daqueles povos.
Por outro lado, as indicações cronológicas que se têm sobre as
doutrinas filosóficas e religiosas do Oriente são tão vagas, que
estabelecer a prioridade cronológica de tais doutrinas sobre as
correspondentes doutrinas gregas deve ter-se por impossível.

Mais verosímil se apresenta, à primeira vista, a derivação da ciência


grega do Oriente. Segundo algumas opiniões, a geometria teria
nascido no Egipto da necessidade de medir a terra e distribui-la
pelos seus proprietários depois das periódicas inundações do Nilo.
Segundo outras tradições, a astronomia teria nascido com os
Babilónios e a aritmética no próprio Egipto, Mas os Babilónios
cultivaram a astronomia com vista às suas crenças astrológicas, e a
geometria e a aritmética conservaram entre os Egípcios um
carácter prático, perfeitamente distinto do carácter especulativo e
científico que estas doutrinas revestiram entre os gregos.
Na realidade, aquela tradição, nascida tão tarde na história da
filosofia grega, foi sugerida, numa época dominada pelo interesse
religioso, pela crença que os povos orientais estivessem em poder
de uma sabedoria originária e pelo desejo de ligar a tal sabedoria às
principais manifestações do pensamento grego. Também entre os
historiadores modernos a origem oriental da filosofia grega é
defendida com cores que tendem a acentuar o seu carácter
religioso e, de aqui, a sua continuidade com as grandes religiões do
Oriente.

A observação decisiva que cumpre fazer a propósito é que, embora


se presuma (pois que provas decisivas não existem) a derivação
oriental de esta ou aquela doutrina da Grécia antiga, isto não
implica ainda a origem oriental da filosofia grega.

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----A -sabedoria oriental é essencialmente religiosa: é ela o


património de uma casta sacerdotal cuja única preocupação é a de
defendê-la e transmiti-la na sua pureza. O único fundamento da
sabedoria oriental é a tradição. A filosofia grega, ao invés, é
pesquisa. Esta nasce de um acto fundamental de liberdade frente à
tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal. O seu
fundamento é que o homem não possui a sabedoria mas deve
procurá-la: não é sofia mas filosofia, amor da sabedoria,
perseguição directa no encalço da verdade para lá dos costumes,
das tradições e das aparências. Com isto, o próprio problema da
relação entre filosofia greco-cristã-oriental perde muito da sua
importância.

Pode admitir-se como possível ou pelo menos verosímil que o povo


grego tenha inferido, dos povos orientais, com os quais mantinha
desde séculos relações e trocas comerciais, noções e haja
encontrado o que esses povos conservaram na sua tradição religiosa
ou haviam descoberto por via das necessidades da vida. Mas isto
não impede que a filosofia, e em geral a investigação científica, se
manifeste nos gregos com características originais, que fazem dela
um fenómeno único no mundo antigo e o antecedente histórico da
civilização (cultura?) ocidental, de que constitui ainda uma das
componentes fundamentais. Em primeiro lugar, a filosofia não é de
facto na Grécia o património ou o privilégio de uma casta
privilegiada. Todo o homem, segundo os gregos, pode filosofar,
porque o homem é "animal racional" e a sua racionalidade significa a
possibilidade de procurar, de maneira autónoma, a verdade. As
palavras com que inicia a Metafísica de Aristóteles: "Todos os
homens tendem, por natureza, para o saber" exprimem bem este
conceito, uma vez que "tendem" quer dizer que não só o desejam,
mas

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que podem consegui-lo.


Em segundo lugar, e como consequência disto, a filosofia grega é
investigação racional, isto é, autónoma, que não assenta numa
verdade já manifestada ou revelada, mas somente na força da razão
e nesta reconhece o seu guia. O seu limite polémico é habitualmente
a opinião corrente, a tradição, o mito, para além dos quais intenta
prosseguir; e até quando termina por uma confirmação da tradição,
o valor desta confirmação deriva unicamente da força racional do
discurso filosófico.

§ 2. FIlOSOFIA: NOME E CONCEITO

Estas características são próprias de todas as manifestações da


filosofia grega e estão inscritas na própria etimologia da palavra,
que significa "amor da sabedoria". A própria palavra aparece
relativamente tarde. Segundo uma tradição muito conhecida,
referida em as Tusculanas de Cícero (V, 9), Pitágoras teria sido o
primeiro a usar a palavra filosofia em um significado específico.
Comparava ele a vida às grandes festas de Olímpia, aonde uns
convergiam por motivo de negócios, outros para participar nas
corridas, outros ainda para divertir-se e, por fim, uns somente para
ver o que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui está
sublinhada a distinção entre a contemplação desinteressada própria
dos filósofos e a azáfama interesseira dos outros homens. Mas a
narrativa de Cícero provém de um escrito de Heraclides do Ponto
(Dióg. L, Proemimm, 12) e pretende simplesmente acentuar o
carácter contemplativo que foi considerado pelo próprio
Aristóteles essencial à filosofia. Mas, na Grécia, a filosofia teve
ainda o valor de uma sageza que deve guiar todas as acções da vida.
Em tal sageza se haviam inspirado os Sete

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Sábios que, no entanto, eram também chamados "sofistas" como


"sofista" era chamado Pitágoras. Não no sentido de contemplação,
mas no sentido mais genérico de pesquisa desinteressada, usa
Heródoto a palavra quando fez o Rei Creso dizer a Sólon.
(Heródoto, J, 20); "Tenho ouvido falar das viagens que, filosofando,
empreendeste para ver muitos países"; e da mesma forma
Tucidides, quando (11, 40) fez dizer a Péricles de si e dos
Atenienses: "Nós amamos o belo com simplicidade e filosofamos
sem receio". O filosofar sem receio exprime a autonomia da
pesquisa racional em que consiste a filosofia.
como veremos no tema posterior a palavra filosofia implica dois
significados. O primeiro e mais geral é o de pesquisa autónoma ou
racional, seja qual for o campo em que se desenvolva; neste sentido,
todas as ciências fazem parte da filosofia. o Segundo significado,
mais específico, indica uma pesquisa particular que de algum modo é
fundamental para as outras mas não as contém. Os dois significados
estão ligados nas sentenças de Heraclito (fr., 35 Díels): "É
necessário que os homens filósofos sejam bons indagadores
(historas) de muitas coisas". Este duplo significado encontra-se
claramente em Platão onde o termo vem usado para indicar a
geometria, a música e as outras disciplinas do mesmo género,
sobretudo na sua função educativa (Teet., 143 d; Tím., 88 c); e por
outro lado a filosofia vem contraposta à sofia, à sabedoria que é
própria da divindade. e à doxa, à opinião, na qual se detém quem não
se preocupa com indagar o verdadeiro ser (Fedr., 278 d; Rep.,
480 a). A mesma bivalência se acha em Aristóteles para quem a
filosofia é, como filosofia prima, a ciência do ser enquanto ser; mas
abrange, também em seguida, as outras ciências teoréticas, a
matemática e a física, e até a ética (Ét. Nic., 1, 4,

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1906 b, ^31). Esta bivalencia de significado revela melhor do que


qualquer outra coisa o significado originário e autêntico que os
gregos atribuíam à palavra. Este significado está já incluído na
etimologia, e é o de pesquisa. Toda a ciência ou disciplina humana,
enquanto pesquisa autónoma, é filosofia. Mas é, logo a seguir,
filosofia em sentido eminente e próprio a pesquisa que é consciente
de si, a pesquisa que põe o próprio problema da pesquisa e esclarece
por isso o seu próprio valor nas confrontações feitas pelo homem.
Se toda a disciplina é pesquisa e como tal filosofia, em sentido
próprio e técnico a filosofia é sómente o problema da pesquisa e do
seu valor para o homem. É neste sentido que Platão diz que a
filosofia é a ciência pela qual não sómente se sabe, mas se sabe
ainda fazer um uso vantajoso do que se sabe (Eutid., 288 c-290 d).
Aristóteles, por seu turno, acentua a supremacia da filosofia prima
que é a metafisica nas confrontações com a filosofia segunda e
terceira que são a física e a matemática. E num sentido análogo a
filosofia é, para os Estóicos, o esforço (cpitedeusis) para a
sabedoria (Sexto E. Adv. Math., IX, 13); para os Epicuristas é a
actividade (enorgheia) que torna feliz a vida (lb., X1,
1 69). Em qualquer caso, a filosofia é um saber indispensável para o
encaminhamento e a felicidade da vida humana.

§ 3. PRIMóRDIOS DA FILOSOFIA GREGA:


OS MITóLOGOS, OS MISTÉRIOS OS SETE SáBIOS, OS
POETAS

Os primórdios da filosofia grega devem procurar-se na própria


Grécia:(nos primeiros sinais, em que a filosofia como tal i, é, como
pesquisa), começa a aparecer nas cosmologias míticas dos

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poetas, nas doutrinas dos mistérios, nos apotDgrnas dos Sete


Sábios e sobretudo na reflexão ético-política dos poetas.

Odocumento da cosmologia mítica mais antigo entre os gregos é a


Teogonia de Hesíodo, na qual decerto confluíram antigas tradições.
O próprio Aristóteles (Met., 1, 4; 984 b, 29) diz que Hesíodo foi,
provàvelmente, o primeiro a procurar um princípio das coisas quando
disse: "primeiro que tudo foi o caos, depois a terra de amplo seio...
e o amor, que sobressai entre os deuses imortais" (Teog.,
116 sgs.). De natureza filosófica se apresenta aqui o problema do
estado originário de que as coisas saíram e da força que as
produziu, Mas se o problema é filosófico, a resposta é mítica. O
caos ou abismo bocejante, a terra, o amor, etc. são personificados
em entidades míticas.

Depois de Hesíodo, o primeiro poeta de quem conhecemos a


cosmologia é Ferecides de Siros, contemporâneo de Anaximandro,
nascido provàvelmente por alturas de 600-596 a.C.. Diz ele que
primeiro que todas as coisas e desde sempre havia Zeus, Cronos e
Ctonos. Ctonos era a terra, Cronos o tempo, Zeus o céu. Zeus
transformado em Eros, ou seja no amor, procede à construção do
Mundo. Há neste mito a primeira distinção entre a matéria e a
força organizadora do mundo.

Observa-se uma ulterior afirmação da exigência filosófica na


religião dos mistérios espalhados pela Grécia no dealbar do século
VI a.C.. A esta religião pertenciam o culto de Dioniso, que vinha da
Trácia, o culto de Deméter, cujos mistérios se celebraram em
Elêusis, e sobretudo o orfismo.
O orfismo era também dedicado ao culto de Dioniso, mas punha em
uma revelação a origem da autoridade religiosa e estava organizado
em comunidades. A revelação era atribuída ao trácio ORFEu, que
descera ao Hades; e a finalidade dos

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ritos que a comunidade celebrava era a de purificar a alma do


Homem, iniciada para subtraí-la à "roda dos nascimentos", isto é, à
transmigração para o corpo de outros seres viventes. O
ensinamento fundamental que o orfismo contém- é o conceito da
ciência e em geral da actividade do pensamento como um caminho
de vida, ou seja como uma pesquisa que conduz à verdadeira vida do
homem. Do mesmo modo devia depois conceber a filosofia Platão,
que no Fédon se filia explicitamente nas crenças órficas.

Ao lado dos primeiros lampejos da filosofia na cosmologia do mito e


nos mistérios está a primeira apresentação da reflexão moral na
lenda dos Sete Sábios. São estes diversamente enumerados pelos
escritores antigos, mas quatro deles, Tales, Bias, Pítaco e Sólon
estão incluídos em todas as listas. Platão, que pela primeira vez os
enumerou, acrescenta a estes quatro Cleóbulo, Míson e Chilon
(Prot., 343 a).

A eles se atribuem breves sentenças morais (de aí terem ainda sido


chamados Gnomas), algumas das quais se tornaram famosas. A Tales
se atribui a frase "Conhece-te a ti mesmo" (Dióg. L., 1, 40). A Bias a
frase "a maioria é perversa" (1b., 1, 88) e esta outra "O cargo
revela o homem" (Alist., Ét. Nic., V, 1,1029 b, 1). A Pítaco a frase
"Sabe aproveitar a oportunidade" (Dióg. L.,
1, 79). A Sólon as frases "Toma a peito as coisas importantes" e
"Nada em excesso" (1b., 1, 60,63). A Cleóbulo a frase "A medida é
coisa óptima" (1b., 1, 93). A Míson a frase "Indaga as palavras a
partir das coisas, não as coisas a partir das palavras" (1b., 1, 108). A
Chílon as frases "Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível"
(1b., I,
70). Como se vê, estas frases são todas de natureza prática ou
moral e demonstram que a primeira reflexão filosófica na Grécia foi
direita à sageza da vida mais do que à pura contemplação

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(ao contrário do que preferiu um Aristóteles). Estas frases


preludiam uma verdadeira e peculiar investigação sobre a conduta
do homem no mundo. E não é por acaso que o primeiro dos Sete
Sábios, Tales, é ainda considerado o primeiro autêntico
representante da filosofia grega.

Mas o clima em que pôde nascer e florescer a poesia e a reflexão


filosófica grega foi preparado pela reflexão moral dos poetas que
elaborou, na Grécia, conceitos fundamentais que deveriam servir
aos filósofos
L para a ceito de uma

interpretação do mundo con

ão un lei que dá unidade ao mundo umano encontra-se pela primeira


vez em Homero: Toda a Odisseia é dominada pela crença em úha lei
de justiça, de que os deuses são guardiões e garantes, lei que
determina uma ordem providencial nas vicissitudes humanas, pela
qual o justo triunfo e o injusto é punido. Em Hesíodo esta lei vem
personificada na Dikê, filha de Zeus, que tem assento junto do pai e
vigia para que sejam unidos os homens que praticam a injustiça. A
infracção a esta lei aparece no mesmo Hesíodo como arrogância
(hybris) devida ao desenfreamento das paixões e em geral às
forças irracionais: assim o qualifica o próprio Hesíodo (Os
trabalhos e os dias, 252, segs., 267 segs.) e ainda o Arquíloco (fr.
36, 84), Mimnermo (fr. 9, ló) e Teógnis (v. 1. 40, 44, 291, 543,
1103). Sólon afirma com grande energia a infalibilidade da punição
que fere aquele que infringe a norma de justiça, sobre que se funda
a vida em sociedade: ainda quando o culpado se subtrai à punição,
esta atinge infalivelmente os seus descendentes. A aparente
desordem das vicissitudes humanas, pela qual a Moira ou fortuna
parece ferir os inocentes, justifica-se, segundo Sólon (fr. 34), pela
necessidade de conter dentro dos justos limites os desejos
humanos descomedidos e de afastar o homem de qualquer excesso.
De maneira que a lei de justiça é

27

também norma de medida; e Sólon exprime num fragmento famoso


(fr. 16) a convicção moral mais enraizada nos gregos: "A coisa mais
difícil de todas é captar a invisível medida da sageza, a única que
traz em si os limites de todas as coisas". Ésquilo é enfim o profeta
religioso desta lei universal de justiça de que a sua tragédia quer
exprimir o triunfo. Portanto, antes que a filosofia descobrisse e
justificasse a unidade da lei por sob a multiplicidade dispersa dos
fenómenos naturais, a poesia grega descobriu e justificou a unidade
da lei por sob as vicissitudes aparentemente desordenadas e
mutáveis da vida humana em sociedade. Veremos que a especulação
dos primeiros físicos não fez mais do que procurar no mundo da
natureza esta mesma unidade normativa, que os poetas haviam
perseguido no mundo dos homens

§ 4. AS ESCOLAS FILOSóFICAS

Desde o início a pesquisa filosófica foi na Grécia uma pesquisa


associada. Uma escola não reunia os seus adeptos somente pelas
exigências de um ensino regular: não é provável que tal ensino tenha
existido nas escolas filosóficas da Grécia antiga senão com
Aristóteles. Os alunos de uma escola eram chamados "companheiros
(etairoi). Juntavam-se para viver uma "vida comum" e estabeleciam
entre si não só uma solidariedade de pensamento mas também de
costumes e de vida, numa troca contínua de dúvidas, de dificuldades
e de investigações. O caso da escola pitagórica, que foi ao mesmo
tempo uma escola filosófica e uma associação religiosa e política, é
certamente único; e por outro lado este traço do pitagorismo foi
por isso mesmo mais uma fraqueza que uma força. Contudo, todas as
grandes personalidades da filosofia grega são os funda-

28

dores de uma escola que é um centro de investigação; a obra das


personalidades menores vem juntar-se à doutrina fundamental e
contribui para formar o património comum da escola.
Duvidou-se que tivessem formado uma escola os filósofos de
Mileto; mas há para eles o testemunho explícito de Teofrasto que
fala de Anaximandro como "concidadão e companheiro (etairos)" de
Tales. O próprio Platão nos fala dos heraclitianos (Teet., 1792) e
dos anaxagóricos (Crát.,
409 b); e em o Sofista <242d) o estrangeiro eleata fala da sua
escola como ainda existente em Eleia. A Academia platónica teve
portanto uma história de nove séculos.

Esta característica da filosofia grega não é acidental Já que a


pesquisa filosófica não encerrava, segundo os gregos, o indivíduo em
si próprio; exigia, bem ao contrário, uma concordância de esforços,
uma comunicação incessante entre os homens que dela faziam o
objectivo fundamental da vida e determinava por isso uma
solidariedade constante e efectiva entre os que a ela se
dedicavam,.'

De aqui provém o interesse constante dos filósofos gregos pela


política, isto é pela vida em sociedade. A tradição conservou-nos,
notícia deste interesse mesmo na referência àqueles de cuja vida
não nos dá mais que essas informações. Tales, Anaximandro e
Pitágoras foram homens políticos. De Parménides se conta que deu
as leis à sua cidade e de Zenão que pereceu vítima da tentativa para
libertar os seus concidadãos de um tirano. Empédocles restaurou a
democracia em Agrigento; Arquitos foi um chefe de estado e
Melissos um almirante. O interesse político exercitou portanto,
como veremos, uma função dominante na especulação de Platão.

29

§ 5. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA

O seu próprio carácter de pesquisa autónoma na qual cada um está


igualmente empenhado e da qual pode e deve cada um esperar o
cumprimento da sua personalidade, torna difícil dividir em períódos
o curso da filosofia grega. Todavia, a organização da pesquisa nas
escolas e as relações necessariamente existentes entre escolas
contemporâneas, que, mesmo quando são polémicas, se batem em
terreno comum, permitem distinguir, no curso da filosofia grega, um
certo número de períodos, cada um dos quais determinado pela
escolha de POSIÇãO no problema fundamental da pesquisa. Se
considerarmos o problema em torno do qual virá sucessivamente
gravitar a pesquisa, podem distinguir-se cinco períodos:
cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso.

1. Período cosmolÓgico que compreende a escolas pré-socráticas,


com excepção dos sofistas,_ dominado pelo problema de perseguir a
unidade que garante a ordem do mundo e a possibilidade do
conhecimento humano

2. período antropológico que compreende os sofistas e Sócrates, é


dominado pelo problema de perseguir a unidade do homem em si
mesmo e com os outros homens, como fundamento e possibilidade
da -formação do indivíduo e da harmonia da vida em sociedade

3. período lógico, que compreende Platão


e Aristóteles, é dominado pelo problema de perseguir na relação
entre o homem e o ser a condição e a possibilidade do valor do
homem como tal e da validade do ser como t.Este período, que é o
da plena maturidade do pensamento grego, torna a propor na sua
síntese os problemas dos dois períodos precedentes.

30

4. O período ético, que compreende o estoicismo, o epicurismo, o


cepticismo--C o eclectismo, é dominado pelo problema da conduta
do homem e é caracterizado pela diminuta consciência do valor
teorético da pesquisa.

5. O período religioso, que compreende as escolas neoplatónicas e


suas afins, é dominado pelo problema de encontrar para o homem a
via da reunião com Deus, considerada como a única via de salvação.

Estes períodos não representam rígidas divisões cronológicas: não


servem para outra coisa que não seja para dar um quadro geral e
resumido do nascimento, do desenvolvimento e da decadência da
pesquisa filosófica na Grécia antiga.

§ 6. FONTES DA FILOSOFIA GREGA

As fontes da filosofia grega são constituídas: I. Pelas obras e


fragmentos dos filósofos. Platão é o primeiro de quem -nos ficaram
as obras inteiras. Temos muitas obras de Aristóteles. De todos os
outros não nos ficaram mais que fragmentos mais ou menos
extensos. 111. Pelos testemunhos dos escritores posteriores.

As obras fundamentais de que se extraem tais testemunhos são as


seguintes:

a) No que respeita à filosofia pré-socrática são


precisas alusões conservadas nas obras de Platão e de Aristóteles.

Particularmente Aristóteles deu-nos no primeiro livro da Metafísica


o primeiro ensaio de historiografia filosófica. Além disso,
referências às outras doutrinas são muito frequentes em todos os
seus escritos.

31
b) Os doxógrafos, quer dizer, Os escritores pertencentes ao
período tardio da filosofia grega, que referiram as opiniões dos
vários filósofos. O primeiro destes doxógrafos, que é ainda fonte
de quase todos os outros, é Teofrasto, autor das opiniões físicas de
que nos resta um capítulo e outros fragmentos em o Comentário de
Simplício (séc. VI d.C.) à Física de Aristóteles.

São ainda doxografias muito importantes: os Placita


Philosophownena atribuídos a Plutarco e as Éclogas físicas de João
Estobeu (séc. V d.C.). Provavelmente (como o demonstrou Diels)
ambos bebiam na mesma fonte: os Placita de Aécio, que procediam
por via indirecta, isto é, em segunda mão, das Opiniões de
Teofrasto.

Outro doxógrafo é Cícero, que nas suas obras expõe doutrinas de


numerosos filósofos gregos, porém todas conhecidas em segunda e
terceira mão.

Para a biografia dos filósofos a mais importante doxografia é o


primeiro livro da Refutação de todas as heresias de Hipólito (séc.
III d.C.), que fora em primeiro lugar falsamente atribuída a
Diógenes com o título de Philosophonmena. A obra de Diógenes
Laércio (séc. III d.C.). Vidas e Doutrinas dos Filósofos, em 10
livros, que chegou inteira até nós, é de importância fundamental
para a história do pensamento grego. Trata-se de uma história de
cada uma das escolas filosóficas, segundo o método das chamadas
Sucessões (Diadochai) que já tinha sido praticado por Socião de
Alexandria (séc. II a.C.) e por outros cujas obras têm andado
perdidas. A obra de Diógenes Laércio contém duas doxografias
distintas: uma biográfica e anedótica, a outra expositiva. A parte
biográfica é um amontoado de anedotas e de notícias acumuladas ao
acaso; apesar disso contém informações preciosas.
32

No que respeita à cronologia foi fundador desta Eratóstenes de


Cirene (séc. III a.C.); mas as suas Cronografias foram suplantadas
pela versão em trímetros jâmbicos que delas fez Apolodoro de
Atenas (por volta de 140 a.C.) com o título de Crónica. A época de
cada filósofo é indicada pela sua acmé ou florescimento que se faz
coincidir com 40 anos de idade; e as outras datas são calculadas
com referência a esta última.

Finalmente, outras indicações se colhem nas obras dos escritores


que discutiram criticamente as doutrinas dos filósofos gregos.
Assim Plutarco na sua polémica contra o estoicismo e o epicurismo,
nos dá uma exposição destas doutrinas. Sexto Empírico assenta o
seu cepticismo na critica e na exposição dos sistemas dogmáticos. E
os escritores cristãos dos primeiros séculos, combatendo a
filosofia pagã, fornecem-nos outras indicações em virtude das quais
chegaram às nossas mãos fragmentos e testemunhos preciosos de
obras que continuam perdidas. Outras colhem-se nos comentários
de Proclo e de Simplício a Platão e a Aristóteles, nas Noites Á ticas.
de Affio Gélio (por volta de 150 a.C.), em Ateneu (por volta de 200
a.C.) e em Eliano (ao redor de 200 a.C.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 1. Sobre a pretensa origem oriental da filosofia grega: ZELLER,


Philosophie der Griochen, cap. 2; GompERz, Griechische Denker, I,
cap. 1-3, trad. frane., p. 103 segs.; BuRNET Earty Greek Philosophy,
Intr. X-XII, trad. frane. com o título Aurore de Ia Phil. grecque, p.
17 segs. (Neste volume, ZELLER virá citado a 6.1 edição ao
cuidado de Nestle; e de GomPERZ e BURNET as traduções
francesas acima Indicadas). Para mais Indicações bibliográficas
veja-se a longa nota acrescentada por Mondolfo à sua tradução
33

Italiana da cit. ob. de ZELLER, Florença, 132, vol. 1, pág. 63-99.

§ 3. Os fragmentos dos mitólogos, dos Órficos e dos Sete Sábios


~o reunidos em DIEU, Fragmente der Vor8okratiker, 5.4 edição
1934, vol, I; SNELL, Leben und Meinungen der Sieber Wei8en.
MiInchen, 1943. -KERN, Orphicorum fragmenta, Berlim, 1922:
OuVHMI, La~lae auroae orphicae, Bona, 1915; ED., Civiltá greca
nell'Italia meridionale, Nápoles, 1931; Orphei Hymni, edit. Gullermo
Quandt, Berlim, 1941.

§ 4. Sobre o contributo da poesia para a elaboração dos Conceitos


morais fundamentais: MAX WUNT, Gesch. der gricch. Ethik,
Leipzig, 1908, vol. I, cap. 1-2; JAEGER, Pa~, tradução Italiana,
Florença, 1936, livro I; SNELL, Die Entdeckung des Geistee, trad.
ital, La cultura greca e te origini del pe~ro europeo, Turim, 1951.

§ 5. Sobre a periodização da filosofia grega, vejam-se indicações


bibliográficas na nota de Mondolfo a ZELLER, vol. I, pág. 375-384.

§ 6. Fragmentos: MULLACH, Fragmenta philosophorum graecorum,


3 vol., Paris, 1860, 1867, 1881; DIELS, Poêtarum philosophorum
fragmenta, Berlim,
1901. Os fragmentos dos pré-socráticoa: DIELS. Die Fragmente
der V<>r8okratiker, 5.1 edição, ao cuidado de KrsÈn , Berlim, 1R34. -
DAL PRA, La atoriografia filosofica antica, Milão, 19W.

Os doxógrafos foram recolhidos e comentados por DIELS,


Doxographi Gracci, Berlim, 1879, que contém as obras, ou os
fragmentos de obras, de Aécio (Plutarco-"tobeu) Ario Didimo,
Teofrasto, Cícero (livro I do De %atura deorum), FIlodemo,
Mpólito, Plutarco, Epifâneo, Galeno, Hermias.

Sobre as fontes da fil. grega: UEBERWEG-PRAECHTER, PhiJ. der


Altertums, Berlim, 1926, 5 4.; Mondolfo em 7--- , vol. I, p. 25-33.

34

III

A ESCOLA JÓNICA

1. CARÁCTER DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA

A filosofia pré-socrática até aos sofistas é dominada pelo problema


cosmológico, mas não exclui o homem da sua consideração; mas no
homem vê somente uma parte ou um elemento da natureza, não
ainda o centro de um problema específico. Para os pré-socráticos,
os mesmos princípios que explicam a constituição do mundo físico,
explicam a construção do homem. O reconhecimento do carácter
especifico da existência humana é-lhes alheio e alheio é, por Isso, o
problema do que o homem é na sua subjectividade como princípio
autónomo da pesquisa. O escopo da filosofia pré-socrática é o de
pedir e reconhecer, para lá das aparências múltiplas e
continuamente mutáveis da natureza, a unidade que faz da própria
natureza um mundo: a única substância que constitui o seu ser, a
única lei que regula o seu devir. A substância é para os pré-
socráticos a matéria de que todas as

35

coisas se compõem; mas é, também a força que explica a sua


composição, do seu nascimento, a sua morte, e a sua perpétua
mudança. 'Ela é princípio não só no sentido de explicar a sua
origem mas ainda e sobretudo no sentido que torna inteligível e
reconduz à unidade aquela sua multiplicidade e mutabilidade que
aparece à primeira observação tão rebelde a toda a consideração
unitária. Do que deriva o carácter activo e dinâmico que a natureza,
a physis, tem para os pré-socráticos: ela não é a substância na sua
imobilidade, mas a substância como princípio de acção e de
inteligibilidade de tudo o que é múltiplo e em devir. Do que deriva
ainda o chamado hilozoísmo dos pré-socráticos: a convicção
implícita de que a substância primordial corpórea tinha em si uma
força que a fazia mover e viver.

A filosofia pré-socrática, não obstante a simplicidade do seu tema


especulativo e o primitivismo materialista de muitas das suas
concepções, adquiriu pela primeira vez para a especulação a
possibilidade de conceber a natureza como um mundo e pôs como
fundamento desta possibilidade a substância, concebida como
princípio do ser e do devir. Ora- que estas conquistas respeitem
exclusivamente ao mundo físico é um facto indubitável; mas é
igualmente indubitável que elas arrastam consigo, pelo menos
implicitamente, outras tantas conquistas que concernem ao mundo
próprio do homem e à sua vida interior. O homem não pode voltar-
se para a investigação do mundo como objectividade, sem tornar-se
consciente da sua subjectividade; o reconhecimento do mundo como
outro em relação a si é condicionado pelo reconhecimento de si
como eu; e reciprocamente. O homem não pode dirigir-se à
investigação da unidade dos fenómenos externos, se não sentir o
valor da unidade na sua vida e nas suas relações com os outros
homens.

36

O homem não pode reconhecer uma substância que constitua o ser e


o princípio das coisas externas senão enquanto reconhecer
semelhantemente o ser e a substância da sua existência individual
ou em sociedade. A investigação dirigida para o mundo objectivo
está sempre unida à investigação dirigida para o mundo próprio do
homem. Esta conexão torna-se clara em Heraclito. O problema do
mundo físico é por ele posto em unidade essencial com o problema
do eu; e toda a conquista naquele campo se lhe apresenta
condicionada pela investigação dirigida para si mesmo. "Estudei-me
a mim mesmo" diz ele (fr. 101, Diels). À excepção de Heraclito,
todavia, o problema para que intencionalmente se dirige a pesquisa
dos pré-socráticos é o problema cosmológico: tudo o que a pesquisa
dirigida para este problema implica no homem e para o homem
continua inexprimido e caberá ao período seguinte da filosofia
grega trazê-lo à luz. O carácter de uma filosofia é determinado
pela natureza do seu problema; e não há dúvida que o problema
dominante na filosofia pré-socrática seja o cosmológico.

A tese apresentada pelos críticos modernos (em contraposição


polémica com a de Zeller, do puro carácter naturalista da filosofia
pré-socrática) de uma inspiração mística de tal filosofia, inspiração
de que ela teria trazido a sua tendência para considerar
antropomorficamente o universo físico, funda-se em aproximações
arbitrárias que não têm base histórica. Esta tese encontra por
outro lado as suas origens na última fase da filosofia grega, que,
para a sua inspiração religiosa, quer fundar-se numa sabedoria
revelada e garantida pela tradição, e precisamente daquela fase
recolhe os testemunhos sobre que se funda a pouca, verosimilhança
que possui. Mas é sabido que neopitagóricos, neoplatónicos, etc.,
fabricavam os testemunhos que deviam servir para demonstrar o
carácter religioso, tradi-

37

cional das suas doutrinas. E é impossível basear todo o


desenvolvimento da filosofia grega nos seus próprios pressupostos:
especialmente quando o mérito mais alto dos primeiros filósofos da
Grécia foi o de terem isolado um problema específico e
determinado o problema do mundo, saindo da confusão caótica de
problemas e de exigências que se entrelaçavam nas primeiras
manifestações filosóficas dos poetas e dos profetas mais antigos.

---Os filósofos pré-socráticos realizaram pela primeira vez aquela


redução da natureza à objectividade, que é a primeira condição de
toda consideração científica da natureza;! e esta redução é
exactamente o oposto da confusão entre a natureza e o homem, que
é própria do misticismo antigo. Que a pesquisa naturalista implique
o sentido da objectividade espiritual ou contribua para o formar, é
pois (como se disse) um facto indubitável; mas este facto não é
devido a um influxo religioso sobre a filosofia; bem ao contrário é
urna conexão que os problemas realizam na própria vida dos
filósofos que os debatem.

§ 8. TALES

O fundador da escola jónica é Tales de Mileto, contemporâneo de


Sólon e de Creso. A sua acmè, quer dizer o seu nascimento deve
remontar a 624-23; a sua morte faz-se cair em 546-45. ,.Tales foi
homem político, astrónomo, matemático e físico, além de filósofo-
Como homem político, incitou os gregos da Jónia, como narra
Heródoto (1, 170), a unirem-se num estado federal com capital em
Teo. Como astrónomo, predisse um eclipse solar (provavelmente o
de 28 de Maio de
585 a.C.). Como matemático, inventou vários teoremas de
geometria. Como físico, descobriu as

38
propriedades do iman. A sua fama de sábio continuamente absorto
na especulação é testemunhada pela anedota referida por Platão
(Teet., 174 e), que, observando o céu, caiu a um poço, suscitando as
risadas de uma criadita trácia. Uma outra anedota referida por
Aristóteles (Pol., 1, 11, 1259a) tende, ao invés, a evidenciar a sua
habilidade de homem de negócios: prevendo uma belíssima colheita
de azeitonas, alugou todos os lagares da região e subalugou-os
depois a um preço mais elevado aos próprios donos. Trata-se,
provavelmente, de anedotas falsas referidas a Tales mais como a
um símbolo e incarnação do sábio que como a uma pessoa. Assim a
última (como o próprio Aristóteles observa) procura demonstrar
que a ciência não é inútil, mas que em regra os sábios não se servem
dela (como poderiam fazê-lo) para enriquecer.

Não parece que tenha deixado escritos filosóficos. Devemos a


Aristóteles o conhecimento da sua doutrina fundamental (Met., 1, 3,
983b, 20): "Tales diz que o princípio é a água, pelo que --sustentava
ainda que a terra está sobre a água; considerava, talvez, prova
disso ver que o alimento de todas as coisas é húmido e que até o
quente se gera e vive no húmido; ora aquilo de que tudo se gera é o
principio de tudo, Pelo que se ateve a tal conjectura, e ainda por
terem os gérmens de todas as coisas uma natureza húmida e ser a
água nas coisas húmidas o princípio da sua natureza". Observa
Aristóteles que esta crença é antiquíssima. Homero contou que
Oceano e Tétis são os princípios da geração. Um só argumento, pois,
apresenta Aristóteles como próprio de Tales: que, a terra está
sobre a água: e água é aqui substância no seu significado mais
simples, como aquilo que está sob (subiectum) e sustém. Um outro
argu-

39

mento (a geração pelo húmido) é adoptado tão só como provável; é


talvez conjectura de Aristóteles. Tales imaginava unida à água uma
força activa, vivificadora e transformadora: neste sentido,
possivelmente, é que ele dizia que "tudo está pleno de Deus" e que o
íman tem uma alma porque atrai o ferro.

§ 9. ANAXIMANDRO

Concidadão e contemporâneo de Tales, Anaximandro nasceu em


610-609 (tinha 64 anos quando em 547-46 descobriu a obliquidade
do Zodíaco). Foi ainda homem político e astrónomo. É o primeiro
autor de escritos filosóficos na Grécia;` a sua obra em prosa
Acerca da natureza marca uma etapa notável na especulação
cosmológica dos jónicos..Foi ele o primeiro a designar a substância
única com o nome de principio (arché e reconhecia este principio
não na água ou no ar ou em qualquer outro elemento particular, mas
no infinito (ápeiron), isto é, na quantidade infinita da matéria, de
que todas as coisas tiram a sua origem e em que todas as coisas se
dissolvem quando termina o ciclo que lhe foi estabelecido- por uma
lei necessária.' Este princípio infinito engloba, e governa tudo; é por
si próprio imortal e indestrutível, divino por conseguinte.' Não o
concebe ele como uma amálgama (migma) dos vários elementos
corpóreos em que estes estejam compreendidos cada um com as
suas qualidades peculiares; mas preferentemente como uma matéria
em que os elementos não estão ainda distintos e que por isso, além
de infinita, é ainda indefinida (a<)riston) (Diels, Ma).

Estas determinações representam já um desenvolvimento e um


enriquecimento da cosmologia de Tales. Em primeiro lugar, o
carácter indeterminado

40

da substância primordial, que não se identifica com nenhum dos


elementos corpóreos, na medida em que permite conceber melhor a
derivação destes elementos como outras tantas especificações e
determinações dela, imprime na substância todas as características
de verdadeira e própria corporeidade, e faz dela uma simples massa
quantitativa ou extensa. Sendo a corporeidade de facto ligada à
determinação dos elementos particulares, o ápeiron não pode
distinguir-se destes senão nos seres privados das determinações
que constituem a sua corporeidade sensível e por isso na redução ao
infinito espacial. Embora não possa encontrar-se em Anaximandro o
conceito de um espaço incorpóreo, a indeterminação do ápeiron,
reduzindo-o à espacialidade, faz dele necessariamente um corpo
determinado somente pela sua extensão. Ora esta extensão é
infinita e como tal englobante e governo do todo (Diels, A15). Estas
determinações e sobretudo a primeira fazem da ápeiron uma
realidade distinta do mundo e transcendente: aquilo que abraça
está sempre fora e para além do que é abraçado, ainda que em
relação com ele. " O princípio que Anaximandro estabelece como
substância originária -merece pois o nome de "divino". A própria
exigência da explicação naturalista Conduz Anaximandro a uma
primeira elaboração filosófica do transcendente e do divino, pela
primeira vez subtraído à superstição e ao mito, mas o infinito é
ainda aquilo que governa o mundo: é por conseguinte, não só a
substância como também a lei do mundo.

Primeiro que todos, Anaximandro propôs-se o problema do processo


por meio do qual as coisas derivam da substância primordial. Esse
processo é a separação. (A substância infinita é animada por um
eterno movimento, em virtude do qual se separam dela os
contrários: quente e frio, seco e húmido, etc,1 Por meio desta
separação geram-se

41
os mundos infinitos, que se sucedem segundo um _,_Ciclo eterno.
em todo o mundo, o tempo do nascimento, da duração e da morte
está marcado. "Todos os seres têm de pagar uns aos outros o
castigo da sua injustiça, segundo a ordem do tempo"] (fr. 1,
Diels). Aqui a lei de justiça que Sólon -considerava dominadora do
mundo humano, lei que prova a prevaricação e a prepotência, torna-
se lei cósmica, lei que regula o nascimento e a morte dos mundos.
Mas que injustiça é essa que todos os seres cometem e que todos
têm que exprimir? Evidentemente, ela é devida à própria
constituição e portanto ao nascimento dos seres, uma vez que
nenhum deles pode evitá-la não podendo assim subtrair-se ao
castigo. Ora o nascimento é, como se viu, a separação dos seres da
substância infinita. Evidentemente, esta separação é a ruptura da
unidade, que é própria do infinito; é o suceder da diversidade, e
portanto do contraste, lá onde existiam a homogeneidade e a
harmonia. É na separação que se determina, pois, a condição própria
dos seres finitos: múltiplos diversos e contrastantes entre si, pois
que inevitavelmente destinados a pagar com a morte o seu próprio
nascimento e a regressar à unidade.

Mau grado a distância dos séculos e a escassez das informações


remanescentes podemos ainda dar-nos conta, por estes indícios, da
grandeza da personalidade filosófica de Anaximandro. Ele fundou a
unidade do mundo, não só na unidade da substância, como ainda na
unidade da lei que o governa. E viu nesta lei não uma necessidade
cega, mas uma forma, de justiça. A unidade do problema
cosmológico com o problema humano aflora aqui: Heraclito irá
iluminá-la plenamente.

Todavia, a própria natureza da substância priinordial conduz


Anaximandro a admitir a infinidade dos mundos. Viu-se que infinitos
mundos se
42

sucedem segundo um ciclo eterno; mas os mundos são também


infinitos contemporaneamente no espaço ou tão só sucessivamente
no tempo? Um testemunho de Aécio inclui Anaximandro entre os
que admitem mundos inumeráveis que circundam de todos os lados
aquele que habitamos; e um testemunho análogo nos dá Simplício,
que coloca, ao lado de Anaximandro, Leucipo, Demócrito e Epicuro
(Diels, A 17). Cícero (De nat. deor., ]L 10.25), copiando Filodemo,
autor de um tratado sobre a religião que se encontrou em
Herculano, diz: "A opinião de Anaximandro era que aqueles são
divindades que nascem, crescem e morrem a longos intervalos e que
estas divindades são mundos inumeráveis". Na realidade é difícil
negar que Anaximandro tenha admitido uma infinidade espacial dos
mundos pois que se o infinito engloba todos os mundos, deve então
ser pensado para além não de um só mundo, mas de outro e ainda de
outro.] Só nos confrontos de infinitos mundos pode compreender-se
a infinidade da substância primordial, que tudo abraça e
transcende. Anaximandro considera de maneira original a forma da
terra: esta é um cilindro que paira no meio do mundo sem ser
sustentada por coisa alguma, visto que, encontrando-se a igual
distância de todas as partes, não é solicitada por nenhuma destas a
mover-se. Quanto aos homens, não são eles os seres originários da
natureza. Efectivamente não sabem alimentar-se por si, e não
teriam, por isso, podido sobreviver se houvessem nascido da
primeira vez como nascem agora. É forçoso que hajam tido origem
de outros animais. Nasceram dentro dos peixes e depois de terem
sido alimentados, tornados capazes de se protegerem a si mesmos,
foram lançados fora e encaminharam-se para terra. Teorias
estranhas e primitivas, mas que mostram da

43
maneira mais firme a exigência de procurar uma explicação
puramente naturalista do mundo e de se ater aos dados da
experiência.

§ 10. ANAXÍMENES

Anaxímenes de Mileto, mais jovem do que Anaximandro e talvez seu


discípulo, floresceu por volta de 546-45 e morreu entre 528-25
(63.a Olimpíada).como Tales, reconhece como princípio uma
matéria determinada, que é o ar; mas atribui a esta matéria as
características do princípio de Anaximandro.

Via ainda no ar a origem de todas as coisas: "Assim como a nossa


alma, que é ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo
inteiro" (fr. 2, Diels).

O mundo é como um animal gigantesco que respira: e a respiração é


a sua vida e a sua alma. Do ar nascem todas as coisas que são,
que foram e que Serão, e até os deuses e as coisas divinas. O ar é o
princípio do movimento de todas as coisas.

Anaxímenes diz-nos ainda o modo como o ar determina a


transformação das coisas: este modo é o duplo processo de
rarefacção e da condensação: Rarefazendo-se o ar torna-se fogo;
condensando-se torna-se vento, depois nuvem e, condensando-se
mais, água, terra e em seguida pedra. Até o calor e o frio se devem
a esse processo: a condensação produz o frio, a rarefacção o calor.

Como Anaximandro, Anaximenes admite o devir "Cíclico do mundo;


de onde a sua disolução periódica no princípio originário e a sua
periódica regeneração a partir dele.

Mais tarde a doutrina de Anaxímenes foi defendida por Diógenes


de Apolónia, contemporâneo de Anaxágoras. A acção que
Anaxágoras atribuía à inteligência, atribuía-a Diógenes ao ar, que
tudo

44

invade e, que, com alma e sopro (pneuma) cria nos animais a vida, o
movimento e o pensamento. Por conseguinte, o ar é, segundo
Diógenes, incriado, iluminado, inteligente e regula e domina tudo.

§ 11. HERACLITO

A especulação dos jónios culmina na doutrina de Heraclito, que pela


primeira vez acomete o próprio problema da pesquisa e do homem
que a institui. Heraclito de Éfeso pertence à nobreza da sua cidade;
foi contemporâneo de Parménides e floresceu como ele por alturas
de 504-01 a.C. É autor de uma obra em prosa que foi depois
designada com o título habitual Acerca da natureza, constituída por
aforismos e sentenças breves e lapidares, nem sempre claras,
donde o apelido de "obscuro".
O ponto de partida de Heraclito é a constatação do incessante
devir das coisas. O mundo é um fluxo perpétuo: "Não é possível
descer duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes numa
substância mortal no mesmo estado, pois que, pela velocidade do
movimento, tudo se dissipa e se recompõe de novo, tudo vem e vai"
(fr. 91, Diels). A substância, que é o princípio do mundo, deve
explicar o devir incessante justamente por meio da extrema
mobilidade; Heraclito reconhece-a no fogo. mas pode dizer-se que o
fogo perde, na sua doutrina, todo o carácter corpóreo: é um
princípio activo, inteligente e criado "Este mundo, que é o mesmo
para todos, não foi criado por qualquer dos deuses ou dos homens,
mas foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com ordem
regular se acende e com ordem regular se extingue" (fr. 30, Diels).
A mudança é, por isso, uma saída do fogo ou um
regresso ao fogo. "Todas as coisas se trocam pelo

45

fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas


mercadorias e as mercadorias pelo ouroi" (fr. 90, Diels).

As afirmações de que "este mundo" é eterno e de que a mudança é


uma incessante troca pelo fogo excluem evidentemente o conceito.
que os Estóicos atribuíram a Heraclito, de uma conflagração
universal, em virtude da qual todas as coisas regressariam ao fogo
primitivo. De facto, a troca incessante entre as coisas e o fogo não
implica que todas se convertam em fogo, tal como a troca entre as
mercadorias e o ouro não implica que todas se convertam em ouro.

Mas estes fundamentos de uma teoria da natureza são


apresentados por Heraclito como o resultado de uma sabedoria
difícil de alcançar-se e oculta à maior parte dos homens. Nas
palavras que abriam o seu livro, Heraclito, lamentava que os homens
não obstante terem escutado o logos, a voz da razão, se esqueçam
dele nas palavras e nas acções, pelo que não sabem o que fazem no
estado de vigília, como não sabem o que fazem no estado ",de sono
(fr. 1, Diels). E ao, longo de toda a obra corria a polémica contra a
sageza aparente dos que sabem muitas coisas, mas não têm
inteligência de nenhuma: sageza a que se opõe a pesquisa dos
filósofos, que essa sim incide sobre objectos múltiplos (fr. 35,
Diels), mas recolhe-os todos em unidade (fr. 41, Diels).

Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela


primeira vez, a pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza
e dos seus pressupostos. Por alguma razão a própria palavra
filosofia é usada eclassificada no seu justo sentido.
segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pEsquisa: com
efeito ela "gosta de ocultar-se." (fr. 123, Diels). Ele vê abrir-se à
pesquisa o mais vasto horizonte: "Se não esperares,

46
não acharás o inesperado, porque não se Pode achar e é inacessível"
(fr. 18, Diels). Mas não se esconde a dificuldade e o risco da
pesquisa: "Os que procuram ouro escavam muita terra, mas
encontram pouco metal" (fr. 22, Diels)._detémse especialmente nas
condições que a tornam possível primeira delas é que o homem
examina-se a si mesmo."Procurei-me a mim mesmo", diz ele (fr.
101, Diels). A pesquisa dirigida ao mundo
natural é condicionada pela clareza que o homem pode alcançar a
respeito do ser que lhe é próprio. A pesquisa interior revela
profundidades infinitas: "Tu não encontrarás os confins da alma,
caminhes o que caminhares, tão profunda é a sua razão" (fr. 45,
Tiels). A pesquisa interior abre ao homem zonas sucessivas de
profundidade, que jamais se esgotam: a razão, a lei última do eu,
aparece continuamente mais além, em uma profundidade sempre
mais longínqua e ao mesmo tempo sempre mais íntima.

Mas esta razão, que é a lei da alma, é ao mesmo tempo lei universal.
A segunda e fundamental condição é a comunicação entre os
homens: O pensamento é comum a todos segundo Heraclito, (fr. 113,
Diels). "É necessário seguir o que é comum a todos porque o que é
comum é geral" (fr. 2, Diels). "Quem quiser falar com inteligência
deve fortalecer-se com o que é comum a todos, como a cidade se
fortalece com a lei, e muito mais. Porque todas as leis humanas se
alimentam da única lei divina e esta doutrina tudo o que quer, basta
a tudo e tudo supera" (fr. 114 Diels).[O homem deve pois
dirigir a pesquisa não só para si mesmo, mas também, e com o
mesmo movimento, para aquilo que o liga aos outros, o logos que
constitui a mais profunda essência _(;homem individual é ainda o
que liga os homens entre si numa comunidade de natureza., Este
logos é como a lei para a cidade, mas

47

é ele próprio a lei, lei suprema que tudo rege: o homem individual, a
comunidade dos homens e a natureza externa. Ele é, portanto, não
só a racionalidade mas o próprio ser do mundo: tal se revela em
todos os aspectos da pesquisa.

"Heraclito põe constantemente defronte do homem -a alternativa


entre o estar acordado e o dormir:!
entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana,
que revela a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se
no próprio pensamento isolado, num mundo fictício que não tem
comunicação com os outros (fr. 2, 34, 73; 89).
O sono é o isolamento do indivíduo, a sua incapacidade de
compreender a si mesmo, os outros e o mundo. A vigília é a pesquisa
vigilante que não se detém nas aparências, que alcança a realidade
da consciência, a comunicação com os outros, e a substância do
mundo na única lei (logos) que rege o todo. Esta alternativa
estabelece o valor decisivo que a pesquisa possui para o homem. Ela
não é só pensamento (noesis) mas também sabedoria da vida
(fronesis); ela determina a índole do homem, o ethos, que é o seu
próprio destino (fr. 119).

Mas Heraclito determinou ainda esta lei de que a pesquisa deve


clarificar e aprofundar o significado. Ela é já para os antigos a
grande descoberta de Heraclito; isso nos atesta Ffion (Rer. Div.
Her.,
43): "0 que resulta dos dois contrários é uno, e se o uno se divide,
os contrários aparecem. Não é este o princípio que, conforme
afirmam os gregos justamente, o seu grande e celebérrimo
Heraclito colocava à cabeça da sua filosofia, o princípio que a
resume toda e de que ele se gabava como sendo uma nova
descoberta?" . A grande descoberta de Heraclito é, pois, que a
unidade do princípio criador não é uma unidade idêntica e não exclui
a luta, a discórdia, a oposição. Para compreender a lei suprema do
ser, o logos que o constitui e

48

governa, é necessário unir o completo e o incompleto, o concorde e o


discorde, o harmónico e o dissonante (fr. 10), e dar-se conta de que
de todos os opostos brote a unidade e da unidade saem os opostos.
"É a mesma coisa o vivo e o morto. o acordado e o dormente, o
jovem e o velho: pois que cada um destes opostos transformando-
se, é o primeiro" (fr. 88). Como na circunferência todo o ponto é ao
mesmo tempo princípio e fim, como o mesmo caminho pode ser
percorrido para cima e para baixo (fr. 103, 60), assim todo o
contraste supõe uma unidade que constitui o significado vital e
racional do próprio contraste. 00 e é oposto une--se e o que
diverge conjuga-se". A luta é a regra do mundo e a guerra é comum
geradora e senhora de todas as coisas".

Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de


Heraclito, de cujo ensinamento ele deduz que os homens não podem
elevar-se senão Por meio de uma longa pesquisa "Os homens não
sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo:
harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira" (fr. 51).
Como as cordas do arco e as da lira se retesam para reunir e
estreitar ao mesmo tempo as extremidades opostas, assim a
unidade da substância primordial liga pelo logos os opostos sem os
identificar, bem ao contrário opondo-os. A harmonia não é para
Heraclito a síntese dos opostos a conciliação e o anulamento das
suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as
oposições e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a
discórdia desaparecer de entre os deuses e de entre os homens",
Heraclito replica: "Homero não se apercebe que pede a destruição
do universo; se a sua prece fosse atendida, todas as coisas
pereceriam" (Diels, A22): A tensão é uma unidade (isto é, uma
relação) que pode

49

encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A


conciliação, a síntese anulá-la-iam.

unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste


género: não anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo
existir, e fá-lo compreender, como contraste.

Hegel viu em Heraclito o fundador da dialéctica e afirmou que não


havia proposição de Heraclito que ele não tivesse acolhido na sua
lógica (Geschichte der Phil., ed. Gockler, I. p. 343). Mas Hegel
interpretava a doutrina heraclitiana da tensão entre os opostos
como conciliação ou harmonia dos próprios opostos. Segundo
Heraclito, os opostos estão unidos, é certo, mas nunca conciliados: o
seu estado permanente é a guerra. Segundo Hegel, os opostos estão
continuamente conciliados e a sua conciliação é também a sua
"verdade". Heraclito não é um filósofo optimista que considera
(como Hegel) a realidade em paz consigo mesma. É um filósofo por
tendência pessimista e amargo (por alguma razão a tradição o
representava como "chorão": Hipólito, Refut., 1, 4; Séneca, De Ira,
11, 10, 5, etc.) que considera um sonho ou uma ilusão ignorar a luta e
a discórdia de que todas as coisas são constituídas e vivem.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 7. ~re toda a filosofia pré-socrática: RITTER e PRELLER,


Historia critica philosophiae gracae, g., edição, 1913, DEvOGEL,
Greek philosophy, Leiden,
1950; KAFKA, Die Vorsokratik", Mónaco, 1921; SCHUM, Essai sur
ta formation de Ia pensée grecque, Paris;
19a4; CHERNISS, Aristot&s Criticim of Pr"ocratic Philosophy,
Baltimore, 1935; REY, La jeunesse de Ia science grecque, Paris,
1933; GOVOTri, I pre-aocratici, Nápoles, IgU; MADDALENA, Sulla
cosmoZogia ionica

50

da Tauto ad Bracuto, pdd", 1%0. A &kterp~O ~ca da filosofia,


pré~rãUca foi sustentada por C.~ JOEL, Der Ure~g der
Naturph~10 gw dom ~to der My&ttk, lena, lgW; M., Ge~cht# der
asfikes Phi~Me, J Tubinga, IM. Mo particularmente importantes:
STzNzEL, Die M~phyaik doe Altertuino, M6naco, 1931; JAEGER,
Pa~, 3 VOL, trad. ltal., Florença; 1936-59, ID., The Theology of the
Barly &reek Ph~hera, Oxford, 1947; GIGON, Der Uroprung der
G~hiochen Phfk8~e. Von H~ bis Porme~, Basilela, 1945; G. S. ~-J. E.
RAvEN, The Pnesocratic Ph~hem. A Crit~ H~V with a Setec~ of
Texts, Cambridge, 1957.

§ S. Os fragmentos de Talco in Dm^ cap. li. -

Sobre Talco além das obras citado : D. R. Dims in "Classical


Quarterly>, 1950.

9. Oa fragmentos de Anaximandro in DMU,


12.- W-1 -NES=, 1, 270 sego.; GOMPERZ, I,
55 sega.: BURNET, 52 aep.; Dmi, lu "New Ja~ chen, 1923, 6&76;
HEIDEL, in "~Ical Philosophy>,
1912; C. ~N, A. and the 011~ of Greek Co~ Jogy, Nova Iorque, 1960.

§ 10. Os fragmentos de Anaxímenes in DM CaP- 13.-ZELLEP-


MSTLE, 1, 315 ~.; Gom~ I,
62 sega.; BuRNET, 76 sega.

Os fragmentos de Diõgenes in D=, cap. 64. -zP-T.T -NEMx, 1, 338


segs.; Gom~, 1, 390 seg.; BuRNET, 406 segs.

§ li. Os fragmentos de Heraclito in DiEu, cap. 22-72ri-Ta -NMix, 1,


783 sego.; -GomPERz, 1,
6 segs.; BuRNzT, 145 sega.; STENzEL, artig:o na Encicl~a Pauly-
Wissowa-Kro11; WALzER; Braclito (frag. e trad. ltal.), Florença,
1939. Uma Interpretação em sentido exístencialista-heidegge~o é
a de BRECHT, H~it, Heidelber^ 1936. Um Heraclito criatianizante é
apresentado por M~NTINI, Braclito,

51

Turim. 1944; KIRK, Irire in the Cos~g" Spoculat" of Heraclitu&,


Mlanneapolls, 1940; HeracUtu8: The Coismic Fragments, 1954;
RAus=NBERGzR, Parmen~ und Heraklit, Heidelberg, 1941; DnZER,
Weltbild und Sprwhe in Reraklitismus, In "Neue lMld der Antike>,
1942; A. JEANNnM, La pensée d'HdracUte d'Ephè6e, Paris, 1959;
H. QUIRING, H., Berlim, 1959; P. H. WHEELWRIGHT, H.,
Princeton, 1959.

52

lu

A ESCOLA PITAGÓRICA
§ 12. PITÁGORAS

A tradição complicou com tantos elementos lendários a figura de


Pitágoras que se torna difícil delineá-la na sua realidade histórica.
Os apontamentos de Aristóteles limitam-se a poucas e simples
doutrinas, referidas as mais das vezes não a Pitágoras mas em geral
aos pitagóricos; e se a tradição se enriquece à medida que se afasta
no tempo do Pitágoras histórico, isto é sinal evidente que se
enriquece com elementos lendários e fictícios, que pouco ou nada
têm de histórico.

Filho de Mnesarco, Pitágoras nasceu em Samos, provavelmente em


571-70, veio para a Itália em
532-31 e morreu em 497-96 a.C.. Diz-se que fora discípulo de
Ferecides de Siros e de Anaximandro e que viajou pelo Egipto e
pelos países do Oriente. 56 é certo que emigrou de Samos para a
Grande Grécia e arranjou casa em Crotona onde fundou uma escola
que foi também uma associação religiosa e política. A lenda
representa Pitágoras

53

como profeta e operador de milagres, a sua doutrina ter-lhe-ia sido


transmitida directamente do seu deus protector. Apolo, pela boca
da sacerdotisa de Delfos Temistocleia Aristósseno in Dióg. L.. VM,
21).

É muito provável que Pitágoras não tenha escrito nada. Aristóteles


não conhece, com efeito, nenhum escrito seu; e a afirmação de
Jâmblico (Vida de Pít., 199) de que os escritos dos primeiros
Pitagóricos até Filolau teriam sido conservados como segredo da
escola, vale só como uma prova do facto de que ainda mais tarde não
se possuíam escritos autênticos de Pitágoras anteriores a Filolau.
Pelo que é muito difícil reconhecer no pitagorismo a parte que
pertence ao seu fundador. Uma única doutrina pode com toda a
certeza ser-lhe atribuída - (a da sobrevivência da alma depois da
morte e à sua transmigração para outros corpos) -----"Segundo
esta doutrina, de que se apoderou Platão '(Górg., 493a), o corpo é
uma prisão para a alma,
que aqui foi encerrada pela divindade para seu castigo. Enquanto a
alma estiver no corpo, tem necessidade dele porque só por seu
intermédio pode sentir; mas quando estiver fora dele vive num
mundo superior uma vida incorpórea nu __e
se purificou durante a vida corpórea, a alma regressa a esta vida;
no caso contrário, retoma depois da morte a cadeia das
transmigrações.

§ 13. A ESCOlA DE PITÁGORAS -- A Escola de Pitágoras foi uma


associação religiosa é política além de filosófica; Parece que a
admissão na sociedade estava subordinada a provas rigorosas e à
observância de um sigilo de vários anos. Era necessário absterem-se
de certos alimentos (carne, favas) e observar o celibato. Além
disso,

54

nos graus mais elevados os Pitagóricos viviam em plena comunhão de


bens. Mas o fundamento histórico de todas estas notícias é
bastante inseguro. Muito provavelmente, o pitagorismo foi uma das
muitas seitas que celebravam mistérios a cujos iniciados era
imposta uma certa disciplina e certas regras de abstinência, que
não deviam ser pesadas.
O carácter político da seita determinou uma revolução
Contra o governo aristocrático, tradicional nas cidades gregas da
Itália meridional, a que davam o seu apoio os Pitagóricos, levantou-
se um movimento democrático que provocou revoluções e tumultos.
Os Pitagóricos transformaram-se em objecto de perseguições: a
sede da sua escola foi incendiada, eles mesmos foram massacrados
ou fugiram; e só tempos depois os exilados puderam regressar à
pátria. É provável que Pitágoras tenha sido forçado a trocar
Crotona pelo Metaponto justamente devido a tais movimentos
inssurreccionais.

Após a dispersão das comunidades itálicas temos conhecimento de


filósofos pitagóricos fora da Grande Grécia. O primeiro deles é
Filólau. que era contemporâneo de Sócrates e de Demócrito e viveu
em Tebas nos últimos decénios do século V. No mesmo período
coloca Platão Timeu de Locres, do qual nem sabemos com segurança
se se trata de uma personagem histórica. Na segunda metade do
século IV o pitagorismo assumiu nova importância política através
da obra de Arquitas, senhor de Tarento, de quem foi hóspede
Platão durante a sua viagem à Grande Grécia. Depois de Arquitas a
filosofia pitagórica parece ter-se extinguido até na Itália. Junta-se
ao pitagorismo, embora não tenha sido (como há quem diga)
discípulo de Pitágoras, o médico de Crotona Aleméon, que repete
algumas das doutrinas típicas do pitagorismo; mas é sobretudo
notável por ter considerado o cérebro o órgão da vida espiritual do
homem.

55

A doutrina dos pitagóricos tinha essencialmente carácter religioso.


Pitágoras apresenta-se como o depositário de uma sabedoria que
lhe foi transmitida pela divindade; a esta sabedoria não podiam os
seus discípulos trazer nenhuma modificação, mas deviam
permanecer fiéis à palavra do mestre (ipse dixit). Além disso, eram
obrigados a conservar o segredo e por esta razão a escola se cobria
de mistérios e de símbolos que ocultam o significado da doutrina
aos profanos.

§ 14. A METAFÍSICA DO NÚMERO

A doutrina fundamental dos Pitagóricos é que a Substância das


coisas é o número. Segundo Aristóteles (Met., I, 5)os Pitagóricos,
que haviam sido os primeiros a fazer progredir a matemática,
acreditariam que os princípios da matemática eram os -princípios de
todas as coisas; e uma vez que os
princípios da matemática são, os números, parece-lhes ver nos
números, mais do que no fogo, na terra ou no ar, muitas
semelhanças com as coisas que são ou que devem. Aristóteles
considera, por isso, que os Pitagóricos atribuíram ao número a
função de causa material que os jónios atribuíam a um elemento
corpóreo: o que é sem dúvida nenhuma uma indicação precisa para
compreender o significado do pitagorismo, mas não é ainda
suficiente para torná-lo claro.

Na realidade, se os jónios recorriam a uma substância corpórea


para explicar a ordem do mundo, os Pitagóricos fazem dessa própria
ordem a substância do mundo---O número como substância do
mundo é a hipótese da ordem mensurável e A grande descoberta
dos Pitagóricos, dos fenómenoS a descoberta que lhes determina a
importância na história da ciência ocidental, consiste precisamente

56

na função fundamental que eles reconheceram à medida matemática


para compreender a ordem e a unidade do mundo. Veremos que a
última fase do pensamento platónico é dominada pela mesma
preocupação: encontrar a ciência da medida que é simultaneamente
o fundamento do ser em si e da existência humana. Primeiro que
todos, os Pitagóricos deram expressão técnica à aspiração
fundamental do espírito grego para a medida, aspiração que Sólon
exprimia dizendo: "A coisa mais difícil de todas é captar a invisível
medida da sageza, a única que traz em si os limites de todas as
coisas". Como substância do mundo, o número é o modelo originário
das coisas (lb., 1, 6, 987 b, 10) pois que constitui, na sua perfeição
ideal, a ordem nelas implícita.

O conceito de número como ordem mensurável permite eliminar a


ambiguidade entre significado aritmético e significado espacial no
número pitagórico, ambiguidade que dominou as interpretações
antigas e recentes do pitagorismo. Aristóteles diz que os
Pitagóricos trataram os números como grandezas espaciais (1b.,
XIII, 6, 1080b. 18) e alega ainda a opinião de que as figuras
geométricas são os elementos substanciais de que consistem os
corpos _,Ib., VII, 2, 1028b, 15). "s seus comentadores vão ainda
mais longe, sustentando que os Pitagóricos consideraram as figuras
geométricas como princípios da realidade corpórea e reduziram
estas figuras a um conjunto de pontos, considerando os pontos
como unidades extremas (Alexandre, -20r sua vez, co

In met., 1, 6, 687b, 33, ed. Bonitz, p. 41). E alguns intérpretes


recentes insistem em conservar o significado geométrico como o
único que permite compreender o princípio pitagórico de que, no fim
de contas, tudo é composto de números.

Na verdade, se por número se entende a ordem mensurável do


mundo, o significado aritmético e o

57

significado geométrico aparecem fundidos, uma vez que a medida


supõe sempre uma grandeza espacial ordenada, logo geométrica, e
ao mesmo tempo um número que a exprime" Pode dizer-se que o
verdadeiro significado do número pitagórico está expresso naquela
figura sacra, a tetraktys, por que os Pitagóricos tinham o hábito de
jurar e que era a seguinte:

A tetraktys representa o número 10 como o triângulo que tem o 4


como lado. A figura constitui, portanto, uma disposição geométrica
que exprime um número ou um número expresso numa disposição
geométrica: o conceito que ela pressupõe é o da ordem mensurável.
- Se o número é a substância das coisas, todas as disposições das
coisas se reduzem a oposições --,)entre números.' Ora a oposição
fundamental das coisas com respeito à ordem mensurável que
constitui a sua substância é a de limite e de ilimitado: o limite, que
torna possível a medida, e o ilimitado que a exclui. A esta oposição
corresponde a oposição fundamental dos números, par e ímpar: o
ímpar corresponde ao limite, o par ao ilimitado. E, com efeito, no
número ímpar a unidade díspar constitui o limite do processo de
numeração, enquanto no número par este limite falta e o processo
fica, por conseguinte, inconcluso. A unidade é, pois, o par/ímpar
visto que o acrescentamento dela torna par o ímpar e o ímpar o par.
À oposição do ímpar e do par, correspondem nove outras oposições
fundamentais e resulta daí a lista seguinte: 1.o Limite, ilimitado; 2.<'
ímpar, par; 3.O Unidade, multiplicidade, 4.O Direita, esquerda, 5.1>
Macho, fêmea;

58

6.o Quietude. movimento; 7.o Recta, curva; 8.o Luz, trevas; 9.o Bem,
mal; 10.- Quadrado, rectângulo.
O limite, isto é, a ordem, é a perfeição; por isso, tudo o que se
encontra do mesmo lado na série dos opostos é bom, o que se
encontra do outro lado é mau. Os Pitagóricos pensam, todavia,
que a luta entre os opostos se concilia por meio de um princípio
de harmonia; e a harmonia, como vínculo dos mesmos opostos,
constitui para eles o significado último das coisas

Filolau define a harmonia como "a unidade do múltiplo e a concórdia


do discorde" (fr. 10, Diels). Como por toda a parte existe a oposição
dos elementos, por toda a parte existe a harmonia; e pode dizer-se
outro tanto que tudo é número ou que tudo é harmonia porque todo
o número é uma harmonia do ímpar e do par. A natureza da
harmonia é em seguida revelada pela música: as relações musicais
exprimem do modo mais evidente a natureza da harmonia universal;
e são por isso assumidas pelos Pitagóricos como modelo de todas as
harmonias do universo (Filo]., fr. 6, Diels).

§ 15. DOUTRINAS COSMOLóGICAS

ANTROPOLóGICAS

Mais ou menos em conformidade com a doutrina metafísica do


número, os Pitagóricos desenvolveram uma doutrina cosmológica e
antropológica de que somente conhecemos uns escassos elementos.
Filolau defendeu o princípio de que a diversidade dos elementos
corpóreos (água, ar, fogo, terra e éter) dependia da diversidade da
forma geométrica das partículas mais pequeninas que os
compunham. Esta doutrina que nele se acha apenas referida, foi
precisada no Timeu de Platão que atribui a todos os elementos a
constituição de um determinado

59

sólido geométrico; mas esta precisão, tornada possível pelo


desenvolvimento dado à geometria sólida pelo matemático Teeteto
(ao qual é dedicado o diálogo homónimo de Platão) não era possível a
Filolau. [Sobre a formação do mundo, os Pitagóricos pensam que no
coração do Universo existe um fogo central, a que chamam a mãe
dos deuses, porque dele provém a formação dos corpos celesteS. ou
ainda Héstia, lar ou altar do universo, . a cidadela ou o trono de
Zeus. porque é o centro ,,de onde emana a força que conserva o
mundo Por este fogo central são atraídas as partes màIs próximas
do ilimitado que o circunda (espaço ou matéria infinita), partes que
são limitadas por esta atracção, e a seguir plasmadas na ordem.
Este processo repetido mais vezes conduz à formação do -universo
inteiro, no qual por conseguinte, como refere Aristóteles (Met.,
XII, 7, 1072 b, 28), a perfeição não está no princípio, mas no fim.

É notável que, em conformidade com esta cosmogonia, os


Pitagóricos cheguem a uma doutrina cosmológIca, que os faz contar
entre os primeiros predecessores de Copérnico., O. mundo é por
eles concebido como uma esfera, no centro da qual está o fogo
originário, e em torno desta movem-se, de ocidente para oriente,
dez corpos celestes: o céu das estrelas fixas, que é o mais afastado
centro, e em seguida, a distâncias sempre menores, os cinco
planetas, o sol, que como uma grande lente recebe os raios do fogo
central e reflecte-os em redor, a lua, a terra e a antiterra, um
planeta hipotético que os Pitagóricos admitem para completar o
sagrado número de dez. O limite extremo do universo seria
formado por uma esfera envolvente de fogo correspondente ao
fogo celeste. As estrelas estão fixas a esferas transparentes em
cuja rotação são arrastadas (Aristóteles, De coelo, H, 13). Uma vez
que todos os corpos movidos velozmente produzem um som

60

musical, o mesmo acontece com os corpos celestes: o movimento das


esferas produz uma série de sons musicais que formam no seu
conjunto uma oitava. Os homens não se apercebem destes sons,
porque os sentem ininterruptamente desde o nascimento ou ainda
porque os seus ouvidos não são adequados para percebê-los. \Como
todas as outras coisas, a alma humana é harmonia: a harmonia entre
os elementos contrários -)que compõem o corpo. A em doutrina, que
é exposta por Simias, discípulo de Filolau, em o Fédon platónico, o
próprio Platão objecta que, como harmonia, a alma não poderia ser
imortal porque dependeria dos elementos corpóreos, que se
desagregam com a morte. E esta objecção pareceu tão séria, que se
negou que a doutrina da alma-harmonia fosse concebida pelos
Pitagóricos no sentido explicado por Platão e ela foi reportada, ao
invés, à interpretação de Claudiano Mamerto (De statu animae, H,
7; V. § 170) de que a harmonia é antes a convergência, quer dizer o
vínculo que une a alma e o corpo. Na verdade, se se sustenta o
princípio pitagórico de que a harmonia é número e o número é
substância, a objecção platónica perde ,-valor- é a harmonia que
determina e condiciona a
mescla dos elementos corpóreos, e não esta que é ,-,Condição
daque!Ü

À doutrina da harmonia se liga a ética pitagórica com a sua


definição da justiça. A justiça é um número quadrado; consiste no
número plano multiplicado pelo número plano, porque dá o plano pelo
plano. Por isto os Pitagóricos designam-se com o quatro, que é o
primeiro número quadrado, ou com o nove, que é o primeiro número
quadrado ímpar. No resto, a ética pitagórica é de carácter
religioso, sendo o seu preceito fundamental o de seguir a divindade
e tornar-se semelhante a ela. As máximas e prescrições de
carácter prático que cons-

61

tituem o património ético da Escola não têm um significado


filosófico especial senão talvez na medida em que se começa a
entrever nelas a subordinação da acção à contemplação, da moral
prática à sabedoria, que conseguirá a vitória com o aristotelismo. O
pitagorismo colocou a purificação da alma, que as outras seitas viam
nos ritos e práticas propiciatórias. na actividade teorética, a única
capaz de subtrair a alma à cadeia dos nascimentos e de a
reconduzir à divindade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 12. Os testemunhos sobre Pitágoras em Dw^ cap. 14. As VU" de


Pitágorw, de Porfirio e de Jâmblico são úteis para o conhecimento
da lenda de Pitágoras e das doutrinas neopitagóricas e
neoplatónicas, mas não para a reconstrução do Pitágoras histórico.
Sobre Pitágoras: GomPm, 108 sega.; BuRNET, 93 segs.; ROSTAGNI,
Il verbo <U Pitagora, Turim,
1924.

§13. Sobre as vicissitudes da escola pitagórIca: ROSTAGNI, Pita~


e i Pitag~ in Timeo, In. "AtU dell'Acc. delle Scienze di Torino>,
1914. Os fragmentos de Filolau In DiELs, cap. 44; de Arquitas In
DIELS, cap. 47; de Alcméon In DIMs, cap. 24. Sobre estes
Pitagõricos: OLivmu, Civi;tâ greca negIt~ ~dionale, Nápoles, 1931;
VON MTZ, Pythagorcan Politics in Southem Itaiy, Nova-Iorque,
1940.

§ 14. Sobre a doutrina pitagórica: ZELLM, 1,


361 segs.; GompERz, 1, 180 segs.; BURNET, 317 segs.FRANK, Plato
und die Soge~nten Pythag~, Halle,
1923; RAVEN, Pythagoreiam and Ekatím, Cambridge,
1948; STRAINGE UNG, A Study of the Doctrine of
Metempsychosis in Greoce from Pythagora8 to Plato, Princeton,
1948.

62
IV

A ESCOLA ELEÁTICA

§ 16. CARÁCTER DO ELEATISMO

1 a escola jónica não aceitara o devir do mundo.' que se manifesta


no nascer, perecer e transformar das coisas, como um facto último
e definitivo, porque intentara descobrir, para 4 disso, a unidade e a
permanência dá substância. Não negara, todavia, a realidade do
devir; Tal negação é obra da escola eleática, que reduz o próprio
devir a simples aparência e afirma que só a substância é
verdadeiramente Pela primeira vez, com a escola eleática, a
substância se torna por si mesma princípio -metafísico: pela
primeira vez, é ela dkÍ 1da_'_n_àõ como elemento corpóreo ou
como número, mas tão só como substância, como permanência e
necessidade do ser enquanto ser. O carácter normativo que a
substância revestia na especulação de Anaximandro, que via nela
uma lei cósmica de justiça, carácter que fora expresso pelos
Pitagóricos no princípio que o número é o modelo das coisas, surge
assumido como a própria definição da subs-

63

tância por Parménides e pelos seus seguidores. Para eles a


substância é o ser que é e deve ser: é o ser na sua unidade e
imutabilidade, que faz dele o único objecto do pensamento, o único
termo da pesquisa filosófica. O princípio_M eleatismo marca uma
etapa decisiva na história da filosofia, Ele pressupõe
indubitavelmente a pesquisa cosmológica dos jónicos e dos
Pitagóricos, mas subtrai-a ao seu pressuposto naturalista e trá-la
pela primeira vez ao plano ontológico em que deveriam enraizar-se
os sistemas de Platão e de Aristóteles.
§ 17. XENÓFANES

Segundo os testemunhos de Platão (Sof., 242d) e de Aristóteles


(Met., 1, 5, 986 b. 2l) a direcção peculiar da escola eleática fora
iniciada por XENóFANEs de Colófon, que foi o primeiro a afirmar a
unidade do ser. Estes testemunhos têm sido interpretados no
sentido de que Xenófanes tinha fundado a escola eleática; mas esta
interpretação vai muito além do significado dos testemunhos e é
bastante improvável. O próprio Xenófanes nos diz (fr. 8, Diels),
numa poesia composta aos 92 anos, que há 67 anos percorria de
ponta a ponta os países da Grécia, e esta vida errante concilia-se
mal com uma regular estadia em Eleia, onde teria fundado a escola.
A única prova da sua permanência em Eleia é uma anedota contada
por Aristóteles (Ret., 11, 26, 1400 b, 5): aos Eleatas que lhe
perguntavam se deveriam oferecer sacrifícios e lágrimas a
Leucoteia, teria ele retorquido: "Se a julgais uma deusa, -não deveis
chorá-la, Se a não julgais tal, não deveis oferecer-lhe sacrifícios".
Tem-se, no entanto, conhecimento de um longo poema em
hexâmetros que Xenófanes teria escrito acerca da fundação da sua
cidade; mas tudo isto não é bas-

64

tante para provar a sua regular residência e a instituição de uma


escola em Eleia. Não é também certo que tenha exercido a
profissão de rapsodo. De seguro, sabemos que escreveu em
hexâmetros e compôs elegias e jambos (Silloz) contra Homero e
Hesíodo. É improvável, finalmente, que Xenófanes tenha escrito um
poema filosófico, de que, com efeito, não se tem conhecimento
preciso. Os fragmentos teológicos e filosóficos que se costumam
considerar como resíduos desse poema podem muito bem fazer
parte das suas sátiras, a cujo conteúdo se referem.
O ponto de partida de Xenófanes, é uma crítica decidida ao
antropomorfismo religioso tal como se apresenta nas crenças
comuns dos gregos e ainda como se acha em Homero e em Hesíodo.
"Os homens, diz ele, crêem que os deuses tiveram nascimento e
possuem uma voz e um corpo semelhantes aos seus" (fr. 14, Diels).
Pelo que os Etíopes representam os seus negros e de narizes
achatados, os Trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos
vermelhos, e até os bois, os cavalos e os leões imaginariam. se
pudessem, os seus deuses à sua semelhança (fr. 16, 15). Os poetas
encorajaram esta crença. Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses
até aquilo que é objecto de vergonha e de censura entre os homens:
roubos, adultérios e enganos recíprocos. Na realidade, há uma só
divindade "que não se assemelha aos homens nem pelo corpo nem
pelo pensamento" (fr. 23). Esta única divindade identifica-se com o
universo, é um deus-tudo, e tem o atributo da eternidade: não nasce
e não morre e é sempre a mesma. Com efeito, se nascesse isso
significaria que antes não era, ora o que não é, não pode nascer nem
fazer nascer coisa alguma. Xenófanes afirma sob forma teológica a
unidade e a imutabilidade do universo. Mas

65

medida parece-lhe difícil de compreender e, assim, pode ser


entendida depois de longa pesquisa,,, "Os deuses não revelaram
tudo aos homens desde o princípio, mas só procurando encontram,
passado tempo, o melhor" (fr. 18). É o reconhecimento explícito da
filosofia como pesquisa.

Em Xenófanes encontram-se ainda assomos de investigações


físicas: ele julga que todas as coisas e até o homem são formadas
de terra e água (fr. 29, 33); que tudo vem da terra e tudo à terra
regressa; mas estes elementos de um tosco materialismo pouca
ligação têm com o seu princípio fundamental. Há um aspecto notável
na sua obra de poeta: a sua crítica da virtude agonística dos
vencedores de jogos, que era tão altamente estimada pelos gregos,
e a afirmação da superioridade da sageza. "Não é justo antepor à
sabedoria a mera força corpórea" diz ele (fr. 1). Aqui, à virtude
fundada na robustez física aparece contraposta a virtude espiritual
do sábio.

§ 18. PARMÉNIDES

O fundador do eleatismo é Parménides. A grandeza de Parménides é


desde logo evidente pela admiração que suscitou em Platão: este
fez dele a personagem principal do diálogo que marca o ponto
crítico do seu pensamento e que é dedicado a ele; aponta-o, em
outra parte (Teet., 183 e), como "venerando e terrível a um tempo".

Parménides era cidadão de Eleia ou Vélia, colónia focense situada na


costa da Campânia ao sul de Paestum. Segundo as indicações de
Apolodoro, que coloca o seu florescimento na 69.a Olimpíadas, teria
nascido em 540-39; mas esta indicação opõe-se ao testemunho de
Platão segundo o qual Parménides tinha 65 anos quando,
acompanhado por

66

Zenão, veio a Atenas e se encontrou com Sócrates, então muito


jovem (Parm., 127b; Teet., 183e; Sot., 217 c). Dada a grande
elasticidade das indicações cronológicas de Apolodoro, não há
motivo para pôr em dúvida o rebatido testemunho de Platão: daí
deduzia-se como provável que Parménides tenha nascido por volta
de 516-11. Aristóteles cita dubitativamente a indicação que
Parménides tenha sido discípulo de Xenófanes; mas uma vez que é
de excluir, como se viu, que Xenófanes tenha fundado uma escola
em Eleia, a indicação aristotélica não significa provavelmente outra
coisa senão queParménides retomou a direcção de pensamento
iniciada com Xenófanes.' Segundo outras tradições (DioG. L., DC,
21; Diels, AI) Parménides foi educado na filosofia do pitagórico
Amenias e seguiu "vida pitagórica". É o primeiro a expor a sua
filosofia num poema em hexâmetros. Xenófanes também expusera
em versos as suas ideias filosóficas mas de forma ocasional,
entremeando-as nas suas poesias satíricas. Anaximandro,
Anaxímenes e Heraclito haviam escrito em prosa. O exemplo de
Parménides será seguido somente por Empédocles. Do poema de
Parménides que, provavelmente, só em data posterior foi designado
com o título Acerca da natureza, restam-nos 154 versos.

O poema dividia-se em duas partes: a doutrina da verdade


(alétheia) e a doutrina da opinião (doxa). Nesta última parte,
Parménides expunha as crenças do homem comum, propondo-se,
porém, realizar sobre elas um trabalho de avaliação e
normativo"Também isto aprenderás: como são verosimilmente as
coisas aparentes, para quem as examina em tudo e para tudo" (fr. 1,
v. 31). Por conseguinte, Parménides apresenta um conjunto de
teorias físicas provavelmente de inspiração pitagórica. Ao dualismo
do limite e do ilimitado, faz corresponder o da luz e das trevas que
porventura não era des-

67

conhecido dos mesmos pitagóricos; e considera a realidade física


como um produto da mescla e ao mesmo tempo da luta destes dois
elementos (fr. 9, Diels). A oposição entre estes dois elementos foi
interpretada, a partir de Aristóteles, como oposição entre o quente
e o frio. "Parménides, diz Aristóteles, (Fís., 1, S. 188 a 20), toma
como principio o quente e o frio que ele chama, por isso, fogo e
terra". Sob esta forma, o dualismo parmenídeo foi retomado no
Renascimento por Telésio. Mas esta parte do poema de Parménides
em que ele se limita a expor " as opiniões dos mortais" limitando-se
a corrigi-las conformemente a uma maior verosimilhança, parece ter
simplesmente como objectivo uma rectificação das opiniões
correntes que, todavia, ficam afastadas da verdade, visto que
presistem no domínio das aparências.

a sua filosofia é o contraste entre a verdade e a aparência. "Só


duas vias de pesquisa se podem conceber. Uma é que o ser é e não
pode não ser; e esta é a via de persuasão porque é acompanhada da
verdade. A outra, que o ser não é e é necessário que não seja; e
isto, digo-te, é um caminho em que ninguém pode persuadir-se de
nada" (fr. 4, Diels).: Pois que "um só caminho resta ao discurso: que
o ser é" (fr. 8). Mas este caminho não pode ser seguido senão pela
razão: uma vez que os sentidos, ao contrário, se detêm na aparência
e pretendem testemunhar-nos o nascer, o perecer, o mudar das
coisas, ou seja ao mesmo tempo o seu ser e o seu não-ser. - Na via
da aparência é como se os homens tivessem duas cabeças, uma que
vê o ser, outra que vê o não-ser, e erram por aqui e por ali como
estultos e insensatos sem poderem ver claro em coisa nenhuma.
Parménides quer afastar o homem do conhecimento sensível, quer
desabituá-lo de se deixar dominar pelos olhos, pelos ouvidos e pelas
palavras. homem

68

deve julgar com a razão e considerar com ela as coisas distantes


como se estivessem diante dele.

Ora a razão demonstra facilmente que não se pode nem pensar nem
exprimir o não-ser. Não se pode pensar sem pensar alguma coisa; o
pensar coisa nenhuma é um não-pensar, o dizer coisa nenhuma é um
não-dizer. O pensamento e a expressão devem em todo caso ter um
objecto e este objecto é o ser. Parménides determina com toda a
clareza o critério fundamental da validade do conhecimento que
deveria dominar toda a filosofia grega: o valor de verdade do
conhecimento depende da realidade do objecto, o conhecimento
verdadeiro não pode ser outra coisa senão o conhecimento do ser.

É este o significado das afirmações famosas de Parménides: "A


mesma coisa é o pensamento e o ser". (fr. 3, Diels). "A mesma coisa
é o pensar e o objecto do pensamento: sem o ser em que o
pensamento é expresso não poderás encontrar o pensamento, visto
que nada há ou haverá fora do ser". (fr. 8, v. 34-37).

Ao ser que é objecto do pensamento, Parménides atribui os mesmos


caracteres que Xenófanes reconhecera no deus-tudo. Mas estes
caracteres são por ele reconduzidos à modalidade fundamental, que
é a da necessidade: O ser é e não pode não ser. (fr. 4, Diels) é a
fiLosofia principal de Parménides: tese que exprime o que é para ele
o sentido fundamental do ser em geral e constitui o princípio
director da investigação racional. A necessidade a respeito do
tempo é eternidade, isto é, contemporaneidade, totum simul; a
respeito do múltiplo é unidade, a respeito do devir (ou seja do
nascer e perecer) é imutabilidade (fr. 8, 2-4, Diels).
Parficularmente a éternidade não é concebida por Parménides como
duração temporal infinita mas como negação do tempo. "O ser nunca
foi nem

69

nunca será porque é agora todo de uma vez, uno e contínuo".

Parménides foi o primeiro que elaborou o conceito da eternidade


como presença total. o ser não pode nascer nem perecer, visto que
deveria derivar do não-ser ou dissolver-se nele, o que é impossível
porque o não-ser não é. O ser é indivisível porque é todo igual e não
pode ser em um lugar mais ou menos que em outro; é imóvel porque
reside nos limites próprios; é finito porque o infinito é incompleto e
ao ser nada falta. O ser é completude e perfeição; e neste sentido
é justamente finitude. Como tal é assimilado por Parménides a uma
esfera homogénea, imóvel, perfeitamente igual em todos os pontos.
"Por conseguinte, visto que não tem um limite extremo, o ser é
perfeito em todas as partes. semelhante à massa arredondada de
esfera igual do centro para todas as suas partes" (fr. 8). Pelo que o
ser é pleno, enquanto é todo presente a si mesmo e em ponto
nenhum falta a ou é deficiente de si; ele é auto-suficiência.

Algumas destas determinações, por exemplo a da plenitude, e a da


assimilação à esfera, fizeram pensar numa corporeidade do ser
parmenídeo. De Zeller em diante tem-se afirmado que nem
Parménides nem os outros filósofos pré-socráticos se elevaram à
distinção entre corpóreo e incorpóreo: como se fosse verosímil que
os homens que atingiram tal altura de abstracção especulativa,
pudessem não ter realizado a primeira e mais pobre de tais
abstracções, a distinção entre o corpóreo e o incorpóreo. Na
realidade a plenitude do ser significa a sua auto-suficiência
perfeita, pela qual o ser não falta ou não se basta a si em alguma
das suas partes; e a esfera não é, como o texto demonstra, senão
um termo de comparação de que Parménides se serve para ilustrar a
finitude do ser, cujos limites não são negatividade, mas perfeição.
No

70

entanto adoptou-se, para provar a corporeidade do ser parmenídeo,


uma frase de Aristóteles a qual diz que Parménides e Melissos "não
admitiram nada mais que substâncias sensíveis" (De coei., IH, 1,
298b, 21). Mas Aristóteles, que em certo ponto dissera primeiro
que estes filósofos não falam das coisas físicas", isto é, não se
ocupam das substâncias corpóreas, quer simplesmente dizer, com
aquela frase, que eles não admitiram as substâncias intelectuais (as
inteligências celestes) a que, ainda segundo ele, se podem referir a
ingenerabilidade e a incompatibilidade que os Eleatas afirmam do
ser.,Na realidade, Parménides formulou pela primeira vez com
absoluto rigor lógico os princípios fundamentais da ciência
filosófica que muito mais tarde haverá de chamar-se ontologia.)

Com efeito, eles revelaram em ti a a sua-força lógica aquela


necessidade intrínseca do ser que já os filósofos jónicos e
especialmente Anaximandro haviam expresso no conceito de
substância. Repetem-se nele, no entanto, empregados para
exprimirem a necessidade do ser, os mesmos termos de que se
servira Anaximandro: a lei férrea da justiça (dike) ou do destino
(moira). "A justiça não desaperta os seus grilhões e não permite que
alguma coisa nasça ou seja destruída, antes mantém com firmeza
tudo o que é" (fr. 8, v. 6). Nada há ou haverá fora do ser, uma vez
que o destino o agrilhoou de maneira a que ele permaneça inteiro e
imóvel" (fr. 8, v. 36). A justiça e o destino não são, aqui, forças
míticas: são termos que servem para exprimir com evidência
intuitiva e poética a modalidade do ser, que não pode não ser.

Pela vez primeira o problema do ser foi posto por Parménides; como
problema metafísico-ontológico, quer isto dizer na sua generalidade
máxima e não já tão só como problema físico. A pergunta eque coisa
é o ser?" a que Parménides quis for-

71

mular a resposta, não é equivalente à pergunta "que coisa é a


natureza?" para que tinham procurado a resposta os filósofos
precedentes e o próprio Heraclito. O ser de que fala Parménides
não é, em Primeiro lugar, somente o da natureza, mas também o
homem, as acções humanas, ou o de qualquer coisa pensável, seja ela
qual for; em segundo lugar, não tem relação directa com as
aparências naturais ou empíricas porque fica para além de tais
aparências e não constituí a estrutura, necessária, somente
reconhecível pelo pensamento, A caracterização desta estrutura é
dada por Parménides recorrendo àquilo a que hoje chamamos urna
categoria de modalidade: a necessidade. O ser verdadeiro ou
autêntico, o ser de que não se pode duvidar e a que só o pensamento
pode convir é o ser necessário. "O ser é e não pode não ser". (fr. 4).
É esta uma resposta que a pesquisa ontológica haveria de dar à
mesma pergunta durante muitos e muitos séculos e que, de um certo
ponto de vista, é ainda a única resposta que ela pode dar. Uma sua
consequência imediata é a negação do possível: visto que o possível é
o que pode não ser e, segundo Parménides, o que podo não ser, não
é. Com efeito, "não há nada, diz Parménides, que impeça o ser de se
alcançar a si mesmo" (fr. 8,
45): quer dizer, que o impeça de realizar-se na sua plenitude e
perfeição. Os Megáricos (§ 37) exprimiram a mesma coisa com o
teorema "o que é possível realiza-se, o que não se realiza não é
possível".

A forma poética não é, no pensamento de Parménides, tão inflexível


na sua lógica rigorosa, uma vestimenta ocasional. É imposta pelo
entusiasmo do filósofo que na pesquisa puramente racional, que
nada concede à opinião e à aparência, reconheceu a via da redenção
humana. Parménides é verdadeiramente pitagórico-no sentido em
que

72

o será Platão -pela sua convicção inabalável que só com a pesquisa


rigorosamente conduzida o homem pode chegar a salvo, em
companhia da verdade. A imagem, com que abre o poema de
Parménides, do sábio que é transportado por cavalos fogosos
"intacto (asine) através de todas as coisas, sobre a famosa via da
divindade" (fr. 1), manifesta toda a força de uma convicção
iniciática, que acredita, não nos ritos ou mistérios mas unicamente
no poder da razão indicadora. E assim, pela primeira vez na história
da filosofia, se solvem na personalidade de Parménides ao mesmo
tempo o rigor lógico da pesquisa e o seu significado existencial. A
"terribilidade" de Parménides consiste justamente no
extraordinário poder que a pesquisa racional adquire com ele,
enraizada como está na fé no seu fundamental valor humano. Vezes
houve em que se viu em Parménides o fundador da lógica: mas, é isto
demasiado pouco para ele. Se por lógica se entende uma ciência em
si, que sirva de instrumento à pesquisa filosófica, nada é mais
estranho a Parménides que uma lógica assim entendida. Mas se por
lógica se entende a disciplina intrínseca à pesquisa, enquanto se
torna independente da opinião e assenta sobre um princípio
autónomo próprio, então verdadeiramente Parménides é o fundador
da lógica. Por outro lado, a pura técnica da pesquisa poderá tornar-
se, com Aristóteles, objecto de -uma ciência particular somente
depois que Parménides e Platão mostraram em acto todo o seu valor.

§ 19. ZENÃO

Discípulo e amigo de Parménides, Zenão de Eleia era (segundo


Platão, Parm., 127a) mais novo do que ele 25 anos: o seu nascimento,
por conse-

73

guinte, deve ter ocorrido cerca de 489. Como a maior parte dos
primeiros filósofos, Zenão participou na política da sua cidade
natal; parece que contribuiu para o bom governo de Eleia e que
sucumbiu corajosamente, à tortura por ter conspirado contra um
tirano (Diels, A 1). O próprio Platão (Parm., 128 b), nos expõe o
carácter e o intento de um escrito, que devia ser a obra mais
importante de Zenão. 10 escrito era uma forma de reforço" da
argumentação de Parménides, dirigido contra os que procuravam
apoucá-la aduzindo que, se a realidade é uma. vemo-los enredados
em muitas e ridículas contradições. O escrito pagava-lhes na
mesma moeda pois que tendia a demonstrar que a sua hipótese da
multiplicidade emaranhava-se, desenvolvida a fundo, em
dificuldades ainda maiores. O método de Zenão consistia, por
conseguinte, em reduzir ao absurdo a tese dos negadores da
unidade do ser, conseguindo deste modo confirmar a tese de
Parménides.--4-

Precisamente em atenção a este método reconheceria Aristóteles


em Zenão o inventor da dialéctica (Dióg. L., VIII, 57). E, com
efeito, a dialéctica é para Aristóteles o raciocínio que parte não de
premissas verdadeiras mas de premissas prováveis ou que parecem
prováveis. (Tóp., 1, 1, 100 b,
21 segs.); e as teses de que parte Zenão para as refutar parecem
exactamente prováveis em extremo. Hegel, ao invés, opina que a
dialéctica de Zenão é uma dialéctica imperfeita porque metafísica,
e aproximou-a da dialéctica kantiana das antinomias. Zenão ter-se-
ia servido das antinomias para demonstrar a falsidade das
aparências sensíveis,'Kant para afirmar a verdade delas; pelo que
Zenão seria superior a Kant (Geschichte der Phil., ed. Glockner, I,
p. 343 segs.). Os historiadores modernos preocuparam-se com
determinar contra quem foram dirigidas as refutações de Zenão; e
a maioria vê

74

no pitagorismo o objecto destas refutações, na medida em que ele


afirmava a realidade do número, ou seja do múltiplo. Mas é difícil,
como se viu 14), supor que o número de que fala o pitagorismo seja
um simples múltiplo: ele é antes uma ordem e uma ordem
mensurável. Nem é indispensável supor que Zenão teve presentes as
teses deste ou daquele filósofo: parece provável que ele tenha
esquematizado e fixado os fundamentos típicos de todo o
pluralismo de maneira a que a sua refutação valesse tanto contra o
modo comum de pensar (a doxa de Parménides), como contra os
filósofos que estão de acordo com ele na admissão do pluralismo.

Os argumentos de Zenão podem separar-se em


dois grupos. O primeiro grupo dirige-se contra a multiplicidade e a
divisibilidade das coisas. O segundo grupo dirige-se contra o
movimento Se as coisas são inscritas, diz Zenão, o seu número é ao
mesmo tempo finito e infinito: finito, porque elas não podem ser
mais ou menos do que são; infinito, porque entre duas coisas haverá
sempre uma terceira e entre esta e as outras duas haverá ainda
outras e assim por diante (fr. 3, Diels). Contra a unidade concebida
como elemento real das coisas, Zenão observa que, se a unidade tem
uma grandeza, ainda que mínima, visto que em toda a coisa se acham
infinitas unidades. toda a coisa será infinitamente grande; ao passo
que, se a unidade não tem grandeza, as coisas que resultam dela
serão privadas de grandeza e portanto nada (fr. 1 e 2). O
argumento vale ainda, evidentemente, contra, a realidade da
grandeza. No entanto, o espaço é real. Se tudo está no espaço, o
espaço, por sua vez, deverá estar em um outro espaço e assim até
ao infinito: isto é impossível e obriga a deduzir que nada está no
espaço (Diels, A 24). Contra a multiplicidade se dirige ainda o outro

75

argumento que se um moio de trigo causar rumor quando cai, todo o


grão e toda partícula de um grão deveriam causar um som: o que não
acontece (Diels, A 29). A dificuldade está aqui em compreender
como é que diversas coisas reunidas juntamente podem produzir um
efeito que cada uma delas separadamente não produz.

Mas os argumentos mais famosos de Zenão são os dirigidos contra o


movimento que nos foram conservados por: Aristóteles (Fís., VI, 9).
O primeiro é o argumento chamado da dicotomia: para ir de A a B,
um móvel deve primeiro efectuar metade do trajecto A-B, e,
primeiro, metade desta metade; e assim por diante até ao infinito;
pelo que nunca mais chegará a B. O segundo argumento é o de
Aquiles: Aquiles (ou seja o mais veloz) nunca alcançará a tartaruga
(ou seja o mais lento), considerando que a tartaruga tem um passo
de vantagem. Com efeito, antes de alcançá-la, Aquiles deverá
atingir o ponto de que partiu a tartaruga, pelo que a tartaruga
estará sempre em vantagem. O terceiro argumento é o da seta. A
seta, que parece estar em movimento, na realidade está imóvel; com
efeito, em cada instante a seta não pode ocupar senão um espaço
vazio igual ao seu comprimento e está imóvel com referência a este
espaço; e dado que o tempo é feito de instantes, durante todo o
tempo a seta estará imóvel. O quarto argumento é o do estádio.
Duas multidões iguais, dotadas de velocidades iguais, deveriam
percorrer espaços iguais em tempos iguais. Mas se duas multidões
se movem ao encontro uma da outra desde extremidades opostas do
estádio, cada uma delas gasta, para percorrer o comprimento da
outra, metade do tempo que gastaria se uma delas estivesse
parada: do que Zenão extraía a conclusão que a metade do tempo é
igual ao dobro.

76

A intenção destes subtis argumentos, que amiúde têm sido


chamados sofismas ou cavilações até pelos filósofos que não têm
mostrado muita habilidade a refutá-los, é bastante clara. O espaço
e o tempo são a condição da pluralidade e da mudança das coisas:
pelo que, se eles se revelam contraditórios, revelam que a
multiplicidade e a mudança são contraditórias e por isso irreais.
Mas eles só são contraditórios se se admitir (como Zenão considera
inevitável) a sua infinita divisibilidade: por isso esta infinita
divisibilidade é assumida por Zenão como pressuposto tácito dos
seus argumentos. Aristóteles procurou, portanto, refutá-lo negando
sobretudo a infinita divisibilidade do tempo e afirmando que as
partes do tempo nunca são instantes, privados de duração, mas têm
sempre uma certa duração, ainda que mínima: assim já não seria
impossível, percorrer partes infinitas de espaço em um tempo
finito. Esta refutação não vale muito. Os matemáticos modernos, a
partir de Russell (Principles of Mathematics, 1903), tendem antes a
exaltar Zenão precisamente por ter admitido a possibilidade da
divisão até ao infinito, que está na base do cálculo infinitesimal. E
pode admitir-se que os argumentos de Zenão, pelas discussões que
sempre suscitaram, hajam servido também para isto. Mas Zenão
não foi, decerto, um matemático, e aquilo com que se preocupava
era muito simplesmente a negação da realidade do espaço, do tempo
e da multiplicidade.

§ 20. MELISSOS

Melissos de Samos, porventura discípulo de Parménides, foi o


general que destroçou a frota ateniense em 441-40 a.C.. É esta a
única notícia que temos da sua vida. (Plutarco, Per., 26), cuja

- 77

acmé é exactamente situada naquela data. Em um escrito em prosa


Sobre a natureza ou sobre o ser, Melissos defendia polemicamente
a doutrina de Parménides, especialmente contra Empédocles. e
Leucipo. A prova da fundamental falsidade do conhecimento
sensível é, segundo Melissos, que este nos testemunha ao mesmo
tempo a realidade das coisas e a sua mudança. Mas se as coisas
fossem reais, não mudariam; e se mudam, não são reais. Não
existem, por conseguinte, coisas múltiplas, mas tão -só a unidade
(fr. 8, Diels). Como Zenão polemizava de preferência contra o
movimento, assim Melissos polemiza de preferência contra a
mudança. " Se o ser mudasse ainda só o equivalente a um cabelo em
dez mil anos, seria inteiramente destruido na totalidade do tempo"
(fr. 7).

Em dois pontos todavia, Melissos modifica a doutrina de


Parménides. Parménides concebia o ser como uma totalidade finita e
intemporal; o ser vive, segundo Parménides, somente no agora, como
uma totalidade simultânea, e é finito na sua completude. Melissos
concebe a vida do ser como uma duração ilimitada; e afirma por isso
a infinidade do ser no espaço e no tempo. Ele compreende a
eternidade do ser com infinidade de duração, como "o que sempre
foi e sempre será" e não tem, por conseguinte, nem princípio nem
fim. Consequentemente, admite a infinidade de grandeza do ser:
"Visto que o ser é sempre, deve ser sempre de infinita grandeza"
(fr. 3). Esta modificação de uma das teses fundamentais de
Parménides e talvez a outra afirmação de Melissos, que o ser é
pleno e que o vazio não existe (fr. 7), sugeriram a Aristóteles a
observação que " Parménides tratou do uno segundo o conceito,
Melissos segundo a matéria" (Met., 1, 5, 986 b, 18). Tanto mais
relevo adquire, por isso, a afirmação decidida, feita por Melissos da
incorporeidade do ser. "Se é, necessi-

78

ta-se absolutamente que seja uno; mas se é uno não pode ter corpo,
porque se tivesse um corpo teria partes e já não seria uno" (fr. 9).
Os críticus modernos, que afirmaram a corporeidade do ser
parmenídeo (que é excluída pela própria formulação que os Eleatas
dão ao problema), atribuem a negação de Melissos a algum
particular elemento, cuja realidade, ao que supõem, Melissos
discutisse. Mas mesmo no caso de Melissos ter em mente uma
hipótese particular, o significado da sua afirmação não muda: o que
é corpo tem partes, portanto não é uno: portanto não é. A negação
da realidade corpórea está implícita para Melissos, como para
Parménides e para Zenão, na negação da multiplicidade e da
mudança e no repúdio da experiência sensível como via de acesso à
verdade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 16. Sobre o carácter do eleatismo: ZELLER-NESTLE, 1 167 segs.,


que todavia está dominada pela preocupação de atribuir aos Eleatas
a doutrina da corporeidade do ser, preocupação que não dá a
perceber o valor especulativo do eleatismo e o seu significado
histórico como antecedente necessário da ontologia platónica e
aristotélica. Os fragmentos e os testemunhos foram traduz. para o
ltal. por PILo ALBERTELLI, Os Eleatas, Bari, 1939; ZÁFIROPULO,
L' école Mate: Parménide, Zénon, Melissos, Paris, 1950; G.
CALOGERO, StUdi sWI'eleatismo, Roma, 1932; La logica del
secondo eleatismo, in "Atene e Roma>, 1936, p. 141 segs. Conf.
também A. CApizzi, recenti studi sull'eleatismo, in "lrtwsegna di
filosofia", 1955, p. 205 segs.

§ 17. Os fragmentos de Xenófanes em DrELS, cap. 21.-ZELLER-


NEsTLE 1, 640 segs.; GompERz, 1,
667 segs.; BORNET, 126 seg.; HEIDEL, Hecataeus and Xenophanes,
In "American Journal of Philology", 1943.

§ 18. Os fragmentos de Parménides in DIELS, cap. 28. Sobre


Parménides é fundamental: REINHARDT, Parménides, Bonn, 1916.
Vejam-se ainda as belas pági-

79

nas dedicadas a Parménides por JAEGm, Paidéia, trad, ltal., 276


segs.. E além disso M. UNTERSTEINER, Parménide. Te8timonta=e e
framm-entí, Florença, 1958, com uma larga introdução que refunde
e rectifica os precedentes estudos do autor. Os pontos típicos da
Interpretação de Understeiner são os seguintes: 1) o ser de
Parinénides seria uma totalidade, não uma unidade, uma vez que a
unidade (como a continuidade) constituiria uma referência ao plano
empírico ou temporal e estaria, por conseguinte, em oposição com a
eternidade do ser; 2) Parménides; não diria (fr. 6. Diela). c0 ser, o
nko-ser não é"; mas diria"Existe o dizer e o Intuir o ser, e ao Invés
não existe o dizer e o intuir o nada": no sentido que o próprio
método da pesquisa acabaria por criar o ser. Sobre as dificuldades
filo16gicas desta subtil e porventura demaqiado moderna
Interpretação efri J. BRUNSCHWIG, in "Revue Philosophique>,
1962, p. 120 sega. Do ponto de vista filosófico tem o inconveniente
de descurar completamente o carácter fundamental do ser
parmenideo, a necessidade.

§ 19. Os fragmentos de Zenão In DmU, cap. 29. A discussão de


Aristótelos está In Fís., VI, 2-9; ZELLER-NEsTLE, 1, 742 sega.;
GoMPERz, 1, 205 segs.; BURNET,
356 segs. Sobre os argumentos contra o movimento: BROCHARD.
Études de philos. anc. et de Philos. moderne, Paris, 1912.

§ 20. Os fragmentos de Melíssos, In cap. 30.-ZELLER-NEsTLE, 1,


775 seg.; Gomp=, I,
198 segs.; BURNET, 368 segs.; ZELLER e BURNET, defensores do
carácter materialista do ser parmenídeo, são os autores da
interpretação do fragmento 9 de Meilisaos discutida no texto.
80

OS FISICOS POSTERIORES

§ 21. EMPÉDOCLES

O eleatismo, declarando aparente o mundo do devir e ilusório o


conhecimento sensível que lhe concerne, não afastou a filosofia
grega da investigação naturalista. Esta continua de acordo com a
tradição iniciada pelos Jónicos, mas não pode deixar de ter em
conta as conclusões do eleatismo. A afirmação de que a substância
do mundo é uma só e que ela é o ser, não permite salvar a realidade
dos fenómenos e explicá-los.Se quiser reconhecer-se que o mundo
do devir existe em certos limites reais, deve admitir-se que o
princípio da realidade não é único mas múltiplo. Nesta via se põem
os físicos do século V. buscando a aplicação do devir na acção de
uma multiplicidade de elementos, qualitativamente ou
quantitativamente diversos.

Empédocles, de Agrigento nasceu ao redor de


492 e morreu mais ou menos aos sessenta anos. Filho de Metão, que
tinha um lugar importante no governo democrático da cidade,
participou na vida

81

política e foi ao mesmo tempo médico, dramaturgo e homem de


ciência. Ele próprio apresenta a sua doutrina como um instrumento
eficaz para dominar as forças naturais e até para chamar do Hades
a alma dos defuntos (fr. 111, Diels). A sua figura de mago (ou de
charlatão) é realçada pelas lendas que se formaram acerca da sua
morte. Os seus partidários disseram que tinha subido ao céu
durante a noite; os seus adversários, que se precipitara na cratera
do Etna para ser julgado um deus (Diels, A 16). Empédocles foi,
depois de Parménides, o único filósofo grego que expôs em verso as
suas doutrinas filosóficas. O seu exemplo não foi seguido na
antiguidade senão por Lucrécio, o qual lhe dedicou um magnífico
elogio (De nat. rer., 1,
716 segs.). Restaram dele fragmentos mais abundantes que de
qualquer outro filósofo pré-socrático, pertencentes a dois poemas.
Sobre a natureza e Purificações: o primeiro é de carácter
cosmológico, o segundo é de carácter teológico e inspira-se no
orfismo e no pitagorismo.

Empédocles é conhecedor dos limites do conhecimento humano. Os


poderes cognoscitivos do homem são limitados; o homem vê só uma
pequena parte de uma "vida que não é vida" (porque passa de
fulgida) e conhece só aquilo com que por acaso topa. Mas
justamente por isto não pode renunciar a nenhum dos seus poderes
cognoscitivos: é necessário que se sirva de todos os sentidos e
ainda do intelecto, para ver todas as coisas na sua evidência. Como
Parménides, Empédocles considera que o ser não pode nascer nem
perecer; mas à diferença de Parménides quer explicar a aparência
do nascimento e da morte e explica-a recorrendo ao combinar-se e
separar-se dos elementos que compõem a coisa.A união dos
elementos é o nascimento das coisas, a sua desunião a morte.1 Os
elementos são quatro: fogo, água, terra e ar. O nome "elemento"

82

só mais tarde, com Platão, aparece na terminologia filosófica:


Empédocles, fala de "quatro raízes de todas as coisas". Estas
quatro raízes são animadas por duas forças opostas: o Amor (Philia)
que tende a uni-las; a Desavença ou ódio (Neikos) que tende a
desuni-las.',O Amor e a Desavença são duas forças cósmicas de
natureza divina, cuja acção se alterna no universo, determinando,
com tal alternância, as fases do ciclo cósmico.

Há uma fase em que o Amor domina completamente e é o Sfero no


qual todos os elementos são unificados e enlaçados na mais perfeita
harmonia. Mas nesta fase não há nem o sol nem a terra nem o mar,
porque não há mais que um todo uniforme, uma divindade que goza
da sua soledade (fr. 27, Diels). A acção da Desavença rompe esta
unidade e começa a introduzir a separação dos elementos. Mas
nesta fase a separação não é destrutiva: até certo ponto, ele
determina a formação das coisas que existem no nosso mundo, o
qual é produto da acção combinada das duas forças e fica a meio
caminho do reino do Amor e do reino do ódio. Continuando o ódio a
agir, as próprias coisas se dissolvem e tem-se o reino do caos: o
puro domínio do ódio. -Mas então cabe de novo ao Amor recomeçar
a reunificação dos elementos: a meio caminho ter-se-á novamente o
mundo actual, mesclado de ódio e de amor e finalmente regressar-
se-á ao Sfero: no qual recomeçará um novo ciclo. Aristóteles
observou (Met., 1. 4, 985 a, 25) Que Empédocles não é coerente
porque admite ao mesmo tempo que o Amor crie o mundo numa volta
e o destrua na outra; e assim o (dioJ Mas Aristóteles faz esta
observação porque identifica o Amor e o ódio respectivamente com
o Bem e o Mal (1b., 985 a, 3). Em Empédocles, tal identificação não
existe. Empédocles está bem longe de admitir que o Amor, e só o
Amor, é o princípio

83

do Cosmos: como Heraclito está convencido que a divisão dos


elementos, o ódio, a luta, têm uma parte importante na constituição
do mundo. "Estas duas coisas, escreveu ele, são iguais e igualmente
originárias e tem cada uma o seu valor e o seu carácter e
predominam alternadamente no volver do tempo" (fr. 17, v. 26,
Diels).

Os quatro elementos e as duas forças que os movem são ainda as


condições do conhecimento humano. O princípio fundamental do
conhecimento é que o semelhante se conhece com o semelhante.
"Nós conhecemos a terra com a terra, a água com a água, o éter
divino com o éter, o fogo destruidor com o fogo, o amor com o amor
e o ódio funesto com o ódio" (fr. 109).' O conhecimento realiza-se
por meio do encontro entre o elemento que existe no homem e o
mesmo elemento que existe no exterior do homem. Os eflúvios que
provêm das coisas produzem a sensação quando se aplicam aos
poros dos órgãos dos sentidos pela sua grandeza;'de outro modo
passam despercebidos (Diels, A 86). Empédocles não faz qualquer
distinção entre o conhecimento dos sentidos e o do intelecto;
também este último se realiza da mesma maneira por um encontro
dos elementos externos e internos.

Em as Purificações Empédocles retoma a doutrina órfico-pitagórica


da metempsicose. Há uma lei necessária de justiça, que faz expiar
aos homens, através de uma série sucessiva de nascimentos e de
mortes, os pecados de que se mancharam (fr. 115). Empédocles
apresenta esta doutrina como o seu destino pessoal: "Fui em dada
época menino e menina, arbusto e pássaro e silencioso peixe do mar"
(fr. 117). E lembro saudosamente a felicidade da antiga morada: "De
que honras, de que alturas de felicidade eu caí para errar aqui,
sobre a terra, entre os mortais" (fr. 119).

84

§ 22. ANAXÁGORAS
Anaxágoras de Clazómenes, nascido em 499-98 a.C. e falecido em
428-27, é apresentado pela tradição como um homem de ciência
absorto nas suas especulações e alheio a toda actividade prática.
Para poder ocupar-se das suas investigações cedeu todos os seus
haveres aos parentes. Interrogado acerca da finalidade da sua vida
respondeu orgulhosamente que era viver "para contemplar o sol, a
lua e o céu". Aos que o exprobravam por nada lhe importar a sua
pátria respondeu: "A minha pátria importa-me muitíssimo",
indicando o céu com a mão (Diels, A 1). Foi o primeiro a introduzir a
filosofia em Atenas, que era então governada por Péricles, 1 de
quem foi amigo e mestre; mas, acusado de impiedade pelos
inimigos de Péricles e forçado a regressar à Jónia, fixou residência
em Lampsaco. Restam-nos alguns fragmentos do primeiro livro da
sua obra Sobre a natureZa.
- > 1 Também Anaxágoras aceita o principio de Parménides da
substancial imutabilidade do ser.'!"A respeito do nascer e do
perecer, diz ele (fr. 17), os gregos não têm uma opinião
exacta.)Nenhuma coisa nasce e nenhuma perece, mas todas se
compõem de coisas já existentes ou se decompõem nelas. A E assim
se deveria antes chamar reunir-se ao nascer e separar-se ao
perecer". Como Empédocles, admite que os elementos são
qualitativamente distintos uns dos outros, mas à diferença de
Empédocles, considera que esses elementos são partículas invisíveis
que denomina sementes.1 Uma consideração filosófica está na base
da sua doutrina. Nós utilizamos um alimento simples e de uma só
espécie, o pão e a água, e deste alimento formam-se o sangue, a
carne, as peles, os ossos, etc. É preciso, portanto, que no alimento
se encontrem as partículas geradoras de todas as partes do nosso

85

corpo, partículas visíveis à mente., Anaxágoras substituiu assim


como fundamento da física a consideração cosmológica pela
consideração biológica. As partículas elementares, na medida em
que são semelhantes ao todo que constituem, foram chamadas por
Aristóteles homeomerias, -- -
- - A primeira característica das sementes ou homeomerias é a sua
infinita divisibilidade, a segunda característica é a sua infinita
agregabilidade. Por outras palavras não se pode, segundo
Anaxágôras, chegar a elementos indivisíveis com a divisão das
sementes, como não se pode chegar a um todo máximo com a
agregação das sementes, todo tal que não seja possível haver maior.
Eis o fragmento famoso em que Anaxágoras exprime este conceito:
"Não há um grau mínimo do pequeno mas há sempre um grau menor,
sendo impossível que o que é deixe de ser por divisão. Mas também
do grande há sempre um maior. E o grande é igual ao pequeno em
composição. Considerada em si mesma, toda a coisa é a um tempo
pequena e grande" (fr. 3, Diels).'Como se vê, a infinita
divisibilidade, que Zenão assumia para negar a realidade . das
coisas, é assumida por Anaxágoras como a própria essência da
realidade. 1 A importância matemática deste conceito é evidente.
Por um lado, a noção que se possa obter sempre por divisão, uma
quantidade mais pequena do que toda a quantidade dada, é o
conceito fundamental do cálculo infinitesimal. Por outro lado, que
toda a coisa possa ser. chamada grande ou pequena conformemente
ao processo de divisão ou de composição por que está envolvida, é
uma afirmação que implica a relatividade dos conceitos de grande e
pequeno.

Uma vez que nunca se chega a um elemento último e indivisível,


também jamais se alcança, segundo Anaxágoras, um elemento
simples, isto é, um elemento qualitativamente homogéneo que seja,

86
por exemplo, somente água ou somente ar. "Em toda a coisa
diz ele, há sementes de todas as coisas" (fr. 11). A natureza de uma
coisa é deterninada pelas sementes que nela prevalecem: parece
ouro aquela em que prevalecem as partículas de ouro, embora haja
nela partículas de todas as outras substâncias.

No princípio as sementes estavam mescladas entre si


desordenadamente e constituíam uma multidão infinita, quer no
sentido da grandeza do conjunto, quer no sentido da pequenez de
qualquer parte sua. NEsta mistura caótica em imóvel; para nela
introduzir o movimento e a ordem interveio o Intelecto (fr. 12).
Para Anaxágoras o Intelecto está totalmente separado da matéria
constituída pelas sementes. Ele é simples, infinito e dotado de
força própria; e serve-se desta força para operar a separação dos
elementos. Mas porque as sementes são divisíveis até ao infinito, a
separação de partes operada pelo Intelecto não elimina a mescla: e
assim agora como no principio "todas as coisas estão juntas" (fr. 6).
Pode perguntar-se, a ser assim, em que coisa consiste a ordem que o
Intelecto dá ao universo. A resposta de Anaxágoras é que esta
ordem consiste na relativa prevalência, que as coisas do mundo
mostram, de uma certa espécie de sementes: por exemplo, a água é
assim porque contém uma prevalência de sementes de água, embora
contenha ainda sementes de todas as outras coisas. Por esta
prevalência, que é o efeito da acção ordenadora do Intelecto, se
determina ainda a separação e a oposição das qualidades, por
exemplo do raro e do denso, do frio e do quente, do escuro e do
lunÍnoso, do húmido e do seco (fr. 12, Diels). ,: 1 Empédocles
explicara o conhecimento por meio do princípio da semelhança:
Anaxágoras explica-o por meio dos contrários. Nós sentimos o frio
pelo quente, o doce pelo amargo e toda a qualidade pela

87
qualidade oposta. Visto que toda a dissenção acarreta dor, toda a
sensação é dolorosa e a dor acaba por se sentir com a longa duração
ou com o excesso da sensação (Diels, A 29).

A própria constituição das coisas introduz um limite no nosso


conhecimento; não podemos perceber a multiplicidade das sementes
que constituem cada uma delas: pois que Anaxágoras diz que "a
fraqueza dos nossos sentidos impede-nos de alcançar a verdade"
(fr. 21 a); e, com efeito, os sentidos mostram-nos as sementes que
predominam na coisa que está ante nós e fazem-nos perceber a sua
constituição interna.

A importância de Anaxágoras reside em ter ele afirmado um


princípio inteligente como causa da ordem do mundo. Platão (Féd. 97
b) elogia-o por isto e Aristóteles diz dele pelo mesmo motivo:
"Aquele que disse: "Também na natureza, como nos seres viventes,
há um Intelecto causa da beleza e da ordem do universo", fez
figura de homem sensato e os predecessores, em comparação com
ele, parecem gente que fala à toa" (Met., 1, 3,
984 b). Mas Platão confessa a sua desilusão ao constatar que
Anaxágoras não se serve do intelecto para explicitar a ordem das
coisas e recorre aos elementos naturais, e Aristóteles diz de
maneira análoga (lb., 1, 4, 985 a, 18) que Anaxágoras utiliza a
inteligência como se se tratasse de um deus ex machina todas as
vezes que se vê embaraçado para explicar qualquer coisa por meio
das causas naturais, ao passo que nos outros casos recorre a tudo,
excepto ao Intelecto. Platão e Aristóteles indicaram assim, com
toda a justiça, a importância e os limites da concepção de
Anaxágoras. Contudo, permanecendo embora preso ao método
naturalista da filosofia jónica, Anaxágoras inovou radicalmente a
concepção do mundo próprio daquela filosofia,
88

admitindo uma inteligência divina separada do mundo e causa da


ordem deste.

§ 23. OS ATOMISTAS

A escola de Mileto não findou com Anaxímenes; de Mileto provém


ainda Leucipo (se bem que alguns escrapres antigos afirmem, ser de
Eleia ou de Abdera o fundador do atomismo, que pode considerar-se
o último e mais maduro fruto da pesquisa naturalista iniciada com a
escola de Mileto. Sabe-se tão pouco de Leucipo que até foi possível
duvidar da sua existência. Epicuro (Diels, 67, A 2) diz que nunca
houve um filósofo com este nome; e esta opinião foi também
retomada por historiadores recentes. Segundo testemunhos
antigos, foi contemporâneo de Empédocles e de Anaxágoras e
discípulo de Parménides. Os seus escritos devem ter-se confundido
com os de Demócrito a quem se unira para indicar os dois
fundadores do atomismo antigo.

Demócrito de Abdera foi o maior naturalista do seu tempo.


contemporâneo de Platão, pelo qual, todavia, nunca foi nomeado. Ele
próprio nos diz (fr. S. Dieis) que era ainda jovem, quando
Anaxágoras era velho; o seu nascimento situa-se em 460-59 a.C..
Das muitas obras que têm o seu nome, e de que temos numerosos
fragmentos, O grande ordenamento, O pequeno ordenamento,
Sobre a inteligência, Sobre as formas, Sobre a bondade da alma,
etc., nem todas são, muito provavelmente, devidas a ele; algumas
expõem a doutrina geral da escola. A fama de Demócrito como
homem de ciência fez com que a sua figura fosse estilizada na de
um sábio completamente distraído da prática da vida. Horácio (Ep.,
1, 12, 12) conta que rebanhos de gado devastavam, pastando, os
campos de
89

Demócrito, enquanto a mente do sábio errava por sítios remotos.


Na partilha da rica herança paterna quis que a sua parte fosse em
dinheiro e assim recebeu menos, tendo gasto tudo nas suas viagens
ao Egipto e junto dos Caldeus. Quando o pai ainda era vivo,
costumava recolher-se a um casinhoto campestre que servia
também de estábulo, e aqui ficou uma vez sem reparar num boi que
o pai lá prendera à espera de ele o levar ao sacrifício (Diels, 68, A
1). O espírito levemente zombeteiro desta anedota desenha-o como
o tipo do sábio distraído.

Parece que Leucipo lançou os fundamentos da doutrina e que


Demócrito, desenvolveu depois estes fundamentos quer na pesquisa
física quer na pesquisa moral. Os atomistas concordam com o
princípio fundamental do eleatismo de que só o ser é mas decidem
reportar este principio à experiência sensível e servir-se dela para
explicar os fenómenos. Assim é que conceberam o ser como o pleno,
o não-ser como o vazio e consideram que o pleno e o vazio são os
princípios constitutivos de todas as coisas.! Todavia, o pleno não é
um todo compacto: é formado por um número infinito de elementos
que são invisíveis pela pequenez da sua massa. Se estes elementos
fossem divisíveis até ao infinito, dissolver-se-iam no vazio; devem,
por conseguinte, ser indivisíveis, e por isso são chamados átomos.,
Só os átomos
são eternamente contínuos, os outros corpos não são contínuos
porque resultam do simples contacto dos átomos e podem, por isso,
ser divididos. A diferença entre os átomos não é qualitativa como a
das sementes de Anaxágoras, mas quantitativa. Os átomos não
diferem entre si por natureza mas tão somente por forma e
grandeza. Eles determinam o nascimento e a morte das coisas pela
união e pela desagregação; determinam a diversidade e a mudança
delas pela sua ordem

90

e pela sua posição. 1 Segundo a comparação de Aristóteles (Met., 1,


4, 985 b), são semelhantes às letras do alfabeto; que diferem entre
si pela forma e dão origem a palavras e a discursos diversos
dispondo-se e combinando-se diversamente. Todas as qualidades
dos corpos, dependem, portanto, ou da figura dos átomos ou da
ordem e da combinação deles, Pelo que nem, todas as qualidades
sensíveis são objectivas, quer dizer não pertencem
verdadeiramente às coisas que se provocam em nós. São objectivas
as qualidades próprias dos átomos: a forma, a dureza, o número, o
movimento; ao contrário o frio, o calor, os sabores, os odores, as
cores são simplesmente aparências sensíveis, provocadas, é certo,
por especiais figuras ou combinações de átomos, mas não
pertencentes aos próprios átomos (fr. 5).

Todos os átomos são animados de um movimento espontâneo, pelo


qual se chocam e ricocheteiam dando ou em ao nascer, ao perecer e
ao mudar de coisas Mas o movimento é determinado por leis
imutáveis. "Nenhuma coisa, diz Leucipo (fr. 2), acontece sem razão,
antes tudo acontece por uma razão e necessariamente". O
movimento originário dos átomos, fazendo-os girar e chocar-se em
todas as direcções, produz um vértice, do qual as partes mais
pesadas são arrastadas para o centro e as outras são, ao
contrário, repelidas para a periferia. O seu peso, que as faz tender
para o centro, é portanto um efeito do movimento vertical em que
são arrastadas. Desta maneira se formaram infinitos mundos que
incessantemente se geram e se dissolvem.

O movimento dos átomos explica também o conhecimento humano. A


sensação nasce da imagem (idõla) que as coisas produzem na alma
por meio de fluxos ou correntes de átomos que emanam delas. Toda
a sensibilidade se reduz por isso ao tacto;

91

porque todas as sensações são produzidas pelo contacto, com o


corpo do homem, dos átomos que provêm das coisas. Mas o próprio
Demócrito não se satisfaz com este conhecimento, ao qual
está necessariamente limitado. "Em verdade, diz ele, nada
sabemos de nada, pois a opinião vem de fora para cada qual" (fr. 7).
"É preciso conhecer o homem com estes critérios: que a verdade
fica longe dele" (fr. 6). E, com efeito, as sensações de que deriva
todo o conhecimento humano mudam de homem para homem, mudam
até no mesmo homem conforme as circunstâncias, pelo que não
fornecem um critério absoluto do verdadeiro e do falso (Diels,
68 A 112). Estas limitações não respeitam, contudo, ao
conhecimento intelectual. Ainda que sujeito às condições físicas que
se observam no organismo (Diels, 68 A 135), este conhecimento é,
todavia, superior à sensibilidade, porque permite captar, para lá das
aparências, o ser do mundo: o vazio, os átomos e o seu movimento.
Aí onde termina o conhecimento sensível que, quando a realidade se
subtiliza e tende a resolver-se nos seus últimos elementos, se torna
ineficaz, começa o conhecimento racional, que é um órgão mais
subtil e alcança a própria realidade (Demócr., fr. 11). A antítese
entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual é assim
talhada como a que existe entre o carácter aparente e convencional
das qualidades sensíveis e a realidade dos átomos e do vazio. "Por
convenção fala-se, diz Demócrito (fr. 125), de cor, de doce, de
amargo; na realidade, há só átomos e vazio". Desta maneira,
correspondentemente ao contraste entre aparência e realidade, se
mantém no atomismo o contraste entre conhecimento sensível e
conhecimento intelectual, não obstante a sua comum redução a
factores mecânicos; e ambos estes contrastes são inferidos do
eleatismo.

92

O atomismo representa a redução naturalista do eleatismo. Fez sua


a proposição fundamental do eleatismo: o ser é necessidade; mas
compreendeu esta proposição no sentido da determinação causal.
Parménides exprimia praticamente o sentido da necessidade às
noções de justiça ou de destino.
O atomismo identifica a necessidade com a acção das causas
naturais. Do eleatismo, o atomismo infere ainda a antítese entre
realidade e aparência; mas esta própria antítese é conduzida ao
plano da natureza e a realidade de que se fala é a dos elementos
indivisíveis da própria natureza. O resultado destas
transformações, que vai além das intenções dos próprios atomistas,
é o começo da constituição da pesquisa naturalista como disciplina
em si; e da distinção da pesquisa filosófica como tal. A constituição
de uma ciência da natureza como disciplina particular, tal como
aparece em Aristóteles, é preparada pela obra dos atomistas, que
reduziram a natureza a pura objectividade mecânica, com a
exclusão de qualquer elemento mítico ou antropomórfico. A prova
desta inicial separação da ciência da natureza da ciência do homem
temo-la no facto de Demócrito não estabelecer qualquer relação
intrínseca entre uma e a outra.

A ética de Demócrito não tem, de facto, relação alguma com a sua


doutrina física. O mais elevado bem para o homem é a felicidade; e
esta não reside nas riquezas, mas somente na alma (fr. 171). Não
são os corpos e a riqueza que nos tornam felizes, mas sim a justiça
e a razão, e aí onde falta a razão, não se sabe fruir a vida nem
superar o terror da morte. Para os homens a alegria nasce da
medida do prazer e da proporção da vida: os defeitos e os excessos
tendem a perturbar a alma e a gerar nela movimentos intensos. E as
almas que se movimentam de um extremo ao outro, não são
constantes nem contentes (fr. 191).

93

A alegria espiritual, a ataymia, não tem por conseguinte nada que


ver com o prazer (edoné): "o bem e o verdadeiro-diz Demócrito-são
idênticos para todos os homens, o prazer é diferente para cada um
deles (fr. 69). Pelo que o prazer não é bem em si mesmo: necessário
é que sejha somente o que procede do belo (fr. 207). A ética de
Demócrito está, assim, a grande distância da do hedonismo que
poderíamos aguardar Como corolário do seu naturalismo teorético.
Pelo contrário, ao decidido objectivismo que é a directriz de
Demócrito no domínio da pesquisa naturalista corresponde, na ética,
um igualmente decidido subjectivismo moral. O guia da acção moral
é, segundo Demócrito, o respeito (aidos) para consigo mesmo. "Não
deves ter respeito pelos outros homens mais que por ti próprio, nem
proceder mal quando ninguém o saiba mais que quando o saibam; mas
deves ter por ti mesmo o máximo respeito e impor à tua alma esta
lei: não fazer aquilo que não se deve fazer" (fr. 264). Aqui a lei
moral está colocada na pura interioridade da pessoa humana, que ao
invés se faz lei a si própria mediante o conceito de respeito para
consigo mesmo. Este conceito, fundamental para compreender o
valor e a dignidade humana, substitui o velho conceito grego do
respeito para com a lei da polis, e mostra como a pesquisa moral de
Demócrito se move em direcção antitética da sua pesquisa física e
como, por isso, se iniciou a diferenciação da ciência natural da
filosofia.

Um outro traço é notável na ética de Demócrito: o cosmopolitismo.


"Para o homem sábio diz ele-toda a terra é utilizável, porque a
pátria da alma excelente é todo o mundo" (fr. 247). Reconhece,
todavia, o valor do estado e diz que nada é preferível a um bom
governo, uma vez que o governo abrange tudo: se ele se mantém,
tudo

94

se mantém; se ele cai tudo perece (fr. 252). E declara que é


necessário preferir viver pobre e livre numa democracia a viver rico
e escravo numa oligarquia (fr. 251). A superioridade que ele atribui
à vida exclusivamente dedicada à pesquisa científica torna-se
evidente pelas suas ideias sobre o matrimónio. Este é condenado
por ele, na medida em que se funda sobre as relações sexuais que
diminuem o domínio do homem sobre si mesmo, e na medida em que
a educação dos filhos impede a dedicação aos trabalhos mais
necessários, enquanto o sucesso da sua educação continua duvidoso.
Aqui a preocupação de Demócrito é evidentemente a de
salvaguardar a disponibilidade do homem para consigo mesmo que
torna possível o empenho na pesquisa científica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 21. Os fragmentos de Empédocles, in Diels, cap. 31. - ZELLER-


NESTLE, 1, 939 segs.; GoMPERZ, I,
241 segs.; BURNET, 229 segs.; BIGNONE, Empédocle ,(estudo,
crítico, trad. e comentário dos testemunhos e dos fragmentos),
Turim, 1916; G. COLLI, E.; Diza,
1949; W. KRANZ, E.; Zurique, 1949; J. ZAFIRO PAULO, E. de
Agrigento. Paris, 1953; G. NÉLOD, E. de Agrigento, Bruxelas, 1959.

§ 22. Os fragmentos de Anaxágoras, in D=, cap. 59-ZELLER-


NESTLE, 1, 1195, segs.; GomPERZ, I,
222 segs.; BURNET 287 segs.; CLEVE, The Philosophy of
Anaxagoras. An Attempt at Reconstruction, Nova-lorque, 1949.
§ 23. Os fragmentos dos atomistas, in DIELS, cap. 67 (Lepcipo) e
cap. 68 (Demócrito), trad. para o italiano por V. E. ALFIERI, Bafi,
1936. Negou a existência de Leucipo: R.HODE, Meine Schriften, 1,
205, em 1881. Contra ele: DIELS, in "Rhein. Mus." 1887,
1 segs.. Sobre outros desenvolvimentos do problema: HOWALD,
Festchrift f. Joel, 1934; A. G. M. V. MELSEN, From Atonws to
Atom, Pittsburgh, 1952; V. E. ALI=RI, Atomos idea, Florença, 1953.

95

vi

A SOFíSTICA

§ 24. CAráCTER DA SOfíSTICA

Dos meados do século V até aos fins do século IV, Atenas é o


centro da cultura grega. A vitória contra os Persas abre o período
áureo do poder ateniense. A ordem democrática tornava possível a
participação dos cidadãos na vida política e tornava preciosos os
dotes oratórios que permitem obter o êxito. Os sofistas vêm ao
encontro da necessidade de uma cultura adaptada à educação
política das classes.

A palavra sofista não tem nenhum valor filosófico determinado e


não indica uma escola. Originariamente significou apenas sábio e
empregava-se para indicar os Sete Sábios, Pitágoras e quantos se
assinalaram por qualquer actividade teorética ou prática. No
período e nas condições que indicamos, o termo assume um
significado especifico: sofistas eram aqueles que faziam profissão
da sabedoria e a ensinavam mediante remuneração. O lugar da
sofística na história da filosofia não apresenta por isso
97

analogia com o das escolas filosóficas anteriores ou


contemporâneas. Os sofistas influenciaram poderosamente, é certo,
o curso da investigação filosófica, mas isto aconteceu por modo
inteiramente independente do seu intento, que não era teorético,
mas apenas prático-educativo. Os sofistas não podem relacionar-se
com as investigações especulativas dos filósofos jónios, mas com a
tradição educativa dos poetas, a qual se desenvolvera
ininterruptamente de Homero a Hesíodo, a Sólon e a Píndaro, Todos
eles orientaram a sua reflexão para o homem, para a virtude e para
o seu destino e retiraram, de tais reflexões, conselhos e
ensinamentos. Os Sofistas não ignoram esta sua origem ideal
porque são os primeiros exegetas das obras dos poetas e vinculam a
eles o seu ensinamento. Assim Protágoras, no diálogo homónimo de
Platão, expõe a sua doutrina da virtude mediante o comentário a uns
versos de Simonides.
"Os sofistas foram os primeiros que reconheceram -o valor
formativo do saber e elaboraram o conceito de cultura (paideia),
que não é soma de noções, nem tão-pouco apenas o processo da sua
aquisição, mas formação do homem no seu ser concreto, como
membro de um povo ou de um ambiente social.)Os sofistas foram,
pois, mestres de cultura. Mas a cultura, objecto da sua ensinança,
era a que era útil à classe dirigente da cidade em que tinha lugar o
seu ensino: por isso era pago. 'Para que o seu ensino fosse não só
permitido, mas ainda requerido e recompensado, os sofistas tinham
de inspirá-lo nos valores próprios da comunidade onde o
ministravam, sem tentar críticas ou indagações que os colocassem
em choque com tais valores.Por outro lado, precisamente por esta
situação, estavam em condições de se darem conta da diversidade
ou heterogeneidade de tais valores; tal quer dizer, também, das
suas limitações. Eles podiam ver
98

que duma cidade a outra, de um povo a outro, muitos dos valores em


que assenta a vida do homem sofrem variações radicais e tornam-se
incomensuráveis entre si. A natureza relativista das suas teses
teóricas não é mais que a expressão duma rendição fundamental da
sua ensinança. Por outro lado, consideram-se "sábios" precisamente
no sentido antigo e tradicional do termo, isto é, no sentido de
tornar os homens hábeis nas suas tarefas, aptos para viver em
conjunto, capazes de levar a melhor nas competições civis.
Certamente, sob este aspecto, nem todos os sofistas manifestam,
na sua personalidade, as mesmas características, Protágoras
reivindicava para os sábios e para bons oradores a tarefa de
guiar e aconselhar para o melhor a própria comunidade humana
(Teet., 167 c). Outros sofistas colocavam explicitamente a sua obra
ao serviço dos mais poderosos e dos mais sagazes. Em qualquer dos
casos o interesse dos sofistas limitava-se à esfera das ocupações
humanas e a própria filosofia considerada por eles como um
instrumento para se moverem habilmente nesta esfera.

No górgias platónico, Càlicles afirma que se estuda a filosofia


unicamente "para a educação própria" e que por isso é conveniente
na idade juvenil, mas torna-se inútil e danosa quando cultivada para
lá desse limite, pois impede o homem de tornar-se experiente nos
negócios públicos e privados e em geral em tudo o que concerne à
natureza humana (484 e-485 d). -"-")Por motivo idêntico, O
Objecto do ensino sofístico limitava-se a disciplinas formais, como
a retórica ou a gramática, ou a noções várias e brilhantes mas
desprovidas de solidez científica, como as que podiam revelar-se
úteis na carreira de um advogado ou de um homem políticO.
a sua criação fundamental foi a retórica, isto é, a arte de
persuadir,
99

independentemente da validade das razões adoptadas. com a


retórica afirmavam a independência e a omnipotência: a
independência de todo o valor absoluto, cognoscitivo ou moral; a
omnipotência a respeito de todo o fim a alcançar, Mas pela própria
exigência desta arte, o homem guinda-se ao primeiro lugar na
atenção dos sofistas. O homem é considerado não já como um
fragmento da natureza ou do ser, mas nos seus caracteres
específicos: assim, se a primeira fase da filosofia grega fora,
prevalentemente, cosmológica ou ontológica, com os sofistas inicia-
se uma fase antropológica.

PROTÁGORAS

Protágoras de Abdera foi o primeiro que se intitulou sofista e


mestre de virtude. Segundo Platão, que nos apresenta a sua figura
no diálogo que leva o seu nome, era muito mais velho do que
Sócrates: o seu apogeu situa-se em 444-40. Ensinou durante 40
anos em todas as cidades da Grécia, deslocando-se de uma para
outra. Esteve repetidas vezes em Atenas, mas por fim foi acusado
de ateísmo e obrigado a abandonar a cidade. Morreu afogado com
70 anos quando se dirigia para a Sicilia. Platão deixou-nos, no
diálogo intitulado com o seu nome, um retrato vivo, ainda que
irónico, do sofista. Representa-o como homem do mundo, cheio de
anos e de experiências, grandiloquente, vaidoso, mais preocupado,
nas discussões, em obter a todo o custo um êxito pessoal do que a
alcançar a verdade. A obra principal de Protágoras, RacioCínios
demolidores, também citada com o título Sobre a verdade ou sobre
o ser. Atribui-se a Protágoras uma obra Sobre os deuses. Dos
escritos de Protágoras poucos fragmentos restam.

100
expressou o postulado fundamental do ensino sofistico no famoso
princípio com que iniciava a obra Sobre a verdade: "O homem é a
medida de todas as coisas (chrémata), das coisas que são enquanto
são, das coisas que não são enquanto não são" (fr. 1, Dielsy. '

O significado desta tese famosa foi aclarado pela primeira vez por
Platão, cuja interpretação continuou e continua a ter o favor.
Segundo Platão, Protágoras pretendia dizer que "tais como as
coisas singulares me aparecem, tais são para mim, e quais te
aparecem, tais são para ti: dado que homem tu és e homem sou"
(Teet., 152 a); e que portanto identificava aparência e sensação,
afirmando que aparência e sensação são sempre verdadeiras porque
"a sensação é sempre da coisa que é" (1b., 152 c); é, entende-se,
para este ou para aquele homem. Aristóteles (Met., IV, 1, 1053 a, 31
segs.) e com ele todas as fontes antigas confirmam
substancialmente a interpretação platónica. Esta é aprovada
também pela crítica que, segundo um testemunho de Aristóteles
(lb., LII, 2, 997 b, 32 segs.). Protágoras dirigia à matemática,
observando que nenhuma coisa sensível tem a qualidade que a
geometria atribui aos entes geométricos e que, por exemplo, não
existe uma tangente que toque a, circunferência num só ponto,
como quer a geometria (fr. 7. Diels). Nesta crítica, como é óbvio,
Protágoras valia-se das aparências sensíveis para julgar da validade
das proposições geométricas.

Segundo o mesmo Platão, também aqui seguido quase unanimente


pela tradição posterior, o pressuposto da doutrina de Protágoras
era o de Heraclito: o incessante fluir das coisas. O Teeteto
platónico contém também uma teoria da sensação elaborada
segundo este pressuposto: a sensação seria o encontro de dois
movimentos, o do agente, isto é do objecto, e o do paciente, isto é
do sujeito.
101

Dado que os dois movimentos continuam depois do encontro, nunca


serão duas sensações iguais quer para homens diferentes quer para
o mesmo homem (Teet., 182 a). Não sabemos se esta doutrina pode
referir-se a Protágoras: todavia também ela é uma confirmação da
identidade que Protágoras estabelecia entre aparência e sensação.
É por isso bastante claro que mundo da doxa (isto é, da opinião),
que para o caso compreende as aparências sensíveis e todas as
crenças que nelas se fundam, é aceite por Protágoras tal como se
apresenta; e que ele, como os outros sofistas se recusa a proceder
para lá dele e instituir uma pesquisa que de qualquer modo o
transcenda: Esse é o mundo das ocupações humanas em que
Protágoras e todos os sofistas entendem mover-se e permanecer. O
agnosticismo religioso de Protágoras é uma consequência imediata
desta limitação do seu interesse à esfera da experiência humana.
Dos deuses -dizia Protágoras -não estou em posição de saber nem
se existem nem se não existem nem quais são: efectivamente
muitas coisas impedem sabê-lo: não só a obscuridade do problema
mas a brevidade da vida humana" (fr. 4, Diels). A "obscuridade" de
que fala Protágoras consiste provavelmente no próprio facto de que
o divino transcende a esfera daquela experiência humana à qual,
segundo Protágoras, é limitado o saber.

Todavia, estes esclarecimentos não são suficientes ainda para


compreender o alcance do principio protagórico. O interesse de
Protágoras, como o de todos os sofistas, não é puramente
gnoseológico-teorético. Os problemas que Protágoras toma a peito
são os dos tribunais, da vida política e da educação: isto é, os
problemas da vida social que surgem no interior dos grupos humanos
ou nas relações entre os grupos. O homem que toma em
consideração é certamente o indivíduo (e não,
102

como queria Gomperz, o homem em geral ou a natureza humana);


mas não o indivíduo isolado, fechado em si como uma mónada, antes
o indivíduo que vive juntamente com os outros; por isso deve ser
capaz ou tornar-se capaz de afrontar os problemas desta
convivência. Seria por isso arbitrário restringir o princípio de
Protágoras à relação entre o homem e as coisas naturais: é muito
mais correcto entendê-lo no seu alcance mais vasto, como
compreendendo todo e qualquer tipo de objecto sobre que recaí
uma relação inter-humana, compreendidos os objectos que se
chamam bons e valorosos. No mesmo significado literal da palavra
chrémata usada por Protágoras, os bens e os valores são
compreendidos no mesmo título dos corpos ou das qualidades dos
corpos. "O homem não é apenas, desse ponto de vista, a 'medida das
coisas que se percebem, mas também a do bem, do justo e do belo.
Não há dúvida, Protágoras considerava também que tais valores são
diferentes de indivíduo para indivíduo porque tais aparecem; e que
também neste campo todas as opiniões são igualmente verdadeiras.
Na enérgica defesa que o próprio Sócrates faz de Protágoras a
meio do Teeteto, diz-se claramente que "as coisas que a cada
cidade parecem justas e belas, são também tais para ela, pois que
as considera tais" (Teet., 167 e); e esta é uma tese que já pode ser
compreendida no princípio de que o homem é a medida de tudo. Os
sofistas insistiam de bom grado (como veremos) sobre a
diversidade e a heterogeneidade dos valores que regem a
convivência humana. Um escrito anónimo, Raciocínios duplos
(composto provavelmente na primeira metade do século IV), que se
propõe demonstrar que as mesmas coisas podem ser boas e más,
belas e feias, justas e injustas, é apresentado pelo seu autor como
uma suma do ensino sofístico: "raciocínios duplos (assim se indica no
escrito)
103

em torno do bem e do mal são defendidos na Grécia por aqueles que


se ocupam da filosofia" (Diels, 90, 1 (1). Pode ser que o autor deste
escrito seguisse mais de perto as pisadas de um determinado
sofista (por exemplo de Górgias, como alguns estudiosos
defendem). mas é difícil imaginar que não se reportasse também a
Protágoras que sabemos ter escrito um livro intitulado Antilógia
(Diels. 80. fr. 5). A segunda parte do escrito é particularmente
interessante pois contém a exposição daquilo que hoje se chama o
"relativismo cultural", isto é o reconhecimento da disparidade dos
valores que presidem às diferentes civilizações humanas. Eis alguns
exemplos: Os Macedónios acham bem que as raparigas sejam
amadas e se acasalem com um homem antes de se esposarem, mas
censurável depois de casadas; para os Gregos é má tanto uma coisa
como a outra... Os Massagetos fazem em pedaços os (cadáveres)
dos genitores e comem-nos; e acreditam que é um túmulo belíssimo
ser sepultado nos próprios filhos; se ao invés alguém na Grécia
fizesse isto, seria expulso e morreria coberto de vergonha por ter
cometido uma acção feia e terrível. Os Persas consideram belo que
também os homens se adornem como as mulheres e que se juntem
com a filha, a mãe e a irmã; ao contrário os Gregos consideram
estas acções feias e imorais; etc." (Diels, 90, 2 (12); (14); (15". O
autor do escrito conclui a sua exemplificação dizendo que "se
alguém ordenasse a todos os homens que agrupassem num só lugar
todas as leis (nomoi) que se consideram más e escolhessem depois
aquelas que cada um considera boas, nem uma ficaria, mas todos
repartiriam tudo" (Diels,
2, 18). Considerações deste género não aparecem isoladas no mundo
grego e acorrem frequentemente no ambiente sofístico. Segundo
um testemunho de Xenofonte (Mem. IV, 20). Hípias negava que a
104

proibição do incesto fosse lei natural dado que é transgredida por


alguns povos vizinhos. oposição entre natureza e lei. característica
de Hípias e de outros sofistas (§ 27), não era mais que uma
consequência da concepção relativística que tais sofistas tinham
dos valores que presidiam às diferentes civilizações humanas. É-de
recordar final,--mente a este propósito que Heródoto -certamente
teve ligações com o ambiente sofistico e compartilhou a seu modo a
sua direcção iluminística-, depois de ter relatado o costume,
referindo-o aos Indianos Callati, de algumas populações darem
sepultura no seu estômago aos parentes mortos e depois de ter
posto em confronto a repugnância dos Gregos por este costume com
a repugnância daqueles Indianos pelo costume dos Gregos de
queimar os mortos, concluía com uma afirmação típica do
relativismo dos valores: "Se propusessem a todos os homens
escolher entre as várias leis e os convidassem a eleger a melhor,
cada um, depois de ter reflectido, escolheria (lei) do seu país: tanto
a cada um parecem muito melhores as próprias leis". E concluía a
sua narrativa comentando: "Assim são estas leis dos antepassados e
eu creio que Píndaro tinha razão nos seus versos: "a lei é rainha de
todas as coisas" (Hist., IH, 38).

Por isso se se tem presente, na interpretação do princípio de


Protágoras, a totalidade do ambiente sofístico (que por outro lado o
mesmo Protágoras contribui poderosamente para formar), parece
óbvio que o princípio se refere a todas as opiniões humanas
compreendidas as que se referem às qualidades sensíveis ou às
próprias coisas. Mas a heterogeneidade e a equivalência das
opiniões não significa a sua imutabilidade: as opiniões humanas são,
segundo Protágoras, modificáveis e na realidade modificam-se; e
todo o sistema político-educativo que constitui uma comunidade
humana (polis) é
105

dirigido precisamente para obter na altura própria modificações nas


opiniões dos homens. Em que sentido se tomam estas modificações?
Certamente não no sentido da verdade, porque do ponto de vista da
verdade todas as opiniões são equivalentes. Tomam-se ao contrário
e devem tomar-se no sentido da utilidade privada ou pública. Esta é
de facto a tese que vem exposta na defesa que o próprio Sócrates
faz de Protágoras no Teeteto (166 a, 168 c). E no Protágoras. diz-
se: "Corno os mestres se comportam com os alunos que ainda não
sabem escrever, traçando eles mesmos as letras sobre as tabuinhas
e obrigando-os a recalcar os traços, assim a comunidade (polis),
fazendo valer as leis inventadas pelos grandes legisladores antigos,
obriga os cidadãos a segui-las seja no mandar seja no obedecer e
pune quem se afasta delas" (Prot., 326 d). Sobre esta mesma
possibilidade de rectificação das opiniões humanas no sentido da
utilidade privada e pública, se insere, segundo a " defesa" do
Teeteto, a obra do sábio que se faz mestre dos indivíduos e da
cidade "fazendo parecer justas as coisas boas em lugar das más".
Neste sentido, a obra do sábio (ou sofista) é perfeitamente
semelhante à do médico ou do agricultor: transforma em boa uma
disposição má, faz passar os homens de uma opinião danosa aos
indivíduos e à comunidade para uma opinião útil, prescindindo
completamente da verdade ou falsidade das opiniões que, a este
respeito, são todas iguais para ele (Teet., 167 c-d). $Por isso
Protágoras apresentava-se como mestre, não de ciência, mas de
"sagacidade nos negócios privados e nos negócios públicos" (Prot.,
318 c); e por isso professava a ensinabilidade da virtude, isto é a
modificabilidade das opiniões no sentido do útil; e por isso se
afirmava (e era considerado) digno de ser recompensado com
dinheiro pela sua obra educativa
106

Depois nada há em tudo aquilo que sabemos da doutrina de


Protágoras que deixe supor que ele atribuía carácter absoluto às
formas que a utilidade reveste na vida pública ou privada do homem.
Certamente, segundo Protágoras, "toda a vida do homem tem
necessidade de ordem e de adaptação" (Prot., 326 b). Zeus teve de
enviar aos homens a arte política, fundada no respeito e na justiça,
a fim de que os homens deixassem de destruir-se reciprocamente e
pudessem viver em comunidade (lb., 322 c). Mas nem a arte política
é uma ciência nem o respeito e a justiça são objecto da ciência,
segundo Protágoras. "Respeito e justiça" são no mito a mesma coisa
que '"a ordem e a adaptação" fora do mito: podem assumir
inumeráveis formas. Na própria República de Platão o conceito de
justiça é introduzido e defendido como condição de qualquer
convivência humana, de qualquer actividade que os homens devam
desenvolver em comum, compreendida a dum bando de salteadores
e de ladrões (Rep., 351 c); e não é por acaso que um testemunho
antigo faz depender a República de Platão da Analogia de
Protágoras (fr. 5, Diels). Platão não se deteve, é certo, neste
conceito formal de justiça: todo o corpo da República é dirigido a
delimitá-lo e defini-lo tornando-o objecto de ciência e assim
absolutizando-o. Mas para Protágoras ele conservava
indubitavelmente o seu carácter formal e assim a sua fluidez; o que
significa que, para Protágoras, a própria justiça, isto é, a ordem e o
acomodamento recíproco dos homens, alcançáveis através da
rectificação que as leis e a educação impõem às suas diferentes
opiniões, pode assumir formas diversas, que a sagacidade ou a
engenhosidade humana podem descobrir ou fazer valer nas
diferentes comunidades humanas.

107
§ 26. GóRGIAS

Contemporâneo de Protágoras foi Górgias de LentinI, nascido por


volta de 484-83; ensinou primeiramente na Sicília e, depois de 427,
em Atenas e outras cidades da Grécia. Nos últimos tempos da sua
vida estabeleceu-se em Larissa, na Tessália, onde morreu com 109
anos. Foi acima de tudo um retórico, mas escreveu também uma
obra filosófica Sobre o não ser ou sobre a natureza, de que Sexto
Empírico nos conservou um longo fragmento (Adv. math., VII, 65
sgs.). Temos também fragmentos de alguns dos seus discursos, um
Encómío de Helena e uma Defesa de Palamedes.

As teses fundamentais de Górgias eram três, concatenadas entre


si: I.& Nada existe; 2.a Se algo existe não é cognoscível pelo
homem; Ia Ainda que seja cognoscível, é incomunicável aos outros.
1) Sustentava o primeiro ponto demonstrando que não existe nem o
ser nem o não-ser. Efectivamente o não-ser não existe porque se
existisse seria ao mesmo tempo não-ser e ser, o que é
contraditório. E o ser se existisse tinha de ser ou eterno ou gerado
ou eterno e gerado ao mesmo tempo. Mas se fosse eterno seria
infinito e se infinito não estaria em nenhum lugar, isto é, não
existiria de facto. Se é gerado deve ter nascido ou do ser ou do
não-ser, mas do não-ser não nasce nada; e se nasceu do ser já
existia antes, portanto não é gerado. O ser não pode ser pois nem
eterno nem gerado; não pode ser tão-pouco eterno e gerado ao
mesmo tempo porque as duas coisas se excluem. Portanto nem o ser
nem o não-ser existem. 2) Mas se o ser existe, não pode ser
pensado. Efectivamente as coisas pensadas não existem: de outro
modo existiriam todas as coisas inverosímeis e absurdas que ao
homem ocorra pensar. Mas se é verdade que aquilo que é pensado
não existe, será também

108
verdade que aquilo que existe não é pensado e que portanto, o ser.
se existe, é incognoscível.
3) Finalmente., ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável.
Efectivamente, nós expressamo-nos pela palavra. mas a palavra não
é o ser; portanto. comunicando palavras, não comunicamos o ser.

Górgias, chega assim a um nielismo filosófico total. utilizando as


teses eleáticas sobre o ser e reduzindo-as ao absurdo. Tem-se
posto em dúvida se este níilismo representa verdadeiramente uma
convicção filosófica de Górgias ou não será antes um simples
exercício retórico, uma prova de habilidade oratória. Mas não
possuímos elementos para negar o interesse filosófico de Górgias e
portanto a seriedade das suas conclusões. Tal conclusão é em certo
sentido oposta à da doutrina de Protágoras. Para Protágoras tudo é
verdadeiro, para Górgias tudo é falso. Mas na realidade o
significado das duas teses é um só: a negação da objectividade do
pensamento, portanto da validade que daí deriva na sua referência
ao ser.

Para o afastamento de tal objectividade, a palavra. particularmente


quando é dirigida pela retórica, tem uma força necessitante a que
ninguém pode resistir. Na Defesa de Helena, Górgias sustenta que
"Helena-seja porque tenha feito o que fez por amor, ou porque
persuadida pela palavra. ou porque raptada pela violência, ou porque
forçada da constrição divina - em qualquer caso escapa à acusação"
(fr. 11, 20). Aqui a força da palavra é posta ao lado da constrição
divina ou do poder do amor ou da violência como condição
necessitante que elimina a liberdade, portanto a imputabilidade de
uma acção. cA força da persuasão diz ainda Górgias-que origina a
decisão de Helena, efectivamente enquanto origina por
necessidade, não é passível de censura mas possui um
109

poder que se identifica com o desta necessidade" (fr. 12). É claro


que, segundo Górgias, a palavra tem força necessitante porque não
encontra limites ao seu poder em nenhum critério ou valor
objectivo, nalguma ideia no sentido platónico do termo: o homem
não pode resistir a ela aferrando-se à verdade ou ao bem e está
completamente desprovido de defesa nos seus confrontos.
O relativismo teorético e prático da sofística encontra aqui um
corolário importante: a omnipotência da palavra e a força
necessitante da retórica que a guia com o seu engenho infalível.
Quando Platão opõe a Górgias, no diálogo que dele se intitula, que a
retórica não pode persuadir se não daquilo que é verdadeiro e justo,
parte de um pressuposto que Górgias não partilha: isto é, que
existem critérios infalíveis e universais para reconhecer o
verdadeiro e o justo (Górgias, 455 a). Aquilo que distingue a
retórica de Górgias como arte omnipotente da persuasão, da
retórica de Platão como educação da alma para o verdadeiro e o
justo, é o pressuposto fundamental do platonismo: a existência de
ideias como critérios ou valores absolutos.

§ 27. OUTROS SOFISTAS

Mais jovens que Protágoras e Górgias são os dois contemporâneos


de Sócrates, Pródico e Hípias.

Pródico de Ceos, conhecido principalmente como autor de um Ensaio


de Sinonímica (ridícula-mente consagrado à procura de sinónimos o
representa Platão no Protágoras 337 a-c), é também autor de um
escrito intitulado Horas, no qual representa o encontro de Hércules
com a Virtude e a Depravação. Tanto uma como a outra exortavam o
herói a seguir o seu sistema de vida, mas Hércules decidia-se pela
Virtude e preferia os suores desta aos prazeres precários da
Depravação (fr. 1,Diels). Sabemos também que Pródico afirmava o
valor do esforço dirigido para a virtude e considerava a própria
virtude como uma condição imposta por um mandado divino para a
obtenção dos bens da vida. As Horas deviam conter também partes
dedicadas à filosofia da natureza e à antropologia. Em particular.
sobre este último tema. sabemos que Pródico aventura sobre a
origem da religião 1111na teoria que o fez contar entre os ateus.
"Os antigos-dizia ele -consideravam deuses. em virtude da uW~e
que deles derivava, o sol. a lua. os raios, as fontes e em geral todas
as coisas que servem para a nossa vida, como, por exemplo, para os
Egípcios. o Nilo. E por isto o pão em considerado como Demeter, o
vinho como Dionísio, a água como Poseidon. o fogo como Ef~ e a i
cada um dos bens que nos é útil" (Sesto E., Adv. math., IX, 18; cir.
Cicer, De nw. d~um, ] 37.
118).

Hípias de Élide era ao contrário famoso pela sua cultura


enciclopédica e pelo vigor da sua memória. N, diálogo platónico
Hípias Maior ele próprio declara ser frequentemente enviado pela
sua pátria como legado para tratar de negócios com outra cidade; e
gaba-se de ter ganho grandes somas com o seu ensino. Compôs
elegias e discursos de temas vários, de que possuímos fragmentos
escassamente importantes do ponto de vista filosófico. Por um
testemunho de Xenofonte (Mem., IV. 4.

5 segs.) que relata uma longa discussão entre ele e Sócrates.


sabemos que um dos seus temas preferidos era a oposição entre a
natureza (physis) e a lei (nownos). As leis não são uma coisa séria
porque não têm uniformidade e estabilidade e aqueles mesmos que
as fizeram muitas vezes as revogam. As verdadeiras leis são as que
a própria natureza prescreve e que, ainda que não sejam escritas
"são válidas em cada país e no mesmo modo".
111
Esta antítese entre as leis e a natureza torna-se o tema favorito da
geração mais jovem dos sofistas que muitas vezes se vale dela para
defender uma ética aristocrática ou directamente para tecer um
elogio da injustiça- Certo é que os sofistas, mostrando (como se
disse já no § 25) a relatividade dos valores que regem a convivência
humana e recusando-se a proceder à investigação dos valores
universais ou absolutos eram levados a ver nas leis nada mais que
convenções humanas, mais ou menos úteis mas indignas de um
reconhecimento obrigatório. Antifonte, sofista, assegurava que
todas as leis são puramente convencionais, por isso contrárias à
natureza e que o melhor modo de viver é o de seguir a natureza,
isto é de pensar no próprio útil. reservando uma reverência
puramente aparente ou formal às leis dos homens (Diels, 87, fr. 44
A, col. 4). Polo e Calicles no Górgias, Trasímaco na República
sustentam que a lei da natureza é a lei do mais forte e que as leis
que os homens fazem valer na sua convivência são convenções
dirigidas a impedir os mais fortes de se valerem do seu direito
natural. Segundo a natureza, é justiça que o forte domine o mais
fraco e siga em todas as circunstâncias sem freio o talento próprio.
e isto acontece de facto quando um homem dotado de natureza
capaz rompe as cadeias da convenção e de servo se converte em
senhor (Górgias, 484 a; República, 1, 338 b segs.). Outra actividade
dos sofistas era a erística, isto é a arte de vencer nas discussões
impugnando as afirmações do adversário sem olhar à sua verdade ou
falsidade. No Eutidemo platónico, duas figuras menores dos
sofistas, Eutidemo e Dionisorodo, são mostrados em acção nalgumas
atitudes típicas do seu repertório. Um dos lugares comuns da
eurística era o que Platão recorda também no Ménon (80 d) e ao
qual opõe a doutrina da anamnesis: isto é, que

112
não se pode indagar nem aquilo que se sabe nem aquilo que não se
sabe: porque é inútil indagar sobre aquilo que se sabe e é impossível
indagar se não se sabe que coisa indagar. A erística foi certamente
a actividade inferior dos sofistas, aquela que mais contribuiu para
os desacreditar. Todavia, também essa fazia parte da sua bagagem:
quando se nega todo o critério objectivo de indagação e se
reconhece a omnipotência da palavra, abre-se o caminho também à
possibilidade de usar a própria palavra como puro instrumento de
batalha verbal ou como simples exercício de bravura polémica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 24. Sobre o nome e conceito de Sofista, os testemunhos antigos


em Dieis, cap. 79, e a nota introdutória de M. UNTERSTEINER,
Sofisti. Testemunhos e fragmentos, texto grego, trad. -italiana e
netag, I-III,
1949-54 (falta ainda o vol. IV).

Para a bibliografia ver as notas antepostas aos volumes de


Untersteiner ou ainda a obra do mesmo autor, Os Sofistas, Turim,
1949. Sobre o valor da sofística na história da cultura grega.
JAEGER, Paideía, 1, livre II, cap. III. Sobre a lógica sofistica:
PRANTL, Geschic7ite der Logik, 1, p. 11 segs.

§ 25. Os fragmentos de Protágoras em DiELs, cap. 80;


UNTERSTEINER, cap. 2. Os discursos duplos, em DIELS, cap. 90;
UNTERSTEINER, ca-p. 10. Bibliografia sobre Protágoras, em
A. CAPUZI, Protágoras, Florença, 1955; S. ZEPPI, Protágoras e a
Filosofia do seu tempo, Florença, 1961.

§ 26. Os fragmentos de G6rgias, em DIELS, cap. 82, e em


UNTERSTEINER, cap. 4. Para a bibliografia ver as obras já
citadas.
§ 27. Os fragmentos de Pródico, em DIELS, cap. 84;
UNTERSTEINER, cap. 6; de Hipias, em DIELS, cap. 86;
UNTERSTEINER, cap. 8; de Antifonte, in DIELS, cap. 87; de
Trasímaco, em DiELs, cap. 85; UNTM,SMNER, cap. 7.

Sobre todos ver a bibliografia nas obra.s já citadas.

113

ViI

SÓCRATES

§ 28. O PROBLEMA

A data do nascimento de Sócrates é determinada pela idade que


tinha à data do processo e da condenação. Nessa data (399) tinha
setenta anos (Plat., Ap., 175; Crit., 52 e); devia ter nascido portanto
em 470 ou nos primeiros meses de 469 a.C..
O pai, Sofronisco, era escultor; a mãe, Fenarete, parteira: ele
próprio comparou depois a sua obra de mestre à arte da mãe (Teet.,
149 a). Completou em Atenas a sua educação juvenil, estudou
provavelmente geometria e astronomia; e se não foi aluno de
Anaxágoras (como queria um testemunho antigo), conheceu
certamente o escrito deste filósofo, como se depreende do Fédon
platónico (97 c). Só se ausentou de Atenas por três vezes para
cumprir os seus deveres de soldado e participou nas batalhas de
Potideia. Délios e Anfípolis. No Banquete de Platão, Alcibíades fala
de Sócrates na guerra como de um homem insensível à fadiga e ao
frio, corajoso, modesto e senhor de si mesmo no próprio momento
em que o exército era derrotado.

115

Sócrates manteve-se afastado da vida política. A sua vocação, a


tarefa a que se dedicou e a que se manteve fiel até ao final,
declarando ao próprio tribunal que se preparava para o condenar,
que não a abandonaria em caso algum, foi a filosofia; Mas ele
entende a investigação filosófica como um exame incessante de si
próprio e dos outros; a este exame dedicou todo o seu tempo, sem
nenhum ensinamento regular. Por esta tarefa, descurou toda a
actividade prática e viveu pobremente com sua mulher Xantipa e os
filhos. Todavia, a sua figura não tem nenhum dos traços
convencionais de que a tradição se serviu para delinear o carácter
de outros sábios, por exemplo, de Anaxágoras ou de Demócrito. A
sua personalidade tinha qualquer coisa de estranho (àtopon) e de
inquietante que não escapava àqueles que dele se aproximaram e o
descreveram. A sua própria aparência física chocava o ideal
helénico da alma sábia num corpo belo e harmonioso (kaUagatos):
parecia um Sileno e isto estava em estridente contraste com o seu
carácter moral e o domínio de si mesmo que conservava em todas as
circunstâncias (Banq., 215,
221). Pelo aspecto inquietante da sua personalidade, foi comparado
por Platão à tremelga do mar que entorpece quem 'a toca: do
mesmo modo provocava a dúvida e a inquietação no ânimo daqueles
que dele se aproximavam (Mén., 80).1
Todavia, este homem que dedicou à filosofia a existência inteira e
morreu por ela, nada escreveu, É indubitavelmente o maior
paradoxo da filosofia grega. Não pode tratar-se dum facto casual.
Se Sócrates nada escreveu, foi porque defende que a pesquisa
filosófica, tal como ele a entendia e praticava, não podia ser levada
por diante ou continuada depois dele, por um escrito. O motivo
autêntico da falta de actividade do Sócrates escritor pode ver-se
aflorado no Fedro (275 e) plató-

116

nico, nas palavras que o rei egípcio Thamus dirige a Theut, inventor
da escrita: "Tu ofereces aos alunos a aparência, não a verdade da
sabedoria; porque quando eles, graças a ti, tiverem lido tantas
coisas sem nenhum ensinamento, julgar-se-ão na posse de muitos
conhecimentos, apesar de permanecerem fundamentalmente
ignorantes e serão insuportáveis para os demais, porque terão não a
sabedoria, mas a presunção, da sabedoria". Para Sócrates que
entende o filosofar como o exame incessante de si e dos outros,
nenhum escrito pode suscitar e dirigir o filosofar. O escrito pode
comunicar uma doutrina, não estimular a pesquisa. Se Sócrates
renunciou a escrever, isto foi devido ainda à sua própria atitude
filosófica e faz parte essencial de tal atitude.

§ 29. AS FONTES

Esta renúncia porém coloca-nos perante o difícil problema de


caracterizar a personalidade de Sócrates através de testemunhos
indirectos. Possuímos três testemunhos principais: o de Xenofonte
nos Ditos memoráveis, de Sócrates, o de Platão que o faz falar
como personagem principal na maior parte dos seus diálogos, e o de
Aristóteles que lhe dedica breves e precisas alusões. A caricatura
que Aristófanes deu de Sócrates nas Nuvems como de um filósofo
da natureza que dá dos factos mais simples a explicação mais
complicada e como um sofista que converte os discursos mais
fracos nos mais fortes e faz triunfar os injustos sobre os justos,
quis evidentemente representar no personagem ateniense mais
popular o tipo do intelectual inovador, concentrando nele
características contraditórias que pertenciam a personagens reais
diferentes (Diógenes de Apolónia e Protágoras). Essa caricatura
não tem portanto valor histórico.

117

Xenofonte, que era escassamente dotado de espírito filosófico,


deu-nos uma imagem extremamente pobre e mesquinha da
personalidade de Sócrates; nada no seu retrato justifica a enorme
influência que Sócrates exerceu sobre todo o desenvolvimento do
pensamento humano. Por outro lado, a personalidade de Sócrates
vive poderosamente nos diálogos de Platão; mas aqui nasce
legitimamente a dúvida de que Platão pense e fale ele próprio na
figura de Sócrates e que portanto não possa encontrar-se nos seus
diálogos o Sócrates, histórico. Finalmente os testemunhos de
Aristóteles nada acrescentam a quanto já se encontra em
Xenofonte e Platão.

Durante um certo tempo, o próprio carácter insuficientemente


filosófico da apresentação de Xenofonte e o título da sua obra
pareceram uma garantia de fidelidade histórica, frente à evidência
da transfiguração a que Platão submeteu a figura do mestre,
sobretudo nalguns diálogos. Mas a brevidade das relações de
Xenofonte com Sócrates, a ineficácia evidente do ensino socrático
sobre o seu carácter e sobre o seu modo de viver (foi
substancialmente um aventureiro) e o longo período de tempo,
decorrido entre o seu discípulo e a composição do seu escrito,
fizeram surgir a suspeita de que este escrito, mais que recolha fiel
de recordações socráticas, será uma composição literária, não
isenta de intuitos polémicos (sobretudo contra Antístenes, e
fundado em boa parte sobre escritos alheios, sem excluir os
platónicos. Por outro lado, também os testemunhos de Aristóteles
parecem dependentes em boa parte de Platão e talvez mesmo do
próprio Xenofonte. De modo que a fonte fundamental para a
reconstrução do Sócrates histórico é ainda e sempre Platão. O
testemunho de Aristóteles e a representação de Xenofonte (esta
última na medida em que é corroborada pela primeira) fornecem
antes um critério para discernir e limitar aquilo que na com-

118

plexa figura que domina a obra de Platão pode efectivamente


atribuir-se ao Sócrates histórico. Assim não pode certamente
atribuir-se a este último a doutrina das ideias da qual não há indício
em Xenofonte e, em Aristóteles; e deve portanto excluir-se a
interpretação de um certo estudioso moderno que viu em Platão o
historiador de Sócrates e atribuiu, a este último o corpo central do
sistema platónico e a Platão apenas a crítica e a correcção de tal
sistema, que se iniciam com o Parménides.

§ 30. O "CONHECE-TE A TI MESMO E A IRONIA

"Sócrates chamou a filosofia do céu à terra," Estas palavras de


Cícero (Tusc., V, 4, 10) exprimem exactamente o carácter da
investigação socrática. Ela tem por objecto exclusivamente o
homem e o seu mundo; isto é, a comunidade em que vive. Xenofonte
testemunha claramente a atitude negativa de Sócrates frente a
toda a pesquisa naturalística e o seu propósito de manter-se no
domínio da realidade humana. A sua missão é a de promover no
homem a investigação em torno do homem. Esta investigação deve
tender a colocar o homem, cada homem individual, a claro consigo
mesmo, a levá-lo ao reconhecimento dos seus limites e a torná-lo
justo, isto é solidário com os outros; Por isso Sócrates fez sua a
divisa délfica "conhece-te a ti mesmo" e fez do filosofar um exame
incessante de si próprio e dos outros: de si próprio em relação aos
outros, dos outros em relação a si próprio.

A primeira condição deste exame é o reconhecimento da própria


ignorância. Quando Sócrates conheceu a resposta do oráculo que o
proclamava o homem mais sábio de todos, surpreendido andou

119

a interrogar os que pareciam sábios e deu-se conta de que a


sabedoria deles era nula. Compreendeu então o significado do
oráculo: nenhum dos homens
sabe verdadeiramente nada, mas sábio apenas quem sabe que não
sabe, não quem se ilude com saber e ignora assim até a sua própria
ignorância.

Na realidade só quem sabe que não sabe procurará saber, enquanto


os que crêem estar na posse dum saber fictício não são capazes da
investigação. não se preocupam consigo mesmos e permanecem
irremediàvelmente afastados da verdade e da virtude. Este
princípio socrático representa a antítese nítida da sofística. 1
Contra os sofistas que faziam profissão de sabedoria e pretendiam
ensiná-la aos outros, Sócrates fez profissão de ignorância: o saber
dos sofistas é um não-saber, um saber fictício privado de verdade
que dá apenas presunção e jactância e impede de assumir a atitude
submissa da investigação, a

digna dos homens meio de promoz nos outros essè reconhecimento


da própria ignorância, que é a condição da pesquisa, é a ironia. ironia
é a interrogação dirigida a descobrir no homem a sua ignorância, a
abandoná-lo à dúvida e à inquietação para obrigá-lo à pesquisa.A
ironia é o meio de descobrir a nulidade do ar fictício, de pôr a nu a
ignorância fundamental que o homem oculta até a si próprio com os
ouropéis de um saber feito de palavras e de vazio. A ironia é a arma
de Sócrates contra a vaidade do ignorante que não sabe que é tal e
por isso se recusa a examinar-se a si mesmo e a reconhecer os
limites próprios. Esta é a sacudidela que o torpedo tremelga
marinho comunica a quem a toca e sacode pois o homem do torpor e
lhe comunica a dúvida que o encaminha para a busca de si mesmo.
Mas precisamente por isso é também uma libertação.

120

Sob este aspecto da ironia como libertação do saber fictício, isto é,


daquilo que oficialmente ou comummente passa por saber ou por
ciência, insistiu justamente Kierkegaard no Conceito da ironia.
Trata-se certamente duma função negativa, do aspecto limitante e
destrutivo da filosofia socrática, mas precisamente por isso de um
aspecto que é indissolúvel da filosofia como investigação e que
portanto contribui para fazer de Sócrates o símbolo da filosofia
ocidental.

31. A MAIÊUTICA

SóCrates não se propõe portanto comunicar uma doutrina ou


complexo de doutrinas. Ele não ensina nada: comunica apenas o
estímulo e o interesse pela pesquisa] Em tal sentido compara, no
Teeteto platónico, a sua arte à da mãe, a parteira Fenarete. A sua
arte consiste essencialmente em averiguar por todos os meios se o
seu interlocutor tem de parir algo fantástico e falso ou genuíno e
verdadeiro. Ele declara-se estéril de sabedoria. Aceita como
verdadeira a censura que muitos lhe fazem de saber
-interrogar os outros, mas de nada saber responder ele próprio. A
divindade que o obriga a fazer de parteiro proíbe-o de dar à luz: E
ele não tem nenhuma descoberta a ensinar aos outros e não
pode fazer outra coisa senão ajudá-los no seu parto intelectual. E
os outros, aqueles que dele se aproximam, a princípio parecem
completamente ignorantes, mas depois a sua pesquisa torna-se
fecunda, sem que todavia aprendam nada dele.
Esta arte maiêutica não é na realidade senão a arte da pesquisa em
comum. O homem não pode por si só ver claro em si próprio. A
pesquisa que o concerne não pode começar e acabar no recinto

121

fechado da sua individualidade: pelo contrário só pode ser o fruto


de um dialogar continuo com os outros, como consigo mesmo. Aqui
está verdadeiramente a sua antítese polémica com a sofística. A
sofística é um individualismo radical. O sofista não se preocupa com
os outros senão para extorquir, a todo o custo e sem preocupar-se
com a verdade, o consenso que lhe assegura o sucesso; mas nunca
chega à sinceridade consigo próprio e com os outros. No Górgias
platónico, Sócrates compara a sofística à arte da cozinha que
procura satisfazer o paladar mas não se preocupa se os alimentos
são benéficos para o corpo! A maiêutica, é, pelo contrário,
semelhante à medicina que não se preocupa se causa dores ao
paciente contanto que conserve ou restabeleça a saúde.

Ao individualismo sofístico, Sócrates contrapõe, não o conceito de


um homem universal, um homem-razão que não tenha já nenhum dos
caracteres precisos e diferenciados do indivíduo, mas o vínculo de
solidariedade e de justiça entre os homens, pelo qual nenhum deles
pode libertar-se ou alcançar qualquer coisa de bom por si só, mas ca
um está vinculado aos outros e só pode progredir com a sua ajuda e
ajudando-os por sua vez. O universalismo socrático não é a negação
do valor dos indivíduos: é o reconhecimento de que o valor do
indivíduo não se pode compreender ;nem realizar senão nas relações
entre os indivíduos/ Mas a relação entre os indivíduos, se é tal que-
garanta a cada um a liberdade da pesquisa de si, é uma relação
fundada na virtude e na justiça. E é aqui, portanto, que o interesse
de Sócrates, enquanto entende promover em cada homem a
investigação de si, se
dirige naturalmente ao problema da virtude e da justiça.

122

§ 32. Sócrates: CIÊNCIA E VIRTUDE

A busca de si é ao mesmo tempo busca de verdade. Por outras


palavras : saber e verdade é simultaneamente investigação do
saber e da virtude. Saber e virtude identificam-se, segundo
Sócrates o homem não pode tender senão para',,-saber aquilo que
deve fazer ou aquilo que deve ser: e tal saber é a própria virtude.
Este é o princípio fundamental da ética socrática, princípio que vem
expresso, na forma mais extrema, no Protágoras de Platão. A maior
parte dos homens crêem que sabedoria e virtude são duas coisas
diferentes, que o saber não possui nenhum poder directivo sobre o
homem, e que o homem, ainda quando sabe o que é o bem, pode -ser
vencido pelo prazer e afastar-se da virtude. Mas para Sócrates
uma ciência que seja incapaz de dominar o homem e que o abandone
à mercê dos impulsos sensíveis, não é tão-pouco uma ciência. Se o
homem se entrega a estes impulsos, isto significa que ele sabe ou
crê saber que tal seja a coisa mais útil ou mais conveniente para ele.
Um erro de juízo, a ignorância portanto, é a base de toda a culpa e
de todo o vício. É um mau cálculo o que faz o homem preferir o
prazer do momento, não obstante as consequências más ou
dolorosas que daí possam derivar; e um cálculo errado é fruto de
ignorância. Quem sabe verdadeiramente, faz -bem os seus
cálculos, escolhe em cada caso o prazer melhor, aquele que não pode
ocasionar-lhe nem dor nem mal; e esse só o prazer da virtude.

Portanto, para ser virtuoso, não é necessário que o homem renuncie


ao prazer. A virtude não é a negação da vida humana, mas a vida
humana perfeita; compreende o prazer e é antes o prazer máximo.
A diferença entre o homem virtuoso e o homem que o não é, está
em que o primeiro sabe
123

fazer o cálculo dos prazeres e escolher o maior; o segundo não sabe


fazer este cálculo e entrega-se ao prazer do momento. O
utilitarismo socrático é assim um outro aspecto da polémica contra
os sofistas. A ética dos sofistas oscilava entre um franco
hedonismo como o encontramos defendido por Antifonte, por
exemplo, e por alguns interlocutores dos diálogos platónicos, e
aquela espécie de activismo da virtude que foi a tese de Pródico.
Para Sócrates, uma e outra destas duas tendências são
insustentáveis. A virtude não é puro prazer nem puro esforço, mas
cálculo inteligente. Neste cálculo, a profissão ou a defesa da justiça
não pode encontrar lugar porque a injustiça não é mais que um
cálculo errado.

Contra a identificação socrática de ciência e virtude, já Aristóteles


observava que, dessa maneira, Sócrates reconduz a virtude à razão,
enquanto que se a virtude não é tal senão com a razão, ela não se
identifica, com a própria razão (Et. Nic., 13, 1144 J

b). Aceite por Hegel (Geschichte der Phil., I, cap. II, B, 2 a), esta
critica tornou-se muito comum na historiografia filosófica e está,
entre outras coisas, no fundamento da desvalorização que
Nietzsche intentou da figura de Sócrates quando quer entrever
nele a tentativa de reduzir o instinto à razão e portanto de
empobrecer a vida (Ecee Homo). Mas na verdade tudo aquilo que se
pode censurar a Sócrates é o não ter feito as distinções entre as
actividades ou faculdades humanas que Platão e Aristóteles
introduziram na filosofia.
Para Sócrates, o homem é ainda uma unidade indivisa. O seu saber
não é apenas a actividade do seu intelecto ou da sua razão, mas um
total modo de ser e de comportar-se, o empenhar-se numa
investigação que não reconhece limites ou pressupostos fora de si,
mas encontra por si a sua disciplina, Segundo Sócrates, a virtude é
ciência, em primeiro lugar
124

porque não se pode ser virtuoso conformando-se simplesmente com


as opiniões correntes e com as regras de vida já conhecidas. É
ciência porque é investigação, investigação autónoma dos valores
sobre que deve fundar-se a vida.

§ 33. A RELIGIÃO DE SóCRATES

Para Sócrates o filosofar é uma missão divina, uma -tarefa confiada


por um mandato divino (Ap.,
29-30). Fala de um demónio, de uma inspiração divina que o
aconselha em todos os momentos decisivos da vida. Interpreta-se
comummente este demónio como a voz da consciência; na realidade
é o sentimento de uma investidura recebida do alto, própria de
quem abraçou uma missão com todas as suas forças. Por isso o
sentimento da divindade está sempre presente na investigação
socrática, como sentimento do transcendente, daquilo que está para
lá do homem e é superior ao homem, e do alto o guia e lhe oferece
uma garantia providencial.

Certamente a divindade de que fala Sócrates não é a da religião


popular dos Gregos. Ele considera que o culto religioso tradicional
faz parte dos deveres do cidadão e por isso aconselha cada qual a
ater-se ao costume da própria cidade e ele próprio se atém a ele.
Mas admite os deuses só porque admite a divindade: neles não vê
mais que encarnações e expressões do único princípio divino, ao qual
se podem pedir não já bens materiais, mas o bem, aquele que só é
tal para o homem, a virtude. E na realidade a sua fé religiosa não é
outra coisa senão a sua filosofia.

Esta religiosidade socrática não tem, óbviamente, nada a ver com o


cristianismo de que Sócrates, na velha historiografia, tem sido
frequentemente considerado o precursor Não se pode falar
125
de cristianismo se se Prescinde da revelação; e nada é mais
estranho ao espírito de Sócrates do que um saber que seja ou
pretenda ser de revelação divina. Aquilo que a divindade ordena,
segundo Sócrates é o empenho na investigação e o esforço para a
justiça; í' aquilo que ela garante é que "para o homem honesto não
existe mal nem na vida nem na morte" (Ap., 41 c). Mas, quanto à
verdade e à virtude, o homem deve procurá-la e realizá-la por si.

§ 34. A INDUÇÃO E O CONCEITO

Aristóteles caracterizou a investigação de Sócrates do ponto de


vista lógico. "Duas coisas-disse ele - (Met., XIII 4, 1078 b) se
podem com boas razões atribuir a Sócrates: os raciocínios indutivos
e a definição do universal (katholon), e ambas se referem ao
princípio da ciência." O raciocínio indutivo é aquele que, do exame
de um certo número de casos ou afirmações particulares, conduz a
uma afirmação geral que um conceito exprime. Por exemplo, no
Górgias, das afirmações de que quem aprendeu arquitectura é
arquitecto, quem aprendeu música é músico, quem aprendeu
medicina é médico, Sócrates chega à afirmação geral de que quem
aprendeu uma ciência é tal qual foi tornado pela' mesma ciência. O
raciocínio indutivo dirige-se, portanto, para a definição do conceito;
e o conceito exprime a essência ou a natureza de uma coisa, aquilo
que verdadeiramente a coisa é (SEN., Mem., IV, 6, 1).

Este procedimento, nota ainda Aristóteles, foi aplicado por


Sócrates apenas nos argumentos morais. Efectivamente ele não se
ocupa da natureza: nos argumentos morais procurou o universal e
assim levou a sua investigação para o terreno da ciência
126

(Met., 1, 6, 987 b 1). Portanto, a Sócrates cabe o mérito de ter sido


o primeiro a organizar a investigação segundo um método
propriamente cientifico.
O saber, de que quer despertar a necessidade e o interesse nos
homens, deve ser uma ciência, alcançada segundo um método
rigoroso. E efectivamente só uma ciência deste género, com a sua
perfeita objectividade, permite aos homens entenderem-se e
associarem-se na investigação comum. Só como ciência, a virtude é
ensinável (Prot., 361 b).

Foi posto em dúvida o valor do testemunho aristotélico sobre o


significado lógico da investigação socrática. As afirmações de
Aristóteles derivariam das de Xenofonte (Mem., IV, 6) e estas por
sua vez das platónicas (Fedro., 262 a-b). Por outro lado, ainda que
se atribua todo o valor aos testemunhos de Aristóteles e de
Xenofonte, não se seguiria daí que caiba a Sócrates o título de
inventor do conceito, pois que investigou apenas conceitos ético-
práticos e estes exprimem não aquilo que realmente é, mas aquilo
que deve ser: a sua obra científica não apontava para o
conhecimento, mas era reflexão crítico-normativa em torno do
fazer e do viver do homem. Ora precisamente aquilo que estas
considerações têm de verdadeiro revela o mérito indubitável de
Sócrates como iniciador da investigação científica e confirma o
testemunho de Aristóteles. E, em primeiro lugar, ainda que
Xenofonte e Aristóteles tivessem repetido substancialmente os
testemunhos de Platão, este próprio facto equivaleria à
confirmação dos mesmos por parte de homens que tinham maneira
de comprovar a sua exactidão, Xenofonte fora aluno de Sócrates e
ainda que os anos decorridos e a sua escassa capacidade filosófica o
tornassem pouco apto para compreender a personalidade do
mestre, não se pode crer que o tornassem incapaz até de
compreender o método da sua investigação. Quanto a Aristóteles
127

é difícil supor que se teria limitado a reproduzir o testemunho de


Xenofonte se este estivesse em contradição com uma tradição que,
dentro e fora do ambiente platónico, era viva e operante.

Mas a questão fundamental é a do significado que o conceito tem


para Sócrates. Indubitavelmente os conceitos que Sócrates
elaborou são todos de carácter ético-prático e referem-se ao
dever ser e não à realidade de facto. Mas qualquer conceito,
teorético ou prático, tem por objecto a essência das coisas, o seu
ser permanente ou a sua substância. Que coisa seja a substância ou
a essência é depois o problema que Sócrates deixaria em herança
aos seus sucessores e que constitui o tema fundamental da
investigação de Platão e de Aristóteles.

§ 35. A MORTE DE SÓCRATES

A influência de Sócrates exercera-se já em Atenas sobre toda uma


geração, quando três cidadãos, Meleto, Anito e Licone o acusaram
de corromper a juventude ensinando crenças contrárias à religião
-do estado. A acusação tinha escassa consistência e
teria ficado em nada, se Sócrates tivesse feito qualquer concessão
aos juízes. Não quis fazer nenhuma. Pelo contrário, a sua defesa foi
uma exaltação da tarefa educativa que havia empreendido
relativamente aos atenienses. Declarou que em caso algum
abandonaria esta tarefa, à qual era chamado por uma ordem divina.
Por uma pequena maioria, Sócrates foi reconhecido culpado. Podia
ainda partir para o exílio ou propor uma pena que fosse adequada ao
veredicto. Em vez disso, ainda que manifestando-se disposto a
pagar uma multa de três mil dracmas, declarou orgulhosamente que
se sentia merecedor de ser alimentado a expensas públicas no
Pritaneu como se fazia aos beneméritos

da cidade. Seguiu-se então. com mais forte maioria, a condenação à


morte que fora pedida pelos seus acusadores.

Entre a condenação e a execução decorreram trinta dias porque


uma solenidade sagrada impedia naquele período as execuções
capitais. Durante este tempo os amigos organizaram a sua fuga e
procuraram convencê-lo; mas recusou. Os motivos desta recusa são
expostos no Críton platónico: Sócrates quer dar com a sua
morte um testemunho decisivo a favor do seu ensinamento. Vivera
até então ensinando a justiça e o respeito pela lei; não podia com a
fuga ser injusto para com as leis da sua cidade e desmentir assim,
no momento decisivo, toda a sua obra de mestre. Por outro lado, não
temia a morte. Ainda que não tivesse uma absoluta certeza da
imortalidade da alma. nutria a esperança de uma vida depois da
morte que fosse para os homens justos melhor do que para os maus.
Tinha setenta anos; sentia que completara a sua missão, que lhe
permanecera fiel toda a sua vida e que devia dar-lhe ainda, com a
morte, a última prova de fidelidade. As suas últimas palavras aos
discípulos foram ainda um incitamento à investigação: "Se tiverdes
cuidado com vós próprios, qualquer coisa que façais será grata a
mim, aos meus e a vós mesmos, ainda que agora não vos
compremetais em nada. Mas se pelo contrário não vos preocupardes
com vós próprios e não quiserdes viver de maneira conforme àquilo
que agora e no passado vos tenho dito, fazer-me agora muitas e
solenes promessas não servirá de nada" (Fed., 115 b).

Se a Grécia antiga foi o berço da filosofia porque pela primeira vez


realizou a investigação autónoma, Sócrates encarnou na sua pessoa
o espírito genuíno da filosofia grega porque realizou no mais alto
grau a exigência daquela investigação. No empenho de uma
investigação conduzida com
129
método rigoroso e incessantemente continuado, pôs o mais alto
valor da personalidade humana: a virtude e o bem. Tal é de facto o
significado daquela identificação entre a virtude e a ciência, que foi
conhecida tantas vezes por intelectualismo. A ciência

é para Sócrates a investigação racional ente conduzida e a virtude


é a forma de vida propriamente humana. a sua identidade é a
significado não só da problemas, da própria personalidade de
Sócrates.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 28. os restos de uma Vida de Sócrates, escrita por Aristoxerio,


discípulo de Aristóteles, encontram-se em MuLhER, Fragm. hist.
graec., 11, p. 280 se98Encontram-se outras noticias nos
Memoráveis e na Apologia de Xenofonte e nos diálogos de Platão,
citados no texto. Existe, além disso, a Vida de DIOGENES
LAIÉRCIO, 11, 18 segs.. Para a edição dos escritos de Xenofonte e
de Platão, relativos a Sócrates, ver notas bibliográficas dos
capitulos 8 e 9.

§ 29. Atribuiram valor histórico à caricatura de Aristófanes:


ClITAPELLI, O naturalismo de Sócrate,9 e as primeiras nuvens de
Aristóla~, in "Rend. Ace. Lincei, CI. Seienze morali", 1886, p. 284
segs.; Novas investigações sobre o naturalismo de 3ócrate8,
In "Archv. für Gesch. der Phil.", IV, p. 369 sgs.; T-AyLoR, Varia
socratíca, Oxford, 1911, p. 129 s,-s..
Seguiu preferentemente Aristóteles para a interPretaçço de
Sócrates: K. JOFJ,, Der echte und der xe-nc-fonteus Sokrates,
Berlim, 1893-1901, ao passo que seguiu Xenofonte A. DORING, Die
Lehre des Sokrates ais soziales Reformsystem, Mónaco, 1895.-J.
BURNET, Greek Philosophy, 1, cap. 11, e A. E. TAYLOR, VariO
s~atica, Oxford, 1911; ID., Socrates, Londres, 1935, trad. itali.,
Florença, 1951; ID., Plato, Londres, 1926 (4.* edição, 1937)
consideram que Platão foi apena-, * historiador de Sócrates.
Seguiram preferenternenU * representação de Xenofonte,
servindo-se para valerizÁ-la dos testemunhos de Aristóteles:
ZELLER, V01. 11,
2; GompERz, vol. III, p. 46 sgs.; WILLAMOWITZ, Platon, I, p. 94
sgs. e outros historiadores dependentes destes. ENRICO MAIER,
Sokrates, sein Werk und seine

130

geachichtUche SteUung, Tubinga, 1913 (,trad. ital., Florença, 1944),


nega qualquer valor histórico ao testemunho de Aristóteles que
considera dependente em tudo de Pistão e de Xenofonte, reduz a
obra deste último a uma pura composição Uter&ria (pelos motivos
repetidos no texto) e funda-se sobretudo em Platão pela sua feliz
reconstrução da figura de Sócrates. -Sobre as diversas
interpretações que têm sido dadaa ao significado filosófico da
figura de Sócratea e para a bibliografia relativa: PAOLO ROSSI,
Per una storia della 8toríografia &ocratica, in Probemi di
atoriografia filo"fioa, ao cuidado de A. BANFI, Milão, 1951. Con~
frontar entre outros: O. GIGON, S., Berna, 1947; V. DE
MAGAIMÃES-VILHENA, Le problèm-- de S.; Le S. historiqi&e et
le S. de Platon, Paris, 1952; A. H. CHROUST, S. Man and Myth,
Londres, 1956; J. BRUN, S., Paris,
1960.
§ 30. Para a missão de Sócrates, ver a Apologia de Platão,
especialmente cap. 17. Para o "conhece-te a ti mesmo", o Alcib~ 1,
129 sgs. Para a ironia, Mémm, SO. Para o poder de libertação da
ironia, Sofísta, 230.

§ 31. Sobre a malêutica, especialmente Teeteto,


148, 151, 210.

§ 32. Sobre a Identidade da ciência e virtude e sobre o utilitarísmo


de Sócrates, cfr. o Protágor", sobre que é fundada a exposição
deste parágrafo. % 33. Sobre o demónio socrático, confr.
especialmente Apologia, 29, 30. Mas as alusões de Sócrates ao seu
demónio são frequentes em todos os diálogos socráticos de Platão.
Mais frequentemente, o demónio age negativamente, dissuadindo
Sócrates de realizar uma acção qualquer. Mas o demónio
principalmente chama-o para a sua tarefa de examinar os outros e a
si próprio. Sobre as Ideias religiosas de Sócrates: Xenoffonte,
Men~abili, 1, 4; IV, 3. O demónio é compreendido como a voz da
consciência por ZELLER e GOMPM, loc. cit.. Ver sobre a
insuficiência desta interpretação- MAiER, parte UI, cap. 4.

§ 34. A critica do valor do testemunho de Aristóteles está in


MAiER, op. cit., vol. I, parte I, cap. 3; parte 11, cap. IV. A conclusão
que nega a Sócrates o mérito de descobridor do conceito com os
argu-

131

mentos discutidos no texto, estã a p. 283 da traduÇAO Itallana.

§ 35. As vIciasitudes do processo de Sócrates encontram-se na


Apologia de Platão e na de Xenofonte. O Críton expõe a atitude de
Sócrates frente ao projecto de fuga preparado pelos amigos. O
final do Pé~ narra as últimas horas de S6crates e a sua morte.

132

VIII

AS ESCOLAS SOCRÁTICAS

§ 36. XENOFONTE

Nascido em 440-39, e morto com 80-90 anos, Xenofonte não foi um


filósofo, mas antes um homem de acção, especialmente competente
em assuntos militares e em questões económicas. Conhecido
principalmente por ter dirigido a retirada dos dez mil gregos que
participavam na expedição de Ciro contra o irmão Artaxerxcs para
a conquista do trono da Pérsia, retirada que ele narrou no An~s,
Xenofonte pertence à história da filosofia por Os Ditos
Memoráveis de Sócrates e por outros escritos menores nos quais se
faz sentir a influência do ensinamento de Sócrates. Vimos que os
Memoráveis não oferecem um quadro exaustivo da personalidade de
Sócrates. A Apologia de Sócrates é a continuação dos Memoráveis
e pretende ser a defesa pronunciada por Sócrates ante os juízes.
Outros escritos que provam o diletantismo filosófico de Xenofonte
são A Ciropedia. uma espécie de romance histórico que tende a
desenhar em
133

Ciro o tipo ideal do tirano iluminado; o diálogo intitulado Gerone que


tem um intento análogo; e o Banquete, escrito provavelmente à
imitação do platónico no qual aparece também a figura de Sócrates.
Nenhum enriquecimento ou desenvolvimento original deu Xenofonte
à doutrina de Sócrates.
Entre os demais discípulos de Sócrates parece que Ésquines
escreveu sete diálogos de carácter socrático que não chegaram até
nós. Também a Simias e, a Cebes os dois interlocutores do Fédon
platónico, se atribuem escritos de que nada se sabe.

Quatro discípulos de Sócrates, além de Platão, são fundadores de


escolas filosóficas: Euclides da escola de Megara; Fédon da de
Elida; Antístenes da Cínica; Aristípo da Cirenaica. Mas da escola de
Fédon, a qual foi devida a Menedemo de Eretria, que sucedeu a
Fédon, se chamou Eretríaca, nada sabemos.

Cada uma das três outras escolas socráticas acentua um aspecto do


ensinamento de Sócrates, descurando ou negando os outros. A
escola cínica coloca o bem na virtude e repudia o prazer. A cirenaica
situa o bem no prazer e proclama-o como o único fim da vida. A
megárica acentua a universalidade do bem até o subtrair à esfera
do -homem e a identificá-lo com o ser de Parménides.

§ 37. A ESCOLA MEGÁRICA

Euclides de Megara (não confundir com o matemático Euclides que


viveu e ensinou em Alexandria cerca de um século mais tarde),
depois da morte de Sócrates, voltou à sua cidade natal e aqui
procurou continuar com o seu ensino a obra do mestre. Parece que
pertenceu à primeira geração dos discípulos de Sócrates e que não
viveu mais de um decénio depois da sua morte. Outros represen-

134

tantes da escola são Eubulídes, de Mileto, o adversário de


Aristóteles; Diodoro Crono (morto em
307 a.C.) e Estilpon que ensinou em Atenas por volta de 320.
A característica da escola megárica é a de unir o ensino de
Sócrates com a doutrina eleática. Euclides considerava que um só é
o Bem e é a virtude que é sempre idêntica a si própria apesar de ser
chamada com muitos nomes: Sabedoria, Deus, Intelecto, etc. Ao
mesmo tempo negava a realidade de tudo aquilo que é contrário ao
bem. E como o conhecimento do bem é a virtude, admitia que não há
mais que uma virtude e que as várias virtudes não são mais que
diversos nomes da mesma.

Para afirmarem a unidade, os Megáricos, seguindo as pisadas dos


Eleatas, repudiavam completamente a sensibilidade como meio de
conhecimento e prestavam fé exclusivamente à razão.
Consequentemente, como os Eleatas, negavam a realidade do
múltiplo. do devir e do movimento; e desenvolveram uma dialéctica,
semelhante à de Zenão de Eleia, destinada a reduzir ao absurdo
toda a afirmação que implicasse a realidade do múltiplo, do devir e
do movimento.

Contra a multiplicidade, usaram argumentos, desenvolvidos


sofisticamente, que se tornaram famosos. Eubulides, usou entre
outros o argumento do sorites (ou montão): tirando um grão de um
montão, o montão não diminui; nem sequer tirando-os todos um a um
(DioG. L., VII, 82). O mesmo argumento se repetia para os cabelos
ou para a cauda de um cavalo (argumento do cavalo: Cicer., Acad.,
11, 49: Horácio, Ep. II, I). À mesma negação de qualquer
multiplicidade se encaminha a crítica dos megáricos sobre a
possibilidade do juízo. Segundo Estilpon, é impossível atribuir um
predicado ao sujeito e dizer, por exemplo, que "o cavalo corre".
Efectivamente o ser do cavalo e o
135

ser do que corre são diferentes e definimo-los diferentemente: não


se pode portanto identificá-los como se faz na proposição. Por
outro lado, se fossem idênticos. isto é, se o correr fosse idêntico
ao cavalo, como se poderia atribuir o mesmo predicado de correr
também ao leão e ao cão? Admitida uma multiplicidade qualquer ou
como composição de partes (como no argumento do sorites) ou como
diversidade de predicados, segue-se daí o absurdo; e assim fica
demonstrada a falsidade de tal admissão.

Os Megáricos admitiram também argumentos que não têm em mim a


redução ao absurdo do múltiplo mas pertencem ao género daqueles
que hoje se chamam antinomias ou paradoxos, isto é argumentos
indecidíveis, no sentido de que não se pode decidir sobre a sua
verdade ou falsidade.
O mais famoso de tais argumentos é o de mentiroso que vem
referido assim por Cícero: "Se tu dizes que mentiste, ou dizes a
verdade e então mentiste ou dizes o falso e então dizes a verdade"
(Acad., IV, 29, 96). Se alguém diz "menti" (sem nenhuma limitação)
faz uma asserção que concerne todas as suas asserções
compreendida a que enuncia neste momento; mas se mentiu ao dizer
"menti" isto significa que diz a verdade; e se diz a verdade quer
dizer que mentiu e assim por diante. A base do argumento consiste
portanto em fazer asserções desprovidas de limitações que
concernem todos os casos, compreendido aquele constituído pela
própria asserção: noutros termos, consiste no uso autoreflexivo da
noção "todos" considerada inclusiva da própria asserção.
Argumentos do género são discutidos também na lógica
contemporânea. Na antiguidade, discutiram-nos, além dos
Megáricos, os Estóicos: e na Idade Média a discussão deles fez
parte integrante da lógica terminística que os chamava insolúveis
(Insolubilia).

136

Contra o devir e o movimento, os Megáricos por obra de Diodoro,


Crono, negaram que houvesse potência quando não há acto; por
exemplo, quem não constrói não tem o poder de construir. Este
princípio suprime o movimento e o devir porque (como nota
Aristóteles) quem está em pé estará sempre em pé e quem está
sentado estará sempre sentado, sendo impossível levantar-se a
quem não tem o poder de levantar-se. O argumento de Diodoro
Crono (dito o argumento vitorioso) afirma que só aquilo que se
verificou era possível, pois que se fosse possível aquilo que nunca se
verifica, do possível resultaria o impossível. O argumento leva a
admitir que tudo aquilo que acontece deve necessariamente
acontecer, e que a própria imutabilidade que existe para os factos
passados existe também para os futuros. anda que não pareça.
Brincando com este argumento, Cícero escrevia a Varrão: "Saberão
que se me fazes uma visita, essa visita é uma necessidade, pois, se
não o fosse, contar-se-ia entre as coisas impossíveis." Diodoro
retomava pois, reelaborando-os, os argumentos de Zenão contra o
movimento.

Estilpon colocava o ideal do sábio na impassibilidade (apatheia) e


considerava que o sábio se basta a si próprio e por isso não tem
necessidade de amigos.

§ 38. A ESCOLA CINICA. ANTISTENES

O fundador da escola cínica é Antístenes de Atenas que foi


primeiro discípulo de Górgias, depois de Sócrates e após a morte
deste ensinou no Ginásio Cinosargos. O nome da escola deriva do
género de vida dos seus sequazes: o epíteto de cães indicava o seu
ideal de vida conforme à simplicidade (e à desfaçatez) da vida
animal.
137
Antístenes escreveu ao que parece (mas não nos chegou quase
nada), um livro Sobre a natureza dos animais, no qual provavelmente
tirava dos animais modelos ou exemplos para a vida humana; e
compôs escritos sobre personagens homéricos (Ajax, Ulisses) ou
mitos (Defesa de Orestes). Mas a figura que Antístenes e os outros
cínicos principalmente exaltavam era a de Hércules que é
precisamente o título de um outro escrito de Antístenes. Hércules,
superando fadigas desmedidas e vencedor de monstros, é o símbolo
do sábio cínico que vence prazeres e dores e sobre uns e outros
afirma a sua força de ânimo.

Antístenes concordava com os Megáricos ao considerar impossível


todo o juízo que não fosse a pura e simples afirmação de uma'
identidade. Platão que alude a Antístenes no Sofista (215 b-c),
incluindo-o com certo desprezo entre "os, velhos que começaram
tarde a aprender", testemunha-nos que ele considerava impossível
afirmar, por exemplo, que "o homem é bom" porque isso equivaleria
a dizer que o homem é ao mesmo tempo um (homem) e múltiplo
(homem e bom); e queria portanto que se dissesse apenas "o homem
homem" e "o bom bom". Aristóteles confirma o testemunho de
Platão: "Antístenes professava a estulta opinião de que de nenhuma
coisa se possa dizer mais que o seu nome próprio e que por isso não
pode dizer-se mais que um só nome de cada coisa individual." (Met.,
V, 29, 1024 b, 32). Disto derivaria -nota Aristóteles-que é
impossível contradizer e é impossível até dizer o faise,-,
efectivamente ou se fala da própria coisa e não nos podemos servir
senão do seu próprio nome e não há contradição ou se fala de duas
coisas diferentes e tão-pouco neste caso é possível a contradição.
Segundo este ponto de vista, a doutrina platónica das ideias como
realidade universal devia parecer inconcebível, dado
138

que para Antístenes a realidade é sempre individual. e até, como


veremos de seguida, corpórea; e além dela não há mais que o nome
próprio que a indica: não subsiste nenhum universal. De facto teria
observado a Platão: "Ó Platão, vejo o cavalo mas não a cavalidade".
Ao que Platão teria respondido: "Porque não tens olhos para vê-la"
(Simpl., Cat, 66 b, 45).

Antístenes foi o primeiro que considerou a definição flogos) como a


expressão da essência de uma coisa: "a definição é aquilo que
exprime aquilo que é ou era." Mas a definição só é possível das
coisas compostas, não dos elementos de que resultam. Cada um
destes elementos pode ser unicamente nomeado, mas não
caracterizado de outro modo, os compostos, pelo contrário, ao
constarem de vários elementos, podem ser definidos entrelaçando
entre si os nomes destes elementos (Arist., Met., VIII, 3, 1043 b,
25).

A Antístenes parece que se referem também as alusões do Sofista


e do Teeteto aos homens "que não acreditam que haja outra coisa
senão aquilo que se pode apertar com as mãos todas" isto é, aos
materialistas que não admitem que não haja mais realidade que a
corpórea.

O único fim do homem é a felicidade e a felicidade está no viver


segundo a virtude. A virtude é concebida pelos cínicos como
inteiramente suficiente por si mesma. Não existe outro bem fora
dela. O que os homens chamam bens e em primeiro lugar o prazer,
são males porque distraem ou afastam da virtude. "Quisera antes
ser louco do que gozar", dizia Antístenes. Por isso o homem deve
procurar libertar-se das necessidades que o escravizam. Deve
também libertar-se de todo o vínculo ou relação social e bastar-se
absolutamente a si próprio. Contra a religião tradicional, Antístenes
afirmou que "segundo as leis, os deuses são muitos,
139
mas orientando a natureza há um só deus" (Cícero, De nat. deor., 1.
13, 32); afirmação que provavelmente não tinha o significado
monoteístico que seríamos tentados a dar-lhe, mas exprimia apenas
a exigência universal e panteística de que a divindade está presente
em toda a parte.

§ 39. DIÓGENES

Diógenes de Sinope, que foi discípulo de Antístenes em Atenas e


dali passou a Corinto onde morreu muito velho em 323 a.C., foi
chamado (talvez por Platão) o Sócrates louco. Este apelativo revela
o carácter do personagem. Ele levou ao extremo o desprezo
característico da escola cínica por todo o costume, hábito ou
convenção humana e quis realizar integralmente aquele retorno à
natureza que é o ideal da escola cínica. Não nos chegou quase nada
dos seus sete dramas e dos seus escritos em prosa (entre os quais
uma República).

A lenda apoderou-se dele, atribuindo-lhe um grande número de


anedotas e de características que provavelmente nada têm de
histórico. Certamente não habitou sempre num tonel, nem sempre
viveu como mendicante. Mas a sua oposição a todos os usos e às
convenções humanas era radical. Diz-se que foi o primeiro a usar a
capa de tecido grosseiro que servia também de coberta, a sacola
onde trazia o alimento e o bordão, que depois se tornaram os
distintivos dos Cínicos na sua vida de mendicantes (Diog. L., VI, 22).
Diógenes defendia a comunidade das mulheres e até a dos filhos;
declarava-se cidadão do mundo e manifestava em todas as
circunstâncias da vida aquela desvergonha que se tornou proverbial
entre os Cínicos. Aqueles que para afirmar a força de ânimo do
homem entendiam reconduzi-lo à naturalidade primitiva da
140
vida animal. pouca conta podiam fazer do saber e da ciência; e
verdadeiramente neste ponto, a escola cínica foi gravemente infiel
ao ensinamento socrático que na investigação científica reconhecia
a verdadeira vida do homem.

No numeroso bando dos Cínicos - mostram todos monotonamente os


mesmos traços e agitam furiosamente capas e sacolas para exibir
uma força de ânimo que Sócrates ensinara dever alcançar-se com a
serena e paciente investigação científica -, distingue-se Cratete,
um tebano de nobre família que foi seguido na vida de mendicante
pela mulher Hiparquias. Compôs poesias satíricas e trágicass onde
celebrava o cosmopolitismo e a nobreza.

§ 40. A ESCOLA CIRENAICA. ARISTIPO

O fundador da Escola Cirenaica é Aristipo de Cirena. Nascido por


volta de 435, foi para Atenas depois de 416 e aqui conheceu e
frequentou Sócrates. Depois da morte dele ensinou em várias
cidades da Grécia e foi também a Siracusa junto da corte do
primeiro ou segundo Dionísio. São-lhe atribuídas numerosas obras,
entre as quais uma História da Líbia, mas a atribuição é insegura e
de tais obras nada -ficou. Como para os outros fundadores das
escolas socráticas torna-se difícil discernir, no conjunto de
doutrinas que foram transmitidas como património dos Cirenaicos,
as que pertencem genuinamente ao fundador da Escola. Ademais
porque Aristipo teve uma filha Arete que continuou o seu
ensinamento e iniciou na doutrina do pai o filho Aristipo, e um
escritor antigo atribuiu ao mais jovem Aristipo o desenvolvimento
sistemático das ideias da escola. Mas os testemunhos de Platão, de
Aristóteles e de Speusipo (autor de um
141
diálogo intitulado Aristípo que andou perdido) convêm em atribuir
ao primeiro Aristipo as doutrinas fundamentais da escola.
Também para os Cirenaicos, como para os Cínicos e os Megáricos, a
investigação teorética passa para segundo plano e é cultivada
apenas como um contributo para resolver o problema da felicidade
e da conduta moral. Porém, a sua ética compreendia também uma
física e uma teoria do conhecimento, pois que (segundo os
testemunhos de Sexto Empírico e de Séneca) estava dividida em
cinco partes: a primeira em torno das coisas que são de desejar ou
de evitar, isto é, em torno do bem e do mal; a segunda em torno das
paixões; a terceira em torno das acções; a quarta em torno das
causas, isto é, dos fenómenos naturais; e a quinta em torno da
verdade (Sexto E., Adv. math., VH. 11). Evidentemente a quarta e a
quinta partes são a física e a lógica.

Na teoria do conhecimento, Aristipo inspira-se prevalentemente em


Protágoras. Considera que o critério da verdade é a sensação e que
esta é sempre verdadeira, mas não diz nada sobre a natureza do
objecto que a produz. Podemos afirmar com certeza que vemos o
branco ou sentimos o doce; mas que não é possível demonstrar que o
objecto que produz a sensação seja branco ou doce. Aquilo que nos
aparece, o fenómeno, é apenas a sensação; pois bem, esta é certa,
mas para lá dela é impossível afirmar seja o que for (Sesto E., Ad.
math., VII, 193, segs.). A doutrina da sensação que o Teeteto (156-
7) platónico desenvolve, deduzindo-a do princípio de Protágoras de
que o homem é a medida das coisas, parece ser característica de
Aristipo, a que Platão alude com a frase: "outros mais requintados".
Segundo esta doutrina, há duas formas de movimento, cada uma das
quais é depois
142

infinita em número: uma tem potência activa (o objecto), a outra


tem potência passiva (o sujeito). Do encontro destes dois
movimentos se gera por um lado a sensação, pelo outro o objecto
sensível. As sensações têm os seus nomes habituais: vista, ouvido,
ete., ou então prazer, dor, desejo, temor, etc.-, os sensíveis têm
nomes correlativos às sensações: cores, sons, etc.. Mas nem o
objecto sensível, nem a sensação subsistem antes nem depois do
encontro dos dois movimentos que lhes dão lugar; e em tal sentido
nada é, mas tudo se gera.

A sensação é também o fundamento dos estados emotivos do


homem. Estes são três: um para quem sente dor, semelhante às
tempestades no mar; o outro para quem sente prazer, semelhante
às ondas ligeiras, porque o prazer é um movimento leve comparável
a uma brisa favorável; o terceiro é o estado intermédio, pelo qual
não se sente nem prazer, nem dor, semelhante à calma do mar
(Eusébio, Prap. ev., XIV, 18). Segundo Aristipo, o bem consiste
apenas nas sensações agradáveis; e a sensação agradável é sempre
actual. O fim do homem é portanto o prazer, não a felicidade. A
felicidade é o sistema dos prazeres particulares, na qual se somam
também os prazeres passados e futuros; mas ela não é desejada por
si própria, antes pelos prazeres particulares de que é tecida (Diog.
L., 11,
88). O prazer-e o bem portanto-era, por conseguinte, para Aristipo
uma coisa precisa que vive só no instante presente. Não dava
nenhum valor à recordação dos prazeres passados e à esperança
dos futuros, mas apenas ao prazer do instante. Aconselhava pensar
no presente, melhor no dia de hoje, no instante em que cada um
opera ou pensa, porque, dizia ele, "só o presente é nosso, não o
momento passado nem aquele que aguardamos, porque um está
destruído e do outro não, sabemos se existirá" (Eliano, Var. hist.,
XIV, 6).
143
Todavia, precisamente neste viver para o instante e no instante,
Aristipo realizava aquela liberdade espiritual que lhe permitia
afirmar orgulhosamente: "Possuo, não sou possuído" (Diog. L., H.
75). E efectivamente viver no instante significa para ele não
deplorar o passado, nem atormentar-me na espera do futuro, não
desejar um prazer maior do que aquele, mesmo modesto, que o
instante presente pode oferecer; significava também não se deixar
dominar pelos desejos desmedidos, contentar-se mesmo com o
pouco. não se preocupar com um futuro que provavelmente não virá.
Aceitar o prazer do instante era portanto para ele a vida da
virtude. E a tradição apresenta-o de humor constantemente igual e
sereno, corajoso frente à dor, indiferente à riqueza (que todavia
não desprezava), frio e humano. Aristóteles narra-nos que, a uma
observação um pouco alterada de Platão, respondeu apenas: "O
nosso companheiro (Sócrates) falava de outra maneira" (Rei., 11,
1398 ib).

§ 41. OUTROS CIRENAICOS

Nos sucessores de Aristipo, o princípio do prazer actual entra em


contradição com a investigação do prazer guiada pelo intelecto.

Teodoro o Ateu afirmou que o fim do homem não é o prazer mas a


felicidade, e a felcidade consiste na sabedoria. A sabedoria e a
justiça são bens; são males a estultícia e a injustiça. O prazer e a
dor nem são bens nem -males. mas são por si indiferentes do todo.
Considerava a amizade inútil quer para os tolos quer para os sábios;
uns não a sabem usar, os outros não têm necessidade dela porque se
bastam a si próprios (Diog. L., 11, 98). Teodoro afirmava que a
pátria do sábio é o mundo
144

e negava não só a existência dos deuses populares, mas também da


divindade em geral; daqui o seu cognome de Ateu (Cicer., De nat.
deor., 1, 2,
63, 117). '

Egesia traz do hedonismo uma conclusão pessimista. Os males da


vida são tantos que a felicidade é impossível. A alma sofre e
perturba-se juntamente com o corpo e a fortuna impede de
alcançar aquilo que se espera. O sábio não deve por isso afadigar-se
na vã tentativa de procurar a felicidade, mas deve antes evitar os
males, tentar viver isento de dores, dado que isto pode ser
conseguido também por quem fica indiferente ao prazer (Diog. L.,
11, 94-95). Sustentava que a vida, que é um bem para o tolo, é
indiferente para o sábio. Um escrito intitulado O suicida valeu-lhe o
epíteto de "advogado da morte" (Peisithanatos); e levou as
autoridades de Alexandria a proibir o seu ensino (Diog. L., 11, 86).

Em oposição a Egesias, o seu contemporâneo Anícerídes fundava a


moral na simpatia para com os outros homens. Perante a
impossibilidade de obter da vida a felicidade, Anicerides era de
opinião que o homem devia encontrar a sua satisfação na amizade e
no altruísmo (Diog. L., 11, 96). Reabilitava, portanto, os laços
familiares e o amor da pátria e rompia deste modo o frio
individualismo em que se haviam fechado Teodoro e Egesias.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 36. Sobre a vida de Xenortonte: DIMENES LA£Rcio, 11, 48-59.


Edições completas das obras socráticas de Xenofonte: DINDORF,
SAUPPE, Letpzig, 1867-70; SCHENKL, Berlim, 1869-1876. Sobre
Xenofonte v. oa escritos sobre Sócrates e: J. LuccioHi, Les Wes
politiques et soci~ de X., Paris, 1947.

145
§ 37. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Megãricos:
DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 106-120. Outras fontes em ZL=, 11, 1,
245, 1 segs. Os escritos não chegaram até nós, os títulos vêm em
DIOGENEs LAMCIO.-GOMMM, II, p. 176 segs. Para a doutrina dos
Megáricos as fontes sã o constituídas pela exposição de DIóGENES
LAÉRCIO. Alguns dos argumentos mais conhecidos contra o
movimento foram conservados por S=To-EmpiRico, Contra os
matemãticos, VII, 216; X,
85-86. O argumento vitorioso é referido por EPiCTETO, Diss, H,
19, 1. ARISTóTELES combate a negação da ~ncia na Metafisica, IX,
3, 1047; PLATÃO faz referências aos Megáricos no Solista, em
vários passos (248, 251 b-c). A frase referida por CICERO está
numa carta Ad fam., 9,4. Para uma colecção de fragrientos: W.
NESTLE, Die Sokrati7zer in Answahi, 1922. Discutiu a lógica dos
Megáricos e citou as suas fontes: PRANTI, ~chichte der Logik, I,
Leipzig, 1855, p. 33 segs -C. MALLET, Histoire de 1'école de M. et
des écoles d'Êlis et dSretrie, Paris, 1843, P. M. SCHUM, Le Domi-
nateur et les possibles, Paris, 1960,

§ 38. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Cínicos: DIóGENES


LAÉRCIO, VI. Outras fontes em ZELI,ER, 11, 1, 281, 1 segs.
Fragmentos em MuLLAc, Frag. philos. graec., 11, 259-395. PLATÃO
alude a Antistenes no Sofista, 251, e ARISTóTELES na Metafí&ica,
V, 29. Sobre o materialismo de Antístenes, V, PLATÃO, Tecteto,
201-2z2. DUI)LEV, A History of Cynicism, Londres, 1937;
HOISTADT, Cynic Hero and Cynic King. Studies in the Cynic
Conceptiwt of Man, Upsala, 1949.

§ 39. Sobre estes Cínicos v. GwiPERz, II, p. 160 segs.; SAYRE,


Diogenes of Sinope, Baltimore, 1938.

§ 40. Sobre a vida, a doutrina e os escritos de Aristi,po e da sua


escola: DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 65-104; DIELS, Doxogr. Graec.,
sob "Aristipo". Outras fontes em ZEIXER, 11, 1, 336, 2 segs. A mais
completa colecção de fragmentos e testemunhos é: G.
GIANNANTONI, I Cirenaici, Florença, 1958, com trad. ital. e
bibliografia.

§ 41. Não chegaram até nós quaisquer escritos. As sentenças foram


recolhidas em MULLACII, Fragmenta philos. graec., 11, 405 segs. -
ZELLER, loe. cit.; GomPERZ, II, p. 216 segs.; JOEL, Geschichte der
ant. Philos.,
1, 925 segs.; STENZEL, artigo na Enciclop. PaulyWissows,-Kro11;
ZELLER, loe. cit.; GOMPERZ, II, p. 227.

se.gs,

146

Ix

PLATÃO

§ 42. A VIDA E O IDEAL POLÍTICO


DE PLATÃO

Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., proveniente de uma família da


antiga nobreza; descendia de Sólon por parte da mãe e do rei Codro
por parte do pai. Pouco se sabe da sua educação. Segundo
Aristóteles, era ainda jovem quando se familiarizou com Crátilo,
discípulo de Heraclito e, por isso, com a doutrina heraclitiana.
Segundo Diógenes Laércio, teria escrito composições épicas, líricas
e trágicas, que mais tarde queimara; mas esta notícia, embora não
seja inverosímil, nada tem de seguro. Aos vinte anos começou a
frequentar Sócrates e, até 399, ano da sua morte, contou-se entre
os seus discípulos. Este ano, todavia, marca também uma data
decisiva na vida de Platão.

A Carta VII, depois que lhe foi reconhecida a autenticidade,


tornou-se o documento fundamental, não só para a reconstrução da
biografia, mas ainda da própria personalidade de Platão. Ela vai per-
147

mitir-nos deitar uma vista de olhos pelos interesses espirituais que


dominaram esta primeira parte da sua vida. Desde jovem que
pensava dedicar-se à vida política. O senhorio dos Trinta Tiranos,
entre os quais tinha parentes e amigos, convidou-o a participar no
governo. Mas as esperanças que Platão pusera na sua acção
frustraram-se: os Trinta fizeram, recordar vivamente, com as suas
violências, o velho estado de coisas. Entre outras coisas,
ordenaram, a Sócrates que fosse com outros a casa de um cidadão
para matarem este, e isto para envolverem Sócrates, quisesse ele
ou não, na sua política (Carta VII, 325 a; Ap. 32 c). Após a queda
dos Trinta, a restauração da democracia envolveu Platão na vida
política; mas acontece então o facto decisivo que para sempre o
enojou da política do tempo: o processo e a condenação de
Sócrates. Desde esse momento, Platão não deixou de meditar em
como se poderia melhorar a condição da vida política e toda a
constituição do estado, mas adiou a sua intervenção activa para um
momento oportuno. Deu-se conta então que a melhoria somente
poderia ser efectuada pela filosofia. "Vi que o género humano não
mais seria libertado do mal se antes não fossem ligados ao poder os
verdadeiros filósofos, ou os regedores do estado não fossem
tornados, por divina sorte, verdadeiramente filósofos" (Carta VII,
325 c).

Das experiências políticas da sua juventude, experiências de


espectador, não de actor, Platão trouxe, pois, o pensamento que
havia de inspirar toda a sua obra: só a filosofia pode realizar uma
comunidade humana fundada na justiça.

Após a morte de Sócrates, vai junto de Euclides em Mégara, e


depois, ao que dizem os seus biógrafos, vai ao Egipto e a Cirene.
Nada sabemos destas viagens, de que a Carta VII nada diz; não são,
contudo, inverosímeis, e a viagem ao Egipto
148

pode considerar-se provável pelas referências frequentes, que se


encontram nos diálogos, à cultura egípcia. A sua primeira viagem de
que temos conhecimento seguro e que é também o primeiro
acontecimento importante da sua vida exterior, é a que o levou à
Itália meridional. Conheceu nesta ocasião as comunidades
pitagóricas, sobretudo por intermédio do seu amigo Arquitas,
senhor de Tarento; e em Siracusa ligou-se pela amizade a Dião, tio
de Dionísio o Jovem. Diz-se que Dionísio o Velho, tirano de
Siracusa, suspeitando dos projectos de reforma política ventilados
por Platão, o fizera vender como escravo no mercado de Egina. Não
sabemos se a responsabilidade do facto se deve atribuir a Dionísio;
havia guerra entre Atenas e Egina (durou até 387) e um incidente
semelhante podia verificar-se facilmente. É certa, porém, a venda
de Platão como escravo e o seu resgate por Anicerides de Cirene.

A tradição filia em tal acontecimento a fundação da Academia, para


o que teria servido o dinheiro do resgate, que foi recusado quando
se soube de quem se tratava. Nada se sabe de certo a este
respeito, mas pode dizer-se que, quando do regresso de Platão a
Atenas, a "comunidade da educação livre" que Platão tinha em
mente recebeu forma jurídica; e, à semelhança das comunidades
pitagóricas foi uma associação religiosa, um tiaso. Esta era, por
outro lado, a única forma que uma sociedade cultural podia
legalmente revestir na Grécia; e em uma forma que não excluía
nenhum género de actividade, nem que fosse profana ou recreativa.
Quando Dionísio o Jovem sucedeu ao pai no trono de Siracusa (367
a.C.), Platão foi chamado por Dião para dar o seu conselho e a sua
ajuda à realizaÇão da reforma política que sempre fora o seu ideal.
Após alguma hesitação, Platão decide-se: não queria apresentar-se
a si mesmo como "homem de
149

pura teoria". nem queria abandonar ao perigo eventual o amigo e


companheiro Dião. Partiu, pois, para Siracusa. Mas aqui a posição de
Dião era débil; este incompatibilizou-se com Dionisio e foi por ele
exilado. Platão ficou por algum tempo hóspede de Dionisio e
procurou iniciá-lo e empenhá-lo na pesquisa filosófica, tal como a
concebia. Mas Dionisio era o tipo do diletante presunçoso e estava,
além disso, afastado dos cuidados políticos. Platão voltou a Atenas
desiludido com ele.

Alguns anos depois, no entanto, Dionisio chamou-o insistentemente


à sua corte. Impelido pelo próprio Dião, que estava em Atenas e
esperava obter do tirano, pela intercessão de Platão, a revogação
do exílio, Platão decide-se a esta terceira viagem e em 361 partiu.
Porém, o resultado foi desastroso: não conseguiu exercer influência
alguma sobre Dionísio, que não resistiu à prova do seu ensino e
acabou por fazê-lo quase prisioneiro, primeiro com pressões morais
(ameaçando confiscar os bens de Dião) e depois fazendo cercar o
seu palácio por mercenários. Quis, todavia, salvar as aparências,
mostrando continuar as suas relações com Platão; e deixou-o partir
quando Arquitas de Tarento mandou uma galera com uma
embaixada. Platão foi assim libertado.

Em seguida, Dião conseguiu expulsar Dionísio, mas caiu no desfavor


do povo e foi morto na conjura promovida pelo ateniense Calipo.
Este enviou uma carta oficial a Atenas; e Platão respondeu com a
Carta VII, dirigida aos "amigos de Dião", em que expõe e justifica
os interesses fundamentais pelos quais viveu. Desde então Platão
haveria de viver em Atenas exclusivamente dedicado ao ensino.

Sabemos, pela Carta VII, que as suas ideias políticas teriam obtido
em outra ocasião mais feliz sucesso. Hermias, tirano de Atarneu, na
Ntisia,
150

pediu a dois eminentes cidadãos de S~ Erasto e Corisco, discípulos


de Platão, para elaborarem uma constituição que desse uma forma
mais-branda ao seu governo. Esta constituição foi de -facto
realizada e de tal modo granjeou para Hermias as simpatias das
populações da costa cólica, que alguns territórios se lhe
submeteram espontaneamente. Hermias honrou os seus amigos
dando-lhes a cidade de Asso (Didimo, In Demóst., col. 5, 52) e
constituiu com os dois platónicos -uma pequena comunidade
filosófica, de que Platão era o longínquo nume tutelar. Compreende-
se, por isso, que, depois da morte de Platão, Aristóteles se tenha
precisamente dirigido a Asso.

Platão morreu em 347, aos 81 anos. Um papiro de Herculano


descoberto recentemente dá-nos a descrição das últimas horas do
filósofo. A última visita que recebeu foi a de um caldeu. Uma mulher
trácia tocava e errou o compasso: Platão, que já tinha febre, fez ao
hóspede um sinal com o dedo.
O caldeu observou cortesmente que não havia como os Gregos para
perceber de medicina e de ritmo. Na noite seguinte a febre
agravou-se e, talvez nessa mesma noite, Platão morreu.

§ 43. O PROBLEMA DA AUTENTICIDADE


DOS ESCRITOS

A tradição conservou-nos de Platão uma Apologia de Sócrates, 34


diálogos e 13 cartas. O gramático Trasilo, que viveu no tempo do
imperador Tibério, adoptou e difundiu (parece que já -era
conhecida por uma referência de Terêncio Varrão)
a ordenação destas obras em 9 tetralogias, nas quais
a Apologia e as Cartas ocupam o lugar de dois diálogos. Eis a
tetralogia de Trasilo: 1., Eutífron, Apologia, Críton, Fédon; 2.a
Crátilo, Teeteto,
151

Sofista, Político; 3 a Parménides, Filebo, Banquete, Fedro, 4.1


Alcibíades 1, Alcibíades 11, Hiparco, Os Amantes; 5.a Teages,
Cármides, Laches, Lísis; 6 a
Eutidemo, Protágoras, Górgias, Ménon; 7.4 Hípias maior, Hípias
-menor, Ion, Menexeno; 8.a Clitofonte, República, Timeu, Crítias;
9.a Mínos, Leis, Epinómias, Cartas.

Alguns outros diálogos e uma colecção de Definições ficaram fora


das tetralogias de Trasilo, porque já pelos antigos eram
considerados apócrifos. Mas mesmo entre as obras compreendidas
nas tetralogias algumas há que são, indubitavelmente, apócrifas:
individualizá-las e demonstrar a sua inautenticidade é um aspecto
essencial do problema platónico. Já os escritores da antiguidade se
propuseram resolver este problema; e da antiguidade até hoje
pouquíssimos têm sido os diálogos sobre que não tem caído a
suspeita. Especialmente a crítica alemã de 800 lançou-se
deliberadamente na via da "atétese" (como se costuma chamar à
negação da autenticidade duma obra), até limitar a nove o número
dos diálogos autênticos. Uma salutar reacção contra esta tendência,
que acabava por atribuir a compiladores anónimos obras que são
manifestações altíssimas de pensamento e de arte, afirmou-se na
crítica moderna, que só pronuncia a atétese para as obras cujo
carácter apócrifo é evidente por elementos materiais ou formais.
Os critérios para julgar da autenticidade das obras platónicas são
os seguintes:

1.o - A tradição. Que os escritores antigos tenham julgado


autêntico um escrito é sempre uma razão fortíssima a favor deste,
a menos que haja elementos positivos em contrário. Este critério,
porém, não é por si só decisivo.

2.o - Os testemunhos antigos, devido aos escritores que


comentaram ou criticaram as obras de
152

Platão. Particular valor probatório têm as citações de Aristóteles,


assumidas por todo o historiador moderno (por ex., por Zeller) com
valor de prova. Todavia, tão-pouco este critério é decisivo, pois que
diálogos, indubitavelmente platónicos, como por exemplo o
Protágoras, não são citados por Aristóteles. Por outro lado, tais
testemunhos obedecem por vezes a critérios de escola, como é o
caso de Proclo, que declarou apócrifas a República, as Leis e as
Cartas.

3.o - O conteúdo doutrinal. Este critério é muito duvidoso: uma vez


que conhecemos a doutrina de Platão pelas suas obras, julgar da
autenticidade das obras baseando-nos na doutrina é um círculo
vicioso. Pode, no entanto, ser decisivo, quando se encontram nos
escritos platónicos elementos de doutrina que pertencem a escolas
posteriores. Tal é o caso do Alcibíades 11 (139 c), onde se diz que
todos os que não alcançam a sabedoria são loucos, o que é doutrina
própria dos Estóicos. Prova de inautenticidade pode ainda ser uma
contradição grosseira: como no caso do Teages (128 d), em que se
afirma que o sinal demoníaco é sempre negativo, para dizer na
página seguinte (129 e) que ele incita positivamente alguns a
andarem com Sócrates.
4.o - o valor artístico. Platão é um artista extraordinário, e qualquer
diálogo seu é ao mesmo tempo obra de pensamento e de poesia.
Mas, naturalmente, não se pode pretender que todos os diálogos
estejam ao mesmo nível artístico. Este critério só é válido no caso
de se encontrar uma deficiência gravíssima, como no Teages e nos
Amantes.

5.o - A forma linguística. O uso de expressões particulares,


palavras, etc. pode fornecer indícios sobre a autenticidade ou
inautenticidade dos diálogos: por exemplo, há no Alcibíades II
particularidades da linguagem que parecem pertencer a uma
153

época mais tardia do que aquela em que foram compostos os


diálogos platónicos.

Todos estes critérios oferecem uma certa segurança apenas se


forem controlados uns pelos outros e se se confirmarem
reciprocamente. Da sua aplicação resulta que podemos com
segurança considerar apócrifos os seguintes diálogos: Alcibíades
II, Hiparco, AmaWes,, Teages, Minos; podem subsistir dúvidas
sobre o Alcibíades I, o Hípias maior, o lon, o Clitolonte e o
Epinómis,- tais dúvidas, contudo, não impedem que alguns deles
possam ser utilizados como fontes da doutrina platónica, a qual em
nada contradizem. A autenticidade do Menexeno, que é um elogio
fúnebre aos mortos na guerra (epitáfio, um género muito em voga
na retórica do tempo), parece não poder negar-se devido ao
testemunho explícito de Aristóteles (Ret., 1415 b, 30), mas o
sarcasmo da apresentação, as incongruências, os anacronismos são
de tal ordem, que nos obrigam a considerá-lo como simples paródia
de um género literário em voga.
Quanto às Cartas, depois de quase unanimemente as haver banido
do corpus platónico, a crítica moderna prepara-se para reconstruir
a mesma unanimidade em aceitá-las como genuínas. E elas são, de
facto, com excepção da primeira, documentos importantíssimos
para a vida e o pensamento de Platão. A Carta VII acrescenta-se de
ora em diante aos diálogos fundamentais, para a interpretação do
platonismo.

§ 44. O PROBLEMA DA CRONOLOGIA


DOS ESCRITOS

Outro aspecto fundamental do problema dos escritos platónicos é o


que respeita à sua ordem cronológica. Este problema é essencial
para a
154

compreensão do platonismo. Platão, por motivos que são inerentes à


sua filosofia (e que veremos em breve), nunca quis escrever, nem
mesmo na mais avançada idade, uma exposição completa do seu
sistema. Os seus diálogos não são mais que fases ou etapas
diversas, pontos de chegada provisórios e, por isso, sobretudo
pontos de partida, de uma pesquisa que julga não poder fixar-se em
nenhum resultado. A ordem cronológica dos seus escritos é a
própria ordem desta pesquisa: é a ordem em que ele atingiu os
sucessivos aprofundamentos da sua filosofia. Não se pode, pois,
compreender o desenvolvimento desta filosofia sem se dar conta da
ordem cronológica dos escritos.

Infelizmente, as notícias seguras faltam completamente sobre este


ponto. Temos uma única indicação indubitável que nos é dada por
Aristóteles (Pol., 1264 e, 26): as Leis são posteriores à República.
Por outra fonte sabemos que as Leis foram deixadas "sobre cera",
tendo sido copiadas após a morte de Platão.
É necessário, portanto, recorrer a outros critérios. O primeiro é o
confronto dos diálogos entre si. Dele resulta que a República
antecede o Timeu, que lhe recapitula o argumento; o Político
apresenta-se como a continuação do Sofista, e este, por sua vez,
como a continuação do Teeteto. Alusões menos claras, mas
suficientemente transparentes permitem ver que o Ménon é
anterior ao Fédon e ambos estes diálogos anteriores à República.
O Teeteto e o Sofista referem-se depois a um encontro entre o
jovem Sócrates e o velho Parménides, que é talvez o que se narra no
Parménides.

O segundo critério para a ordenação cronológica é o do estilo. Entre


a República e as Leis, ou seja entre: os dois diálogos de que
conhecemos com plena certeza a ordem da composição, há notáveis
155

diferenças de estilo que têm sido minuciosamente estudadas.


Trata-se de partículas conjuntivas, de fórmulas de afirmação ou
negação, do uso dos superlativos, giros de frases e de palavras que
ocorrem nas Leis e ao invés não se encontram na República. Estas
particularidades estilísticas, chamadas estilemas, caracterizam a
última fase da obra do Platão escritor. É evidente que os outros
diálogos em que ocorrem devem pertencer ao mesmo período; e
alguns críticos são unânimes em estabelecer uma ordem dos
diálogos segundo a frequência de tais estilemas, atribuindo ao
período mais tardio da vida de Platão os diálogos em que eles
ocorrem com mais frequência, e aos períodos anteriores os diálogos
em que são menos frequentes. Embora uma ordem rigorosa assim
fundada seja fictícia, uma vez que outros motivos podem ter
influído no estilo do escritor, não há dúvida, no entanto, que este
critério serviu para delinear um grupo de diálogos que, pela
semelhança do seu estilo com o das Leis, se atribui ao último
período da actividade de Platão. Tais são o Parménides, o Teeteto, o
Sofista, o Político, o Timeu e o Filebo. Quanto à ordem de
composição destes diálogos, decerto nos não podemos fundar, para
estabelecê-la, apenas na estilometria, mas devemos servir-nos ainda
dos outros critérios.

Um terceiro critério pode colher-se da forma narrativa ou


dramática dos diálogos. Em alguns deles o diálogo é directamente
introduzido; em outros, pelo contrário, é narrado, de maneira que a
sua exposição é entremeada com as frases: "Sócrates disse", "o
outro respondeu", "concordou com ele", etc.. Mas no prólogo do
Teeteto (143 c), Euclides, que narra o diálogo, adverte que suprimiu
estas frases com vista a uma maior fluência, expondo o diálogo
directamente, tal como se teria passado entre Sócrates e os seus
interlocutores. Por isso, é
156

natural que não esperemos encontrar o método da narração nos


diálogos que se seguem ao Teeteto; e de facto assim acontece para
todos os diálogos do último período, excepto para o Parménides, que
é, por isso, provavelmente anterior ao Teeteto. Por outro lado, os
diálogos mais altamente dramáticos, como o Protágoras, o Banquete,
o Fédon, a República, são todos narrados, ao passo que um grupo de
diálogos que têm estrutura mais simples e menor valor artístico são
em forma directa. Pode supor-se que Platão tenha adoptado a forma
directa numa primeira fase, tenha depois recorrido à forma
narrativa para dar ao diálogo o maior relevo dramático, e tenha
finalmente regressado, por motivos de comodidade e de fluência de
estilo, à forma directa. Mas a ordenação que resulta deste critério,
se é válida para decidir a situação de um diálogo neste ou naquele
período da actividade de Platão, não é suficiente para estabelecer a
ordem dos próprios diálogos no âmbito de cada um dos períodos.
Aos resultados que possam conseguir-se pelo uso combinado destes
três critérios acrescentam-se os que resultam da consideração, de
importância fundamental, de que os primeiros diálogos devem ser
aqueles em que a doutrina das ideias não está ainda presente, e que
se mantêm, por isso, estritamente fiéis à letra do socratismo.
Finalmente, é muito difícil imaginar que Platão tenha começado a
exaltação da figura de Sócrates ainda em vida do mestre: toda a
sua actividade literária deve ser, portanto, posterior a 399. Sobre
estes fundamentos afigura-se provável a seguinte ordenação
cronológica dos diálogos; porém, se a atribuição de um diálogo a um
determinado período é bastante segura nesta ordenação, a ordem
de sucessão dos
157

diálogos em cada um dos períodos é problemática e sujeita a


caução:

1.º período: escritos de juventude ou socráticos: Apologia, Criton,


Ion, Laches, Lísis, Cármides, Eutífron;

2.o período, de transição: Eutidemo, Hípias menor, Crátilo, Hípias


maior, Menexeno, Górgias, República 1, Protágoras, Ménon;

3.o período: escritos de maturidade: Fédón, Banquete, República 11-


X, Fedro;

4.º período: escritos da senelitude: Parménides, Teeteto, Sofista,


Político, Filebo, Timeu, Crítias Leis.

Pode pensar-se, com uma certa verosimilhança, que os escritos do


3.o período são posteriores à primeira viagem à Sicília, de que
Platão regressou antes de 387, que os escritos do 4.o período são
posteriores à segunda viagem à Sicília (366-65) e alguns, como o
Crítias e as Leis, posteriores mesmo à terceira (361-360). As
Cartas VII e VIII apresentam-se, pelo seu conteúdo, como
posteriores à morte de Dião, e portanto ao ano de 353.

§ 45. CARÁCTER DO PLATONISMO

Por que razão a produção literária de Platão se manteve fiel à


forma do diálogo? Citámos, falando de Sócrates (§ 24), a passagem
do Fedro em que, a propósito da invenção da escrita, atribuída ao
deus egípcio Theut, Platão diz que o discurso escrito comunica, não
a sabedoria, mas a presunção da sabedoria. Como as figuras
pintadas, os escritos têm a aparência de seres vivos, mas não
respondem a quem os interroga. Circulam por toda a parte do
mesmo modo, tanto pelas mãos dos
158

que os compreendem como pelas mãos dos que se não interessam de


facto por eles; e não sabem defender-se nem sustentar-se por si
próprios quando são maltratados ou vilipendiados injustamente
(Fedro, 275 d).

Platão não via no discurso escrito mais que uma ajuda para a
memória; e ele mesmo nos testemunha que do ensino da Academia
faziam parte também "doutrinas não escritas" (Carta VII, 341 c).
Ora, de entre os discursos escritos, o diálogo é o único que
reproduz a forma e a eficácia do discurso falado. Ele é a expressão
fiel da pesquisa que, segundo o conceito socrático, é um exame
incessante de si mesmo e dos outros, logo um perguntar e
responder; Platão considera que o próprio pensamento é tão só um
discurso que a alma faz consigo mesma, um dialogar interior, em que
a alma pergunta e responde a si mesma (Teet., 189 e, 190 a; Sof.,
263 e; Fil., 38 c-d). A expressão verbal ou escrita limita-se, pois, a
reproduzir a forma da pesquisa, o diálogo. A mesma convicção que
impediu Sócrates de escrever, impediu Platão a adoptar é a manter
a forma dialógica nos seus escritos. O que revelou a Platão a
incapacidade do jovem Dionisio de se empenhar a sério na pesquisa
filosófica, foi a sua pretensão de escrever e difundir como obra
própria um "sumário do platonismo". Platão declarou energicamente
nesta ocasião: "Meu não há, nem nunca haverá, tratado algum sobre
este assunto. Não pode ele ser reduzido a fórmulas, como se faz
nas outras ciências; só depois de longamente se haver travado
conhecimento com estes problemas e depois do os haver vivido e
discutido em comum, o seu verdadeiro significado se acende
subitamente na alma, como a luz nasce de uma centelha e cresce
depois por si só" (Carta VII, 341 c-d).

O diálogo era, pois, para Platão o único meio de exprimir e


comunicar aos outros a vida da pes-
159

quisa filosófica. Ele reproduz o próprio andamento da pesquisa, que


avança lenta e dificilmente de etapa em etapa; e sobretudo
reproduz-lhe o carácter de sociabilidade e de comunhão, pelo qual
torna solidários os esforços dos indivíduos que a cultivam. Assim a
forma da actividade literária de Platão é um acto de fidelidade ao
silêncio literário de Sócrates; um e outro têm o mesmo fundamento:
a convicção de que a filosofia não é um sistema de doutrinas, mas
pesquisa que repropõe incessantemente os problemas, para deles
tirar o significado e a realidade da vida humana. Conta-se que uma
mulher, Axioteia. após a leitura dos escritos platónicos, se
apresentou em trajes masculinos a Platão, e que um camponês
coríntio, depois da leitura do Górgias, deixou o arado e foi ter com
o filósofo (Arist., fr. 69, Rose). Estas anedotas demonstram que os
contemporâneos de Platão tinham compreendido o valor humano da
sua filosofia.
§ 46. SÓCRATES E PLATÃO

A fidelidade ao magistério e à pessoa de Sócrates é o carácter


dominante de toda a actividade filosófica de Platão.
Nem todas as doutrinas filosóficas de Platão podem, decerto, ser
atribuídas a Sócrates; bem ao contrário, as doutrinas típicas e
fundamentais do platonismo não têm nada que ver com a letra do
ensino socrático. Todavia, o esforço constante de Platão é o de
captar o significado vital da obra e da pessoa de Sócrates; e para
captá -lo e exprimi-lo não hesita em ir além do modesto património
doutrinal do ensino socrático, formulando princípios e doutrinas que
Sócrates, em verdade, nunca ensinam, mas que exprimem o que a
sua própria pessoa incarnava.
160

Frente a esta fidelidade, que nada tem a ver com uma concordância
de fórmulas doutrinais, mas que se manifesta na tentativa sempre
renovadora de aprofundar uma figura de homem que, aos olhos de
Platão, personifica a filosofia como pesquisa, parece muito estreito
o esquema em que se tornou habitual resumir a relação entre
Sócrates e Platão. Inicialmente fiel a Sócrates nos diálogos da sua
juventude, Platão ter-se-ia depois afastado progressivamente do
mestre para formular a sua doutrina fundamental, a doutrina das
ideias; e, por fim, até a si mesmo teria sido infiel, criticando e
negando esta doutrina. Em breve veremos que Platão jamais foi
infiel a si mesmo ou à sua doutrina das ideias; e que, nesta
doutrina como em todo o seu pensamento, foi, ao mesmo tempo, fiel
a Sócrates. Nada mais quis fazer senão captar os pressupostos
remotos do magistério socrático, os princípios últimos que explicam
a força da personalidade do mestre e podem, por isso, iluminar a via
na qual ele consegue possuir-se e realizar-se a si mesmo. Platão,
escrupulosamente, não faz intervir Sócrates como interlocutor
principal nos diálogos que se afastam demasiado do esquema
doutrinal socrático ou que debatem problemas que não haviam
suscitado o interesse do mestre (Parménides, Sofista, Político,
Timeu). Não obstante, toda a pesquisa platónica se pode definir
como a interpretação da personalidade filosófica de Sócrates.

§ 47. ILUSTRAÇÃO E DEFESA DO ENSINO DE SóCRATES

Na primeira fase, a pesquisa platónica mantém-se no âmbito do


ensino socrático e, se não visa ilustrar o significado desta ou
daquela atitude fundamental do Sócrates histórico (Apologia,
Críton), visa captar
161

e esclarecer os conceitos fundamentais que estavam na base do seu


ensino (Alcibíades, Ion, Hípias menor, Laches, Cármides, Eutífron,
Hipiw maior, Lísis).

O conteúdo da Apologia e do Críton foi utilizado a propósito de


Sócrates (§ 26, 31). A Apologia é, em substância, uma exaltação do
dever que Sócrates assumiu ante si próprio e ante os outros e é,
por isso, a exaltação da vida consagrada à pesquisa filosófica. Pode
dizer-se que o significado integral do escrito está contido na frase:
"Uma vida sem pesquisa não é digna de ser vivida pelo homem"
(Apolog., 38). Sócrates declara aos juízes que jamais deixará de
cumprir a obrigação que lhe foi confiada pela divindade: o exame de
si mesmo e dos outros para alcançar a via do saber e da virtude. Já
na apresentação que Platão faz de Sócrates na Apologia se mostra
claramente que ele vê incarnada na figura do mestre aquela
filosofia como pesquisa a que ele próprio iria dedicar toda a
existência.

O Críton apresenta-nos Sócrates frente ao dilema: ou aceitar a


morte pelo respeito que o homem justo deve às leis do seu país, ou
fugir do cárcere, conforme proposta dos amigos, e desmentir assim
a substância do seu ensino. A maneira serena como Sócrates aceita
o destino a que é condenado é a última prova da seriedade do seu
ensino. Ela mostra-nos que a pesquisa é uma missão de uma tal
natureza, que o homem que se haja empenhado nela não a deve
trair, aceitando compromissos e fugas que a esvaziem de
significado.

Com estes dois escritos, Platão fixou para sempre as atitudes que
fazem de Sócrates o filósofo por excelência, "o homem de todos o
mais sábio e o mais justo". Os outros escritos de Platão
pertencentes a este mesmo período visam, ao invés, esclarecer os
conceitos que estavam na base do
162

ensino socrático. Nestes escritos Platão aparece-nos (assim o disse


Gomperz), como o moralista dos conceitos: delineia o procedimento
socrático enquanto pesquisa do fundamento da vida moral do
homem. E. em primeiro lugar, aclara o pressuposto necessário de
toda a pesquisa, ponto em que Sócrates tanto insistira: o
reconhecimento da própria ignorância. Sobre o tema da ignorância
desenvolve-se um grupo de diálogos: Alcibíades 1, Ion, Hípias
menor.

O Alcibíades 1 é, não obstante as dúvidas que se aventaram sobre a


sua autenticidade, uma espécie de introdução geral à filosofia
socrática. A Alcibíades que, dotado e ambicioso, se prepara para
participar na vida política, com a pretensão de dirigir e aconselhar o
povo ateniense, pergunta Sócrates onde aprendeu a sabedoria
necessária a este fim, ele que nunca se reconheceu ignorante e que,
por conseguinte, nunca se preocupou com procurá-la. Alcibíades
está ainda na ignorância, na pior das ignorâncias, a ignorância de que
não sabe que é ignorante; e só pode sair dela aprendendo a
conhecer-se a si mesmo. Só por esta via poderá alcançar o
conhecimento da justiça, que é necessária para governar um Estado
e sem a qual se não é homem político, mas politiqueiro vulgar que se
engana a si próprio e ao povo.

Este tema da ignorância não consciente de si é também o do Ion.


Ion é um rapsodo que se gaba de saber expor muitos pensamentos
belos sobre Homero e de ser, portanto, competente no que respeita
a todos os argumentos sobre que versa a poesia homérica.

Platão representa nele, provavelmente, um tipo de falso sábio que


devia ser frequente no seu tempo: o tipo dos que, recordando
Homero de memória e tendo sempre à mão os ditos do poeta, o
citavam
163

em todas as circunstâncias com o ar de quem apela para a mais


antiga e autêntica sabedoria grega. Platão demonstra que
verdadeiramente nem o poeta nem muito menos o rapsodo sabem
coisa alguma. Um e outro falam de tantas coisas, não em virtude da
sabedoria, mas em virtude de uma inspiração divina que se
transmite da divindade ao poeta, do poeta ao rapsodo, do rapsodo
ao ouvinte, como a força de atracção do íman passa de uma argola
de ferro a outra e forma uma longuíssima cadeia. Se o saber do
poeta ou do rapsodo fosse verdadeiro, aqueles que cantam a guerra
podiam comandar os exércitos e ocupar-se assim seriamente de
todas as coisas que se limitam a cantar.

Uma variação paradoxal do tema da ignorância é apresentada no


Hípias menor; este diálogo procura demonstrar que só o homem de
bem pode pecar voluntariamente. Efectivamente, pecar
voluntariamente significa pecar conscientemente; pecar sabendo
qual é o bem e qual é o mal, e escolhendo deliberadamente o mal.
Mas quem sabe qual é o bem? O homem de bem; e só ele por
conseguinte, pode pecar voluntariamente. O absurdo desta
conclusão sugere que é impossível pecar voluntariamente e que
somente peca quem não sabe o que é o bem, ou seja o ignorante. O
diálogo é uma redução ao absurdo da tese contrária à de Sócrates e
é, por isso, uma confirmação indirecta da tese de que a virtude é
saber.

A demonstração desta tese é o objectivo de um outro grupo de


diálogos, mais importantes do que os primeiros. Esta demonstração
tem por pressuposto que a virtude é só uma. Portanto, estes
diálogos têm em mira reduzir ao absurdo a afirmação de que há
diversas virtudes, demonstrando que nenhuma delas, tomada
isoladamente, pode ser compreendida e definida.
164

No Laches chega-se a esta conclusão mediante a análise da coragem


(andréia). Considerada a coragem como virtude particular, há que
defini-la como a ciência do que se deve ou se não deve temer, ou
seja, dos bens ou dos males futuros. Mas o bem e o mal são o que
são não só com referência ao futuro, mas também ao presente e ao
passado; a ciência do bem e do mal não pode por conseguinte,
limitar-se ao futuro, mas diz respeito a todo o bem e a todo o mal;
esta ciência já não é a coragem como virtude particular, mas a
virtude na sua integralidade. A pesquisa que nos impele a
determinar a natureza de cada virtude tomada isoladamente
consegue assim determinar realmente a natureza de toda a virtude:
de tal modo é impossível distinguir nela partes diversas. No
Cármides faz-se a mesma investigação a propósito da prudência
(sofrosyne) e chega-se à mesma conclusão. A prudência é definida
por Crítias, principal interlocutor do diálogo, como conhecimento de
si mesmo, quer dizer, do saber e do não saber próprios de cada um
e, por isso, como ciência da ciência. Porém, Sócrates opõe a esta
definição que uma ciência assim exige um objecto que seja
especificamente seu. Como não há um ver que seja um ver coisa
nenhuma, mas o ver tem sempre por objecto uma coisa
determinada, assim a ciência não pode ter por objecto a própria
ciência, antes deve possuir um objecto determinado sem o qual
como ciência da ciência falha, definir a prudência como ciência da
ciência falha, pois, pela impossibilidade de a ciência se fazer
objecto de si mesma. A pesquisa procura sugerir que a prudência, se
é ciência, deve ter por objecto o bem; ora se é ciência do bem já
não é somente prudência (sofrosyne), mas ao mesmo tempo
sabedoria e coragem: virtude na sua integralidade.

No Eutífron examina-se a primeira e fundamental virtude do


cidadão grego, que é a piedade reli-
165

giosa ou devoção (osiótes). Parte-se da definição puramente formal


dessa virtude, que seria a arte que regula a troca de benefícios
entre o homem e a divindade, troca pela qual o homem oferece à
divindade culto e sacrifícios para dela obter ajuda e vantagens.
Segundo esta definição, as acções piedosas são as que agradam a
alguns deuses. não a todos os deuses, uma vez que frequentemente
se acham estes em desacordo.

Põe-se então o problema: aquele que é santo é-o porque agrada aos
deuses, ou acontece, ao contrário. que agrada aos deuses porque é
santo? Frente a esta pergunta. a definição formal da piedade
religiosa cai e vemo-nos obrigados a perguntar de novo que coisa é
verdadeiramente a devoção. Pode então dizer-se que a devoção é
uma parte da justiça, precisamente aquela que se refere ao culto da
divindade e que consiste em praticar acções que à divindade
agradam, mas eis-nos deste modo regressados à definição que
abandonámos. A conclusão negativa do diálogo não só exprime a não
aceitação do conceito formal da piedade religiosa, como ainda a
impossibilidade de a definir como uma virtude em si, independente
das outras, e assim prepara indirectamente o reconhecimento da
unidade da virtude.

Correlativamente à indagação sobre a virtude, procede Platão à


indagação sobre o objecto ou o fim da virtude, sobre os valores que
são seu fundamento, Uma acção bela, um belo discurso têm o belo
por objecto; mas o que é o belo? É este o problema do Hípias maior.
A conclusão é que o belo não pode ser distinto do bem, não
podendo considerar-se nem como o que é conveniente nem como o
que é útil; dado que o conveniente é a aparência do belo, não o
próprio belo, e o útil não é senão o vantajoso, aquilo que produz o
bem e é, portanto, causa do próprio bem. Como todas
166

as virtudes tendem, uma vez examinadas, a unificar-se no saber,


assim os vários objectos ou fins das acções humanas, o belo, o
conveniente, o útil tendem a unificar-se no conceito do bem.

O bem é ainda o termo último e o fundamento de todas as relações


humanas. Segundo o Lísis, a amizade (filia) não se funda na
semelhança nem na dissemelhança entre as pessoas: o semelhante
não pode encontrar no semelhante nada que não tenha já e o
dissemelhante não pode amar o que é dissemelhante dele (o bom não
pode amar o mau nem o mau pode amar o bom). O homem não ama e
não deseja senão o bem; e ama e deseja um bem inferior em vista
de um bem superior, de maneira que o último e supremo bem é
também o primeiro fundamento da amizade. Verdadeiramente só ele
é o verdadeiro e único amigo. as outras coisas que desejamos e
amamos são simplesmente suas imagens. A amizade dos homens
funda-se, portanto, na sua comum relação com o bem.
Os resultados das investigações levadas a cabo em todos estes
diálogos podem resumir-se como segue:
1.o Não há virtudes particulares, mas a virtude é só uma;

2.O Não há fins ou valores particulares, definíveis cada um de per


si, mas o fim ou o valor é só um; o bem.

Estas duas conclusões rasgam as perspectivas da investigação


platónica ulterior e preparam os problemas que ela viria a debater.

48. A POLÉMICA CONTRA OS SOFISTAS

A tese que o precedente grupo de diálogos sugere indirectamente,


a unidade da virtude e a sua relação com o saber, põe-se e
demonstra-se positivamente no Protágoras em oposição polémica à
atitude dos sofistas. A Protágoras, que se intitula mestre de
virtude, objecta Sócrates que a virtude
167

de que fala Protágoras não é ciência mas um simples conjunto de


habilidades adquiridas acidentalmente por experiência; e é,
portanto, um património privado, que não pode transmitir-se aos
outros. Protágoras, para quem as virtudes são muitas e a ciência
apenas uma delas, não pode afirmar que a virtude é ensinável; pois
que somente a ciência se pode ensinar. Do que decorre que a virtude
pode transmitir-se e comunicar-se na medida em que é ciência. Viu-
se, a propósito de Sócrates (§ 28), que a ciência é aqui entendida
como cálculo dos prazeres e o seu conceito continua, portanto,
preso à letra do ensino socrático. Porém, já este diálogo mostra que
Platão não se limita de ora em diante à frustração dos conceitos
que Sócrates colocou na base da vida moral; mas, contrapondo a
doutrina de Sócrates à dos sofistas, projecta sobre a figura do
mestre a mais viva luz que brota da polémica.
O Protágoras recusou ver no ensino sofístico qualquer valor
educativo, e formativo e na própria sofística qualquer conteúdo
humano. Ante a ruína da sofística.. a doutrina de Sócrates apareceu
em todo o seu valor. Mas mantinham-se outros aspectos da
sofística; e contra eles dirige Platão três diálogos que formam com
o Protágoras um grupo unido. Estes aspectos são a erística, contra a
qual se dirige o Eutidemo; o verbalismo, contra o qual se dirige o
Crátilo; e a retórica, contra a qual se dirige o Górgias.

O Eutidemo é, acima de tudo, uma representação vivíssima e


caricatural do método erístico dos sofistas. A eristica é a arte de
lutar com palavras e de "refutar tudo o que se vai dizendo, seja
falso ou verdadeiro". Os interlocutores do diálogo, os dois irmãos
Eutidemo e Dionis'odoro, divertem-se a demonstrar, por exemplo,
que só o ignorante pode aprender e, logo a seguir, que
contrariamente só o sábio aprende; que só se aprende o que se
168

não sabe e a seguir que só se aprende o que sabe, etc. O


fundamento de semelhante exercício é a doutrina (defendida pelos
Sofistas, e além destes pelos Megáricos e pelos Cínicos) de que não
é possível o erro e que, seja qual for a coisa que se disser, se diz
coisa que é, logo verdadeira. Ao que Sócrates objecta que, nesse
caso, não haveria nada que ensinar e nada que aprender, pelo que a
própria erística seria inútil. Na verdade, nada há que se possa
ensinar a não ser a sabedoria; e a sabedoria só pode ensinar-se e
aprender-se amando-a, isto é filosofando. E neste ponto o diálogo
deixa de ser crítica do procedimento sofístico para se transformar
em exortação à filosofia (propreptikon); e, como discurso
introdutório ou propréptico tornou-se famoso na antiguidade, tendo
sido muitas vezes imitado. Porém, esta parte é importante
sobretudo porque contém a ilustração do objecto próprio da
filosofia: objecto que Platão define como o uso do saber para
utilidade do homem. A filosofia é a única ciência em que o fazer
coincide com o saber servir-se do que se faz (Eut., 289 b): ou seja,
a única ciência que produz conhecimento ao mesmo tempo que
ensina a utilizar o próprio conhecimento para utilidade e felicidade
do homem (lb., 288-289).

À erística liga-se o verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo. O


problema deste diálogo é o de ver se a linguagem é
verdadeiramente um meio para ensinar a natureza das coisas, como
pensavam Crátilo, os Sofistas e Antístenes. Platão não considera,
decerto, que a linguagem seja produto de convenção e que os nomes
se implantem arbitrariamente. Como todo o instrumento deve ser
adequado ao desígnio para que foi construído, assim a linguagem
deve ser adequada a fazer-nos discernir a natureza das coisas. Não
há dúvida, pois, que todo o nome deve ter uma certa justeza, isto
169

é, deve imitar e exprimir, na medida do possível, por meio de letras


e de sílabas, a natureza da coisa significada. Mas nem todos os
nomes têm este carácter natural; alguns, como por exemplo os
nomes dos números, sã o puramente convencionais. De qualquer
maneira, não se pode sustentar, como faz Crátilo, que a ciência dos
nomes seja também ciência das coisas: que não haja outra via para
indagar e descobrir a realidade que não seja a de descobrir-lhes os
nomes, e que não se possa ensinar senão os próprios nomes. Dado
que os nomes pressupõem o conhecimento das coisas, os primeiros
homens que os descobriram deviam conhecer as coisas por outra
via, uma vez que não dispunham ainda dos nomes; e nós próprios não
podemos apelar para outros nomes para julgar da correcção dos
nomes, mas devemos recorrer à realidade de que o nome é a
imagem. De modo que o critério para compreender e julgar do valor
das palavras leva-nos a procurar, para além das palavras, a própria
natureza das coisas. O diálogo contém assim a enunciação das três
alternativas fundamentais que posteriormente se iriam apresentar
constantemente na história da teoria da linguagem, a saber:

1.º - a tese sustentada pelos Eleatas, pelos Megáricos, pelos


Sofistas e por DemócrIto (fr. 26, Diels), de que a linguagem é pura
convenção, quer dizer, devida exclusivamente à livre
iniciativa dos homens;

2.O a tese sustentada por Crátilo e que pertencia a Heraclito (fr.


23 e, 114, Diels) e aos Cínicos de que a linguagem é naturalmente
produto da acção causal das coisas;

3.o a tese, defendida por Platão, de que a linguagem é a escolha


inteligente do instrumento que serve para aproximar o homem do
conhecimento das coisas. Na ilustração desta última tese Platão
refere-se explicitamente às ideias (440 b), a que chama mais
frequentemente "substâncias" (338 b, 423 d): por
170

cujo nome compreende: "o que o objecto é" (428 d). Todavia, Platão
não atribui a produção da linguagem à própria natureza das coisas:
considera-a, com os convencionalistas, uma produção do homem.
Mas admite ao mesmo tempo que esta produção não é arbitrária,
antes é dirigida, até onde é possível, para o conhecimento das
essências, isto é, da natureza das coisas. O teorema fundamental
que Platão se propõe defender é que a linguagem pode ser mais ou
menos exacta ou mesmo errada ou, por outras palavras, que "se
pode dizer o falso": teorema que não cabe nas outras duas
concepções da linguagem, ou porque consideram que a linguagem é
sempre exacta, ou porque uma convenção vale tanto como outra, ou
porque é a natureza das coisas a impô-lo. A defesa deste teorema
abre o caminho à ontologia do Sofista.
Por fim, Platão ataca no Górgias a arte que constituía a principal
criação dos Sofistas e que era a base do seu ensino: a retórica. A
retórica pretendia ser uma técnica da persuasão, à qual parecia
completamente indiferente a tese a defender ou o assunto tratado.
Platão objecta ao conceito desta arte que toda a arte ou ciência só
consegue ser verdadeiramente persuasiva a respeito do objecto que
lhe é próprio. A retórica não tem um objecto próprio: permite falar
de tudo, mas não consegue persuadir senão aqueles que têm um
conhecimento inadequado e sumário das coisas de que trata, ou seja
os ignorantes. Não é, pois, uma arte, mas tão só uma prática
adulatória que oferece a aparência da justiça e está para a política,
que é arte da justiça, como a culinária está para a medicina:
retórica e culinária excitam o gosto, aquela o da alma, esta o do
corpo; política e medicina curam verdadeiramente respectivamente
a alma e o corpo. A retórica pode ser útil para defender com
discursos a própria injustiça e para evitar sofrer a
171

pena da injustiça cometida. Ora isto não é uma vantagem. O mal,


para o homem, não é sofrer a injustiça, mas cometê-la, porque isso
é mancha e corrompe a alma; e subtrair-se à pena da injustiça
cometida é um mal ainda pior, porque tira à alma a possibilidade de
libertar-se da culpa, expiando-a. Pela sua indiferença para com a
justiça da tese a defender, a retórica implica, na realidade, a
convicção (exposta no diálogo por Cálicles) de que a justiça é
somente uma convenção humana, que é tolice respeitar e de que a
lei da natureza é a lei do mais forte. O mais forte segue só o
próprio prazer e não cuida da justiça; tende à proeminência sobre
os outros e tem como única regra o próprio talento. Contra este
imoralismo observa, no entanto, Platão que o intemperante não é o
homem melhor do mesmo modo que não é o mais feliz, uma vez que
passa de um prazer ao outro insaciavelmente, assemelhando-se a
uma pipa rota que nunca mais se enche. O prazer é a satisfação de
uma necessidade; e a necessidade é sempre deficiência, isto é, dor:
prazer e dor condicionam-se reciprocamente e não há um sem o
outro, Ora o bem e o mal não são conjuntos mas separados, não
podendo assim identificar-se senão pela virtude; e a virtude é a
ordem e a regularidade da vida humana. A alma boa é a alma
ordenada; que é a um tempo sábia, temperante e justa.

A polémica contra os sofistas, conduzida pelo grupo de Sócrates,


faz emergir os problemas que aquele ensino apresentava. A virtude
é ciência; pode, portanto, ensinar-se e aprender-se. Mas o que é
aprender? Eis o primeiro problema. Cria ele, indubitavelmente, um
vínculo entre um homem e outro homem e entre o homem e a
ciência: de que natureza é este vínculo? Eis um outro problema. E
o que é exactamente a ciência em que consiste a virtude? Qual é o
objecto desta ciência, o mundo ou a subs172

tância sobre que ela versa? Eis o último e mais grave problema que
brota do ensino socrático. A pesquisa platónica iria debater, no seu
desenvolvimento ulterior, estes problemas; quer na sua
singularidade, quer nas suas relações recíprocas.

§ 49. O APRENDER E OS SEUS OBJECTOS (AS IDEIAS)

Ao problema do aprender é dedicado o Ménon. Segundo o princípio


erístico, não se pode aprender o que se sabe nem o que se não sabe:
visto que ninguém busca saber o que sabe, nem pode buscar saber
se não sabe que coisa buscar.
a este princípio opõe Platão o mito da anamnese.
a alma é imortal e nasceu muitas vezes, e viu já todas as coisas,
quer neste mundo, quer no Hades: não é, pois, de espantar que
possa recordar o que antes sabia. A natureza em si é toda igual:
uma vez que a alma aprendeu tudo, nada impede que, quando ela se
recorda de uma só coisa - no que consiste precisamente o
aprender-, encontre por si tudo o resto, se tiver ânimo e não se
cansar da pesquisa; dado que pesquisar e aprender são o mesmo que
recordar-se. A doutrina dos sofistas torna-nos preguiçosos, porque
nos dissuade da pesquisa; o mito da alma imortal e do aprender
como reminiscência torna-nos activos e incita-nos à pesquisa. Platão
confirma esta doutrina pelo exemplo famoso do escravo que,
habilmente interrogado, consegue compreender por si, ou seja
aprender e recordar, o teorema de Pitágoras. O mito da
reminiscência exprime aqui o princípio da unidade da natureza: a
natureza do mundo é uma só, e é ainda una com a natureza da alma.
Pelo que, partindo de uma coisa singular, aprendida num acto
singular, o homem pode procurar aprender as outras coisas,
173

que àquela estão unidas, mediante sucessivos actos de


aprendizagem ligados ao primeiro no curso da pesquisa (Mén., 81 c).
O mito tem aqui, como algures em Platão, um significado precioso: a
anamnese exprime, nos termos da crença órfica e pitagórica, da
cadeia dos nascimentos, aquela unidade da natureza das coisas e
aquela unidade entre a natureza e a alma que torna possível a
pesquisa e a aprendizagem. Porém, quer o mito da anamnese, quer a
doutrina da unidade da natureza, são explicitamente apresentadas
por Platão como hipóteses semelhantes às de que se servem os
geómetras. A hipótese põe-se quando não se conhece ainda a
solução de um problema e se antecipa esta solução deduzindo-lhe as
consequências que podem depois confirmá-la ou refutá-la (Mén., 8/
a). Como veremos, o uso da hipótese faz parte integrante do que
Platão entendia por procedimento dialéctico.

Se, pois, se põe a hipótese que a virtude é ciência, deve admitir-se


que pode ela ser aprendida e ensinada. Como pode então acontecer
que não haja mestres nem discípulos de virtude? Mestres de
virtude não o são decerto os sofistas, nem o foram os homens mais
eminentes (Aristides, Temístocles, etc.) que a Grécia teve, os quais
não souberam transmitir a sua virtude aos filhos. Ora isto
aconteceu e acontece porque, para aqueles homens, a virtude não
era verdadeiramente sageza (frónesis), mas uma espécie de
inspiração divina, como a dos profetas e a dos poetas. A sageza no
seu grau mais elevado é ciência, no seu grau mais baixo é opinião
verdadeira. A opinião verdadeira distingue-se da ciência por lhe
faltar uma garantia de verdade. Platão compara-a às estátuas de
Dédalo, que parecem sempre prestes a sumir-se. As opiniões
tendem a escapar-se "enquanto não forem ligadas em um discurso
causal" (Mén., 98 a). Quando estão ligadas entre si em um discurso
causal consolidam-se e
174

tornam-se ciência. A ciência é, por isso, mais preciosa que as


opiniões verdadeiras, e distingue-se destas pelo encadeamento
racional que estabelece entre os seus objectos.

O Ménon esboça as primeiras linhas de uma teoria do aprender que,


todavia, deixa em aberto numerosos problemas. Se o aprender é um
recordar-se, que valor tem, no que a ele concerne, o conhecimento
sensível? E qual é o objecto do aprender? Por outro lado, toda a
teoria da anamnese se funda no pressuposto da imortalidade da
alma. é possível demonstrar este pressuposto? Tais são os
problemas debatidos no Fédon. Mas a própria implantação destes
problemas conduz Platão definitivamente além do ponto que
Sócrates havia alcançado. A determinação de um objecto da
ciência, de um objecto que nada tem que ver com as coisas
sensíveis, como a ciência nada tem que ver com o conhecimento
sensível, induz Platão à formulação da teoria das ideias.

Esta teoria não vem organicamente formulada em o Fédon: é


somente pressuposta como algo de já conhecido e aceite pelos
interlocutores como hipótese fundamental da investigação. Talvez
justamente por ser ela o centro para que convergem as directivas
da sua filosofia, se negou Platão, conformemente ao princípio do seu
ensino (§ 42), a tratá-la sistematicamente. Era talvez objecto das
"doutrinas não escritas" de que fala o próprio Platão em a Carta VI/
(341 c), e que Aristóteles também assinala em várias passagens;
doutrinas que constituíam, possivelmente, o património da
Academia. Evidenciam-se, todavia, em o Fédon, algumas
determinações fundamentais que Platão atribui às ideias. Essas
determinações são três:
1.o as ideias são os objectos específicos do conhecimento racional;
2.o as ideias são critérios ou princípios de julgamento
175

das coisas naturais;


3.o as ideias são causas das coisas naturais.

1.º - Como objectos do conhecimento racionaL as ideias são


chamadas por Platão entes ou substâncias, e são nitidamente
distintas das coisas sensíveis. Pela primeira vez se faz em o Fédon o
balanço das críticas que Platão dirigiu contra os sofistas nos
diálogos precedentes. O defeito fundamental dos sofistas é que
eles se recusam a ir além das aparências: pelo que ficam seus
prisioneiros e, falando com propriedade, não são filósofos. A
filosofia consiste no prosseguir para além das aparências e, em
primeiro lugar, das aparências sensíveis. A função da filosofia,
declara-se em o Fédon, é a de afastar a alma da investigação "feita
com os olhos, com os ouvidos e com os outros sentidos", o de
recolhê-la e concentrá-la em si mesma de maneira a que ela
enxergue "o ser em si"-, e caminha assim da consideração do que é
sensível e visível até à consideração do que é inteligível e invisível.
Aqui se vem enxertar no tronco da filosofia socrática a oposição,
característica do Eleatismo, entre a via da opinião e a via da
verdade; e se põe, como objecto próprio da razão, o ser em si, a
ideia. Ã antítese eleática vem adjunto, por outro lado, o mito
órfico-pita,,órfico, se a sensibilidade está ligada ao corpo e é um
impedimento, mais do que um auxílio, para a pesquisa, a pesquisa
exige que a alma se separe, tanto quanto possível, do corpo, e viva,
por conseguinte, na expectativa e na preparação da morte, com a
qual a separação se torna completa. Todavia, as outras
determinações das ideias que Platão apresenta, fundadas como são
nas conexões entre ideias e coisas, excluem a rigidez eleática da
oposição entre a razão e os sentidos.
2.o -As ideias constituem, com efeito, os critérios para julgar as
coisas sensíveis. Por exemplo: para
176

julgar se as duas coisas são iguais, servimo-nos da ideia de igual,


que é a igualdade perfeita a que só imperfeitamente se adequam os
iguais sensíveis. Para julgar do que é bom, justo, santo, belo, o
critério é fornecido pelas ideias correspondentes, isto é, pelas
entidades a que estes conceitos correspondem. As ideias são, por
conseguinte, em o Fédon (75 c-d), critérios de avaliação; são mesmo
os próprios valores.
3.o - As ideias são as causas das coisas naturais. Platão apresenta
esta doutrina como uma consequência imediata da teoria de
Anaxágoras de que o Intelecto é a causa ordenadora de todas as
coisas. "Se assim é, se o Intelecto ordena todas as coisas e dispõe
cada uma do modo melhor, encontrar a causa por que cada coisa se
gera, se destrói ou existe significa encontrar qual é para ela o
melhor modo de existir, de modificar-se ou de agir" (Féd., 97 c).
Deste ponto de vista, "o óptimo e o excelente" são a única causa
possível das coisas e o ú nico objecto da ciência: uma vez que quem
sabe reconhecer o melhor pode também reconhecer o pior.
Anaxágoras foi, certamente, infiel a este princípio, mas Platão
declara que deseja, bem ao contrário, permanecer-lhe fiel, e que
não admitirá portanto outras causas das coisas que não sejam as
razões (logoi) das próprias coisas: a perfeição ou o fim a que elas se
destinam (Ib., 99 e). As ideias são, -por isso, ao mesmo tempo
critérios de avaliação e causas das coisas naturais: num caso como
no outro as suas funções são de logoi, de razões das coisas.

A imortalidade da alma, necessária para justificar a função da


filosofia, é demonstrável precisamente fundando-se na doutrina das
ideias. Como as ideias, a alma é, com efeito, invisível, e por isso é
ainda, presumivelmente, indestrutível. Por outro lado, a
reminiscência é uma outra prova da sua imortalidade, na medida em
que demonstra a sua
177

pré-existência. Finalmente, se se quiser compreender a natureza da


alma, preciso é que busquemos a ideia de que ela participa; e essa
ideia é a vida. Porém, dado que participa necessariamente da vida, a
alma não pode morrer: e ao avizinhar-se a morte, não fica vítima
dela, mas afasta-se sem sofrer qualquer dano e conservando a
inteligência.

É desta forma que o desenvolvimento da teoria do aprender


estabelecida em o Ménon conduz, em o Fédon, a determinar o
objecto do aprender como ideia ou valor objectivo, e recebe neste
diálogo a demonstração do seu pressuposto fundamental, a
imortalidade.

§ 50. O EROS

O aprender estabelece entre o homem e o ser em si entre os


homens associados na pesquisa comum uma relação que não é
puramente intelectual, uma vez que compromete a totalidade do
homem, e por isso, também a sua vontade. Esta relação é definida
por Platão como amor (eros). À teoria do amor são dedicados dois
dos diálogos mais perfeitos, de um ponto de vista artístico, o
Banquete e o Fedro.
O segundo é, decerto, posterior ao primeiro. O Banquete considera
predominantemente o objecto do amor, quer dizer a beleza, e
procura determinar os graus hierárquicos dela. O Fedro considera,
ao contrário, o amor predominantemente na sua subjectividade,
como aspiração para a beleza e elevação progressiva da alma ao
mundo do ser, a que a beleza pertence.

Os discursos que os interlocutores do Banquete pronunciam um após


outro em louvores de eros exprimem as características
subordinadas e acessórias do amor, características que a doutrina
exposta por Sócrates unifica e justifica. Pausânias distingue do
eros vulgar, que se volve para os corpos, o eros
178

celeste, que se volve para as almas. O médico Erixímaco vê no amor


uma força cósmica que determina as proporções e a harmonia de
todos os fenómenos, assim no homem como na natureza.
Aristófanes exprime, com o mito dos seres primitivos compostos de
homem e de mulher (andrógenos), divididos pelos deuses em duas
metades, para seu castigo, uma das quais caminha no encalço da
outra para se unir a ela e reconstituir assim o ser primitivo,
exprime, dizíamos, um dos traços fundamentais que o amor
manifesta no homem: a insuficiência. É precisamente por este
carácter que Sócrates começa: o amor deseja qualquer coisa que
não tem, mas de que precisa, e é, portanto, imperfeição.
O mito di-lo, com efeito, filho de Pobreza (Penia) e de Conquista
(Poros); não é, pois, um deus mas um demónio; pois que não tem a
beleza mas a deseja, não tem a sabedoria, mas aspira a possuí-la e
é, portanto, filósofo. Os deuses, ao invés, são sapientes. O amor é,
por conseguinte, desejo de beleza; e a beleza deseja-se porque é o
bem que torna feliz. O homem que é mortal tende a gerar em beleza
e daí a perpetuar-se através da geração, deixando após si um ser
que se lhe assemelha. A beleza é o fim (telos), o objecto do amor.
Mas a beleza tem graus diversos a que o homem somente pode
elevar-se por aproximações sucessivas, ao longo de uma lenta
caminhada. Em primeiro lugar, é a beleza de um corpo a que atrai e
prende o homem. Este apercebe-se em seguida que a beleza é igual
em todos os corpos e começa assim a desejar e a amar toda a
beleza corpórea. Mas acima dessa há a beleza da alma; ainda mais
acima, a beleza das instituições e das leis, além desta a beleza
das ciências e, finalmente, acima de tudo, a beleza em si, que é
eterna, superior ao devir e à morte, perfeita, sempre igual a si
mesma e fonte de toda a outra beleza (210 a -211 a).
179

Como pode a alma humana percorrer os graus desta hierarquia, até


alcançar a beleza suprema? Eis o problema do Fedro, que parte,
portanto, da consideração da alma e da sua natureza. A alma é
imortal enquanto é incriada; efectivamente, move-se por si, pelo que
tem em si mesma o princípio da sua vida. Pode exprimir-se a sua
natureza "de maneira humana e mais breve" por meio de um mito. É
semelhante a uma parelha de cavalos alados, conduzidos por um
auriga. Um dos cavalos é excelente, o outro é péssimo; de modo que
o trabalho do auriga é difícil e penoso. O auriga procura conduzir ao
céu os cavalos, levando-os até à corte dos deuses, lá onde fica a
região supra-celeste (hiperurânio) que é a sede do ser. Nesta
região está a "verdadeira substância (ousía), sem cor e sem forma,
impalpável, que só pode ser contemplada pelo guia da alma, que é a
razão, a substância que é o objecto da verdadeira ciência (Fedr.,
247 c). Esta substância é a totalidade das ideias justiça em si,
temperança em si, etc.). e só pode ser contemplada pela alma;
mesmo assim mal, pois que o cavalo ruim a puxa para baixo. Todas as
almas contemplam, por conseguinte, em maior ou menor parte a
substância do ser, e quando, por esquecimento ou por culpa, o
pesadume a acomete, perde as asas e encarna-se, indo vivificar o
corpo de um homem que será exactamente aquilo em que ela o
transformar. A alma que viu mais entra para o corpo de um homem
que se irá consagrar ao culto da sabedoria ou do amor; as almas que
viram menos encarnam-se em homens que cada vez se afastarão
mais da pesquisa da verdade e da beleza. Ora a recordação das
substâncias ideais é precisamente despertada pela beleza, na alma
que caiu e se encarnou. Efectivamente, mal vê a beleza o homem
reconhece-a de chofre, pela sua luminosidade. A vista, que é o mais
180

agudo dos sentidos corpóreos, não vê nenhuma das outras


substâncias, pode ver, no entanto, a beleza. "Só à beleza coube o
privilégio de ser a substância. mais evidente e mais amável". Ela faz
de medianeira entre o homem caído e o mundo das ideias; e o
homem responde com amor ao seu apelo. É verdade que o amor pode
também ficar preso à beleza corpórea e pretender gozar desta
somente; mas quando é sentido e realizado na sua verdadeira
natureza, o amor torna-se o guia da alma para o mundo do ser.
Neste caso já não é tão só desejo, impulso, delírio; os seus
caracteres passionais não deixam de existir e manifestar-se, mas
subordinam-se e fundem-se na pesquisa rigorosa e lúcida do ser em
si, da ideia.
O eros torna-se então procedimento racional, dialéctica (156). A
dialéctica é a um tempo pesquisa do ser em si e união amorosa da
alma no aprender e no ensinar. É, por conseguinte, psicagogia, guia
da alma, pela mediação da beleza, em direcção ao verdadeiro
destino. É, ainda, a verdadeira arte da persuasão, a verdadeira
retórica. Esta não é, como sustentam os sofistas, uma técnica a que
seja indiferente a verdade do seu objecto e a natureza da alma que
se quer persuadir, mas ciência do ser em si e, ao mesmo tempo,
ciência da alma. Nessa qualidade distingue as espécies da alma e
acha para cada uma o caminho apropriado para a persuadir e
conduzir ao ser.

Este conceito da dialéctica, que é o ponto culminante do Fedro e a


cúpula da teoria platónica do amor, viria a constituir o centro da
especulação platónica nos últimos diálogos.

§ 51. A JUSTIÇA

Todos os temas especulativos e todos os resultados fundamentais


dos diálogos precedentes se acham resumidos na obra máxima de
Platão, a República,
181

que os ordena e os unes ao redor do motivo central de uma


comunidade perfeita, em que o indivíduo encontra a sua perfeita
formação. O projecto de uma comunidade tal funda-se no princípio
que constitui a directriz de toda a filosofia platónica. "Se os
filósofos não governarem a cidade ou se os que agora achamos reis
ou governantes, não cultivarem verdadeira e seriamente a filosofia,
se o poder político e a filosofia não coincidirem nas mesmas pessoas
e a multidão dos que agora se ocupara exclusivamente de uma ou da
outra não for rigorosamente impedida de fazê-lo, é impossível que
cessem os males da cidade e até os do género humano" (Rep., V.,
473 d). Mas neste ponto do desenvolvimento da investigação, a
constituição de uma comunidade política governada por filósofos
oferece a Platão dois problemas fundamentais: qual é o escopo e o
fundamento de uma tal comunidade? Quem são propriamente os
filósofos?

À primeira pergunta responde Platão: a justiça. E, com efeito, a


República dirige-se explicitamente à determinação da natureza da
justiça. Nenhuma comunidade humana pode subsistir sem a justiça.
À opinião sofística que queria reduzi-la ao direito do mais forte,
objecta Platão que nenhum bando de salteadores ou de ladrões
poderia realizar qualquer roubo, se os seus componentes violassem
as normas da justiça uns em prejuízo dos outros. A justiça é
condição fundamental do nascimento e da vida do estado. Este deve
ser constituído por três classes: a dos governantes, a dos guardiões
ou guerreiros e a dos cidadãos, que exercem qualquer outra
actividade (agricultores, artesãos, comerciantes, etc.). A sageza
pertence à primeira destas classes, porque basta que os
governantes sejam sábios para que todo o estado seja sábio. A
coragem pertence à classe dos guerreiros. A temperança, como
acordo entre
182

governantes e governados sobre quem deve comandar o estado, é


virtude comum a todas as classes. Mas a justiça compreende em si
estas três virtudes: realiza-se ela quando cada cidadão se dedica à
tarefa que lhe é própria e tem o que lhe pertence. Com efeito, as
tarefas em um estado são muitas e todas necessárias à vida da
comunidade: cada qual deve escolher aquela a que se adapta e
dedicar-se-lhe. Só assim cada homem será uno e não já múltiplo; e o
próprio estado será uno (423 d).

A justiça garante a unidade e, consigo, a força do estado. Mas


garante igualmente a unidade e a eficiência do indivíduo. Na alma
individual Platão distingue, como no estado, três partes: a parte
racional, que é aquela pela qual a alma raciocina e domina os
impulsos; a parte concupiscível, que é o princípio de todos os
impulsos corporais; e a parte irascível, que é o auxiliar do princípio
racional e se enfurece e luta por aquilo que a razão considera justo.
Ao princípio racional pertencerá a sageza, ao princípio irascível a
coragem; ao passo que o acordo de todas as três partes em deixar o
comando à alma racional será a temperança. Também no homem
individual a justiça se terá quando cada parte da alma exercer
somente a função que lhe é própria.

Evidentemente que a realização da justiça não pode prosseguir


paralelamente no indivíduo e no estado. O estado é justo quando
cada indivíduo atende somente à tarefa que lhe é própria; mas o
indivíduo que atende só mente à própria tarefa é ele
próprio justo. A justiça não é só a unidade do estado em si mesmo e
do indivíduo em si mesmo, é, ao mesmo tempo, a unidade do
indivíduo e do estado e, por isso, o acordo do indivíduo com a
comunidade.

Duas condições são necessárias para a realização da justiça no


estado. Em primeiro lugar, a eliminação da riqueza e da pobreza;
ambas tornam impossí-
183

vel ao homem atender à sua tarefa. Mas esta eliminação não implica
uma organização comunista. Segundo Platão, as duas classes
superiores dos governantes e dos guerreiros não devem possuir
nada nem ter qualquer retribuição, além dos meios para viver. Mas a
classe dos artesãos não é excluída da propriedade; e os meios de
produção e de distribuição deixam-se nas mãos dos indivíduos. A
segunda condição é a abolição da vida familiar, abolição que deriva
da participação das mulheres na vida do estado com base na mais
perfeita igualdade com os homens, pondo como única condição a sua
capacidade. As uniões entre homens e mulheres são estabelecidas
pelo estado com vista à procriação de filhos sãos. E os filhos são
criados e educados pelo estado que a todos torna uma única grande
família. Estas duas condições tornam impossível um estado segundo
a injustiça, todas as vezes, é claro, que se verificar esta outra: que
o governo seja entregue aos filósofos.
A natureza da justiça esclarece-se indirectamente pela
determinação da injustiça. O estado de que fala Platão é o estado
aristocrático, em que o governo pertence aos melhores. Mas esse
estado não corresponde a nenhuma das formas de governo
existentes. Todas estas são degenerações, do estado perfeito; e os
topos de homem correspondentes são degenerações do homem
justo, que é uno em si e com a comunidade, pois que é fiel à sua
tarefa. São três as degenerações do estado e três as
correspondentes degenerações do indivíduo. A primeira é a
timocracia, governo fundado na honra, que nasce quando os
governantes se apropriam de terras e de casas; corresponde-lhe o
homem timocrático, ambicioso e amante do mandato e das honras,
mas desconfiado em relação aos sábios. A segunda forma é a
oligarquia, governo fundado no património, em que são os ricos quem
comanda, corresponde-lhe o
184

homem hávido de riquezas, parco e laborioso. A terceira forma é a


democracia, na qual os cidadãos são livres e a cada um é permitido
fazer o que quiser; corresponde-lhe o homem democrático, que não
é parco como o oligárquico, antes tende a abandonar-se a desejos
descomedidos. Finalmente, a mais baixa de todas as formas de
governo é a tirania, que nasce frequentemente da excessiva
liberdade da democracia. É a forma mais desprezível, porque o
tirano, para se proteger do ódio dos cidadãos, é obrigado a rodear-
se dos piores indivíduos. O homem tirânico é escravo das suas
paixões, às quais se abandona desordenadamente, e é o mais infeliz
dos homens.

§ 52. O FILÓSOFO

A parte central da República dedica-se ao delineamento da tarefa


própria do filósofo. Filósofo é aquele que ama o conhecimento na
sua totalidade e não somente em alguma sua parte singular. Mas que
coisa é o conhecimento? Pela vez primeira Platão põe aqui
explicitamente o critério fundamental da validade do conhecer:
"Aquilo que absolutamente é, é absolutamente cognoscível, aquilo
que de nenhum modo é, de nenhum modo é cognoscível" (477 a). Pelo
que ao ser corresponde a ciência, que é o conhecimento verdadeiro;
ao não-ser, a ignorância; e ao devir, que fica a meio do ser e do não-
ser, corresponde a opinião (doxa), que está a meio do conhecimento
e da ignorância. Opinião e ciência constituem todo o campo do
conhecimento humano. A opinião tem como domínio seu o
conhecimento sensível, a ciência o conhecimento racional. Quer o
conhecimento sensível quer o conhecimento racional se dividem em
duas partes, que se
185

correspondem simetricamente; têm-se, assim, os seguintes graus do


conhecer (Rep., VI, 510-11).

1O - A suposição ou conjectura (eikasfa), que tem por objecto


sombras e imagem.

2.o - A opinião acreditada, mas não verificada (pistis), que tem por
objecto as coisas naturais, os seres vivos, os objectos da arte, etc..

3.o - A razão científica (diànoia), que procede por meio de hipótese


partindo do mundo sensível. Esta tem por objecto os entes
matemáticos.

4.o - A inteligência filosófica (nóesis), que procede dialecticamente


e tem por objecto o mundo do ser.

Como as sombras, as imagens reflectidas, etc., são cópias das coisas


naturais, também as coisas naturais são cópias dos entes
matemáticos e estes, por sua vez, cópias das substâncias eternas
que constituem o mundo do ser. E, com efeito, o mundo do ser é o
mundo da unidade e da ordem absoluta. Os entes da matemática
(números, figuras geométricas) reproduzem a ordem e a proporção
do mundo do ser. Por sua vez, as coisas naturais reproduzem as
relações matemáticas e, assim, quando queremos julgar da realidade
das coisas recorremos à medida. Todo o conhecimento tem pois, no
seu cume o conhecimento do ser: todo o grau dele recebe o seu
valor do grau superior e todos do primeiro.

O homem deve caminhar desde a opinião até à ciência educando-se


gradualmente; e este processo é descrito por Platão por meio do
mito da caverna. No mundo sensível, os homens são como
escravos agrilhoados numa caverna e obrigados a ver no fundo dela
as sombras dos seres e dos objectos projectadas por um fogo que
arde fora. Tomam estas sombras pela realidade, porque não
conhecem a realidade verdadeira. Se um escravo se libertasse
186

e conseguisse sair da caverna, não poderia a principio suportar a luz


do sol; teria que se habituar a olhar as sombras, depois as imagens
dos homens e das coisas reflectidas na água, em seguida as próprias
coisas e só no fim de tudo poderia alçar-se à contemplação dos
astros e do sol. Só então ele se aperceberia que é justamente o sol
que nos dá as estações e os anos e que governa tudo o que existe no
mundo visível, e que do sol dependem ainda as coisas que ele e os
seus companheiros viam na caverna. Ora a caverna é precisamente o
mundo sensível; as sombras projectadas no fundo são os seres
naturais; o fogo é o sol. O nosso conhecimento das coisas naturais é
como o dos escravos. Se o escravo que primeiro se libertou voltar à
caverna, os seus olhos serão ofuscados pela obscuridade e não
saberá discernir as sombras; pelo que será escarnecido e
desprezado pelos companheiros, que concederão as honras máximas
aos que sabem mais agudamente ver as sombras. Mas ele sabe que a
verdadeira realidade está fora da caverna, que o verdadeiro
conhecimento não é o das sombras e, por isso, não experimentará
senão compaixão para com aqueles que se contentam com tal
conhecimento e o julgam verdadeiro.

A educação consistirá, pois, em volver o homem da consideração do


mundo sensível à consideração do mundo do ser; e em conduzi-lo
gradualmente a avistar o ponto mais alto do ser, que é o bem. Para
preparar o homem para a visão do bem podem servir as ciências que
têm por objecto aqueles aspectos do ser que mais se aproximam do
bem: a aritmética como arte do cálculo que permite corrigir as
aparências dos sentidos; a geometria como ciência dos entes
imutáveis; a astronomia como ciência do movimento mais ordenado e
perfeito, o dos céus; a música como ciência da harmonia. O bem
corresponde no mundo do ser ao
187
que o sol é no mundo sensível. Como o sol não só torna visível as
coisas com a sua luz mas as faz nascer, crescer e alimentar-se,
assim o bem não só torna cognoscívéis as substâncias que
constituem o mundo inteligível, mas lhos dá ainda o ser de que são
dotadas. -Por esta sua preeminência o bem não é uma ideia entre as
outras, mas a causa das ideias: não é substância, no sentido em que
as ideias são substâncias, mas é "superior à substância". Diz Platão:
"As coisas cognoscívéis não derivam, do bem somente a sua
cognoscibilidade, mas também o ser e a substância, enquanto o bem
não seja substância mas, em querer e poder, se situe ainda acima da
substância" (Rep., 509 b). O bem é a própria perfeição, ao passo
que as ideias são perfeições, isto é, bens; e não é o ser, porque é a
causa do ser. Este texto platónico está na base de todas as
interpretações religiosas do platonismo que foram iniciadas pelas
correntes neoplatónicas da antiguidade (§§ 114 ss.). Estas
correntes, insistindo na causalidade do bem, identificam-no como
Deus: mas esta identificação não encontra justificação nos textos
platónicos. A tese que Platão defende na passagem citada é a
mesma que havia defendido no Fédon: a identificação do poder
causal com a perfeição, visto que uma coisa possui tanto mais
causalidade quanto mais perfeita é. O neoplatonismo apropriou-se
desta tese; mas as implicações teológicas que o neoplatonismo lhe
atribui são estranhas ao pensamento platónico.

A inspiração fundamental deste pensamento é, como já se disse, a


finalidade política da filosofia. Em vista desta finalidade, o ponto
mais alto da filosofia não é a contemplação do bem como causa
suprema: é a utilização de todos os conhecimentos que o filósofo
pôde adquirir para a fundação de uma comunidade justa e feliz.
Segundo Platão, com efeito, faz parte da educação do filósofo o
regresso
188

à caverna, que consiste na reconsideração e na reavaliação do


mundo humano à luz do que se viu fora deste mundo. Regressar à
caverna significa, para o homem, pôr o que viu à disposição da
comunidade, dar-se conta ele próprio deste mundo que, apesar de
inferior, é o mundo humano, portanto o seu mundo, e obedecer ao
vinculo de justiça que o liga à humanidade na sua própria pessoa e na
dos outros. Deverá, pois, reabituar-se à obscuridade da caverna, e
então verá melhor do que os companheiros que ali permaneceram e
reconhecerá a natureza e os caracteres de cada imagem, por ter
visto o seu verdadeiro exemplar: a beleza, a justiça e o bem. Assim
poderá o estado ser constituído e governado por gente desperta e
não já, como acontece agora, por gente que sonha e combate entre
si por sombras, e disputa o poder como se este fosse um grande
bem (VII, 520 c). Só com o regresso à caverna, só comprometendo-
se no mundo humano, o homem terá completado a sua educação e
será verdadeiramente filósofo.

53. CONDENAÇÃO DA ARTE IMITATIVA

A filosofia é uma vida "em vigília", exige o abandono de toda a ilusão


sobre a realidade das sombras que nos jungem ao mundo sensível. A
arte imitativa, ao invés, está presa a esta ilusão; daqui a condenação
que Platão pronuncia sobre ela no livro X da República. Com efeito, a
imitação, por exemplo a da pintura, apoia-se na aparência dos
objectos; representa-os diversos nas diversas perspectivas
enquanto são os mesmos, e não reproduz senão uma pequena parte
da própria aparência, pelo que não consegue enganar senão as
crianças e os tolos. Isto acontece por prescindir completamente do
cálculo e da medida de que nos servimos
189

para corrigir as ilusões dos sentidos. Estes fazem-nos parecer os


mesmos objectos ora quebrados, ora direitos, conforme sejam
vistos dentro ou fora da água, e côncavos ou convexos, grandes ou
pequenos, pesados ou leves, por meio de outras ilusões. Nós
superamos estas ilusões recorrendo à parte superior da alma, que
intervém para medir, para calcular, para pesar. Mas a imitação, que
renuncia a estas operações, volve-se exclusivamente para a parte
inferior da alma, que é a mais afastada da sageza. O mesmo faz a
poesia. Esta excita a parte emotiva da alma, a que se abandona aos
impulsos e ignora a ordem e a medida em que consiste a virtude; e
assim vIra as costas à razão. O erro da poesia trágica ou cómica é
ainda mais grave; faz-nos comover com as desgraças fictícias que
se vêem na cena, leva-nos a rir imoderadamente de atitudes
chocarreiras que todos devem na realidade condenar, e deste modo
encoraja e fortalece a parte pior do homem. A isto acrescenta-se a
observação (já feita no Ion) de que o poeta não sabe
verdadeiramente nada, pois de outro modo preferiria realizar os
efeitos que canta ou praticar as artes que descreve; e teremos o
quadro completo da condenação que Platão pronuncia sobre a arte
imitativa.

Nenhum valor pode, por isso, ter a criação em que ela consiste. Se a
divindade cria a forma natural das coisas, se o artesão reproduz
esta forma nos móveis e nos objectos que cria, o artista não faz
mais que reproduzir os móveis ou os objectos criados pelo artesão e
ficará, por conseguinte, ainda mais afastado da realidade das coisas
naturais. Estas não têm realidade senão enquanto participam das
determinações matemáticas (medida, número, peso) que lhes
eliminam a desordem e os contrastes; ora a imitação prescinde
precisamente destas determinações matemáticas e contraditórias:
não pode, pois,
190

aspirar a nenhum grau de validade objectiva, e tende a encerrar o


homem naquela ilusão de realidade de que a filosofia deve despertá-
lo.

§ 54. O MITO DO DESTINO

Um estado como o delineado por Platão não é historicamente real.


Platão diz explicitamente que não importa a sua realidade, mas tão
só que o homem aja e viva em conformidade com ele (IX,
592 b). Sócrates foi o cidadão ideal desta ideal comunidade; por ela
e nela viveu e morreu. Certamente por isto chama-o Platão "o
homem mais justo e melhor". E. a exemplo de Sócrates, quem quiser
ser justo deve ter os olhos postos numa tal comunidade.

A justiça, como felicidade do homem à tarefa que lhe é própria, dá


lugar ao problema do destino. É o problema debatido no mito final
da República, e já referido no Fedro (249 b). Platão projecta
miticamente a escolha do próprio destino, que cada um faz no
mundo do além: mas o significado do mito, como de todos os mitos
platónicos, é fundamental. Er, morto em batalha e ressuscitado ao
fim de 12 dias, pôde narrar aos homens a sorte que os espera
depois da morte. A parte central da narração de Er diz respeito à
escolha da vida que as almas são convidadas a fazer no momento da
sua reencarnação. A Parca Làchesi, que notifica da escolha, afirma a
liberdade desta. "Não é o demónio que escolherá a vossa sorte, sois
vós que escolheis o vosso demónio. O primeiro que a sorte designar
será o primeiro a escolher o teor de vida a que ficará
necessariamente ligado. A virtude é livre em todos, cada um
participará dela mais ou menos consoante a estima ou a despreza.
Cada um é responsável pelo próprio destino, a divindade não
191

é responsável" (Rep., x, 617 e). As almas escolhem, por conseguinte,


segundo a ordem designada pela sorte, um dos modelos de vida que
têm ante si em grande número. A sua escolha depende em parte do
acaso, uma vez que os primeiros têm maior possibilidade de escolha;
mas também os que escolhem no fim, se escolherem judiciosamente,
podem obter uma vida feliz. Todo o significado do mito está nos
motivos que sugerem à alma a escolha decisiva. Até os que vêm do
céu às vezes escolhem mal, "porque não foram experimentados
pelos sofrimentos" e deixam-se assim deslumbrar por modelos de
vida aparentemente brilhantes, pela riqueza ou pelo poder que
encobrem a infelicidade e o mal. Mas as mais das vezes a alma
escolhe com base na experiência da vida precedente; e, assim, a
alma de Ulisses, lembrada dos antigos trabalhos e despida já de
ambição, escolhe a vida mais modesta e obscura, que fora
descurada por todos. De maneira que o mito, que parecia negar a
liberdade do homem na vida terrena e fazer depender todo o
desenvolvimento desta vida da decisão acontecida num momento
antecedente, confirma ao contrário a liberdade, porque faz
depender a decisão da conduta que a alma teve no mundo: daquilo
que o homem quis ser e foi nesta vida. Sócrates pode então pôr o
homem em guarda e adverti-lo a preparar-se para a escolha. "É este
o momento mais perigoso do homem e isto porque cada um de nós,
descuidando todas as outras ocupações, deve procurar atender
somente a isto: descobrir e reconhecer o homem que o porá capaz
de discernir o melhor género de vida e de sabê-lo escolher. (618 c).
Para isto é necessário calcular que efeitos têm sobre a virtude as
condições de vida, que resultados bons ou maus produz a beleza
quando se une à pobreza, ou à riqueza, ou às diversas capacidades
da alma, ou a quaisquer outras
192

condições da vida; e só considerando tudo isto em relação com a


natureza da alma se pode escolher a vida melhor, que é a mais justa.
"Em vida ou na morte, esta escolha é a melhor para o homem".

Este mito do destino, que afirma a liberdade do homem no decidir


da própria vida, fecha dignamente a República, o diálogo sobre a
justiça, que é a virtude pela qual todo o homem deve assumir e levar
a cabo a tarefa que lhe incumbe.

§ 55. FASE CRITICA DO PLATONISMO: "PARMéNIDES" E O


"TEETETO"

Pela primeira vez Sócrates não é, no Parménides, a personagem


principal do diálogo. A investigação platónica sobre o verdadeiro
significado da personalidade de Sócrates rasgou enfim o invólucro
doutrinal, de que estava historicamente revestida. Os resultados
que ela alcançou levantam outros problemas, requerem outras
determinações, problemas e determinações que não encontram
apoio na letra do ensino socrático, mas que são no entanto
necessários para compreender plenamente tal ensino e para lhe
conferir a sua justificação definitiva. A pesquisa de Platão torna-se
cada vez mais técnica, o campo de investigação delimita-se e
aprofunda-se. Depois da grande síntese da República, a pesquisa
procura atingir outros níveis de profundidade, para o que se devem
admitir à partida os ensinamentos de outros mestres e, em primeiro
lugar, de PARMéNIDES.

O Parménides marca o ponto crítico no desenvolvimento da teoria


das ideias. As ideias aparecem neste diálogo definidas (ou
redefinidas) e classificadas e são formulados claramente os
problemas a que elas dão lugar, quer nas suas relações recíprocas,
quer nas suas relações com as coisas, quer ainda nas suas relações
com a mente humana.
193

Podem tomar-se as respostas que Sócrates dá a Parménides, na


introdução do diálogo, como constituindo, no seu conjunto, uma
olhadela critica que o próprio Platão lançou, em dado momento,
sobre a doutrina fundamental da sua filosofia. Tais respostas
encontram, de facto, confirmações literais nas referências às
ideias, que se podem observar nos outros Diálogos de Platão.

Em primeiro lugar: o que é a ideia? "Penso eu que -tu julgas-diz


Parménides (132 a)-que há uma forma individual em cada caso, por
este motivo: quando observas muitas coisas grandes, julgas que há
uma única ideia que é a mesma quando se olham todas essas coisas e
que, por conseguinte, a grandeza é uma unidade". Por outras
palavras, a ideia é a forma única de um múltiplo que aparece como
tal a quem abrange este múltiplo com um só golpe de vista
intelectual: é esta a definição que melhor se presta para exprimir a
noção da ideia, tal como é utilizada em toda a obra de Platão.
Em segundo lugar: de que objectos há ideias? A resposta do
Parménides (130 b-d) é que: há seguramente ideias de objectos
como a semelhança e a dissemelhança, a pluralidade e a unidade, o
repouso e o movimento, o um e os muitos, etc.; b) há seguramente
ideias do justo, do bem, do belo, e de todas as outras
determinações deste género; c) é duvidoso que haja ideias de
objectos como homem, fogo, água, etc.; d) não há, com certeza,
ideias de objectos desprezíveis ou ridículos como cabelo, lodo,
porcaria, etc.. Estas respostas encontram plena confirmação na
obra de Platão. Que haja ideias dos objectos da espécie a), ou seja
de objectos matemáticos, é doutrina platónica fundamental. São
estas as ideias que, na República, Platão considera objecto da razão
científica, por conseguinte das ciências matemáticas (Rep., 510 c). É
também doutrina fundamental do platonismo que haja as ideias-
194

-valores, que são o objecto específico da filosofia em sentido


estricto (dialéctica), ou seja da inteligência ou pensamento (noesis)
(Rep., 534 a). A dúvida acerca da existência de ideias de coisas
sensíveis corresponde a uma conhecida oscilação do pensamento
platónico sobre este assunto. As mais das vezes Platão nem sequer
fala de ideias do género, limitando a sua exemplificação aos entes
matemáticos e aos valores; outras vezes, porém, fala também de
ideias de coisas: por exemplo do frio e do calor (Fed., 103 d); de
camas e de mesas (Rep., 596 a-b); do homem ou do boi (Fil., 15 a);
do fogo e da água (Tim., 51 a-b). Esta oscilação da doutrina
platónica pode exprimir-se bastante bem dizendo que Platão se
manteve "em dúvida" no que respeita às ideias de objectos
sensíveis. Quanto aos objectos da classe d), Platão nunca mais falou
de ideias relativamente a eles: de maneira que a exclusão do
Parménides corresponde também aqui a uma situação de facto.
Todavia, a dúvida a respeito das ideias de objectos sensíveis e a
negação das ideias de objectos desprezíveis são abaladas pela
observação de Parménides de que Sócrates, neste caso, se deixou
influenciar pelas opiniões dos homens e que, quando a filosofia o
prender completamente, ele não desprezará coisa alguma por
insignificante e miserável que ela seja (Par., 130 e). Esta
observação anuncia óbviamente uma noção de ideia de tipo lógico-
ontológico mais do que matemático-ético: isto é, uma noção que se
firme nos caracteres puramente formais de um múltiplo para ir
reconhecer neste unia forma ontológica única, e que se não deixe
embaraçar neste procedimento por considerações éticas. Com
efeito, é esta a posição que podemos encontrar nos diálogos
platónicos posteriores ao Parménides e mais precisamente no
Sofista, no Filebo, no Timeu.
195

Em terceiro lugar: qual é a relação entre as ideias e a mente do


homem? O Parménides acrescenta dois pontos a este propósito: 1)
as ideias não existem somente como pensamentos na mente dos
homens: com efeito, seriam neste caso pensamentos de nada (132
b); 2) as ideias não existem fora de toda a relação com o homem:
com efeito, seriam neste caso incognoscíveis para o homem, visto
que objecto de uma "ciência em si" que não teria nada que ver com a
do homem e poderia pertencer somente à divindade (134 a-e). Estas
duas determinações são fundamentais: ambas correspondem a
pontos de vista constantemente sustentados por Platão em toda a
sua obra.

Em quarto lugar: quais são as relações das ideias entre si e das


ideias com os objectos de que constituem a unidade? Este é o
problema fundamental que se discute em todo o resto do diálogo
como problema das relações entre o um e os muitos.
O um é a ideia: os muitos são os objectos de que a ideia é a unidade.
No que respeita a esta relação, a dificuldade consiste em
compreender como poderá a ideia ser participada por muitos
objectos ou derramada neles sem que resulte com isso multiplicada
e, portanto, destruída na sua unidade. Por outro lado, da mesma
noção de ideia parece emanar a multiplicação das próprias ideias
até ao infinito: uma vez que se tem uma ideia todas as vezes que se
considera na sua unidade uma multiplicidade de objectos, ter-se-á
também uma ideia quando se considerar a totalidade destes
objectos mais a sua ideia. Esta será uma terceira ideia que, se
considerada por sua vez conjuntamente com os objectos e a
precedente ideia, dará lugar a uma quarta ideia, e assim por diante
até ao infinito. É este o chamado argumento do "terceiro homem",
cuja invenção se atribuía ao megárico Polixeno e que Aristóteles
refere várias vezes (Met., 990 b, 15; 1038 b, 30;
196

1059 b, 2). Não se escapa a esta dificuldade definindo como


"semelhança" a relação entre a ideia e os objectos, e considerando
a ideia como arquétipo e os objectos como imagens ou cópias dela:
pois que a própria semelhança se torna neste caso uma ideia que se
acrescenta como terceiro termo aos objectos e à ideia, dando lugar
a uma nova semelhança, etc..

Estas dificuldades são de tal monta que Parménides dirige a


Sócrates uma pergunta crucial: "Que farás agora da filosofia?" Com
efeito, não se pode abandonar facilmente a noção de ideia, pois que
sem ela, quer dizer, sem um ponto fixo no meio da multiplicidade e
variabilidade das coisas, não se pode pensar e ainda menos se pode
filosofar: sem a ideia, a própria possibilidade de dialogar ficaria
destruída (135 c). O único caminho de salvação é o que o próprio
Parménides traça: discutir, como hipótese, todos os possíveis modos
de relação entre o um e os muitos e levar até ao fundo as
consequências que derivam de cada uma das hipóteses. E as
hipóteses fundamentais são duas: que o uno seja uno no sentido de
ser absolutamente uno; e que o uno seja na sentido de existir. A
primeira hipótese refuta-se por si, visto que, excluindo a existência
de qualquer multiplicidade, não só se exclui todo o devir mas
também o ser do uno e a própria possibilidade de conhecer ou
enunciar o uno: pois que o próprio conhecê-lo ou enunciá-lo o
multiplica (142 a). Se, ao invés, o uno é , no sentido de que existe, o
seu existir, distinguindo-se da sua unidade, introduz prontamente
no próprio uno uma dualidade que pode ser multiplicada e incluir a
multiplicidade, o devir e, assim, a cognoscibilidade e enunciabilidade
do uno (155 d-c).

Há, no entanto, um sentido em que o uno não é (e em que, por isso,


tão-pouco o múltiplo é): o uno não é no sentido de que não é
absolutamente
197

uno, de que não subsiste -fora da sua relação com o múltiplo, de que
não exclui o próprio multiplicar-se e articular-se em um múltiplo
que, apesar do sujeito ao devir e ao tempo, constitui sempre uma
ordem numérica, ou seja uma unidade. E os muitos não são no
sentido de que não são pura e absolutamente muitos, ou seja,
privados de qualquer unidade, pois que em tal caso se dispersariam
e pulverizariam no nada, não podendo constituir um múltiplo. O uno,
por conseguinte, é (existe), mas ao mesmo tempo não é
absolutamente uno: os muitos são (existem), mas ao mesmo tempo
não são absolutamente muitos.

O diálogo traça, sob a forma de uma solução puramente lógica, uma


conexão vital entre o uno e os muitos, por conseguinte entre o
mundo do ser e o mundo do homem. Pela boca de Parménides, que na
sua filosofia negara resolutamente o não-ser (§ 14), prepara-se o
reconhecimento da realidade do não-ser (do mundo sensível e do
homem), mediante a afirmação da estreita relação dos muitos com o
uno. Esta reivindicação será feita explicitamente no Sofista; mas
ela pressupõe a investigação sobre o processo subjectivo do
conhecer, que se realiza no Teeteto.

Pode parecer estranho que nesta fase de desenvolvimento da


investigação platónica apareça um diálogo abertamente socrático
em que a personagem de Sócrates é introduzida para fazer valer
em toda a sua força negativa e destruidora a arte maiêutica (§ 27).
Mas o Teeteto debate um problema que reentra no âmbito do
ensino socrático, o da ciência, e tem um escopo predominantemente
crítico, querendo demonstrar como é impossível alcançar qualquer
definição da ciência permanecendo no domínio da pura
subjectividade cognoscente. A finalidade do Teeteto é
complementar e convergente com a do Parménides. O Parménides
pretendeu
198

demonstrar que é impossível considerar o ser no seu isolamento,


como unidade absoluta sem relação com o homem e com o seu mundo
(com os "muitos"). O Teeteto pretende demonstrar que é impossível
considerar o conhecimento verdadeiro, a ciência, como pura
subjectividade, sem relação com o mundo do ser (com o " uno"). Nas
definições que se dão da ciência e que são refutadas por Sócrates
uma por uma, não aparece de facto qualquer referência ao mundo
das ideias ou do ser em si; e o diálogo termina negativamente.
Parménides, o filósofo do ser, é introduzido no diálogo que tem o
seu nome para demonstrar a insuficiência do ser na sua
objectividade. Sócrates, o filósofo da subjectividade humana, é
introduzido no Teeteto para demonstrar a insuficiência do
conhecimento como subjectividade isolada do ser.

A tese que no Teeteto primeiro e mais longamente se discute é a


tese da extrema subjectividade do conhecer, a de Protágoras: a
ciência é a opinião, é o que aparece, logo é sensação. Mas a sensação
não fornece qualquer critério de juízo por que a sensação do
ignorante equivale à do sábio, a do são à do doente, a do homem à
do animal; enquanto a ciência deve possuir um critério, uma medida
que permita julgar do valor das coisas inclusivamente para o futuro
(de que não há sensação). Pode então dizer-se que a ciência é
opinião verdadeira, entendendo por opinião o pensamento. "Pensar é
um discurso que a alma faz por si consigo mesma, acerca dos
objectos que examina. Parece-me a mim que quando a alma pensa
não faz mais que dialogar consigo mesma, interrogando-se e
respondendo-se, afirmando e negando" (189 e 190-a). Mas esta nova
definição, se reduz a metade a relatividade e a mutabilidade que a
primeira punha na ciência, continua encerrada no âmbito da
subjectividade. Se a ciência é opinião verdadeira, deve distinguir-se
199

da opinião falsa; ora é impossível determinar em que consiste a


falsidade de uma opinião. No entanto, a opinião deve ter sempre,
como se viu já (§ 49), um objecto real; e se iem um objecto real, é
verdadeira. Acrescentar que a ciência consiste na opinião
verdadeira acompanhada de razão, não ajuda nada; uma vez que,
seja como for que se entenda a razão que deve justificar e apoiar a
opinião verdadeira, fica-se no âmbito do pensamento subjectivo e
não se garante de nenhum modo a validade objectiva do
conhecimento.

A conclusão negativa do Teeteto é fecunda em resultados. A


tentativa de reduzir a ciência ao pensamento subjectivo, ao colóquio
interior da alma consigo mesma, não tem sucesso: como não tem
sucesso a tentativa de reduzir o ser à pura objectividade, às ideias,
sem nenhuma relação com a inteligência do homem. As indicações do
Parménides e do Teeteto são, pois, claras. Se se quer justificar a
realidade do ser e a verdade do conhecimento, necessário é que se
alcance um ser que não seja puramente objectivo, mas que
compreenda em si o conhecimento, ou um conhecimento que não seja
puramente subjectivo, mas que compreenda em si o ser.

§ 56. O SER E AS SUAS FORMAS

A esta conclusão se chega explicitamente no Sofista. Contra os


"amigos das ideias", quer dizer contra a interpretação objectivista
da teoria das ideias, afirma-se resolutamente a impossibilidade de
que "o ser perfeito seja privado de movimento, de vida, de alma, de
inteligência, e que não viva nem pense". É necessário admitir que o
ser compreende em si a inteligência (ou o sujeito) que o conhece;
esta, como se viu desde o Parménides, não
200

pode ficar fora do ser, de outro modo o ser permaneceria


desconhecido. Mas a inclusão da inteligência no ser modifica
radicalmente a natureza do ser. Este não é imóvel, porque a
inteligência é vida e por isso movimento: o movimento é pois uma
determinação fundamental, uma forma (eidos) do ser. Isto não quer
dizer que o ser se mova em todos os sentidos, como sustentam os
Heracliteanos; é necessário admitir que o ser é, ao mesmo tempo,
movimento e repouso. Mas na medida em que os compreende a
ambos não é uma coisa nem a outra, ainda que possa ser ambas: por
conseguinte ser. O ser é comum ao movimento e ao repouso; mas
nem o movimento nem o repouso são todo o ser. Cada uma destas
determinações ou formas é idêntica a si mesma, e diferente da
outra: o idêntico e o diferente serão pois outras duas
determinações do ser, que assim se elevam a cinco: ser, repouso,
movimento, identidade, diversidade. Mas a diversidade de cada uma
destas formas da outra significa que cada uma delas não é a outra
(o movimento não é o repouso, etc.); pelo que a diversidade é um
não-ser e o não-ser de qualquer modo é, porque, como diversidade,
é uma das formas fundamentais do ser. Desta maneira completou o
estrangeiro eleata, o discípulo de Parménides que é o protagonista
do Sofista, o necessário "parricídio" contra Parménides: utilizando
a pesquisa eleática, Platão foi além dela, unindo ao ser parmenídeo a
subjectividade socrática e fazendo consequentemente viver e
mover o ser.

Esta determinação das cinco formas (ou géneros) do ser funda (ou
funda-se em) uma nova concepção do ser: nova porque diferente da
que Platão já via aceite na filosofia sua contemporânea. Em primeiro
lugar, ela exclui que o ser se reduza à existência corpórea como
sustentam os
201

materialistas: dado que se diz que "são" não só tais coisas


corpóreas mas também as incorpóreas, como por exemplo a virtude
(247 d). Em segundo lugar, ela exclui que o ser se reduza às formas
ideais como sustentam " os amigos das formas", pois que neste caso
se excluiria do ser o conhecimento do ser e daí a inteligência e a
vida (248 c-249 a). Em terceiro lugar, ela exclui que o ser seja
necessariamente imóvel (isto é que "tudo seja imóvel") ou que o ser
seja necessariamente em movimento (isto é que "tudo seja em
movimento") (249 d). Em quarto lugar, exclui que todas as
determinações do ser possam combinar-se entre si ou que todas se
excluam reciprocamente (252 a-d). Por outro lado, como se viu, o
ser deverá no entanto compreender o não-ser como alteridade.
Sobre estas bases, o ser não pode definir-se de outro modo que não
seja como possibilidade (dynamis); e deve dizer-se que "é toda a
coisa que se ache na posse de uma qualquer possibilidade, seja de
agir seja de sofrer, da parte de qualquer outra coisa, ainda que
insignificante, uma acção ainda que mínima e ainda que de uma só
vez" (247 e). A possibilidade, de que fala Platão, não tem nada a ver
com a potência de Aristóteles. Efectivamente a potência é tal, só
nas comparações com um acto que, unicamente ele, é o sentido
fundamental do ser. Para Platão, porém, o sentido fundamental do
ser é precisamente a possibilidade. E é o ser assim concebido que
torna possível, segundo Platão, a ciência filosófica por excelência, a
dialéctica.

§ 57. A DIALÉCTICA

A dialéctica é a arte do diálogo; mas diálogo


é para Platão toda a operação cognoscitiva visto que o próprio
pensamento (como se viu, § 45) é
202

um diálogo da alma consigo mesma. A dialéctica é, em geral, o


processo próprio da investigação racional, portanto também a
técnica que dá rigor e precisão a esta investigação. Ela é uma
técnica de invenção ou de descoberta, não (como a silogística de
Aristóteles) de simples demonstração. São dois os momentos que a
constituem:

1) O primeiro momento consiste em reduzir a uma única ideia as


coisas dispersas e em definir essa a ideia de modo a torná-la
comunicável a todos (Fedro, 265 c). Na República Platão diz que, no
remontar às ideias, a dialéctica se situa para além das ciências
matemáticas porque considera as hipóteses (que as ciências não
estão em condições de justificar) como simples hipóteses, quer
dizer como pontos de partida para chegar aos princípios de que se
pode depois descer até às conclusões últimas (Rep., VI, 511 b-c).
Mas nos diálogos posteriores este segundo processo é melhor
explicitado como técnica da divisão.

2) O momento da divisão, que consiste "em poder dividir novamente


a ideia nas suas espécies segundo as suas articulações naturais e
evitando despedaçar-lhe as partes como faria um trinchante inábil"
(Fedro, 265 d). Nesta segunda fase, é função da dialéctica "dividir
segundo géneros e não tomar por diferente a mesma forma ou por
idêntica uma forma diferente" (Sof., 253 d). O resultado deste
segundo procedimento não é seguro em todos os casos. Em um passo
famoso do Sofista Platão enumera as três alternativas com que
pode topar o processo, a saber: 1) que uma única ideia penetre e
abranja muitas outras ideias, que no entanto continuam separadas
dela e exteriores uma à outra;
2) que uma única ideia reduza à unidade muitas outras ideias na sua
totalidade; 3) que muitas ideias fiquem inteiramente distintas entre
si
203

(253 d). Estas três alternativas apresentam dois casos extremos: o


da unidade de muitas ideias-em uma delas e o da sua
heterogeneidade radical; e, por outro lado, uma caso intermédio,
que é o de uma ideia que abrange outras ideias sem todavia as
fundir em unidade. Qual destes três casos possa verificar-se numa
investigação particular, é coisa que só a própria investigação pode
decidir.

Platão pôs em acção a investigação dialéctica no Fedro, no Sofista e


no Político. Nestes diálogos ele procedeu primeiro à definição da
ideia, em seguida à divisão da própria ideia em duas partes,
chamadas respectivamente a parte esquerda e a parte direita e
distintas pela presença ou pela ausência de uma certa propriedade,
e assim por diante (Fedro, 266 a-b). O processo pode fechar-se em
um certo ponto ou retomar-se, começando por uma outra ideia. Por
fim, poderão reunir-se ou recapitular-se as determinações assim
obtidas em todo o processo (Sof., 268 c). A natureza da dialéctica
neste sentido é, por conseguinte, a possibilidade da escolha,
permitida em todos os passos, da característica adequada para
determinar a divisão da ideia em direita e esquerda de maneira
oportuna, ou seja tal que siga a articulação da ideia e não "rompa" a
própria ideia. A escolha constitui a hipótese do procedimento
dialéctico; a hipótese que a dialéctica assume como tal, para a pôr à
prova e para a justificar, e que por isso se distingue das hipóteses
das disciplinas matemáticas que são assumidas como princípios
primeiros, em que se não ousa tocar (Rep., VII, 533 c). O mundo em
que se move a dialéctica é, portanto, um mundo de formas, quer
dizer de géneros ou espécies do ser que podem conectar-se ou não
e serem mais ou menos conexos: é um mundo de conexões possíveis,
competindo precisamente à dialéctica determinar-lhes a
possibilidade.
204

Neste ponto, Platão afastou-se muito da noção das ideias-valores


de que tratava a sua primeira especulação. As ideias como géneros e
formas do ser são neutras nos confrontos do valor. Platão fez sua a
advertência de Parménides de considerar todas as formas do ser
sem tomar em consideração o valor que os homens lhes atribuem.
Se na República, punha no cume do ser o Rem e considerava as
ideias fundadas neste valor supremo, no Sofistas quis definir
somente o ser, na sua estrutura formal, nas suas possibilidades
constitutivas.

§ 58. O BEM

Portanto, quando Platão voltar a ocupar-se do bem nesta fase do


seu pensamento, como acontece no Filebo, o conceito que terá
presente não será o mesmo. O bem já não é a super-substância, mas
a forma da vida própria do homem; e a pesquisa do bem é a pesquisa
sobre a qual é esta forma de vida.

Ora, segundo Platão, a vida do homem não pode ser uma vida
fundada no prazer. Uma vida assim, que acabaria por excluir a
consciência do prazer, é própria do animal, que não do homem. Por
outro lado, não pode ser tão-pouco uma vida de pura inteligência,
que seria divina, e não humana. Deve ser, pois, uma vida mista de
prazer e de inteligência. O importante é determinar a justa
proporção em que o prazer e a inteligência devem mesclar-se
conjuntamente para constituir a forma perfeita do bem.
O problema do bem torna-se aqui um problema de medida, de
proporção, de conveniência: a investigação moral transforma-se
numa investigação metafísica de natureza matemática. Platão apoia-
se em Pitágoras: e recorre aos conceitos pitagóricos de limite e de
ilimitado.
205

Toda a mesclança bem proporcionada é constituída por dois


elementos. Um é o ilimitado, como por exemplo o calor o frio, o
prazer ou a dor, e em geral tudo o que é susceptível de ser
aumentado ou diminuído até ao infinito. O outro é o limite, ou seja a
ordem, a medida, o número, que intervêm para determinar e definir
o ilimitado. A função do limite é a de reunir e unificar o que está
disperso, concentrar o que se espalha, ordenar o que está
desordenado, dar número e medida ao que está privado de um e do
outro. O limite como número suprime a oposição entre o um e os
muitos, porque determinar o número significa reduzi-los à unidade.
dado que o número é sempre um conjunto ordenado. Por exemplo, no
ilimitado número dos sons a música distingue os três sons
fundamentais, o agudo, o médio e o grave, e desta maneira reduz o
ilimitado à ordem numérica. Ora a união do ilimitado e do limite é o
género misto, a que pertencem todas as coisas que têm proporção e
beleza, e a causa do género misto é a inteligência, que vem a ser,
portanto, com o ilimitado, o limite e o género misto, o quarto
elemento constitutivo do bem. A vida propriamente humana, como
mesclança proporcionada de prazer e de inteligência, é um género
misto que tem como causa a inteligência. A ela devem pertencer
todas as ordens e espécies de conhecimento da mais elevada ordem
e espécie, que é a dialéctica, desde as ciências puras, como a
matemática, passando pelas ciências aplicadas como a música, a
medicina, etc., até à opinião, que tão-pouco pode ser excluída, na
medida em que é necessária à conduta prática da vida. No que
respeita aos prazeres, só os puros, ao contrário, deverão fazer
parte da vida mista, quer dizer os prazeres não ligados à dor da
necessidade, como
206

são os prazeres do conhecimento e os estéticos. provenientes da


contemplação das belas formas, das belas cores, etc.. Resulta daí
que a coisa melhor e mais alta para o homem, o bem supremo, é a
ordem, a medida, o justo meio. A este primeiro valor segue-se tudo
o que é proporcionado, belo e completo. Na terceira posição fica
depois a inteligência como causa da proporção e da beleza; na
quarta, as ciências e a opinião; na quinta, os prazeres puros.

O Filebo oferece assim ao homem a escala dos valores que resultam


da estrutura do ser dilucidada no Sofista. Esta escala coloca no
cume o conceito matemático da ordem e da medida. Platão, chegado
ao termo dos aprofundamentos sucessivos da sua pesquisa,
considera que a ciência do justo, de que Sócrates afirmam a estrita
necessidade como único guia -para a conduta do homem, deve ser
substancialmente uma ciência da medida. Um discípulo de
Aristóteles, Aristoxeno (Harm., 30) conta que a notícia de uma lição
de Platão sobre o bem atraia numerosos ouvintes, mas que aqueles
que esperavam que Platão falasse dos bens humanos, como a
riqueza, a saúde, a felicidade, ficavam desiludidos mal ele começava
a falar de número e de limites e da suprema unidade que para ele
era o bem. Para Platão, na verdade, a redução da ciência da conduta
humana a ciência de número e de medida, representava a realização
rigorosa do projecto socrático de reduzir a virtude a ciência.
Estava agora muito afastado dos conceitos que haviam dominado o
ensino de Sócrates; no entanto, continuava a seguir de perto a
directriz do mestre de reduzir a virtude a uma disciplina rigorosa,
que pudesse constituir a base do ensino e da educação colectiva.
207

§ 59. A NATUREZA E A HISTÓRIA

Precisamente neste ponto perdia a sua razão de ser a recusa de


Sócrates em considerar o mundo natural. Pois que tudo o que este
mundo possuir de realidade e de valor deve ser explicado; e não
pode sê-lo senão integrando-o no mundo do ser. Por outro lado,
como se viu, o mundo do ser não subsiste separadamente do mundo
da natureza, visto que o uno não subsiste sem o múltiplo, nem a
realidade sem a aparência. Se se radicar no mundo do ser o homem
com a sua vida e a sua inteligência, deve também radicar-se no ser a
natureza que é o mundo do homem. Um estudo do mundo da
natureza é, pois, possível: mas isso não significa que ele constitua
ciência. Platão reforça aqui o seu conceito de ciência. A ciência
incide somente sobre o que é estável e constante, e concebível pela
inteligência; sobre a natureza, que não tem constância nem
estabilidade, só pode haver conhecimentos prováveis (Tim., 29 c-d).
Uma "narração provável" é tudo o que Platão se propõe oferecer
como contributo pessoal à investigação natural. O probabilismo da
Nova Academia encontrava nestas afirmações de Platão o seu
começo ou a sua justificação. Seja como for, a pesquisa platónica
assume deliberadamente, neste ponto, a forma do mito.

A causa do mundo é um deus artesão ou demiurgo que o produziu


pela bondade sem mácula que quer difundir e multiplicar o bem. Ele
criou a natureza à semelhança do mundo do ser. E dado que este
tem em si alma, inteligência e vida, a natureza foi criada como um
todo animado, um gigantesco animal. Mas, uma vez que foi gerada,
não podia ser, como o modelo, incorpórea; devia, pois, ser corpórea,
logo visível e tangível. Para a tornar mais semelhante ao modelo, que
é eterno, o demiurgo criou o tempo, "uma imagem móvel da
208

eternidade": por ele o devir e o movimento da natureza seguem um


ritmo ordenado e constante, ritmo que se mostra com evidência nos
movimentos periódicos do céu.

O demiurgo é, pois, a causa de tudo o que no mundo é ordem, razão


e beleza; mas o mundo tem ainda uma outra causa que já não é
inteligência, mas necessidade. Com efeito, a inteligência operou no
mundo dominando a necessidade, persuadindo-a a conduzir para o
bem a maior parte das coisas que se criavam. A necessidade
(ananche) é representada como uma terceira natureza, algo assim
como a mãe do mundo, do mesmo modo que a ordem racional do
mundo inteligível é o pai do mundo. Este elemento primitivo é
diferente de todos os elementos visíveis (água, ar, terra e fogo),
precisamente porque deve ser o receptáculo e a origem comum
deles. Trata-se de uma "espécie invisível e amorfa, capaz de tudo
acolher, participe do inteligível e difícil de ser concebida".
Evidentemente que este receptáculo informe, esta matriz originária
das coisas, é o princípio que limita a acção inteligente do demiurgo e
impede que o mundo natural, que dele resulta, tenha a mesma ordem
perfeita do mundo inteligível que é seu modelo. Além deste princípio
há depois o espaço (chora), que não admite destruição e é a sede de
tudo o que se gera; pelo que os princípios anteriores ao nascimento
do inundo natural são três: o ser, o espaço e a mãe de toda a
geração.

Destes três princípios, por obra do demiurgo ou dos deuses a quem


ele confiou a tarefa de continuar a criação, originaram-se todos os
seres e todas as coisas naturais: por isso, à acção da inteligência,
que é a causa primeira fundamental, se juntam as causas
secundárias, nas quais agem, com uma lei de necessidade. os outros
209

princípios da geração, o receptáculo informe e o espaço-

Como se vê, não há qualquer apoio, nesta cosmologia platónica, para


a identificação da divindade com o bem sobre que se centra a
interpretação neoplatónica (quer dizer religiosa) do platonismo.
Recordar-se-á 52) que para Platão o bem é causa das ideias (ou
substâncias), no das coisas naturais. A divindade, por seu turno, é o
artífice das coisas naturais, não já do bem e das ideias. O bem e as
ideias entram na criação do mundo natural como critérios directivos
ou limites da acção da divindade, juntos às outras condições ou
limites que são a necessidade e o espaço. O bem e as ideias
constituem, portanto, as estruturas axiológicas que o demiurgo
realizou no mundo natural; mas tais estruturas são, segundo Platão,
tão independentes da divindade como o são, segundo Aristóteles, as
estruturas substanciais ou ontológicas de que o mundo é
constituído. Há que sublinhar, por conseguinte, o carácter politeísta
do conceito de divindade que Platão nos apresenta no Timeu: a
divindade é participada por vários deuses, cada um dos quais tem
uma função e domínio próprios, sendo o demiurgo tão só o seu chefe
hierárquico.

Platão apresenta-nos a cosmologia do Timeu como a continuação e o


complemento da República. Ele diz que após ter delineado o estado
ideal se tem a mesma impressão que se experimenta ao ver animais
belos, mas imóveis: sente "o desejo de vê-los mover-se". Por isso
quer dar movimento ao estado que delineou; quer ver como se
comportaria ele nas lutas e circunstâncias que deve afrontar. Por
isso começa no Timeu a descrever a génese do mundo natural que é
teatro da sua história. Em um diálogo posterior, o Crítias, deveria
delinear a história hipotética do seu estado ideal; o diálogo
interrompe-se bruscamente após os primeiros capí-
210

tulos, mas nestes já se entrevê como seria a concepção platónica da


história. Trata-se de uma concepção que vê na história uma
sucessão de idades, em que a seguinte é menos perfeita que a
precedente. Hesíodo falara de cinco idades: a do ouro, a da prata, a
do bronze, a dos heróis e a dos homens (Trab., 109-79), Platão
redu-las a três: 1) a idade dos deuses, que colonizaram a terra
criando os homens como os pastores criam hoje os rebanhos; 2) a
idade dos heróis, que nasceram na Ática, a região da terra
colonizada por Efesto e Atena: 3) a idade dos homens que, por
largo tempo dominados pelo aguilhão das necessidades, quase
esqueceram a tradição heróica (Crítias, 109 b segs.).
Reproduzida por outros escritores da antiguidade, esta divisão
foi depois retomada no século XVIII por Vico, que no entanto lhe
alterou o significado, considerando como final e perfeita a idade
dos homens e dando, por conseguinte, um significado progressivo à
sucessão das idades.

§ 60. O PROBLEMA POLITICO COMO PROBLEMA DAS LEIS

A última actividade de Platão é ainda dedicada ao problema político.


No Político, Platão indaga qual deve ser a arte própria do
governante dos povos. E a conclusão é que esta arte deve ser a da
medida: efectivamente, em tudo é preciso evitar o excesso ou o
defeito e encontrar o justo meio. Toda a ciência do homem político
consistirá essencialmente em procurar o justo meio, aquilo que é em
qualquer caso oportuno ou obrigatório nas acções humanas. A acção
política deve "combinar intimamente", no interesse do estado, as
duas índoles opostas dos homens corajosos e dos homens
prudentes, de modo a que, no estado, se temperem na medida
exacta
211

a rapidez de acção e a cordura de juízo. O melhor seria que o


homem político não fizesse leis, visto que a lei, sendo geral, não
pode prescrever com precisão o que é bom para cada qual. Todavia,
as leis são necessárias pela impossibilidade de dar prescrições
precisas a cada indivíduo; e elas limitam-se, por isso, a indicar o que
genérica e grosseiramente é o melhor para todos. No entanto, uma
vez que se estabeleçam da maneira melhor, devem ser conservadas
e respeitadas, e a sua ruína implica a ruína do estado. Das três
formas de governo historicamente existentes, monarquia,
aristocracia e democracia, cada uma distingue-se da
correspondente forma degenerada precisamente pela observância
das leis. Assim é que o governo de um só é monarquia se é regido
pelas leis; é tirania se é governo sem leis. O governo de poucos é
aristocrata quando é governado pelas leis, oligarquia quando é
governo sem leis. E a democracia pode ser regida por leis ou
governada contra as leis. O melhor governo, prescindindo do
governo perfeito delineado na República, é o monárquico, e o pior é
o tirânico. De entre os governos desordenados (isto é, privados de
leis) o melhor é a democracia.

Desta maneira o problema político, que na República fora


considerado o problema de uma comunidade humana perfeita, por
conseguinte no seu aspecto moral, adquire um carácter mais
determinado e específico na ú ltima fase da especulação platónica;
ei-lo tomado o problema das leis que devem governar os homens e
encaminhá-los gradualmente a tornarem-se cidadãos da comunidade
ideal. Ao problema das leis é efectivamente dedicada a última obra
platónica, que é também a mais extensa de todas, o diálogo em 12
livros intitulado As Leis, publicado por Filipe de Opunto após a
morte do mestre. Platão é agora mais vivamente conhecedor da "
fragilidade da natureza humana" e considera
212

por isso indispensável haver, até num estado bem ordenado, leis e
sanções penais (854 a). Mas a lei deve conservar a sua função
educativa; não deve somente comandar, mas também convencer e
persuadir pela própria bondade e necessidade: toda a lei deve,
portanto, ter um prelúdio educativo, semelhante ao que se antepõe
à música e ao canto. Quanto à punição, uma vez que ninguém acolhe
de boa vontade na sua alma a injustiça, que é o pior de todos os
males, não deve ela ser uma vingança, mas tão só corrigir o culpado,
ajudando-o a libertar-se da injustiça e a amar a justiça.

Resulta daqui que o fim das leis é o de promover nos cidadãos a


virtude, a qual, como já Sócrates ensinava, se identifica com a
felicidade. E não devem promover uma só virtude, como, por
exemplo, a coragem guerreira, mas todas, porque todas são
necessárias à vida do estado; e por isso devem tender à educação
dos cidadãos, entendendo por educação "o encaminhamento do
homem, desde os seus tenros anos, para a virtude, tornando-o
amante e desejoso de se tornar um cidadão perfeito que sabe
comandar e obedecer segundo a justiça" (643 e). Mas esta
educação tem como seu fundamento a religião, uma religião que
deve prescindir da indiferença e da superstição.

Contra os que explicam o universo pela acção de forças puramente


físicas, Platão afirma a necessidade de admitir um princípio divino
do mundo. Na verdade, se toda a coisa produz transformação em
outra, necessário é, remontando de coisa em coisa, que se alcance
uma coisa que se move por si. Uma coisa que é movida por outra não
pode ser a primeira a mover-se. O primeiro movimento é, pois,
aquele que move a -si mesmo, e é o da alma. Há, pois, uma alma, uma
inteligência suprema que move e ordena todas as coisas do mundo
(896 e). Mas não basta admitir um princípio divino do
213

mundo, é preciso vencer ainda a indiferença dos que pensam que a


divindade não se ocupa das coisas humanas, que seriam
insignificantes para ela. Ora esta crença equivale a admitir que a
divindade é preguiçosa e indolente e a considerá-la inferior ao mais
comum dos mortais, que quer sempre tornar perfeita a sua obra,
quer esta seja grande ou pequena. Mas, enfim, a pior aberração é a
superstição dos que crêem que a divindade possa ser propiciada com
dons e ofertas: esses põem a divindade a par dos cães que,
amansados com presentes, deixam depredar os rebanhos, e abaixo
dos homens comuns, que não atraiçoam a justiça aceitando
presentes oferecidos com intenção delituosa.

Como se vê, a última especulação platónica tende a delinear uma


forma de religião filosófica, que Platão liga explicitamente às
crenças religiosas tradicionais. Não há aqui, por conseguinte,
qualquer sinal de monoteísmo: na crença da divindade está a crença
nos deuses: a divindade é participada igualmente por um número
indefinido de entes divinos, dos quais os mais elevados têm nos
astros os seus corpos visíveis (Leis, 899 a-b).

O caminho que Platão percorreu desde os primeiros Diálogos, que se


detinham a ilustrar atitudes e conceitos socráticos, até à tardia
especulação das Leis, foi bem longo. No curso deles foram-se
acumulando as desilusões que o homem encontrou nas tentativas de
realização do seu ideal político, os problemas que nasceram uns dos
outros numa pesquisa que jamais quis reconhecer jornadas ou
pausas definitivas. Quem confrontar a ú ltima desembocadura
desta pesquisa (o cálculo matemático da virtude e o código
legislativo) com o seu ponto de partida, pode facilmente descobrir
um abismo entre os dois pontos extremos dela. Mas quem
considerar que até a estes últimos desenvolvimentos Platão foi
conduzido pela exigência de formular como
214

ciência rigorosa (e a matemática é o tipo acabado do rigor


científico) a aspiração a uma vida propriamente humana, quer dizer,
a um tempo virtuosa e feliz, não pode deixar de reconhecer que
Platão se manteve fiel ao espírito da ensinança de Sócrates e nada
mais fez, em toda a sua vida, que realizar-lhe o significado.

§ 61. O FILOSOFAR

Fazendo o balanço da sua vida, na Carta VII, Platão volta uma vez
mais ao problema que para ,si, como para Sócrates, englobava todos
os problemas: o do filosofar. Não se trata do problema da natureza
e dos caracteres de uma ciência objectiva, mas do problema que a
própria ciência é para o homem. Platão examina-o a propósito da sua
tentativa, tão tristemente sucedida, da educação filosófica, as suas
dificuldades e o esforço que ela exige.
O resultado foi que, ao fim de uma única lição, Dioniso julgou saber
dela o bastante e preferiu compor um escrito em que expunha como
obra sua aquilo que tinha ouvido a Platão. Outros haviam feito já,
com menor impudência, tentativas semelhantes; mas Platão não
hesita em condená-los em bloco. "O mesmo posso dizer de todos os
que escreveram ou vierem a escrever na pretensão de expor o
significado da minha pesquisa, quer a tenham ouvido a mim ou a
outros, ou eles próprios o tenham descoberto: pelo menos, em meu
entender, nada compreenderam do assunto como ele
verdadeiramente é. De minha autoria não há nem jamais haverá um
escrito resumido sobre estes problemas. Dado que eles não podem
ser resumidos a fórmulas, como os outros; pois que só depois de nos
havermos familiarizado com estes problemas durante muito tempo,
e depois de se ter vivido e discutido em comum,
215

o seu verdadeiro significado se acende inesperadamente na alma,


como a luz nasce de uma fagulha e cresce depois por si só" (Carta
VII, 341 b-d). Platão regressa assim, no fim da vida, ao problema de
Sócrates: o problema de encontrar para o homem a via de acesso à
ciência e, através da ciência, ao ser em si.

A exposição que se segue é a recapitulação do que Platão já disse


nos diálogos e especialmente na República. Mas esta recapitulação
põe em evidência os motivos fundamentais da pesquisa platónica e
demonstra que a inclusão dela se resolve no seu princípio, e como a
sua integral totalidade se resolve na ensinança socrática. Por três
meios se pode alcançar a ciência: a palavra, a definição e a imagem.
Em quarto lugar está o saber, que fica para além dos meios que
servem para o conquistar. Para além do próprio saber, em quinto
lugar, está o objecto cognoscível, o ser que é verdadeiramente ser
(Carta VII, 342 b). Platão esclarece tudo isto por meio do exemplo
do círculo. Círculo é, em primeiro lugar, a palavra pronunciada por
nós. Em segundo lugar, damos a definição de círculo, definição que é
formada por outras palavras, como por exemplo: círculo é o que tem
as partes extremas equidistantes do centro. Em terceiro lugar,
traçamos a figura do círculo, que é a imagem dele. Mas estes três
elementos, por muito que se refiram todos ao círculo em si, não têm
nada que ver com ele. Conduzem, no entanto, ao quarto elemento, o
qual compreende todas as actividades subjectivas do conhecer: a
opinião verdadeira, a ciência e a inteligência. Estes elementos não
residem nos sons pronunciados nem nas figuras corpóreas, mas nas
almas. Naturalmente que também as actividades subjectivas do
conhecer se não identificam com o ser, que é o objecto do próprio
conhecer; mas estão sem dúvida mais próximas do ser, e entre elas
a inteli-
216
gência é a mais próxima de todas. O ser em si é o termo último a
que os meios e as condições do conhecer tendem a referir-se: ele é
indicado pelo primeiro, definido pelo segundo, figurado pelo
terceiro, pensado ou compreendido pelo quarto. Porém, dada a
insuficiência e a instabilidade de tais elementos, a relação que eles
estabelecem com o ser é ainda problemática. Com efeito, o nome é
convencional e variável; a definição, que é feita de nomes, não tem
maior estabilidade; a imagem (o círculo desenhado, por exemplo,
aproxima-se sempre da linha recta quando deveria excluí-la). O
próprio saber, condicionado como é por estes elementos, não tem
qualquer garantia de certeza. Não resta, portanto, outro remédio
senão controlar continuamente estes elementos uns pelos outros
percorrendo e repercorrendo a sua cadeia de uns para os outros, e
fazendo valer o resultado do seu trabalho de conjunto (Carta VII,
343 e). Mas isto é precisamente o dialogar da alma consigo mesma e
com as outras almas, a pesquisa que, desde a palavra, a definição e a
imagem se eleva à ciência, para voltar depois a conferir à palavra
um novo significado, a corrigir a definição, a julgar o valor da
imagem. É a pesquisa colectiva cujo processo os diálogos
representaram ao vivo. "Só depois de se haverem arranhado
penosamente uns aos outros, nomes e definições, percepções visuais
e sensações, só depois de tudo se haver discutido em discussões
benévolas, em que a má vontade não dita a pergunta nem a resposta,
a sageza e a inteligência salpicam todas as coisas, tão intensamente
quanto a força humana o permite" (Carta VII, 344 b). Salpicam
todas as coisas a sageza (frónesis) e a inteligência (nous): o mais
alto valor da conduta moral e a mais alta validade do conhecimento
estão intimamente ligados. E, com efeito, condicionam-se
mutuamente: sem a inteligência o homem não pode alçar-se à
virtude que se revela na acção,
217
como sem esta virtude o homem não pode alçar-se à inteligência.
Este condicionalismo recíproco da sageza e da inteligência é
expresso por Platão por meio de dois conceitos: o parentesco do
homem que pesquisa com o ser que é objecto da pesquisa; e a
comunidade da livre educação. Em primeiro lugar, o homem não
alcança aquela relação com o ser em que consiste o grau mais
elevado da ciência, a inteligência, senão em virtude de um seu íntimo
e profundo parentesco com o ser. "Nem a facilidade em aprender,
nem a memória poderão jamais produzir o parentesco com o
objecto, visto que tal parentesco não pode encontrar raízes em
disposições heterogéneas. As que são disformes e estranhas ao
justo e ao belo, ainda que dotadas de facilidade em aprender e de
boa memória, e as que propendem por natureza para o justo e para
o belo, mas são avessas a aprender e fracas de memória, nunca
poderão alcançar, no que respeita à virtude e à perversidade, toda a
verdade que é possível aprender" (344 a). A relação originária com
o ser no seu mais alto valor (a justiça e o bem) condiciona e
estimula a eficácia e o sucesso da pesquisa. Mas, por outro lado, a
pesquisa não pode realizar-se no mundo fechado da individualidade.
Ela é produto de homens que "vivem, juntos" e "discutem com
benevolência" e sem deixarem que a má vontade influencie as
perguntas e as respostas. Quer isto dizer que ela supõe a
solidariedade do indivíduo com os outros, o abandono da pretensão
de nos julgarmos na posse da verdade e não queremos aprender
nada dos outros, a sinceridade consigo mesmo e com os outros e o
esforço solidário. O filosofar não é uma actividade que encerre o
indivíduo em si mesmo, é antes a vida que abre aos outros e com os
outros o harmoniza, Por isso, não é ele somente inteligência, mas
também frónesis, sageza de vida. Nem esta solidariedade humana
da pesquisa
218

é fruto de uma afinidade de almas e de corpos, é antes o produto


da comunidade da livre educação (344 h), na qual a malevolência e a
má vontade se reduziram ao mínimo, porque aqueles que dela
participam se uniram na comum aspiração ao ser.
O ser, o objecto último da pesquisa, fazendo convergir em si como a
um único centro os esforços individuais, promove a solidariedade
dos indivíduos.

O conceito platónico do filosofar é assim o mais alto e o mais amplo


que alguma vez foi afirmado na história da filosofia. Nenhuma
actividade humana cai fora dele. Platão quer que a pesquisa se
estenda "às figuras rectas ou circulares e às cores, ao bem, ao belo
e ao justo, a todo o corpo artificial ou natural, ao fogo, à água e a
todas as coisas do mesmo género, a toda a espécie de seres vivos, à
conduta da alma, às acções e às paixões de toda a sorte" (342 b). E
de tudo será preciso conhecer o verdadeiro e o falso porque só pelo
seu confronto se pode reconhecer a verdade do ser (344 b). A
pesquisa em que o filosofar se realiza não consiste na formulação
de uma doutrina: qualquer tarefa humana oferece ao homem a
possibilidade de alcançar a verdade e de entrar em relação com o
ser.

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 42. Dos numerosíssimos escritos biográficos antigos sobre Platão,


de que chegou notícia até nós, temos hoje os seguintes:
FILODEMO, Indice dos filósofos acadêmicos, encontrado nos
papiros de Herculano; AIPULEIO, Sobre Platdo e a mffl doutrina;
DIOGENES LAÊRCIO, Vida, que ocupa os primeiros 45 capítulos do
III livro da obra, livro inteiramente dedicado a Platão; PORFIRIO,
um fragmento da sua História; OLIMPIODORO, Vida de Platão;
urna Vida de Platão anónima encontrada num códice vienense; um
artigo do Léxico de SUIDAS; uma Vida em árabe encontrada num
manuscrito espanhol. Encontram-se outras informações na
219

Vida de Dido de PLUTARCO e nos escritos de CICERO, HELIANo e


ATENEU. Fundamentais para a biografia são também as Cartas de
Platão, especialmente a Carta VII. A. MADDALENA, no Exame
analítico apenso à sua tradução Italiana das Cartas (Bari, 1948)
voltou a propor a tese da inautenticidade, reforçando os
argumentos já antes formulados pela critica alemã de 800 e
sobretudo insistindo na diversidade e incongruência da atitude de
Platão, como resulta das Cartas, em relação à atitude que o próprio
Platão atribuiu a Sócrates na Apologia e nos Diálogos. Porém, estes
argumentos não têm na devida conta o facto de que precisamente a
prudência de qualquer preocupa" ção ldealizante faz das Cartas um
documento autênticamente humano que tem todos os requisitos da
veracidade; e que tal ausência elimina mesmo a possibilidade de
encontrar os motivos da pretensa falsificação. Já que esta, quando
se trata de obras de filosofia, t,m sempre o objectivo de exaltar o
fundador de uma escola, como provam as numerosas falsificações
da época alexandrina, e de lhe atribuir, anacrónicamente, as
doutrinas da própria escola para lhes conferir aquela venerabilidade
tradicional que a época alexandrina apreciava como sinal do
carácter religioso e divino das suas crenças. Nada de semelhante
nas Cartas, que nos mostram Platão nas suas incertezas, nas suas
ilusões e nos seus erros; mas também sempre firme e constante nos
interesses fundamentais que dominam toda a sua obra de filósofo, e
que nas Cartas ganham colorido e vivacidade biográfica.

Entre as reconstruções modernas da vida de Platão, ver ZELLER, 11,


1, p. 389 segs.; GomPERZ, II, p. 259 segs.; TAYLOR, Plato, cap. 1;
ROBIN, Plat", p. 1 segs.; STEFANINI, Platane, vol. I;
WILLAMOWITZ, Platon, Berlim, 1920; STENZEL, Platone
educatore, Leipzig, 1928 (trad. ital., Bari 1936), cap. 1.
§ 43- A edição fundamental das obras de Platão é a de ENRICO
STEFANO, 3 vols., Paris, 1578. A paginação desta edição é
reproduzida em todas as edições modernas e adoptada para as
citações. Entre as edições mais recentes, além de várias edições de
Leipzig, é notável a de BURNET, Oxford, 1899-1906, que é a
melhor edição crítica, e a publicada na "Colecção da Universidade
de França" que traz à cabeça a tradução francesa.
220

Entre as traduções italianas de Platão as de MRAi, AcRi, BONGH1,


MARTINI e numerosas traduções parciais.

Para uma resenha das obras mais recentes sobre Platão (a partir de
cerca de 1930) efr. os fascículos que lhe são dedicados pela
"Philosophische Rundschau>, Tubingen, 1961-62. Nestes fascículos
se remete para a bibliografia mais recente. Ofr. também P. M.
SCHUHL, Études Platoniciennes, Paris, 1960, p. 23 segs..

§ 44. Sobre a cronologia dos escritos platónicos: as obras supra-


indicadas e, além dessas, as seguintes: RAEDER, Patons
philosophische Entwick1ung, Uipzig,
1905; LUTOSLAWSKI, Origin and Growth of Plato's Logic, 1897;
PARMENTMR, La chronologie des dialogues de Platon, Bruxelas,
1913; RITTER, Ncue Untersuchungen ueber Platon, M6naco, 1910;
BROMMER, Eidos et ~. Étude s~ntique et chronologique des
oeuvres de Platon, Assen, 1940.

§ 45. As duas anedotas referidas no fim do parágrafo foram


conservadas por DIÔGENEs LAÉRcio, a primeira, e a segunda por
ARisTôTELES no diálogo Merinto (fr. 69, Rose).

§ 46. Entre oe que pensam que na fase do seu pensamento que se


inicia com o Parménides Platão formula críticas à sua própria
doutrina está GOM- =, II, p. 573. Segundo BURNET, Platonism,
Berkeley,
1928, p. 58, Sõcrates é pouco mais que um "fantasma" nos diálogos
anteriores às Leis.

§ 47. ZELLER deu-nos numa reconstrução sistemático-escolástica


do pensamento de Platão prescindindo da ordem e do
desenvolvimento dos diálogos.
O resultado por ele obtido é encorajante para qualquer tentativa do
mesmo gênero. As melhores exposições da doutrina platónica são as
que lhe sugerem o desenvolvimento diálogo por diálogo. Remeto por
Isso sobretudo para estes últimos: GompERz II, p. 306 segs.;
UEBERWEG-PRAECHTER, p. 222 segs. e as monografias de
TAYLOR e STEFANINI (já citadas) e de RITTER. A referência a
estas obras está subentendido nos parágrafos seguintes, em que me
limito a assinalar algum estudo mais Importante sobre cada diálogo
Isolado. No exame do processo dialéctico se funda V.
GoLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, Paris, 1947. Cfr. também
JAMER, Paideia, II e HI, New-York, 1943.
221

§ 48. O Protágoras é habitualmente situado no primeiro grupo de


diálogos socráticos juntamente com a Apologia, Críton, Laches, etc.,
TAYLOR observou justamente que a perfeiçáo artística do diálogo
prova o erro desta colocação, e por Isso situa-o com Pédon, o
Banqu-ete e a República no período em que Platão atinge a sua
máxima excelência como escritor (Plato, p. 20). Na realidade o seu
conteúdo demonstra que é anterior a estes diálogos, embora
pertença certamente a um segundo período da actividade de Platão.
A preocupação polémica anti-sofistica que o domina coloca-o, com
Górgi<w e Eutidemo, no grupo dos diálogos que combatem e abalam a
sofística nos seus aspectos fundamentais: o ensino, a crítica e a
retórica. Ver a introdução, à minha tradução do Prot., Nápoles,
1941.

§ 49. Sobre o Ménon, efr. a bela investigação de STENZF.L em


Platone educatore, p. 90 segs.; JAMER, Paideia, II, p. 182-262.
Uma tentativa de relacionar o Ménon com o criticismo moderno
encontra-se em NATORP, Platos Idee-nlehre, 2.1 edição, Leipzig,
1921, p. 36 segs..

Sobre o Fédon ver NATORP, op. cit., p. 126 segs. sobre as


principais interpretações da teoria platónica das Ideias: LEVI, Le
interpretazioni immanentistiche della filosofia di Platone, Milano,
sem data; e especialmente O. ROSS, Pktos Theory of Ideas,
Oxford,
1951.

§ 50. Sobre o Banquete e sobre o Fedro: STENZEL, ap. Cit., p. 141


segs..

§ 51. Sobre a República: NATORP, op. Cit., p. 175 segs.; SiiOREY,


Plata's Republic, Londres, 2 vols.,
1930-35; MURMY, The Interpretation of Plato's Republic, Oxford,
1951. Sobre os mitos da República e de Platão em geral:
STENVART, Myth8 of PlatO, 1904.

§ 54. Sobre o mito final da República: STENZEL, Platone


Educatore, p. 128 segs..

§ 55. Sobre o Parménides: WAHL., Êtude sur le Parmeníde de


Platon, Paris, 1926; DIÈs, Maton Parmentde, Paris, 1923; PACI, Il
significato dei Parmenid nella filosofia di Platone, Milano, 1938. F.
M. CORNFORD, Plato and Parmenides, Londres, 1939; J. WILD,
Plato's Theory of Man, Cambridge (Mass.), 1948.
Sobre o Teeteto: NATORP, Op. Cit., P. 88 SegS.; DiÊS, Autour de
Platon, Paris, 1927, p. 450 segs..
222

§ 56. Sobre o Sofista: RiTTER, Platon, II, p. 120 .sega., 185 segs.,
642 segs.-, NATORP, op. cit., p. 271 segs.,
331 segs.; DIÊS, La définition de I'Être et Ja Nature des Idêes
dans le Sophiste de Platon, Paris, 1909; STENZEL, ZahI und
Gestalt bei Platon und Aristoteles, Leipzig, 1924, p. 10 segs., 126
se-S.; REIDEMEISTER, Mathematik und Logik bei PZaton, Leipzig,
1942.

§ 57. Sobre a Dialéctica: STENZEL, StUdien ZUr Entu,ick1ung der


Plat. Dialektik, Leipzig, 1931. Nesta última obra é demoradamente
discutido o conceito da dialéctica platónica como método da divisão,
e este método vem reconhecido como a conquista última da filosofia
platónica.

§ 58. Sobre o Filebo: RiTTER, Platon, II, p. 165 segs., 497 segs,
NATORP, p. 296 segs.; ROBIN, Platon, cap. 4: e a minha Introdução
à tradução de ~ITINI, Turim, 1942.

A anedota de Aristóxeno encontra-se em Harmonia, ed. Marquard,


p. 44, 5; R. S. BRuMBAUGH, P.'3 Mathematical Imagination,
Bloomington, 1954.

§ 59- Sobre o Timeu: RiTTER, Platon, II, p. 258 segs.; TAYLOR, A


Commentary on PZatoIs Timacus, Oxford, 1928; NATORP, p. 338
segs.; ROBIN, Mudes sur Ia signification et Ia place de Ia physique
dans Ia philosophie de Platon, Paris, 1919; ID., Platon, cap. 5; LEVI,
Il concetto del tempo nella filosofia di Platone, Turim, s. d:
CORNFORD, Platols Cosmology, Londres,
1937; PERLS, Platon. Sa conception du Kosmos, New York, 1945.
§ 60. Sobre o Político: RITTER, Platon, II, p. 242 segs..
Sobre as Leis: RITTER, op. cit., II, p. 657 segs.; NATORP, p. 358
segs.; ver das Leis, a tradução ltal. de CASSARÁ, 2 vol., Bari, 1931.

§ 61. Sobre as digressões filosóficas da Carta VII, sobretudo no


seu significado educativo: STENZEL, Platone Eduratore, cap. 6.
223

A ANTIGA ACADEMIA

§ 62. ESPEUSIPO

A escola de Platão tirou o seu nome do "ginásio suburbano muito


arborizado dedicado ao herói Academo" (Dióg. L., IV, 7). Segundo a
tradição, foi fundada após a primeira viagem de Platão à Sicília com
o dinheiro que fora recolhido para o resgate do mesmo Platão (387
a.C., mais ou menos). Poucas notícias temos sobre a organização da
própria escola, mas é bastante duvidoso que ela tivesse cursos ou
ensinos regulares. Durante a vida de Platão, a história da Academia
coincide provavelmente com o próprio desenvolvimento do
pensamento platónico, isto é, com a gradual evolução dos seus
interesses e dos seus temas especulativos, que foi delineada no
capítulo precedente.

Mas a vida da Academia continuou, após a morte de Platão, por


muitos séculos. O próprio Platão confiara a direcção da Academia ao
seu sobrinho Espeusipo, que a conservou durante oito anos (347-
339). Espeusipo afastou-se da oposição
225
platónica entre conhecImento sensível e conhecimento racional,
admitindo uma "sensação científica" como fundamento do
conhecimento dos objectos. Em lugar das ideias platónicas ele
admitia, como modelos das coisas, os números matemáticos, que
distinguia dos sensíveis. Parece que formulou contra a doutrina das
ideias muitas objecções que foram depois expostas por Aristóteles.
Negava-se a reconhecer o bem como princípio do processo cósmico,
argumentando que os seres individuais, animais e vegetais
manifestam na sua existência uma tendência para passarem do
imperfeito ao perfeito e que, por conseguinte, o bem está no termo
e não no início do devir. Identificou a razão com a divindade e, na
sequência do Timeu e das Leis, concebeu a divindade como sendo a
alma governadora do mundo.

No seu escrito Semelhanças, em dez livros, de que nos restam


alguns fragmentos, Espeusipo estudava o reino animal e vegetal,
procurando sobretudo classificar-lhes as espécies. A mesma
tendência classificatória revela o título de uma outra obra por ora
perdida: Acerca dos tipos dos géneros e das espécies.

§ 63. XENÓCRATES

Por morte de Espeusipo os membros da Academia elegeram por leve


maioria Xenócrates para a dirigir, ocupando este o seu lugar de
director por um período de 25 anos (339-314). De modesta
capacidade especulativa, muito estimado pelo seu patriotismo e pelo
carácter independente (recusou uma soma considerável oferecida
pelo rei Alexandre à Academia, tendo aceitado somente uma
pequena parte dela), Xenócrates teve uma certa influência sobre o
desenvolvimento da escola. Distinguia entre o saber, a opinião e a
sensação: o
226
saber é plenamente verdadeiro, a opinião tem uma verdade inferior
e a sensação tem misturadas a um tempo verdade e falsidade. Estas
três espécies de conhecimento correspondem a três espécies de
objectos: o saber corresponde à substância inteligível, a opinião à
substância sensível, a sensação a uma substância mista. A mesma
preferência pelo número três mostra a sua divisão da filosofia em
dialéctica, física e ética. Com Xenócrates, acentua-se a tendência
para o pitagorismo que já caracterizava a derradeira especulação
de Platão e a de Espeusipo. Mas Xenócrates interpretou em sentido
antropomórfico a teoria dos números como princípios das coisas,
dizendo que a unidade é a divindade primordial masculina, a
dualidade a divindade primordial feminina. Deificou, portanto, os
elementos e imaginou uma imensidade de demónios como
intermediários entre a divindade e os homens.

É notável a sua definição da alma como "um número que se move por
si"; nessa definição, evidentemente, ele entendia por número a
ordem ou a proporção que já Platão indicara com a mesma palavra.
Segundo parece, deve atribuir-se a Xenócrates a doutrina das
ideias-números, referida por Aristóteles como característica dos
"platónicos". Segundo essa doutrina, o número constituía a essência
do mundo. Distinguiam-se os números ideais daqueles com que se
calcula, os números ideais, considerados como os elementos
primordiais das coisas, eram dez. Destes, a unidade e a dualidade
eram os princípios respectivamente da divisibilidade e da
indivisibilidade, da união de que brotava o número propriamente
dito. Ao paralelismo pitagórico entre conceitos aritméticos e
conceitos geométricos, acrescentava-se um paralelismo semelhante
no domínio do conhecimento; a razão era identificada com a
unidade-ponto, o conhecimento com a dualidade-linha, a opinião com
a tríada-superfície, a percep-
227
ção sensível com a tétrada-corpo. Não é fácil qual possa ser o
significado destas e de idênticas analogias que Aristóteles expõe e
discute em vários passos da Metafísica.

Na ética, Xenócrates seguia Platão: colocou a felicidade na "posse


da virtude e dos meios para a conseguir. Conta-se a seu respeito um
dito de espírito cristão: "o simples desejo equivale já à prática da
má acção".

§ 64. POLÉMON. CRANTOR

O sucessor de Xenócrates na direcção da Academia foi Polémon de


Atenas (314-270). Depois de uma juventude desordenada, foi
radicalmente transformado pelas suas relações com Xenócrates e
procurou pôr o seu ideal de vida na calma e na imutabilidade
dohumor. A sua ensinança, predominantemente moral, consistia em
afirmar a exigência de uma vida conforme à natureza, exigência que
o aproximava dos Cínicos.

Um seu discípulo, Crantor, conhecido sobretudo como intérprete do


Timeu, iniciou a série dos comentadores de Platão. Crantor fundou
ainda um género literário que mais tarde haveria de ter fortuna, o
das "consolações", com o seu livro Sobre a dor. Um fragmento
desta obra trata do papel que a dor física se destina a cumprir
como defensora da saúde e a dor moral como libertadora da
animalidade. De acordo com um testemunho devido a Sexto
Empírico, Cantor imaginava que os Gregos, reunidos numa festa,
veriam desfilar ante si os diversos bens que aspiravam ao primeiro
prémio e o disputavam; e este cabia à virtude, atrás da qual surgiam
a saúde e a riqueza.

Cratetes foi quem sucedeu a Polémon, de quem era amicíssimo, na


direcção da Academia (270-
228

-268164). Sucedeu-lhe Arcesilau; mas com este a Academia muda


de orientação e termina, por isso, a história da antiga Academia.

§ 65. HERACLIDES PòNTICO

Ao grupo dos discípulos imediatos de Platão pertenceu Heraclides


Pôntico que, segundo uma tradição, substituiu Platão na direcção da
escola durante a sua última viagem à Sicília. Depois da morte de
Espeusipo e da eleição de Xenócrates para a direcção da escola, à
qual ele próprio aspirara, fundou por alturas de 399 a.C. uma escola
na sua pátria, Heracleia, no Ponto. Não deixava de ser um pouco
charlatão e diz-se que corrompeu a Pítia, contra a qual os seus
concidadãos se tinham revoltado pelo mau andamento das colheitas,
com o desígnio de que a sua cidade lhe conferisse honras divinas.
Mas, enquanto os mensageiros anunciavam no teatro o oráculo da
Pítia, segundo o qual a cidade devia oferecer uma coroa de ouro a
Heraclides se queria melhorar as suas condições, Heraclides
morreu de emoção; no que se viu uma sentença divina.

Os diálogos de Heraclides estavam cheios de mitos e de fantasias


maravilhosas. Num deles fazia descer à terra um homem da lua. Um
outro, intitulado Sobre o Hades, narrava uma viagem ao inferno.

Heraclides seguiu, modificando-a, a doutrina de Demócrito. No


lugar dos átomos pôs os "corpúsculos não coligados", isto é, corpos
simples com os quais a inteligência divina teria construído o mundo.
Na astronomia admitiu o movimento diurno da terra e opinou que
Mercúrio e Vénus giram à volta do Sol. Concebeu a alma como sendo
for-
229
mada de matéria subtilíssima, o éter. E num escrito: Sobre os
simulacros contra Demócrito, combateu, como se depreende do
título, a doutrina democritiana do conhecimento como procedendo
dos fluxos dos átomos.

§ 66. EUDOXO. O "EPINóMIDES"

Pertenceu ainda à escola platónica o famoso astrónomo Eudoxo de


Cnidos. Segundo Aristóteles (Met., 1. 991 a, 14), considerou as
ideias como estando mescladas com as coisas de que são a causa,
"do mesmo modo que a cor branca numa mescla é causa da brancura
de um objecto". Parece, desta maneira, que as aproximava das
homeomerias de Anaxágoras, que estão todas misturadas umas com
as outras. No campo da ética Eudoxo considerava o prazer como o
bem-doutrina que se discutiu no Filebo de Platão.

A Filipo de Opunto, o discípulo de Platão que transcreveu e publicou


as Leis, a última obra do mestre, costuma atribuir-se desde a
antiguidade o diálogo pseudo-platónico Epinémides. O escopo deste
diálogo é determinar quais os estudos que conduzem à sabedoria.
Excluídas as artes e as ciências, que contribuem apenas para o bem-
estar material e o divertimento (como a arte da guerra, da
medicina, da navegação, da música, etc.), fica a ciência do número,
que traz consigo todos os bens. Sem o conhecimento do número, o
homem seria imoral e privado de razão, porque onde não há número
não há ordem, mas somente confusão e desordem. Ora a ordem mais
rigorosa é a dos corpos celestes; e o movimento perfeito desses
corpos só pode explicar-se admitindo que eles são vivos e que a
divindade lhes deu uma alma. Eles próprios são deuses ou imagens
de deuses e como tal devem ser adorados. Até o ar e o éter devem
ser divindades, com
230
corpos transparentes e por isso invisíveis; podemos supor que
constituem uma hierarquia de demónios intermediários entre os
deuses e os homens. O estudo da astronomia é o mais importante de
todos para conduzir à piedade religiosa, que é a maior de entre as
virtudes. Acompanham-no os estudos auxiliares da aritmética e da
geometria plana e do espaço. Somente através destes estudos o
homem pode alcançar a sabedoria, por isso, tais estudos devem
constituir a preocupação dos governantes.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 60. Sobre a vida, doutrina e escritos dos antigos académicos:


DIóGENEs LA£Rcio, IV, cap. VI1] pág. 88 ss. Outras fontes em
ULLFR, II, pãg. 982 w. Os testemunhos em DIELS, Doxogr. Grae., e
os fragmentos em MULLACH, Fragmenta Phil. Graecor., III, p. 51
ss. Sobre Espeusipo: GoMPERZ, M, pãg. 3 ss.

§ 61. A polémica da Metafísica de Aristóteles contra as ideias-


números (especialmente XIII, cap. 3.* ss e XIV, cap. 3.* ss) parece
que vai precisamente contra Xenócrates; GompERz, III, pág. 7 ss.

§ 62. Sobre Polétnon, e Crantor: GoMPERZ, III, pág. 14 ss.

§ 65. Sobre Heraclides Pôntico: GOMPERz, III, Pág. 16 SS.;


JAEGER, Aristóteles.

§ 64. Sobre Eudoxo: JAEGER, Op. Cit. Sobre Epinómides e Filipo de


Opunto: JAMER, Op. cit. Epinómide,9 considerado diálogo autêntico
de Piatão por TAYLOR, Plato, pág. 497 ss.
231

XI
ARISTÓTELES

§ 67. A VIDA

Quando Aristóteles (que nasce em Estagira em 384-83 a. C.) entrou


na escola de Platão, contava apenas 17 anos. Nesta escola
permaneceu 20 anos, ou seja, até à morte do mestre (348-47). Esta
longa permanência, tanto mais notável tratando-se de um homem
que possuía excepcionais capacidade especulativa e independência
de pensamento, torna impossível dar crédito às anedotas que nos
chegaram sobre a ingratidão de Aristóteles relativamente ao
mestre. Segundo Diógenes Laércio (V, 2). Platão teria dito:
"Aristóteles calcou-me com as patas como os potros calcam a mãe
quando os dá à luz." Na realidade, porém, a existência, hoje
demonstrada, de um período platónico na especulaÇão aristotélica, a
elegia no altar de Platão (§ 71) e o próprio tom que Aristóteles
emprega quando O critica, demonstram que a atitude de Aristóteles
Para com o mestre foi a da felicidade e do respeito, ainda que
dentro da mais resoluta independência de crítica filosófica.
233

Apresentando-se na Ética a Nicómaco (1, 4,


1096 a, 11-16) para criticar a doutrina platónica das ideias,
Aristóteles declara quão penosa é para ele a tarefa, dada a amizade
que o liga aos homens que a defendem; e acrescenta: "Mas talvez
seja melhor, será mesmo um dever, para salvar a verdade,
sacrificar os nossos assuntos pessoais, principalmente quando se é
filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa
santa amar mais a verdade."

À morte de Platão, Aristóteles deixou a Academia e não voltou


mais à escola que o criara. Para suceder a Platão fora designado,
pelo próprio Platão ou pelos condiscípulos Espeusipo; e esta
escolha devia imprimir à Academia uma orientação que
Aristóteles não podia aprovar. O espírito de Platão abandonava a
escola e Aristóteles já não tinha razões para se lhe manter fiel.
Acompanhado por Xenócrates transferiu-se então para Asso na
Tróade, onde os dois discípulos de Platão, Erasto e Corisco, haviam
constituído com Hermias uma comunidade filosófico-política (§ 42),
de que temos notícias pela Carta VI de Platão e por outros
testemunhos (Didimo, In Demost., col. 5). Aqui provàvelmente
exerceu Aristóteles o seu primeiro ensino autónomo. O filho de
Corisco, Neleo, converteu-se num dos mais fervorosos sequazes do
filósofo; e foi precisamente na casa dos descendentes de Neleo que
se encontraram, segundo conta Estrabão (XIII, 54), os manuscritos
das obras acromáticas de Aristóteles.

Depois de três anos de permanência em Asso, Aristóteles


transferiu-se para Mitilene. Segundo Estrabão, Aristóteles teria
fugido de Asso depois da morte de Hermias, juntamente com a filha
do tirano, Pitia, que depois se torna sua esposa. Mas parece que
Aristóteles abandonou Asso antes da morte de Herinias e que o seu
matrimónio remonta
234

ao período da permanência em Asso. Seja como for, ao saber-se a


notícia do assassinato de Hermias por acção dos persas, Aristóteles
compõe uma elegia que exalta a virtude heróica do amigo perdido.

Neste primeiro período da sua actividade didáctica em Asso e em


Mitilene, deve ter ocorrido o afastamento de Aristóteles da
doutrina do mestre. Deve ter composto então o diálogo Sobre a
Filosofia, no qual aparece (como sabemos por alguns fragmentos) a
crítica das ideias-números.

No ano de 342 Aristóteles foi chamado por Filipe, rei da


Macedónia, a Pella, para se encarregar da educação de Alexandre.
O pai de Aristóteles, Nicómaco, fora médico na arte da Macedónia
uns quarenta anos antes; mas talvez a escolha de Filipe fosse
determinada pela amizade de Aristóteles com Hermias que
mantinha relações com Filipe. Na obra de conquista e de unificação
de todo o mundo grego, para a qual a educação de Aristóteles
preparou Alexandre, agiu seguramente a convicção por parte de
Aristóteles da superioridade da cultura grega e da sua capacidade
de dominar o mundo, se se unisse a ela uma forte unidade política. O
afastamento entre o rei e Aristóteles só se produziu quando
Alexandre, alargando os seus desígnios de conquista, pensou na
unificação dos povos orientais e adoptou as formas orientais de
soberania.

Quando Alexandre subiu ao trono, Aristóteles regressou a Atenas


(335-334). Regressou ali depois de 13 anos de ausência, célebre
como mestre de vida espiritual e como filósofo; e a amizade do
poderosíssimo rei devia colocar à sua disposição meios de
investigação e de estudo excepcionais para aquele tempo. Fundou
então a sua escola, o Liceu, que compreendia além dum edifício e do
jardim, o passeio Ou Peripato de que tomou o nome. Tal como a
Academia, o Liceu praticava a vida em comuni-
235

dade; mas aqui a ordem das lições estava firmemente estabelecida.


Aristóteles dedicava as manhãs aos cursos mais difíceis de
argumento filosófico, à tarde dava lições de retórica e de dialéctica
a um público mais vasto. Ao lado do mestre, realizavam cursos os
escolares mais antigos, como Teofrasto e Eudemo.

Quando Alexandre morreu em 323, a insurreição do partido


nacionalista contra os partidários do rei pôs em perigo Aristóteles.
Para evitar que "os atenienses cometessem um segundo crime
contra a filosofia", Aristóteles abandonou Atenas e fugiu para
Caleis em Eubeia, pátria de sua mãe, onde possuía uma propriedade
que dela herdara. Aqui se manteve durante os meses seguintes até
ao dia da morte. Uma doença de estômago, de que padecia, pôs fim
à sua vida com 63 anos, em
322-21. Temos o testamento que escreveu em Calcis: fala-se lá em
Pitia, sua filha menor, numa mulher Herpilis que tomara em casa
depois da morte da esposa e no filho Nicómaco que tivera de
Herpilis. Estabelece que os seus restos mortais não sejam
separados dos de Pitia, sua mulher, conforme ela também desejara.

§ 68. O PROBLEMA DOS ESCRITOS

As obras que chegaram até nós compreendem somente os escritos


que Aristóteles compôs para as necessidades do seu ensino. Além
destes escritos que se chamaram acroamáticos por serem
destinados a ouvintes, ou esotéricos, isto é que continham uma
doutrina secreta, mas que na realidade são apenas os apontamentos
de que se servia para o ensino, Aristóteles compôs outros escritos
segundo a tradição platónica, em forma dialogada, a que ele mesmo
chamou exotéricos, isto é destinados ao
236

público, nos quais empregava mitos e outros ornamentos vivazes e


se mostrava tão eloquente quanto enxuto e severo se mostra nos
escritos escolares. Mas destes escritos exotéricos não restam mais
que poucos fragmentos de cujo valor para compreender a
personalidade de Aristóteles a crítica só se deu conta
recentemente.

Os escritos acroamáticos só vêm a ser conhecidos quando foram


publicados, nos tempos de Sila, por Andrónico de Rodes. Segundo o
relato de Estrabão, estes escritos foram encontrados na adega da
casa que possuíam os descendentes de Neleo, o filho de Corisco. É
um facto que, durante muito tempo, Aristóteles só foi conhecido
através dos diálogos e que somente após a publicação dos escritos
acroamáticos, é que os diálogos foram pouco a pouco relegados para
o olvido pelos tratados escritos para a escola. Assim nasce o
problema de saber em que relação se encontram os diálogos com os
escritos escolásticos e até que ponto contribuem para a
compreensão da personalidade de Aristóteles.

Nos tratados escolásticos, o pensamento de Aristóteles aparece


inteiramente sistemático e acabado: parece excluir-se, ao menos à
primeira vista, que Aristóteles tivesse experimentado oscilações ou
dúvidas, que haja sofrido crises ou mudanças. A consideração dos
diálogos permite, pelo contrário, dar-se conta de que a doutrina de
Aristóteles não nasceu Completa e lograda, que o seu pensamento
sofreu crises e mudanças. Os fragmentos que possuímos de tais
diálogos mostram-nos, com efeito, um Aristóteles que adere
primeiramente ao pensamento platónico para depois se afastar dele
e o modificar substancialmente; um Aristóteles que transforma a
própria natureza dos seus interesses espirituais, os quais,
orientados primeiramente para os problemas filosóficos, se vão
depois concentrando em proble-
237

mas científicos particulares. Pelo estudo da formação do sistema


aristotélico foi possível deitar um olhar sobre a formação e o
desenvolvimento do homem Aristóteles.

§ 69. OS ESCRITOS EXOTÉRICOS

Nos seus diálogos Aristóteles não só adoptou a forma literária do


mestre mas também os temas e algumas vezes os títulos das suas
obras. Escreveu com efeito um Banquete, um Político, um Sofista,
um Menexeno; e depois o Grillo ou Da Retórica. que correspondia ao
Górgias, o Protréptico que correspondia ao Eutidemo, o Eudemo ou
Da Alma que correspondia ao Fédon.

Este último diálogo parece de franca inspiração platónica. O seu


tema chegou até nós graças a um relato de Cícero. (De Div., 1, 25,
35; fr. 37, Rose): Eudemo, doente, tem um sonho profético que lhe
anuncia a sua cura, a morte dum tirano e o seu regresso à pátria. Os
dois primeiros factos realizam-se; mas enquanto espera o terceiro,
Eudemo morre na batalha. Anunciando-lhe o regresso à pátria, a
divindade quisera indicar que a verdadeira pátria do homem é a
eterna, não a terrena. Aristóteles partia deste relato para
demonstrar a imortalidade e combater as concepções que se
opunham a ela. Entre estas criticava, como Platão no Fédon, o
conceito da alma como harmonia: a harmonia tem alguma coisa que
se lhe contrapõe -a desarmonia; pelo contrário, a alma como
substância não tem nada que se lhe contraponha; logo a alma não é
harmonia (fr. 45, Rose). O diálogo admitia também a doutrina
platónica da anamnesis: a alma que desce ao corpo esquece as
impressões recebidas no período da sua existência; pelo contrário,
a alma que com a morte regressa ao além, recorda o que
238

experimentou cá. Pois que "a vida sem corpo é a condição natural
para a alma, a vida no corpo é contra a natureza como uma doença"
(fr. 41, Rose). Aristóteles permanece aqui ligado ainda ao
pessimismo órfico-pitagórico aceite antes por Platão. "Dado que é
impossível para o homem participar da natureza do que é
verdadeiramente excelente, seria melhor para ele não ter nascido;
e dado que nasceu, o melhor é morrer quanto antes." (fr. 44, Rose).

O Protréptico (ou discurso exortatório) era uma exortação à


filosofia, dirigida a um príncipe de Chipre, Temisó n. A exortação
tomava a forma de um dilema: "Ou se deve filosofar ou não se deve:
mas para decidir não filosofar é ainda e sempre necessário
filosofar; assim pois em qualquer caso filosofar é necessário" (fr.
51, Rose). O filosofar é concebido ainda platonicamente como
exercício de morte; é a condenação de tudo o que é humano,
enquanto aparência enganosa, e até da beleza (fr. 59, Rose). O
filósofo como o político deve olhar não à s imitações sensíveis, mas
aos modelos eternos. Consequentemente no Protréptico, o
conhecimento aparece a Aristóteles como sabedoria moral
(frónesis) enquanto mais tarde distinguirá nitidamente o
conhecimento, da vida moral. O Protréptico terminava
provavelmente com a exaltação da figura e da vida do sage,
considerado com um deus mortal, superior ao trágico destino dos
homens (fr. 61, Rose); livro que esteve entre os mais lidos e
admirados por variadíssimos espíritos: desde o cínico Crates que o
leu na oficina de um sapateiro (fr. 50, Rose) a S. Agostinho que,
graças à imitação que dele fez Cicero no Hortensio, veio à filosofia
e portanto a Deus (§ 157).

O afastamento por parte de Aristóteles do platonismo deve iniciar-


se durante a permanência de
239

Aristóteles em Asso e o seu primeiro documento é o diálogo Sobre


a Filosofia, que foi durante muito tempo, isto é, até à edição da
Metafísica por intervenção de Andrónico de Rodes, a fonte
principal para o conhecimento da sua filosofia. O diálogo constava
de três livros. No primeiro, Aristóteles tratava do desenvolvimento
histórico da filosofia, de maneira análoga ao que fez no primeiro
livro da Metafísica. Mas aqui não começava em Tales, mas na
sabedoria oriental e nos sete sábios. Platão era colocado no cume
de toda a evolução filosófica. No segundo livro, criticava-se a
doutrina das ideias de Platão. Num fragmento que chegou até nós
(fr. 9, Rose), toma-se particularmente em atenção a teoria das
ideias-números: "Se as ideias fossem uma outra espécie de
números, diferentes dos da matemática, não poderíamos ter delas
nenhum entendimento. Com efeito, quem, pelo menos a maior parte
de nós, pode entender que coisa seja um número de espécie
diferente?" Mas, por um testemunho de Plutarco e de Proelo (fr .8,
Rose), sabemos que ele impugnava toda a teoria das ideias,
declarando que não podia segui-la mesmo à custa de parecer a
alguém demasiado amante da disputa. No terceiro livro do diálogo,
Aristóteles apresentava a sua construção cosmológica. Concebia a
divindade como o motor imóvel que dirige o mundo enquanto causa
final, inspirando às coisas o desejo da sua perfeição. O éter era
concebido como o corpo mais nobre e mais próximo da divindade;
por baixo do motor imóvel estavam as divindades dos céus e dos
astros. A existência de Deus era demonstrada mediante a prova
que a Escolástica chamou argumento dos graus. Em qualquer
domínio em que haja uma hierarquia de graus e portanto uma maior
ou menor perfeição, subsiste necessariamente algo absolutamente
perfeito. Ora dado que em tudo o que existe se manifesta uma
240

gradação de coisas mais ou menos perfeitas, subsiste também um


ente de absoluta superioridade e perfeição, e este poderia ser
Deus (fr. 16, Rose). Adaptando o famoso mito platónico da caverna,
Aristóteles tirava dele um argumento para afirmar a existência de
Deus. Se existissem homens que tivessem habitado sempre debaixo
da terra em esplêndidas moradas adornadas com tudo o que a arte
humana pode fazer; se nunca tivessem subido à superfície e só
tivessem ouvido falar da divindade, haveriam de estar, apesar disso,
imediatamente seguros da sua existência, se, saindo à superfície,
pudessem contemplar o espectáculo do mundo natural (fr. 12, Rose).
Enquanto o mito da caverna servia a Platão para demonstrar o
carácter aparente e ilusório do mundo sensível, serve a Aristóteles
para exaltar a perfeição do mesmo mundo sensível e para tirar
dessa perfeição um argumento de prova da sua origem divina. A
separação entre Platão e Aristóteles não poderia ser melhor
simbolizada do que mediante este mito.

§ 70. AS OBRAS ACROAMÁTICAS

As obras acroamáticas de Aristóteles, levadas a Roma por Sila,


foram ordenadas e publicadas por Andrónico de Rodes pelos meados
do século 1 a.C.. Estas obras compreendem:

1.o -Escritos de LóGICA, conhecidos globalmente sob o nome de


õrganon (ou instrumentos de investigação): Categorias (um livro):
sobre os termos ou sobre os predicados. Sobre a Interpretação
(um livro): sobre as proposições. Primeiros Analíticos (dois livros):
sobre o raciocínio. Segundos Analíticos (dois livros): sobre a prova,
a definição, a divisão e o conhecimento dos princípios. Tópicos (oito
241

livros): sobre o discurso dialéctico e sobre a arte da refutação


fundada em premissas prováveis. Elencos Sofísticos: refutação dos
argumentos sofistas. Esta é a ordem sistemática em que a tradição
recolheu os escritos lógicos de Aristóteles. Não é a ordem
cronológica da sua composição acerca da qual somente se podem
adiantar conjecturas. Admite-se geralmente que as Categorias ou a
sua primeira redacção (que compreende os cap. I-VIII) e os livros
11-VII dos Tópicos são os escritos mais antigos, alguns dos quais
compostos provavelmente quando Platão era vivo. Os Elencos
sofísticos são um apêndice dos Tópicos e pertencem ao mesmo
período. Contemporâneo ou pouco posterior deve ser também o livro
Sobre a Interpretação. Os Primeiros Analíticos e os Segundos
Analíticos pertencem à fase madura do pensamento de Aristóteles.
Deve-se recordar também que o uso do vocábulo "lógica" para este
género de investigações foi iniciado pelos estóicos e que
Aristóteles, ao contrário, as compreendia sob o nome de "ciência
analítica" (Ret., I, IV,
359 b, 10).

2.o - A METAFÍSICA, em 14 livros. Livro I: Natureza da ciência. Os


quatro princípios metafísicos. Visão crítica das doutrinas dos seus
predecessores (cap. IX: Sobre a doutrina platónica das ideias).
Livro II: Dificuldade da investigação da verdade. Contra uma
infinita série de causas. As diversas espécies de investigação; deve-
se partir do conceito de natureza. Livro III - Quinze dúvidas em
torno dos princípios e da ciência que se fundamenta neles. Livro IV:
Solução de algumas dúvidas. Princípio da contradição. Livro V: Sobre
os termos que é costume usar em diferentes significados, como
Princípio, causa, elemento, natureza, etc. Livro VI: Determinação do
domínio da metafísica em relação ao domínio das outras ciências.
Livro VII e VIII:
242
Doutrina da substância. Livro IX: Doutrina da potência e do acto.
Livro X: O uno e o múltiplo. Livro XI, cap. I-VIII: análogos aos
livros III, IV e VI; caps. 9-12: sobre o movimento, sobre o infinito.
Livro XII: As diversas espécies de substância, a sensível-mutável, a
sensível-imutável, a supra-sensível; esta última como objecto da
metafísica. Livro XIII e XIV: As matemáticas, a teoria das ideias e
a teoria dos números (XIII, cap. IV: Contra a doutrina platónica
das ideias).

Como se vê por este sumário, a Metafísica não é uma obra orgânica


mas um conjunto de escritos diferentes, compostos em épocas
diferentes. O livro II é o resto de um conjunto de apontamentos
tirados por um aluno de Aristóteles. O livro VI, na época
alexandrina, subsistia ainda como obra independente.
O Livro XII é uma exposição autónoma que oferece um quadro
sintético de todo o sistema aristotélico e é em si mesmo completo.
Os dois últimos livros não têm nenhuma relação com o que os
precede. Estudos recentes permitem traçar para esta série de
escritos uma ordem cronológica e delinear também a direcção da
formação do pensamento de Aristóteles. Os livros I e III
constituem a redacção mais antiga da obra: com efeito, Aristóteles
expõe aí a doutrina das ideias como se fosse sua e inclui-se a si
próprio entre os platónicos. Os livros XIII e XIV pertencem ao
mesmo período e constituem uma reelaboração dos dois
precedentes. O livro XIII devia substituir provavelmente o livro
XIV porque oferece uma elaboração mais acabada e sistemática dos
mesmos argumentos.

O livro XII contém a formulação teológica da metafísica


aristotélica, segundo a qual esta constitui urna ciência particular
que tem por objecto o ser divino, o primeiro motor. Esta
formulação, que está mais próxima do platonismo, é
indubitavelmente anterior àquela que faz da filosofia a
243

ciência do ser enquanto tal. Pelo contrário, os livros sobre a


substância (VII, VIII e IX), na medida em que consideram a
substância em geral e portanto também a substância sensível,
realizam o projecto de uma filosofia como ciência do ser enquanto
ser (isto é do ser em geral) e portanto apta a servir de fundamento
a todas as ciências particulares. Esses livros constituem a
formulação mais madura do pensamento aristotélico.

3.o - Escritos de FÍSICA, de HISTóRIA NATURAL, de


MATEMÁTICA e de PSICOLOGIA.

Lições de física em 8 livros. Sobre o céu, em


4 livros. Sobre a geração e a corrupção, em 2 livros. Sobre os
meteoros, em 4 livros.

História dos animais: anatomia e fisiologia dos animais. À mesma


série pertencem os escritos: Sobre as partes dos animais,- Sobre a
geração dos animais; Sobre as transmigrações dos animais; Sobre o
movimento dos animais. Os escritos: Sobre as linhas indivisíveis e
Sobre os mecanismos são apócrifos.

A doutrina aristotélica da alma é exposta nos três livros Sobre a


Alma e na recolha de escritos intitulada Parva naturalia.

O escrito sobre a Fisionómica é apócrifo. A recolha dos Problemas


compreende a compilação de um conjunto de problemas, alguns dos
quais são certamente aristotélicos.

4.O -Escritos de ÉTICA, POLITICA, ECONOMIA, POÉTICA e


RETóRICA.

Com o nome de Aristóteles chegaram-nos três tratados de ética: a


Ética Nicomaqueia, a Ética Eudemia e a Grande Ética, assim
chamada não porque seja a mais vasta (pelo contrário, é a mais
breve), mas porque se ocupa de mais assuntos. Mas
244

a Grande Ética, certamente compilação de um aristotélico, não


escapa a influências estranhas ao aristotelismo, e provavelmente
aos estóicos. A Ética Eudeinia é atribuída por alguns a Eudemo de
Rodes, discípulo de Aristóteles; por outros, considerada como obra
original de Aristóteles, editada por Eudemo, como foi editada por
Nicómaco a Ética Nicomaqueia. Os estudos mais recentes levam a
ver na Ética Eudemia a primeira formulação da Ética de Aristóteles
que também neste domínio se vai afastando cada vez mais das
directrizes do mestre.

A Política em 8 livros. Livro I: A natureza da família. Livro II:


Consideração crítica das teorias anteriores do estado. Livro III:
Conceitos fundamentais da Política. Natureza dos estados e dos
cidadãos. As várias formas de constituição. A monarquia. Livro IV:
Ulterior determinação dos caracteres das diversas constituições.
Livro V: Mudanças, sedições e revoluções nos estados. Livro VI: A
democracia e as suas instituições. Livro VII: a constituiição ideal.
Livro VIII: A educação. Aristóteles recolhem 158 constituições
estatais que se perderam. Voltoti à luz, nos princípios do século
passado, a Constituição dos Atenienses, escrita pessoalmente por
Aristóteles como primeiro livro do conjunto da obra.

Da Economia, provavelmente o primeiro livro não é aristotélico, o


segundo é decididamente apócrifo e pertence ao fim do III século.

À Retórica, em 3 livros, trata no I da natureza da retórica, que tem


por objecto o verosímil e os problemas que lhe são próprios; no II
do modo de suscitar com a palavra afectos e paixões, no III, da
expressão e da ordem em que devem ser expostas as partes do
discurso.

A chama-da Retórica a Alexandre é apócrifa, como o demonstra o


próprio facto da dedicatória,
245

costume desconhecido no tempo de Aristóteles; é atribuída ao


retórico Anaxímenes de Lampsaco.

A Poética chegou-nos incompleta. A parte que nos resta trata


apenas da origem e da natureza da tragédia.
Perderam-se as obras históricas de Aristóteles sobre os
Pitagóricos, Arquitas, Demócrito e outros.
O escrito sobre Melisso, Xenófanes e Górgias não é aristotélico.

§ 71. - DO "FILOSOFAR" PLATÓNICO À "FELOSOFIA"


ARISTOTÉLICA

Num fragmento da elegia, endereçada a Eudemo, colocada no altar


de Platão, Aristóteles exalta assim o mestre:

* h&~ que o& maus 4ndo têm sequer permitido para [louvar que
sozinho ou o primeiro entre os mortais demonstrou [claramente com
o exemplo de ~ vida e com o rigor de seus [argumentos que o homem
se torna bom e feliz ao mesmo tempo. A ninguém até agora foi
permitido tanto alcançar.

O ensinamento fundamental de Platão é, pois, segundo Aristóteles,


a relação estreita que existe entre a virtude e a felicidade; e o
valor deste ensinamento está no facto de que Platão não se limitou
a demonstrá-lo com argumentos lógicos, mas o incorporou na sua
vida e para isso viveu. Mas para Platão o homem só pode alcançar o
bem que é a própria felicidade, mediante uma pesquisa
rigorosamente conduzida e que se dirija para a ciência do ser em si.
Platão não estabelecia apenas a identi-
246

dade entre virtude e felicidade mas também entre virtude e


ciência. O que é que pensa Aristóteles desta segunda identidade,
para cuja demonstração tende toda a obra de Platão?

Encontra-se precisamente aqui a separação entre Platão e


Aristóteles. Para Platão a filosofia é procura do ser e ao mesmo
tempo realização da verdadeira vida do homem nesta procura: é
ciência e, enquanto ciência, virtude e felicidade. Mas para
Aristóteles, o saber não é já a própria vida do homem que procura o
ser e o bem, mas uma ciência objectiva que se divide e se articula
em numerosas ciências particulares, cada uma das quais alcança a
sua autonomia. Por um lado, para Aristóteles, a filosofia tornou-se o
sistema total das ciências singulares. Por outro lado, é ela própria
uma ciência singular, certamente a "rainha" das outras, mas que não
as absorve nem dissolve por si mesma. Por isso, enquanto para
Platão a indagação filosófica dá lugar a sucessivos
aprofundamentos, ao exame de problemas sempre novos que
procuram aprender por todas as partes o mundo do ser e do valor,
para Aristóteles ela encaminha-se para a constituição de lima
enciclopédia das ciências na qual nenhum aspecto da realidade fica
de fora. A própria vida moral do homem torna-se o objecto de uma
ciência particular-a ética, que é autónoma, como qualquer outra
ciência, frente à filosofia.

O conceito da filosofia apresenta-se, pois, em Aristóteles


profundamente alterado. Por um lado a filosofia deve constituir-se
como ciência em si e reivindicar portanto para si aquela mesma
autonomia que as outras ciências reivindicam frente a ela. Por outro
lado, diferentemente das outras ciências, deve encontrar razões
para o seu fundamento comum e justificar a sua prioridade
relativamente a elas. Nestes termos, o problema é propriamente
247

aristotélico e não se encontra nada semelhante na obra de Platão.


Para Platão a filosofia não é mais que o filosofar e o filosofar é o
homem que procura realizar a sua verdadeira mesmidade, unindo-se
ao ser e ao bem que é o princípio do ser. Não há em Platão um
problema do que é que seja a filosofia, mas só o problema do que é o
filósofo, o homem na sua autêntica e completa realização. Tal é a
pesquisa que domina todos os diálogos platónicos, principalmente, a
República e o Sofista. Mas para Aristóteles a filosofia, enquanto
ciência objectiva, deve constituir-se por analogia com as outras
ciências. E como cada ciência é definida e se especifica pelo seu
objecto, do mesmo modo a filosofia deve ter um objecto próprio
que a caracteriza frente às outras ciências e ao mesmo tempo lhe
dê, frente a elas, a superioridade que lhe corresponde. Qual é este
objecto?

Dois pontos de vista se entrelaçam a este respeito na Metafísica


aristotélica, pontos de vista que assinalam duas etapas
fundamentais da evolução filosófica de Aristóteles. De acordo com
o primeiro, a filosofia é a ciência que tem por objecto o ser imóvel e
transcendente, o motor ou os motores dos céus; e é, portanto,
propriamente falando, teologia. Como tal, esta é a ciência mais alta
porque estuda a realidade mais alta, a divina (Met., VI, 1, 1026 a,
19). Mas assim entendida, falta à filosofia universalidade (e o
próprio Aristóteles o advertia: 1026 a, 23) porque se reduz a uma
ciência particular com um objecto que, ainda que seja mais alto e
mais nobre do que o das outras ciências, não tem nada a ver com
elas. Nesta fase, apesar de se ter apartado do conceito platónico
do filosofar, Aristóteles permanece fiel ao princípio platónico de
que a indagação humana deve exclusiva ou preferentement dirigir-
se para 'os objectos mais elevados que constituem os valores
supremos. Mas uma filosofia assim com-
248

premdida não consegue constituir o fundamento da enciclopédia das


ciências e fornecer a justificação de qualquer investigação, a
respeito de qualquer objecto. Esta exigência leva Aristóteles ao
segundo ponto de vista, que é o definitivo, e cuja realização
constitui a sua tarefa histórica. De acordo com este segundo ponto
de vista, a filosofia tem por objecto, não uma realidade particular
(seja embora a mais elevada de todas), mas o aspecto fundamental
e próprio de toda a realidade. Todo o domínio do ser -é dividido
pelas ciências singulares, cada uma das quais considera um aspecto
particular do mesmo; só a filosofia considera o ser enquanto tal,
prescindindo das determinações que constituem o objecto das
ciências particulares. Este conceito da filosofia como "ciência do
ser enquanto ser, é verdadeiramente a grande descoberta de
Aristóteles. Ela permite não só justificar o trabalho das ciências
particulares, como dá à filosofia a sua plena autonomia e a sua
máxima universalidade, constituindo-a como o pressuposto
indispensável de toda a investigação. Neste sentido, a filosofia já
não é somente teologia: certamente a teologia é uma das suas
partes, mas não a primeira nem a fundamental, pois que a primeira e
fundamental é aquela que conduz à busca do princípio em virtude do
qual o ser, todo o ser -Deus como a mais ínfima realidade natural é
verdadeira e necessariamente tal.

§ 72. A FILOSOFIA PRIMEIRA: SUA POSSIBILIDADE E SEU


PRINCIPIO

O primeiro grupo de investigações empreendidas por Aristóteles na


Metafísica versa precisamente sobre a possibilidade e sobre o
principio de uma ciência do ser. Aristóteles preocupa-se antes de
mais em definir o lugar desta ciência no sistema do saber
249

e as suas relações com as outras ciências. Acima de tudo, cada


ciência pode ter por objecto ou o possível ou o necessário: o
possível é o que pode ser indiferentemente de um modo ou de
outro; o necessário é aquilo que não pode ser de modo diferente do
que é. O domínio do possível compreende a acção (praxis) que tem o
seu fim em si mesma, e a produção (poiesis) que tem o seu fim no
objecto produzido. As ciências que têm por objecto o possível,
enquanto são normativas ou técnicas, podem também ser
consideradas como artes; mas não há arte que concerne aquilo que é
necessário (Et. Nic., VI, 3-4). Entre as ciências do possível, a
política e a ética têm por objecto as acções e por isso chamam-se
práticas; as artes têm por finalidade a produção de coisas e
chamam-se poéticas. Destas últimas, há uma que leva no próprio
nome o selo do seu carácter produtivo-é a poesia.

O domínio do necessário pertence pelo contrário às ciências


especulativas ou teóricas. Estas são três: a matemática, a física e a
filosofia primeira, que depois de Aristóteles se chamará metafísica.
A matemática tem por objecto a quantidade no seu duplo aspecto
de quantidade descontínua ou numérica (aritmética) e de
quantidade contínua de uma, duas ou três dimensões (geometria)
(Met., XI, 3,
1061 a, 28). A física tem por objecto o ser em movimento e, por
consequência, aquelas determinações do ser que estão ligadas à
matéria que é condição do movimento (1b., VI 1, 1026 a, 3). A
filosofia deve constituir-se por analogia com as outras ciências
teóricas se quer assumir como objecto de sua consideração o ser
enquanto ser. Como a matemática e a física, deve proceder por
abstracção. O matemático despoja as coisas de todas as qualidades
sensíveis (peso, leveza, dureza, etc.) e redu-las à quantidade
descontínua ou contínua; o físico prescinde de todas as
determinações do ser que não se
250

reduzem ao movimento. De modo análogo, o filósofo deve despojar o


ser de todas as determinações particulares (quantidade,
movimento, etc.) e considerá-lo só enquanto ser. Além disso, como a
matemática parte de certos princípios fundamentais que concernem
o objecto que lhe é próprio, a quantidade em geral (como é por
exemplo o axioma: tirando quantidades iguais a quantidades iguais
os restos são iguais), assim a filosofia deve partir de um princípio
que lhe é próprio e que concerne o objecto que lhe é próprio, o ser
enquanto tal.

O problema consiste em saber se uma tal ciência é possível.


Evidentemente, a primeira condição para a sua possibilidade é que
seja possível reduzir os diversos significados do ser a um único
significado fundamental. De facto o ser diz-se de muitas maneiras:
nós dizemos que são a quantidade, a qualidade, a privação, a
corrupção, os acidentes; e até do não ser dizemos que é não ser.
Todos estes modos devem ser reduzidos à unidade, se hão-de ser o
objecto de uma única ciência. O ser e o uno devem de algum modo
identificar-se, já que é necessário descobrir aquele sentido do ser,
pelo qual o ser é uno e é também a unidade mesma do ser (1b., IV, 2,
10003 b). E esta unidade não deve ser acidental. mas intrínseca e
necessária a todos os diferentes significados que o ser assume. O
que é acidental não pode ser objecto de ciência porque não tem
estabilidade ou uniformidade; e a ciência é-o somente do que é
sempre, ou quase sempre, de um modo (lb., VI, 2, 1027, a). Se se
quer pois determinar o único significado fundamental do ser é
necessário reconhecer um princípio que garanta a estabilidade e a
necessidade do próprio ser. Tal é o princípio da contradição.

Este princípio é considerado por Aristóteles, em primeiro lugar


como princípio constitutivo do ser enquanto tal; em segundo lugar,
como condição de
251

toda a reflexão sobre o ser. isto é, de todo o pensamento


verdadeiro. É portanto simultaneamente um principio ontológico e ló
gico; e Aristóteles expressa-o em duas fórmulas que correspondem
a duas significações fundamentais: "Ê impossível que uma mesma
coisa convenha e ao mesmo tempo não convenha a uma mesma coisa,
precisamente enquanto é a mesma"; "É impossível que a mesma coisa
seja e simultaneamente não seja"; tais são as duas fórmulas
principais em que o princípio ocorre em Aristóteles (por exemplo,
Met, IV, 3, 1005 h, 18; 4,
1006 a, 3); e destas fórmulas, evidentemente a primeira refere-se
à impossibilidade lógica de predicar o ser e o não ser de um mesmo
sujeito; a segunda à impossibilidade ontológica de que o ser seja e
não seja. Aristóteles defende polemicamente este princípio contra
aqueles que o negam: Megáricos, Cínicos e Sofistas, os quais
admitem a possibilidade de afirmar todas as coisas de todas as
coisas; Heracliteanos, que admitem a possibilidade de que o ser, no
devir, se identifique com o não ser. Na realidade, o princípio só se
pode defender e esclarecer polemicamente porque, como
fundamento de toda a demonstração, não pode por sua vez ser
demonstrado. Certamente pode-se demonstrar que quem o nega
nada diz ou suprime a possibilidade de qualquer ciência; e é este,
com efeito, o argumento polémico adoptado por Aristóteles contra
os que o negam. Mas com isto ainda não resulta evidente o seu valor
como axioma fundamental da filosofia primeira, como principio
constitutivo da metafísica como ciência do ser enquanto tal. Este
valor provém, ao invés, das considerações que Aristóteles
desenvolve a propósito do ser determinado (tóde li). Se. por
exemplo, o ser do homem se determinou como o de "animal bípede",
"necessariamente todo o ser que se reconheça como homem deverá
ser reconhecido, como animal bípede". Se a
252

verdade - afirma Aristóteles -tem um significado, necessariamente


quem diz homem diz animal bípede: pois que isto significa homem.
Mas se isto é necessário, não é possível que o homem não seja
animal bípede: de facto a necessidade significa isto mesmo, que é
impossível que o ser não seja" (Met., IV, 4,
1006 b, 30). Aqui se descobre claramente o significado do princípio
da contradição como fundamento da metafísica: o princípio leva a
determinar o fundamento pelo qual o ser é necessariamente. E de
facto a fórmula negativa do princípio da contradição: "Ê impossível
que o ser não seja" traduz-se positivamente por estoutra: o ser,
enquanto tal, é necessariamente. Nesta fórmula, o princípio revela
claramente a sua capacidade para fundamentar a metafísica. O ser
que é objecto desta ciência, é o ser que não pode não ser, o ser
necessário.

A necessidade constitui portanto para Aristóteles o sentido


primário ou fundamental do ser, aquele a partir do qual todos os
outros (embora não existam), podem ser compreendidos e
distinguidos. Era esta a própria tese de Parménides ("o ser é e não
pode não ser": fr. 4, Diels) que fora adoptada pelos Megáricos.
Todavia Aristóteles não entende esta tese no sentido que só o
necessário existe e que o não necessário é nada. Porquanto (como se
viu) ele afirma que só o necessário é o objecto da ciência e que
portanto a própria ciência é necessidade (apodítica, isto é,
demonstrativa); o possível é admitido por ele como objecto de artes
ou de disciplinas que têm só imperfeita ou aproximadamente
carácter científico. Portanto, aquilo que ele entende afirmar é que
o ser necessário é o único objecto da ciência e mais que do que não
é necessário somente se pode ter conhecimento na medida em que
de qualquer modo se avizinha da necessidade, no sentido de que
manifesta uma certa uni-
253

formidade ou persistência. "Algumas coisas - diz ele - são sempre


necessariamente o que são, não no sentido de serem constrangidas,
mas no sentido de não poderem ser de outra maneira; pelo
contrário, outras são o que são, não por necessidade mas "mais uma
vez"; e este é o princípio pelo qual podemos distinguir o acidental,
que é tal precisamente porque não é nem sempre, nem o mais das
vezes (1026 b, 27). Como se vê, Aristóteles admite ao lado do
necessário e do uniforme (o "mais das vezes") também o acidental;
mas do acidental não há ciência mas, em todo o caso, tal como com o
uniforme não-necessário pode ser distinguido e reconhecido sobre
fundamento do necessário.

Qual é portanto o ser necessário? A esta pergunta Aristóteles


responde com a doutrina fundamental da sua filosofia. O ser
necessário é o ser substancial. O ser que o princípio da contradição
permite reconhecer e isolar na sua necessidade é a substância.
"Esses-diz ele (referindo-se aos que negam o princípio da
contradição) -destroem completamente a substância e a essência
necessária, pois que se vêm obrigados a dizer que tudo é acidental e
não existe nada como o ser-homem ou o ser-animal. Efectivamente
se há alguma coisa como o ser-homem, esta não será o ser-não-
homem ou o não-ser-homem, mas estes serão negações daquele. De
facto, é um só o significado do ser e este é a sua substância.
Indicar a substância de uma coisa não é mais que indicar o seu ser
próprio" (Met., IV,
4, 1007 a, 21-27). O princípio da contradição, tomado no seu alcance
ontológico-lógico, conduz directamente a determinar o ser enquanto
tal que é o objecto da metafísica. Este ser é a substância. A
substância é o ser por excelência, o ser que é impossível que não
seja e portanto é necessariamente, o ser que é primeiro em todos
os sentidos. "A substância é primeira-diz Aristóteles (lb., VII,
254

1, 1028 a, 3 1) -por definição, para o conhecimento e para o tempo.


Ela é a única, entre todas as categorias, que pode subsistir
separadamente. É primeira por definição, pois que a definição da
substância está implícita necessariamente na definição de qualquer
outra coisa. É primeira para o conhecimento porque acreditamos
conhecer uma coisa, por exemplo o homem ou o fogo, quando
sabemos que coisa ela é, mais do que quando conhecemos o seu qual,
o quanto, o durante; e também só conhece~s cada uma destas
determinações quando sabemos que coisa são elas mesmas". O que
coisa é a substância.

O problema do ser transforma-se portanto no problema da


substância e neste último se concretiza e determina o objectivo da
metafísica. "Aquilo que desde há tempo e ainda agora e sempre
temos buscado, aquilo que será sempre um problema para nós. O que
é o ser? significa : O que é a substância?" (Met., VII, 1, 1028 b, 2).

§ 73. A SUBSTÂNCIA

O que é a substância? Tal é o tema do principal grupo de


investigações na Metafísica. Aristóteles enfrenta-o com o seu
característico processo analítico e dubitativo, formulando todas as
soluções possíveis, desenvolvendo e discutindo cada uma delas e
fazendo assim brotar um problema de outro. No emaranhado das
investigações que nos vários escritos que compõem a Metafísica se
entrelaçam por acaso, voltando amiude ao princípio da discussão ou
interrompendo-a antes da conclusão, o livro VII oferece-nos o
desenvolvimento mais maduro e concludente deste problema
fundamental.
O último capítulo do livro, o XVII, apresenta como, conclusão o
verdadeiro princípio lógico e especula-
255

tivo de todo o trabalho. A substância é aqui considerada como o


princípio (arché) e a causa (aitia): em consequência, como o que
explica e justifica o ser de cada coisa. A substância é a causa
primeira e, o ser próprio de toda a realidade determinada. É o que
faz de um composto algo que não se resolve na soma dos seus
elementos componentes. Como a sílababa não é igual à soma de b e
a, mas tem uma natureza que desaparece quando se dissolve nas
letras que a acompanham; assim qualquer realidade tem uma
natureza que não resulta da adição dos seus elementos
componentes e é diferente de cada um e de todos estes elementos.
Tal natureza é a substância daquela realidade: o princípio
constitutivo do seu ser. A substância é sempre princípio, nunca
elemento componente (1041 b, 31). Só ela, portanto, permite
responder à pergunta a respeito do porquê de uma coisa. Se se
pergunta, por exemplo, o porquê de uma casa ou de um leito,
pergunta-se evidentemente qual a finalidade para que a casa ou o
leito foram construídos. Se se pergunta o porquê do nascer, do
morrer ou em geral da mudança, pergunta-se evidentemente a causa
eficiente, o princípio pelo qual o movimento se origina. Mas
finalidade e causa eficiente não são outra coisa senão a própria
substância da realidade de que se pergunta o porquê (1041 a, 29).

Estas observações são a chave para compreender toda a doutrina


aristotélica da substância e consequentemente para penetrar no
próprio coração da metafísica aristotélica. A expressão de que
Aristóteles se serve para definir a substância é: aquilo que o ser
era (to ti en einal, quod quid erat esse). Nesta fórmula, a repetição
do verbo ser exprime que a substância é o princípio constitutivo do
ser como tal; e o imperfeito (era) indica a persistência e a
estabilidade do ser, a sua necessidade, A substância é o ser do ser:
o princípio pelo qual
256

o ser é tal necessariamente. Mas como ser do ser, a substância tem


uma dupla função a que corresponde uma dupla consideração da
mesma: é por um lado o ser em quem se determina e limita a
necessidade do ser, por outro lado o ser que é necessidade
determinante e limitadora. Podemos exprimir a dupla funcionalidade
da substância, à qual corresponde dois significados distintos mas
necessariamente conjuntos, dizendo que a substância é, por um
lado, a essência do ser, pelo outro o ser da essência. Como
essência do ser a substância é o ser determinado, a natureza
própria do ser necessário: o homem como "animal bípede". Como ser
da essência, a substância é o ser determinante, o ser necessário da
realidade existente: o animal bípede como este homem individual.
Os dois significados podem ser compreendidos sob a expressão
essência necessária, a qual dá, o mais exactamente possível, o
sentido da fórmula aristótélica.

Evidentemente, a essência necessária não é a simples; essência de


uma coisa. Nem sempre a essência é a essência necessária: quem diz
de um homem que é músico, não diz a sua essência necessária,
porque ele -pode ser homem sem ser músico. A essência necessária
é aquela que constitui o ser próprio de uma realidade qualquer,
aquele ser pelo qual a realidade é necessariamente tal. A substância
é portanto não a essência, mas a essência necessária, não o ser
tomado genericamente mas o ser autêntico: é a essência do ser e o
ser da essência.

Entendida assim, ela revela o aspecto mais íntimo do pensamento


aristotélico e ao mesmo tempo a sua relação mais secreta com o
pensamento de Platão. Platão explicara a validade intrínseca do ser
como tal, a normatividade que o ser apresenta em si próprio e ao
homem, referindo o ser aos outros valores e fazendo do bem o
princípio do ser. Para Platão, se o ser vale, se possui um valor graças
ao
257

qual se põe como norma, isso acontece, não porque é ser, mais
porque é bem; aquilo que o constitui enquanto ser é o bem, o próprio
valor. A normatividade do ser é, para Platão, estranha ao próprio
ser: o ser está no valor, não o valor no ser. Ao contrário,
Aristóteles descobriu o valor intrínseco do ser. A validade que o
ser possui não lhe vem de um principio extrínseco, do bem, da
perfeição ou da ordem, mas do seu principio -intrínseco, da
substância. O ser não está no valor, mas. "o valor no ser". Tudo
aquilo que é. enquanto é, realiza o valor primordial e único, o ser
enquanto tal. A substância, como ser do ser, dá às mais
insignificantes e pobres manifestações do ser uma validade
necessária, uma absoluta normatividade. Efectivamente, não é
privilégio das realidades mais elevadas, mas encontra-se tanto na
base como no cimo da hierarquia dos seres e representa o
verdadeiro valor metafísico.

Com a descoberta da validade do ser enquanto tal, Aristóteles está


con condições de adoptar ante o mundo uma atitude completamente
distinta da de Platão. -Para ele, tudo aquilo que é, enquanto é, tem
um valor intrínseco, é digno de consideração e de estudo e pode ser
objecto de ciência. Ao contrário, para Platão só aquilo que encarna
um valor diferente do ser pode e deve ser objecto de ciência: o ser
enquanto tal não basta, porque não tem em si o seu valor. Com a
teoria da substância, Aristóteles elaborou o princípio que justifica
a sua atitude frente à natureza, a sua obra de investigador
infatigável, o seu interesse científico que não se apaga nem diminui
nem sequer ante as mais insignificantes manifestações do ser. A
teoria da substância é ao mesmo tempo o centro da metafísica de
Aristóteles e o centro da sua personalidade. Ela revela o íntimo
valor existencial da sua metafísica.
258

§ 74. AS DETERMINAÇÕES DA SUBSTÂNCIA

A dupla função da substância aparece continuamente na


investigação aristotélica e comunica-lhe uma ambiguidade aparente
que só se pode eliminar reconhecendo a distinção e a unidade das
duas funções da substância. Quando Aristóteles diz que a
substância é expressa pela definição e que só da substância há
definição verdadeira (VII, 4,
1030 b, a), entende a substância como essência do ser, como aquilo
que a razão pode entender e demonstrar do ser. Quando, ao
contrário, declara que a substância se identifica com a realidade
determinada (tode ti) e que, por exemplo, a beleza não existe senão
naquilo que é belo (VII, 6, 1031 b,
10), entende a substância como ser da essência, como o princípio
que dá à natureza própria de uma coisa a sua existência necessária.
Como essência do ser, a substância é a forma das coisas compostas,
e dá unidade aos elementos que compõem a todo e ao lodo uma
natureza própria, diferente daquela dos elementos componentes
(VIII, 6 b, 2). A forma das coisas materiais, que Aristóteles chama
espécie (VII, 8, 1033 b, 5), é portanto a sua substância. Como ser
da essência, a substância é o sujeito (ypokeimenon, subjectum):
aquilo de que qualquer outra coisa se predica, mas que não pode ser
predicado de nenhuma. E como sujeito é matéria, isto é, realidade
privada de qualquer determinação e que só possui essa
determinação em potência (VIII, 1, 1042 a, 26). Como essência do
ser, a substância é o conceito ou logos ou razão de ser, de que não
há geração nem corrupção (pois que o que devém não é a essência
necessária da coisa, mas esta ou aquela coisa). Como ser da
essência, a substância é o composto ou sinolo, isto é, a união do
conceito (ou forma) com a matéria, a coisa exis-
259

tente; e em tal sentido a substância nasce e morre (VIII, 15, 1039


b, 20). Como essência do ser, a substância é o princípio de
inteligibilidade do próprio ser. É o que a razão pode tomar da
realidade enquanto tal; e constitui o elemento estável e necessário,
sobre o qual se fundamenta a ciência. De facto não há ciência senão
do que é necessário, enquanto que o conhecimento do que pode ser e
não ser, é mais opinião que ciência. Precisamente por isto não existe
definição ou demonstração das substâncias sensíveis particulares
que são dotadas de matéria e não são por consequência necessárias
mas corruptíveis: o seu conhecimento obscurece-se apenas deixam
de ser percebidas. Todavia permanece íntegro, no sujeito que as
conhece, o seu conceito que expressa precisamente a sua natureza
substancial, ainda que não na forma rigorosa da definição (Met.,
VII, 15,
1039 b, 27). A substância é portanto objectivamente e
subjectivamente o princípio da necessidade: objectivamente, como
ser da essência, enquanto realidade necessária; subjectivamente,
como essência do ser, enquanto razão de ser necessitante.

Ao considerar a diversidade e disparidade dos significados que a


substância toma para Aristóteles, dir-se-ia que Aristóteles se havia
limitado a formular dialecticamente todos os significados possíveis
da palavra, sem escolher entre eles nem determinar o único
significado autêntico e fundamental. Por um lado, como forma ou
espécie, a substância é iningendrável e incorruptível, pelo outro,
como composto e realidade particular existente, é engendrável e
corruptível; por um lado, como sujeito é existência real que não se
reduz nunca ao predicado, isto é, à pura determinação lógica; por
outro lado, como definição e conceito, é pura entidade lógica. Na
realidade, concebida a substância como ser do ser, na sua dupla
funcionalidade de ser da
260

essência e essência do ser, Aristóteles podia reconhecer


igualmente a substância em todas aquelas diversas determinações e
reduzir portanto à unidade a disparidade aparente. Tal era
precisamente o objectivo que se propusera ao constituir a
metafísica como ciência do ser enquanto tal e ao tomar como seu
fundamento o princípio da contradição. A riqueza das
determinações ontológicas que o conceito de substância permite
justificar a Aristóteles, relacionando-as com um único significado
fundamental, é a prova de que alcançou verdadeiramente, com o
conceito de substância, o princípio da filosofia primeira, como
aquela ciência que deve constituir o fundamento comum e a
justificação última de todas as ciências particulares. Aristóteles só
devia excluir como ilegítimo um significado da substância: aquele
que separa o ser da essência ou a essência do ser, que põe a
validade e a necessidade do ser de fora do ser, numa universalidade
que não constitui a alma e a vida do próprio ser. Tal era o ponto de
vista do platonismo; por isso Aristóteles se serve dele
continuamente como termo de confronto polémico na construção da
sua metafísica.

§ 75. A POLÉMICA CONTRA O PLATONISMO

A característica do platonismo é, segundo Aristóteles, a de


considerar as espécies como substâncias separadas, reais
independentemente dos seres individuais de que são forma ou
substância. Para Aristóteles a substancialidade (a realidade) da
espécie é a mesma do indivíduo de que é espécie. Para Platão as
espécies têm uma realidade em si que não se dissolve na dos
indivíduos singularmente existentes: e em tal sentido são
substâncias separadas.
261

Ora tais substâncias separadas são impossíveis. segundo


Aristóteles. Como espécies deveriam ser universais; mas é
impossível que o universal seja substância porque enquanto o
universal é comum a muitas coisas, a substância é própria de um ser
individual e não pertence a nenhum outro. Se em Sócrates, que é
substância, existisse uma outra substância ("homem" ou "ser
vivente") teríamos um ser completo de várias substâncias, o que é
impossível.
Aristóteles insiste portanto várias vezes na Metafísica na crítica
dos argumentos que eram seguidos por Platão e pelos Platónicos
para estabelecer a realidade da ideia. Tal crítica versa
essencialmente quatro pontos. Em primeiro lugar, admitir a
ideia que corresponda a cada conceito significa actuar mais ou
menos como aquele que, tendo de contar alguns objectos, julgasse
que não podia fazê-lo senão acrescentando o seu número. As ideias
devem ser efectivamente em número maior que os respectivos
objectos sensíveis, porque há de haver não só a ideia de cada
substância, mas também a de todos os seus modos ou caracteres
que podem concentrar-se num único conceito. São outras tantas
realidades que se acrescentam às realidades sensíveis. de modo que
o filósofo se encontra no dever de explicar, além destas últimas,,
também as primeiras, enfrentando dificuldades maiores do que se
se encontrasse apenas perante o mundo sensível.

Em segundo lugar, os argumentos com que se demonstra a realidade


da ideia conduziriam a admitir ideias que até os Platónicos não
consideram que haja; por exemplo, a das negações ou das coisas
transitórias, pois que também destas há conceitos. E assim, até
para a relação de semelhança entre as ideias e as coisas
correspondentes (por exemplo, entre a ideia do homem e cada
homem) deveria haver uma ideia (um terceiro homem); e entre esta
262

ideia, por uma parte, e a ideia do homem e cada homem individual,


por outra, outras ideias; e
assim até ao infinito.

Em terceiro lugar, as ideias são inúteis porque não contribuem nada


para fazer compreender a realidade do mundo. De facto, não são
causa de nenhum movimento e de nenhuma mudança. Dizer que as
coisas participam das ideias não quer dizer nada, porque as ideias
não são princípios de acção .que determinem a natureza das coisas.

Finalmente, é este o argumento mais importante que se liga com a


teoria aristotélica da substância: a substância não pode existir
separadamente daquilo de que é substância. A afirmação do Fédon
de que as ideias são causas das coisas é, segundo Aristóteles,
incompreensível, pois ainda que supondo que as ideias existam, delas
não derivarão as coisas se não intervir para criá-las um princípio
activo.

Estes argumentos a que Aristóteles retorna amiúde são


simplesmente indicativos, mas não reveladores do verdadeiro ponto
de separação entre ele e Platão. Partem do pressuposto de uma
realidade das ideias absolutamente separada do mundo sensível e da
própria inteligência humana que as apreende: pressuposto que se
não verifica no espírito autêntico do platonismo. Para Platão, a ideia
é o valor e constitui ao mesmo tempo o dever ser, o melhor, das
coisas do mundo e a norma de que o homem deve servir-se para a
valoração das próprias coisas. A ideia aparece a Aristóteles como
separada do mundo não porque Platão haja negado implicitamente ou
explicitamente a relação com o mundo, mas porque a ideia é
incomensurável com o ser do próprio mundo. A ideia é o bem, o belo
ou em geral (segundo os últimos diálogos platónicos) a ordem e a
medida perfeita do mundo, e constitui um princípio diferente e em
consequência estranho e separado do ser' cujo fundamento se
263

pretende que seja. A descoberta da validade intrínseca do ser como


tal, o reconhecimento de que o ser, precisamente enquanto ser e
não já enquanto perfeição ou valor, possui a validade necessária,
leva Aristóteles a rejeitar a doutrina que separa o ser do seu
próprio valor e faz deste um mundo ou uma substância separada.
Por isso a substância aristotélica, até entendida como forma ou
espécie, não pode ser reconduzida à ideia platónica. A substância
não é a ideia que abandonando a esfera supraceleste se envolveu no
ser e no devir do mundo e readquiriu a sua concreção, mas um
princípio de validade intrínseco ao ser como tal: é o ser próprio do
devir e do mundo na própria necessidade.

Aristóteles realizou a inversão do ponto de vista platónico. Para


Platão, os valores fundamentais são os morais que não são
puramente humanos, mas cósmicos, e constituem o princípio e o
fundamento do ser. Para Aristóteles o valor fundamental é o
ontológico, constituído pelo ser enquanto tal, pela substância; e os
valores morais circunscrevem-se à esfera puramente humana.
Quando Aristóteles nega que o universal seja substância, tem em
mente o universal platónico que verdadeiramente está separado do
ser, na medida que é um valor distinto do ser. O que ele defende
constantemente contra o platonismo é que o valor do ser é
intrínseco ao ser: é a doutrina da substância.

§ 76. A SUBSTÂNCIA COMO CAUSA


DO DEVIR

Com a indagação sobre a natureza da substância se entrelaça na


Metafísica a investigação em torno das substâncias particulares.
Nesta segunda investigação, Aristóteles é guiado pelo critério que
ilustra
264

num passo famoso do livro VII. É necessário partir das coisas que
são mais cognoscíveis ao homem a fim de alcançar aquelas que são
mais cognoscíveis em si; do mesmo modo que, no campo da acção, se
parte daquilo que é bom para o indivíduo a fim de que consiga fazer
seu o bem universal (1020 b, 3). Mais facilmente cognoscíveis para o
homem são as substâncias sensíveis; portanto, destas se deve
partir na consideração das substâncias determinadas. E dado que
estão sujeitas ao devir, trata-se de saber que função desempenha a
substância no devir.

Tudo aquilo que devém tem uma causa eficiente que é o ponto de
partida e o princípio do devir; devém alguma coisa (por exemplo,
uma esfera ou um círculo) que é a forma ou ponto de chegada do
devir; e devém. de alguma coisa, que não é a simples privação dessa
forma, mas a sua possibilidade ou potência e se chama matéria. O
artífice que constrói uma esfera de bronze, como não produz o
bronze, tão-pouco produz a forma de esfera que infunde no bronze.
Não faz mais que dar a uma matéria preexistente, o bronze, uma
forma preexistente, a esfericidade. Se tivesse de produzir também
a esfericidade, teria de a tirar de alguma outra coisa, como tira do
bronze a esfera de bronze; isto é, deveria haver uma matéria da
qual tiraria a esfericidade e logo ainda uma matéria desta matéria e
assim até ao infinito. É evidente, pois, que a forma ou espécie que
se imprime na matéria não devém, pelo contrário, o que devém é o
conjunto da matéria e forma (sinolo) que desta toma o nome. A
substância como matéria ou como forma escapa ao devir: ao qual
pelo contrário, se submete a substância como sinolo (VII, 8, 1033
b). Isto não quer dizer que haja uma esfera aparte das que vemos
ou uma casa fora das construídas com tijolos. Se assim fosse, a
espécie não se converteria nunca numa realidade determinada, isto
é, esta casa ou
265

esta esfera. A espécie exprime a natureza de uma coisa, não diz


que a coisa existe. Quem produz a coisa, tira de algo que existe (a
matéria, o bronze) qualquer coisa que existe e tem em si aquela
espécie (a esfera de bronze). A realidade determinada é a espécie
que já subsiste nestas carnes e nestes ossos que formam Cálias ou
Sócrates, os quais certamente são distintos pela matéria, mas
idênticos pela espécie, que é indivisível (1b., 1034 a, 5).

A substância é portanto a causa não só do ser mas ainda do devir.


No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles distinguira quatro
espécies de causas, repetindo uma doutrina já exposta na Física ffi,
3 e 7). "Das causas-dissera (Met., 1,
3, 983 a, 26)-fala-se de quatro modos. Chamamos causa primeira à
substância e à essência necessária, pois que o porquê se reduz em
última instância ao conceito (logos) que, sendo o primeiro porquê, é
causa e princípio. A segunda causa é a matéria e o substracto. A
terceira é a causa eficiente, isto é, o princípio do movimento. A
quarta é a causa oposta a esta última, o objectivo e o bem que é o
fim (telos) de cada geração e de cada devir. " Mas agora é claro que
estas quatro causas são verdadeiramente tais só enquanto se
reduzem todas à causa primeira, à substância de que são
determinações ou expressões diversas. Naquele primeiro ensaio de
história da filosofia, que Aristóteles nos oferece precisamente no
primeiro livro da Metafísica, ele põe à prova esta doutrina das
quatro causas para se certificar se os seus predecessores haviam
descoberto outra espécie de causa, além daquelas enunciadas por
ele nos escritos de física. A conclusão da sua análise é que todos se
limitaram a tratar de uma ou duas das causas por ele enunciadas: a
causa material e a causa eficiente foram admitidas pelos físicos, a
causa formal por Platão, enquanto da causa final só Anaxágoras
teve um certo indí-
266

cio. "Mas estes - acrescenta Aristóteles - trataram delas


confusamente; e se num sentido se pode afirmar que as causas
foram indicadas antes de nós, num outro sentido pode dizer-se que
não foram indicadas inteiramente" o Q, 10, 992 b, 13). Aristóteles
está assim consciente de inserir-se historicamente na pesquisa
estabelecida pelos seus predecessores e de levá-la à sua culminação
e clareza.
O objectivo que se propôs parece-lhe sugerido pelos resultados
históricos que a filosofia conseguiu antes dele.

§ 77. POTÊNCIA E ACTO

A função da substância no devir confere à mesma substância um


novo significado. Ela adquire um valor dinâmico, identifica-se com o
fim (telos), com a acção criadora que forma a matéria, com a
realidade concreta do ser individual no qual o devir se executa. Em
tal sentido a substância é acto: actividade, acção, conclusão.

Aristóteles identifica a matéria com a potência, a forma com o


acto. A potência (dynamis) é em geral a possibilidade de produzir
uma mudança ou de sofrê-la. Há a potência activa que consiste na
capacidade de produzir uma mudança em si ou noutro (como, por
exemplo, no fogo a potência de aquecer e no construtor a de
construir); e a potência passiva que consiste na capacidade de
sofrer uma mudança (como por exemplo, na madeira a
capacidade de inflamar-se, naquilo que é frágil a capacidade de
romper-se). A potência passiva é própria da matéria; a potência
activa é própria do princípio de acção ou causa eficiente.

O acto (enérgheia) é pelo contrário a própria existência do objecto.


Este está relativamente à potência "como o construir para o saber
construir,
267

o estar acordado para o dormir, o olhar para os olhos fechados,


apesar de ter vista, e como o objecto tirado da matéria e elaborado
completamente está para a matéria bruta e para o objecto ainda
não acabado" (Met., IX, 6, 1048 b). Alguns actos são movimentos
(kinesis), outros são acções (praxis). São acções aqueles
movimentos que têm em si próprios o seu fim. Por exemplo, ver é um
acto que tem em si próprio o seu fim e do mesmo modo o entender e
o pensar, enquanto que o aprender, o caminhar, o construir têm fora
de si o seu fim na coisa que se aprende, no ponto a que se pretende
chegar, no objecto que se constrói. Aristóteles chamou a estes
actos não acções, mas movimentos ou movimentos incompletos.

O acto é anterior à potência. É anterior relativamente ao tempo:


pois é verdade que a semente (potência) é anterior à planta, a
capacidade de ver anterior ao acto de ver; mas a semente não pode
ser derivada senão de uma planta e a capacidade de ver não pode
ser própria senão de um olho que vê. O acto é anterior também pela
substância, pois o que no devir é último, a forma completa, é
substancialmente anterior: por exemplo o adulto é anterior ao
rapaz e a planta à semente, na medida que um já realizou a forma
que o outro não tem. A galinha vem antes do ovo, segundo
Aristóteles. A causa eficiente do devir deve preceder o próprio
devir e a causa eficiente é acto. Também do ponto de vista do valor
o acto é anterior já que a potência é sempre possibilidade de dois
contrários; por exemplo, a potência de ser saudável é também
potência de ser doente; mas o acto de ser saudável exclui a doença.
O acto é portanto melhor que a potência.

A acção perfeita que em em si o seu fim é designada por


Aristóteles como acto final ou realização final (entelequia).
Enquanto o movimento
268

é o processo que leva gradualmente ao acto aquilo que antes estava


em potência, a entelequia é o termo final (telas) do movimento, o
seu término perfeito. Mas como tal, a enteléquia é também a
realização completa e portanto a forma perfeita daquilo que devém;
é a espécie e a substância.
O acto identifica-se por consequência em cada caso com a forma ou
espécie e, quando é acto perfeito ou realização final, identifica-se
com a substância. Esta é a própria realidade em acto e o princípio
dela. Frente a ela, a matéria considerada em si, isto é, como pura
matéria ou matéria prima, absolutamente privada de actualidade ou
de forma, é indeterminável e incognoscível e não é substância (Met.,
VII, 10, 1036 a, 8; IX, 7, 1049 a, 27). A matéria prima é o limite
negativo do ser como substância, o ponto em que cessa
conjuntamente a inteligibilidade e a realidade do ser. Mas aquilo
que se chama comummente matéria, por exemplo o fogo, a água, o
bronze não é matéria prima, porque tem já em si em acto uma
determinação e portanto uma forma; é matéria, isto é, potência, no
que diz respeito às formas que pode assumir, enquanto que é já,
como realidade determinada, forma e substância. Se conhecer a
realidade e o porquê de uma coisa significa conhecer a sua
substância mediante a espécie ou forma (que é precisamente a
substância das realidades compostas ou "sinoli"), a matéria
representa o resíduo irracional do conhecimento, assim como a
substância representa o princípio ou a causa não só do ser, mas
também da inteligibil idade do ser como tal.

§ 78. A SUBSTÂNCIA IMóVEL

À filosofia como teoria da substância compete evidentemente não


só a tarefa de considerar a natureza da substância, as suas
determinações fun.
269

damentais e a sua função no devir, mas também o de classificar as


substâncias determinadas existentes no mundo, que são objecto
das ciências particulares e de tomar como objecto de estudo aquela
ou aquelas que escapam ao âmbito das demais ciências. Ora todas as
substâncias se dividem em duas classes: as substâncias sensíveis e
em movimento e as substâncias não sensíveis e imóveis. As
substâncias do primeiro género constituem o mundo físico e por sua
vez subdividem-se em duas classes: a substância sensível que
constitui os corpos celestes e é iningendrável e incorruptível; as
substâncias constituídas pelos quatro elementos do mundo sublunar,
que são pelo contrário geráveis e corruptíveis. Estas substâncias
são o objecto da física. O outro grupo de substâncias, as não
sensíveis e imóveis, é objecto de uma ciência diferente, a teologia,
à qual Aristóteles dedicou o livro XII da Metafísica.

A existência de uma substância imóvel é demonstrada por


Aristóteles tanto na Metafísica (XII, 6) como na Física (VIII, 10),
mediante a necessidade de explicar a continuidade e a eternidade
do movimento celeste. O movimento contínuo, uniforme, eterno do
primeiro céu, o qual regula os movimentos dos outros céus,
igualmente eternos e contínuos deve ter como sua causa um
primeiro motor. Mas este primeiro motor não pode ser por sua vez
movido pois de outro modo requereria uma causa do seu movimento
e esta causa uma outra ainda e assim até ao infinito; portanto, deve
ser imóvel. Ora o primeiro motor imóvel deve ser acto, não potência.
Aquilo que só tem a potência de mover, pode também não mover;
mas se o movimento do céu é contínuo, o motor deste movimento
não só deve ser eternamente activo, mas deve ser pela sua natureza
acto, e absolutamente privado de potência. E pois que a potência é
matéria, esse
270

acto está também privado de matéria: é acto puro (Met., XII, 6,


1071 b, 22). Este acto puro ou primeiro motor não tem grandeza,
portanto não tem partes e é indivisível. Com efeito, uma grandeza
finita não poderia mover por um tempo infinito, pois que nenhuma
coisa finita tem uma potência infinita; e uma grandeza infinita não
pode subsistir. Mas não tendo matéria nem grandeza, a substância
imóvel não pode mover como causa eficiente; resta-lhe portanto que
mova como causa final, enquanto objecto da vontade e da
inteligência. De facto tudo aquilo que é desejável e inteligível move
sem ser movido e um e outro se identificam no seu princípio, pois
que aquilo que se deseja é aquilo que a inteligência julga bom
enquanto é realmente tal. Na hierarquia das realidades inteligíveis,
a substância simples e em acto tem o primeiro lugar; na hierarquia
dos bens tem o primeiro lugar aquilo que é excelente e desejável
por si mesmo. Graças à identidade do inteligível e do desejável, o
sumo grau do inteligível, a substância imóvel identifica-se com o
sumo grau do desejável: a substância é pois também o grau supremo
da excelência, o sumo bem, Como tal, é objecto de amor, move
enquanto é amada, e as outras coisas são movidas pelo que ela move
dessa maneira, isto é, pelo primeiro céu (Met., XII, 7,
1072 b, 2).

À substância imóvel, na medida que é a mais elevada de todas,


pertence propriamente a que até para os homens é a vida mais
excelente, mas que só lhes é dada por breve tempo: a vida da
inteligência. Só a inteligência divina é que não pode ter um objecto
diferente de si ou inferior a si própria. Ela pensa-se a si mesma no
lugar do inteligível: a inteligência e o inteligível são em Deus um só.
Enquanto que no conhecimento humano frequentemente o ser do
pensar é distinto do ser
271

do pensado porque este último está ligado à matéria, no


conhecimento divino, como em geral em todo o conhecimento que
não se dirige à realidade material, o pensar e o pensado
identificam-se e fazem um só. "Deus, portanto, se é o mais perfeito
que há, pensa-se a si próprio e o seu pensamento é pensamento do
pensamento (Met., X, XII, 9, 1074 b, 34). E pois que a actividade do
pensamento é o que pode existir de mais excelente e mais doce, a
vida divina é a mais perfeita de todas, eterna e feliz (1b., 7, 1072 b,
23).

Se na ordem dos movimentos, Deus é o primeiro motor, na ordem


das causas Deus é a causa primeira, às quais revertem todas as
séries causais, compreendidas as das causas finais (Met., 11, 2).
Mesmo no sentido da causa final, Deus é o criador da ordem do
universo que é comparado por Aristóteles a uma família ou a uni
exército. "Todas as coisas são ordenadas uma relativamente a
outra. mas não todas do mesmo modo: os peixes, as aves, as plantas
têm ordem diferente. Todavia nenhuma coisa está relativamente a
uma outra como se nada tivesse a fazer com a outra; mas todas são
coordenadas a um único ser. Isto é, por exemplo, aquilo que
acontece numa casa onde os homens livres não podem fazer aquilo
que lhes agrada, mas todas ou pelo menos a maior parte das coisas
acontecem segundo uma ordem; enquanto que os escravos e os
animais só em pouco contribuem para o bem-estar comum e muito
fazem casualmente" (lb., XII, 10.
1075 a, 12). Do mesmo modo, o bem de um exército consiste
"conjuntamente na sua ordem e no seu comandante, mas
especialmente neste último: pois que ele não é o resultado da ordem
mas antes a ordem depende dele" (1075 a, 13). Assim Deus é o
criador da ordem do mundo mas não do ser do próprio mundo. A
estrutura substancial do universo, para Aristóteles como para
Platão, está para
272

lá dos limites da criação divina: ela é insusceptível de princípio e de


fim. Com efeito só a coisa individual, composta de matéria e forma,
tem nascimento e morte, segundo Aristóteles; enquanto que a
substância que é forma ou razão de ser ou aquela que é matéria não
nasce nem perece (VIII, 1,
1042 a, 30). O próprio Deus participa desta eternidade da
substância já que ele é substância (XII,
7, 1073 a, 3) a substância no mesmo sentido em
que são tais as outras substâncias (Et. Nic., 1, 6,
1096 a, 24). A superioridade de Deus consiste só na perfeição da
sua vida, não na sua realidade ou no seu ser, pois que, diz
Aristóteles, "nenhuma substância é mais ou menos substância do
que uma outra" (Cat., V. 2b, 25).

Como Platão, Aristóteles é politeísta. De facto, em primeiro lugar,


Deus não é a única substância imóvel. Ele é o princípio que explica o
movimento do primeiro céu; mas como, além deste, existem os
movimentos igualmente eternos, das outras esferas celestes, a
própria demonstração que vale para a existência do primeiro motor
imóvel vale também para a existência de tantos motores quantos
são os movimentos das esferas celestes. Aristóteles admite assim
numerosas inteligências motoras, cada uma das quais preside ao
movimento de uma determinada esfera e é princípio de todo o
movimento do universo. Aristóteles obtém o número de tais
inteligências motrizes do número das esferas que os astrónomos do
tempo haviam admitido para explicar o movimento dos planetas.
Estas esferas eram em número superior ao dos planetas, pois que a
explicação do movimento aparente dos planetas em volta da terra
exigia que cada planeta fosse movido por várias esferas; e isto com
o objectivo de justificar as anomalias que o movimento dos planetas
apresenta relativamente a um movimento circular perfeito em torno
da terra. Aristóteles admitia por
273

consequência 47 ou 55 esferas celestes e portanto


47 ou 55 inteligências motoras; a oscilação do número devia-se aos
diferentes números das esferas celestes admitidos por Eudóxio e
por Calipo, os dois astrónomos a que Aristóteles se referia (Met.,
XII, 8).

Aliás Aristóteles fala constantemente em "deuses" (Et. Nic., X, 9,


1179 a 24; Met., 1, 2, 983 a, 11;
111. 2. 907 b, 10, etc.); e aludindo à crença popular segundo a qual o
divino abraça toda a natureza, considera que este ponto essencial,
isto é "que as substâncias primeiras são tradicionalmente
consideradas deuses", tem sido "divinamente designado" e é um dos
ensinamentos preciosos que a tradição salvou (Met., XII, 8, 1074 a,
38), Noutros termos, a substância divina participou de muitas
divindades no que a crença popular e a filosofia coincidem.

§ 79. A SUBSTÂNCIA FíSICA

A palavra metafísica, inventada provavelmente por um peripatético


anterior a Andrónico, deriva da ordenação dos escritos
aristotélicos, na qual os livros de filosofia se colocaram "depois da
física"; mais expressa também o motivo fundamental da "filosofia
primeira" de Aristóteles, a qual se ocupa da substância imóvel,
partindo das aparências sensíveis e está dominada pela preocupação
de "salvar os fenómenos". O estudo do mundo natural que para
Platão pertence â esfera da opinião e não ultrapassa os limites dos
"raciocínios prováveis" (§ 59), para Aristóteles é ao contrário uma
ciência no pleno e rigoroso significado do termo. Para Aristóteles
não há na natureza nada tão insignificante, tão omissivel que não
valha a pena ser estudado e não seja fonte de satisfação e de
alegria para o investigador. "As substâncias interiores-diz ele
(Sobre as partes
274

dos animais, 1, 5, 645 a, 1 segs.) -sendo mais e melhor acessíveis ao


conhecimento, adquirem superioridade sobre as outras no campo
científico; e como estão mais próximas de nós e mais conformes à
nossa natureza, a sua ciência acaba por ser equivalente à filosofia
que estuda as substâncias divinas... Com efeito até no caso daquelas
menos favorecidas do ponto de vista da aparência sensível, a
natureza que as produziu dá alegrias inefáveis àqueles que,
considerando-as cientificamente, sabem compreender as suas
causas e são por sua natureza filósofos... Deve-se, além disso, ter
presente que quem discute uma parte qualquer ou elemento da
realidade, não considera o seu aspecto material, nem este lhe
interessa, antes olha à forma na sua totalidade. O que importa é a
casa, não os tijolos, a cal e as traves: assim, no estudo da natureza,
aquilo que interessa é a substância total de um ser determinado e
não as suas partes que, separadas das substâncias que o
constituem, nem sequer existem". Estas palavras, que pode dizer-se
traduzem o programa científico de Aristóteles, encontram a sua
justificação na teoria da substância que é o centro da sua
metafísica. Esta teoria demonstrou com efeito que cada ser possui,
na substância que o constitui, o princípio ou a causa da sua
necessidade. Cada ser tem, portanto, enquanto tal, o seu próprio
valor e se se considera nele aquilo que precisamente o faz ser, isto
é, a forma total ou substância, é digno de consideração e de estudo
e pode ser objecto de ciência. Por isso Aristóteles adverte na
passagem referida que se deve olhar à forma e não à matéria, à
totalidade em que se actualiza a substância e não às partes.

COnformemente ao programa que as suas últimas e mais maduras


investigações metafísicas tinham especulativamente justificado, a
actividade científica de Aristóteles dirige-se cada vez mais para as
investigações particulares. Fixou a sua atenção principalmente no
mundo animal, como se deduz dos números, os escritos de
história natural que nos restam; mas pode afirmar-se que nenhum
campo da investigação empírica lhe era estranho, pois que
preparava ao mesmo tempo a reunião das 158 constituições políticas
e se entregava a outras investigações eruditas, como a compilação
do catálogo dos vencedores dos jogos píticos.

Mas não é possível ocuparmo-nos de todas as vastas investigações


naturalísticas de Aristóteles, que como tais saem do campo da
filosofia. Sabemos já que a física é para ele urna ciência teorética,
ao lado da matemática e da filosofia primeira. O seu objecto é o ser
em movimento, constituído pelas duas substâncias que são dotadas
de movimento, a engendrável e corruptível que forma os corpos
sublunares e a iningendrável e incorruptível que forma os corpos
celestes.

Segundo Aristóteles, o movimento é a passagem da potência ao acto


e portanto possui sempre um fim (telos). que é a forma ou espécie
que ele tende a realizar. Dado que o acto como substância precede
sempre a potência, cada movimento pressupõe já em acto a forma
que é o seu término final. Aristóteles admite quatro tipos
fundamentais de movimento: 1) o movimento substancial, isto é, a
geração e a corrupção; 2) o movimento qualitativo, isto é, a mudança
ou a alteração-, 3) o movimento quantitativo, isto é, o aumento e a
diminuição; 4) o movimento local, isto é, o movimento propriamente
dito. Todavia este último é, segundo Aristóteles, o movimento
fundamental a que todos os outros se reduzem: com efeito o
aumento e a diminuição são devidos ao afluxo ou ao afastamento
duma certa matéria; a mudança, a geração e a corrupção supõe o
reunirem-se num dado lugar ou o separar-se de determinados
elementos. Por isso só o movimento
276

local, isto é, a mudança de lugar, constitui o movimento fundamental


que permite distinguir e classificar as várias substâncias físicas.
Ora o movimento local é, segundo Aristóteles, de três espécies: 1)
movimento circular em torno do centro do inundo; 2) movimento do
centro do mundo para o alto, 3) movimento do alto para o centro do
mundo. Estes dois últimos movimentos são reciprocamente opostos
e podem pertencer às mesmas substâncias, as quais serão sujeitas à
mudança, à geração e à corrupção. Efectivamente, os elementos
constitutivos destas substâncias, podendo moverem-se quer do alto
para o baixo quer do baixo para o alto, provocarão com estes
movimentos o nascimento, a mudança e a morte das substâncias
compostas.

O movimento circular, ao invés, não tem contrários; por isso as


substâncias que se movem com esta espécie de movimento são
imutáveis necessariamente e iningendráveis e incorruptíveis.
Aristóteles sustenta que o éter, o elemento que compõe os corpos
celestes, é o único que se move com movimento circular. Esta
opinião de que os corpos celestes são formados por um elemento
diferente daqueles que compõem o universo e que por isso não estão
sujeitos às vicissitudes do nascimento, morte e mudanças das
outras coisas, durou longo tempo na cultura ocidental e só foi
abandonada no século XV por obra de Nicolau de Cusa.

Os movimentos do alto para baixo e do baixo para alto são ao


contrário próprios dos quatro elementos que compõem as coisas
terrestres ou sublunares: água, ar, terra e fogo. Para explicar
O mOviMento destes elementos, Aristóteles estabelece a teoria
dos lugares naturais. A cada um destes elementos cabe-lhe no
universo um lugar natural. Se a parte de um elemento está afastada
do seu lugar natural (o que não pode acontecer senão dum Modo
violento, isto é, contrário à situação natural
277

do elemento) ela tende a retornar com um movimento natural.


Ora os lugares naturais dos quatro elementos são determinados
pelo seu respectivo peso. Ao centro do mundo está o elemento mais
pesado, a terra; à volta da terra, estão as esferas dos outros
elementos na ordem do seu peso decrescente: água, ar e fogo. O
fogo constitui a esfera extrema do universo sublunar; acima dela
está a primeira esfera etérea ou celeste, a da lua. Aristóteles era
levado a esta teoria por experiências bastante simples: a pedra
imersa na água afunda-se, isto é, tende a situar-se sob a água; uma
bolha de ar aberta na água vem à superfície, por isso o ar tende a
dispor-se ao cimo da água; o fogo arde sempre para o alto, isto é,
tende a juntar-se à sua esfera que está acima do ar.

O universo físico, que compreende os céus formados pelo éter e o


mundo sublunar formado pelos quatro elementos, é, segundo
Aristóteles, perfeito, finito, único e eterno. A perfeição do mundo
é demonstrada por Aristóteles com argumentos apriorísticos, que
não têm qualquer referência à experiência, Invoca a teoria
pitagórica sobre a perfeição do número 3 e afirma que o mundo,
possuindo todas e as três dimensões possíveis (altura, largura e
profundidade), é perfeito porque não tem falta de nada. Mas se o
mundo é perfeito, é também finito. Efectivamente, "infinito"
significa, segundo Aristóteles, incompleto: é infinito aquilo que tem
falta de qualquer coisa, portanto aquilo a que pode juntar-se
sempre alguma coisa nova. O mundo, ao contrário, não tem falta de
nada: é portanto finito.

Por outro lado, nenhuma coisa real pode ser infinita, segundo
Aristóteles. Com efeito, cada coisa existe num espaço e cada
espaço tem um centro, um baixo, um alto e um limite extremo. Mas
no infinito não pode existir nem um centro nem um
278
alto nem um baixo nem um limite. Portanto nenhuma realidade física
é realmente infinita. A ordem das estrelas fixas assinala os limites
do universo, limites para lá dos quais não há espaço. Nenhum volume
determinado pode ser maior do que o volume desta esfera nenhuma
linha pode alongar-se para lá do seu diâmetro.

Daqui deriva que não podem existir outros mundos para lá do nosso
e não pode existir o vazio. Não podem existir outros mundos, pois
que toda a matéria disponível deve já estar disposta ab aeterno
neste nosso universo que tem por centro a terra e por limite
extremo a esfera das estrelas. Dado que cada elemento tende
naturalmente para o seu lugar natural, cada parte de terra tende a
juntar-se à terra que está no centro e cada elemento tende a
reunir-se à própria esfera. Deste modo o nosso universo tem de
recolher toda a matéria possível e fora dele não há matéria: ele é
único. Mas fora dele não existe tão-pouco o vazio. Os atomistas
haviam sustentado que, sem o vazio, não é possível o movimento,
pois que pensavam que, se os átomos (que são semelhantes a
pedrinhas pequeníssimas) fossem impelidos ao mesmo tempo sem
intervalos vazios entre um e outro, nenhum átomo se poderia mover.
Aristóteles, ao contrário, sustenta que o movimento no vazio não
seria possível. Efectivamente no vazio não haveria nem um centro,
nem um alto, nem um baixo-, por consequência não haveria motivo
para um corpo se mover numa direcção em lugar de outra e todos os
corpos permaneceriam parados.

Nesta argumentação, como se vê, Aristóteles socorre-se


continuamente da teoria dos lugares naturais, fundada na
classificação dos movimentos. E vai ao ponto de produzir como
argumento contra o vazio aquilo que nós hoje chamaríamos o
principio da inércia. No vazio, diz, um corpo ou permanece-
279
ria em repouso ou continuaria em movimento, enquanto se lhe não
opusesse uma força maior. Este, segundo Aristóteles, é um
argumento contra o vazio; mas na realidade este argumento
demonstra apenas que Aristóteles considera absurdo o que
constitui o primeiro princípio da mecânica moderna, o princípio de
inércia. Veremos que este princípio encontrará reconhecimento na
escolástica do século XIV e será formulado depois exactamente por
Leonardo.

Finalmente, como totalidade perfeita e finita, o mundo é eterno.


Aristóteles define o tempo como "o número do movimento, segundo
o antes e o depois" (Fis., IV 11, 219 b, 1): entendendo com isto que
ele é a ordem mensurável do movimento. Distingue além disso a
duração infinita do tempo, no qual vive tudo o que muda, da
eternidade, que é a existência intemporal do imutável. Mas ao
mundo na sua totalidade é que atribui verdadeiramente a
eternidade neste sentido. Sustenta que o mundo não se gerou nem
pode destruir-se e abarca e compreende na sua imobilidade total a
infinitude do tempo e também todas as mudanças que acontecem no
tempo. Consequentemente, Aristóteles não nos deixou uma
cosmogonia, como fizera Platão no Timeu; e não podia deixá-la, dado
que, segundo ele, o mundo não nasce.

A esta eternidade do mundo é conjunta a eternidade de todos os


aspectos fundamentais e de todas as formas substanciais do mundo.
São por isso eternas as espécies animais e também a espécie
humana, a qual, segundo Aristóteles, pode sofrer vicissitudes várias
na sua história sobre a terra, mas é imperecível na medida que é
ingerada.

A perfeição do mundo que é o pressuposto de toda a física


aristotélica, implica a estrutura finalística do próprio mundo: isto é,
implica, que no mundo todas as coisas tenham um fim. A consi-
280

deração do fim é essencial a toda a física aristotélica.

Viu-se que para Aristóteles o movimento de um corpo não se explica


se não admitindo que tende naturalmente a alcançar o seu lugar
natural: a terra tende para o centro e os outros elementos tendem
cada um para a sua própria esfera. O lugar natural de um elemento
é determinado pela ordem perfeita das partes do universo. Atingir
esse lugar e ainda manter e garantir a perfeição de tudo, é o fim de
todo o movimento físico. Já na lei fundamental que explica os
movimentos da natureza está presente a consideração do fim. Mas
o fim é ainda mais evidente no mundo biológico, isto é, nos
organismos animais: daqui se explica a preferência de Aristóteles
pelas investigações biológicas, às quais dedicou grande parte da sua
actividade. "A divindade e a natureza-diz Aristóteles (De coelo, i,
4,
271 a)-não fazem nada que seja inútil". O acaso (autómaton),
propriamente falando, não existe. Dizemos que se verificam por
acaso os efeitos acidentais de certos acontecimentos que reentram
na ordem das coisas. Uma pedra que cai e fere alguém, fere-o por
acaso porque não caiu com o objectivo de feri-lo, a sua queda cabe
no entanto na ordem das coisas. A fortuna (tyche) é um espécie de
acaso que se verifica na ordem das acções humanas, como, por
exemplo, vir ao mercado por um motivo completamente diverso e
encontrar lá um devedor que restitui a soma devida. A acção deste
homem afortunado era feita para um fim mas não para aquele fim:
por isso se fala de fortuna (Fis., 11, 5).

§ 80. A ALMA

Uma parte da física é aquela que estuda a alma. A alma é objecto da


física enquanto é forma
281

incorporada na matéria; as formas deste género são precisamente


estudadas pela física, enquanto a matemática estuda as formas
abstractas ou separadas da matéria. A alma é uma substância que
informa e vivifica um determinado corpo. Ela é definida como "O
acto (enteléquia) primeiro de um corpo que tem a vida em potência"
. A alma está para o corpo como o acto da visão está para o órgão da
vista: é a realização final da capacidade que é própria de um corpo
orgânico. Como todo o instrumento tem uma função, que é o acto ou
actividade do instrumento (como, por exemplo, a função do machado
é cortar), assim o corpo enquanto instrumento tem como sua função
a de viver e de pensar; e o acto desta função é a alma.

Aristóteles distingue três funções fundamentais da alma: a) a


função vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva e é
própria de todos os seres viventes a começar pelas plantas; b) a
função sensitiva, que compreende a sensibilidade e o movimento e é
própria dos animais e do homem; c) a função intelectiva, que é
própria do homem. As funções mais elevadas podem fazer as vezes
das funções inferiores, mas não vice-versa; assim no homem a alma
intelectiva compreende também as funções que nos animais são
desempenhadas pela alma sensitiva e nas plantas pela vegetativa.

Além dos cinco sentidos específicos, cada um dos quais fornece


sensações particulares (cores, sons, sabores, etc.). há um sentido
comum a que Aristóteles atribui uma dupla função: 1) a de
constituir a consciência da sensação, isto é, "o sentir do sentir" que
não pode pertencer a nenhum sentido particular; 2) a de perceber
as determinações sensíveis comuns a vários sentidos como o
movimento, o repouso, a figura, a grandeza, o número e a unidade. A
sensação em acto coincide com o objecto sensível: por exemplo, o
ouvir o som e o próprio
282

som coincidem. Em tal sentido pode dizer-se que se não existissem


os sentidos, não conheceriam os objectos sensíveis (se não
tivéssemos vista, não conheceríamos as cores). Não conheceríamos
em acto: existiriam porém em potência, porque eles só coincidem
com a sensibilidade no acto desta.

A imaginação distingue-se dos sentidos. Distingue-se também da


ciência, que é sempre verdadeira, e da opinião que é acompanhada
pela crença na realidade do objecto, porque tal crença falta na
imaginação. A imaginação é produzida pela sensação, em acto e as
imagens que ela fornece são semelhantes às sensações; podem pois
determinar a acção nos homens ou também nos animais quando têm
a mente ofuscada pelo sentimento, pelas doenças ou pelo sono.

Análoga à da sensibilidade é a função do intelecto. A alma


intelectiva recebe as imagens como os sentidos recebem as
sensações; o seu objectivo é julgá-las verdadeiras ou falsas, boas
ou más; e conforme as julga, aprova-as ou desaprova-as, deseja-as
ou afasta-as. O intelecto é pois a capacidade de julgar as imagens
fornecidas pelos sentidos. "Ninguém poderia aprender ou
compreender nada, se os sentidos nada lhe ensinassem; e tudo
quanto se pensa, pensa-se necessariamente com imagens" (De an.,
111, 7, 432 a). Todavia, o pensamento não tem nada que ver com a
imaginação: é o juízo emitido sobre os objectos da imaginação que
os declara verdadeiros ou falsos, bons ou maus.

Como o acto de sentir é idêntico ao objecto inteligível, isto significa


que quando o intelecto compreende, o seu acto se identifica com a
própria verdade, com o objecto percebido, mais precisamente
identifica-se com a essência substancial do próprio objecto (De an.,
111, 6, 430 b, 27). Por isso Aristóteles afirma: "a ciência em acto é
idêntica ao seu objecto" (lb., 431 a, 1), ou, num sentido
283

mais geral, "a alma é, num certo modo, todos os entes"; com efeito
os entes são os sensíveis ou inteligíveis e enquanto a ciência se
identifica com os entes inteligíveis, a sensação identifica-se com os
sensíveis (1b., 431 b, 20).

Todavia esta identidade já não existe quando se considera, não já o


conhecimento em acto, mas em potência. Aristóteles insiste na
distinção entre intelecto potencial e actual. Este último contém em
acto todas as verdades, todos os objectos possíveis da intelecção.
Ele age sobre o intelecto potencial como a luz que faz passar a acto
as cores que na obscuridade estão em potência: isto é, faz passar a
acto as verdades que no intelecto potencial estão apenas em
potência. Por isso Aristóteles lhe chama intelecto activo e o
considera "separado, impassível, não misturado" (De an., 111, 5).
Só ele não morre e dura eternamente, enquanto o intelecto
passivo ou potencial se corrompe e sem o primeiro não pode
pensar em nada.

Se o intelecto activo será do homem, de Deus ou de ambos, em que


relações estará com a sensibilidade, qual seja o significado da
separação que Aristóteles lhe atribui, são problemas que
Aristóteles não estuda e que deverão ser largamente discutidos na
escolástica árabe e cristã e no Renascimento.

§ 81. A ÉTICA

Cada arte, cada pesquisa ou como cada acção e cada escolha, são
feitas com vista a um fim que nos parece bom e desejável: o fim e o
bom coincidem. Os fins das actividades humanas são múltiplos e
alguns deles são desejados com vista apenas a fins superiores; por
exemplo, desejamos a riqueza, a boa saúde, pela satisfação e os
prazeres que podem
284

dar. Mas deve haver um fim supremo, um fim que é desejado por si
próprio, e não já enquanto condição ou meio de um fim ulterior. Se
os outros fins são bens, este fim será o bem supremo, aquele de que
dependem todos os outros. Não há dúvida, segundo Aristóteles, que
este fim seja a felicidade. A procura e a determinação desse fim é
o objecto primeiro e fundamental da ciência política, porque só no
que respeita a ela se pode prescrever aquilo que os homens na sua
vida social e como seres individuais, devem fazer ou aprender. Mas
em que consiste a felicidade para o homem?

Evidentemente só se pode responder a esta pergunta se se


determina qual é a missão própria do homem. Cada qual é feliz
enquanto faz bem a sua missão: o músico quando toca bem, o
construtor quando constrói objectos perfeitos. Mas a missão
própria do homem enquanto tal não é a vida vegetativa que ele tem
em comum com as plantas, nem a vida dos sentidos que tem em
comum com os animais, mas só a vida da razão. Assim o homem só
será feliz se viver de acordo com a razão; e esta vida é a virtude. O
estudo sobre a felicidade transforma-se também numa indagação
sobre a virtude.

O prazer está ligado à vida que segue a virtude. Com efeito, ela é a
verdadeira actividade do homem; e toda a actividade é
acompanhada e coroada pelo prazer (Et. Nic., X 4, 1174 b). Os bens
exteriores como a riqueza, o poder ou a beleza, podem, com a sua
presença, facilitar a vida virtuosa ou torná-la mais difícil com a sua
ausência: mas não podem determiná-la. A virtude e a maldade só
dependem dos homens. Certamente o homem não escolhe o fim, que
está nele por natureza, como uma luz que o guia, a julgar
rectamente e a escolher o verdadeiro bem (111, 5, 1113 b). Mas a
virtude depende precisamente da escolha que se faz dos meios, com
vista ao fim supremo. E esta escolha é livre porque
285

depende exclusivamente do homem. Com efeito, Aristóteles chama


livre àquele que tem em si o princípio dos seus actos ou é "princípio
de si próprio" (111, 3, 1112 b, 15-16). O homem é verdadeiramente
livre neste sentido: enquanto é "o princípio e o pai dos seus actos
como é dos seus filhos"; e quer a virtude quer o vício são
manifestações desta liberdade (111, 5, 1113 b, 10 segs.).

Dado que no homem, além da parte racional da alma, há a parte


apetitiva que, ainda que carecendo de razão, pode ser dominada e
dirigida pela razão, assim há duas virtudes fundamentais: a primeira
consiste no próprio exercício da razão e por isso é chamada
intelectiva ou racional (dianoetica); a outra consiste no domínio da
razão sobre os impulsos sensíveis, determina os bons costumes
(ethos-mos), e por isso se chama virtude moral (Ética).

A virtude moral consiste na "disposição (hexis, habitatus) de


escolher o justo meio (mesótes, mediocritas), adequado à nossa
natureza, tal como é determinado pela razão e como poderia
determiná-lo o sábio". O justo meio exclui os dois extremos viciosos
que pecam um por excesso, o outro por defeito. Esta capacidade de
escolha é uma potência (dynamis) que se aperfeiçoa e revigora com
o exercício. Os seus diferentes aspectos constituem as várias
virtudes éticas. A coragem, que é o justo meio entre a cobardia e a
temeridade, gira em torno do que se deve e do que se não deve
temer. A temperança, que é o justo meio entre a intemperança e a
insensibilidade, diz respeito ao uso moderado dos prazeres. A
liberalidade, que é o justo meio entre a avareza e a prodigalidade,
diz respeito ao uso prudente das riquezas. A magnanimidade, que é
o justo meio entre a vaidade e a humildade, concerne a recta
opinião de si próprio. A benignidade, que é o justo meio entre a
irascibilidade e a indolência, concerne à ira.
286

A principal entre as virtudes éticas é a justiça, à qual Aristóteles


dedica um livro inteiro da Etica (Nicom., V = Eudem., IV). No
significado mais gemi, isto é, como conformidade com as leis, a
justiça não é uma virtude particular, mas a virtude total e perfeita.
Efectivamente, o homem que respeita todas as leis é o homem
completamente virtuoso. Mas, além deste significado geral, a
justiça tem um significado específico e é então ou distributiva ou
comutativa. A justiça distributiva é aquela que preside à
distribuição das honras ou do dinheiro ou dos outros bens que Msam
dividir-se entre aqueles que pertencem à mesma comunidade. Tais
bens devem ser distribuídos segundo os méritos de cada um. Porque
a justiça distributiva é semelhante a uma proporção geométrica, na
qual as recompensas distribuídas a duas pessoas se relacionam
entre si com os seus méritos respectivos. A justiça comutativa, ao
contrário, ocupa-se dos contratos, que podem ser voluntários ou
involuntários. São contratos voluntários a compra, a venda, o
empréstimo, o depósito, o aluguer, etc. Dos contratos involuntários
alguns são fraudulentos como o furto, o malefício, a traição, os
falsos testemunhos; outros são violentos, como as pancadas, o
assassínio, a rapina, a injúria etc. A justiça comutativa é correctiva:
procura equilibrar as vantagens e as desvantagens entre os dois
contratantes. Nos contratos involuntários, a pena infligida ao réu
deve ser proporcionada com o dano por ele provocado. Esta justiça
é pois semelhante a uma proporção aritmética (igualdade pura e
simples).

O direito funda-se sobre a justiça. Aristóteles distingue o direito


privado do direito público, que concerne à vida social dos homens no
estado, e divide o direito público em direito legítimo (ou positivo),
que é aquele estabelecido nos vários estados, e o direito natural que
conserva o seu valor
287

em qualquer lugar, mesmo que não esteja sancionado pelas leis.


Distingue do direito a equidade, que é uma correcção da lei
mediante o direito natural, necessária pelo facto de que nem
sempre, na formulação das leis, é possível determinar todos os
casos, pelo que a sua aplicação resultaria às vezes injusta.

A virtude intelectiva ou dianoética é a que é própria da alma


racional. Ela compreende a ciência, a arte, a prudência, a sabedoria,
a inteligência. A ciência é a capacidade demonstrativa (apoditica)
que tem por objecto aquilo que não pode acontecer diferentemente
do modo que sucede, isto é, o necessário e o eterno. A arte
(techne) é a capacidade, acompanhada de razão, de produzir um
objecto qualquer; ela concerne portanto à produção (poiesis) que
tem sempre um fim fora de si, não à acção (praxis). A prudência
(frónesis) é a capacidade unida à razão de agir convenientemente
frente aos bens humanos; cabe-lhe determinar o justo meio em que
consistem as virtudes morais. A inteligência (nous) é a capacidade
de compreender os primeiros princípios de todas as ciências,
primeiros princípios que, precisamente como tais, não caem no
âmbito das próprias ciências. A sabedoria (sofia) é o grau mais alto
da ciência: o sage é aquele que possui ao mesmo tempo ciência e
inteligência, que sabe não só deduzir aos princípios, mas julgar da
verdade dos mesmos princípios. Enquanto a prudência concerne às
coisas humanas e consiste no juízo sobre a sua conveniência,
oportunidade e utilidade, a sabedoria refere-se às coisas mais altas
e universais. A prudência é sempre prudência humana e não tem
valor para seres diferentes ou superiores ao homem; a sabedoria é
universal. Por isso é absurdo sustentar que a prudência e a ciência
política coincidem com a ciência suprema, pelo menos enquanto não
se demonstre que o homem é
288

o ser supremo do universo. Anaxágoras, Tales e outros homens do


mesmo tipo eram chamados sages; não prudentes; porque conheciam
muitas coisas maravilhosas, difíceis e divinas, mas inúteis aos
homens, e se desinteressavam dos bens humanos (Et. Nic., VI, 7,
1141 a).

Este contraste entre sabedoria (sofia) e prudência (frónesis) é o


reflexo no campo da ética da atitude filosófica fundamental de
Aristóteles. Como teoria da substância, a filosofia é uma ciência
que não tem nada a ver com a dos valores propriamente humanos;
por isso a sabedoria, que consiste na plena posse desta ciência nos
seus princípios e nas conclusões, não tem nada que ver com a
prudência que é o guia da conduta humana. A sabedoria te... por
objecto o necessário que, como tal, nada tem a ver com o homem na
medida em que não pode ser modificado por ele: frente ao
necessário, é possível uma única atitude, a da pura contemplação
(teoria).

À amizade dedica Aristóteles os livros VIII e IX da Ética


Nicomaqueia. Ela é uma virtude ou pelo menos está estreitamente
unida à virtude: em todo o caso é a coisa mais necessária à vida.
"Ninguém - diz ele - escolheria viver sem amigos, ainda que
estivesse provido em abundância de todos os outros bens". A
amizade pode fundar-se sobre o prazer recíproco ou sobre o útil ou
sobre o bem. Mas a fundada sobre o útil ou sobre o prazer
recíproco é acidental e cai subitamente quando cessa o prazer ou o
útil. Ao contrário a amizade que se funda sobre o bem e sobre a
virtude é verdadeiramente perfeita porque a sua raiz está na
própria natureza das pessoas que a contraem e é portanto estável e
firme. "O homem virtuoso - diz Aristóteles - comporta-se para com
o amigo como se comporta consigo mesmo, porque o amigo é um
outro ele: decorre daí que, como a cada um a exis-
289

tência própria é desejável, assim é desejável a do amigo" (Et. Nic.


IX, 9, 1170 b, 5).

Dado que a virtude como actividade própria do homem é a própria


felicidade, a felicidade mais alta consistirá na virtude mais alta e a
virtude mais alta é a teorética, que culmina na sabedoria. Com
efeito a inteligência é a actividade mais elevada que existe em nós;
e o objecto da inteligência é aquele que existe mais alto em nós e
fora de nós.
O sage basta-se a si mesmo e não tem necessidade, para cultivar e
alargar a sua sabedoria, de nada que não tenha em si mesmo. A vida
do sábio é feita de serenidade e de paz, pois que não se afadiga por
um fim exterior cujo alcance é problemático, mas o fim está na
própria actividade da sua inteligência. A vida teorética é portanto
uma vida superior à humana: o homem não a vive enquanto é homem,
mas enquanto tem em si qualquer coisa de divino. "O homem não
deve, como dizem alguns, conhecer enquanto homem as coisas
humanas, enquanto mortal as coisas mortais, mas deve tornar-se, na
medida do possível, imortal e fazer tudo para viver segundo tudo
quanto existe nele de mais elevado: e ainda que isto seja pouco em
quantidade, em potência e valor supera todas as outras coisas" (Et.
Nic., X,
7, 1177 b).

Assim a ética de Aristóteles encerra-se com a afirmação incisiva da


superioridade da vida teorética. Este é um ponto em que o
afastamento polémico entre Aristóteles e Platão é mais acentuado.
Platão não distinguia a sabedoria da prudência: com as duas palavras
entendia a mesma coisa, isto é, a conduta racional da vida humana,
especialmente da vida social (Rep. 428 b; 433 e). Aristóteles
distingue e contrapõe as duas coisas. A prudência tem por objecto
os assuntos humanos que são mutáveis e não podem ser incluídos
entre as coisas muito elevadas; a sabedoria tem por objecto o ser
necessá-
290

rio. que se liberta de todos os acontecimentos (Et. Nic., VI, 7, 1041


b. 11). Amim a distância que existe entre prudência e sabedoria é a
mesma que ocorre entre o homem e o Deus. O que quer dizer que,
para Aristóteles, a filosofia tem como objecto fundamental o de
levar o homem individual à vida teorética, à pura contemplação do
que é necessário; enquanto para Platão tem o objectivo de levar os
homens a uma vida em comum, fundada na justiça.

§ 82. A POLÍTICA

Todavia, também segundo Aristóteles, a virtude não é realizável


fora da vida social. A origem da vida social está em que o indivíduo
não se basta a si próprio: não só no sentido de que não pode por si
só prover às suas necessidades, mas também no sentido de que não
pode por si, isto é, fora da disciplina imposta pelas leis e pela
educação, alcançar a virtude. Por consequência, o estado é uma
comunidade que não tem em vista apenas a existência humana, mas a
existência materialmente e espiritualmente feliz; e é este motivo
pelo qual nenhuma comunidade política não pode ser constituída por
escravos ou por animais, os quais não podem participar da felicidade
ou de uma vida livremente escolhida (Pol., 111, 9, 1280 a). E a este
propósito Aristóteles sustenta que há indivíduos escravos por
natureza enquanto incapazes das virtudes mais elevadas e que a
distinção entre escravo e livre é tão natural como a que existe
entre macho e fêmea e jovem e velho (lb., L, 13, 1p60 a).
Entre os que, como Platão, se limitam a delinear um tipo de estado
ideal dificilmente realizável e aqueles que, por outro lado, vão em
busca de um esquema prático de constituição e o descobrem em
qualquer das constituições já existentes,
291

o problema fundamental é o de encontrar a constituição mais


adaptada a todas as cidades: "É necessário ter em mente um
governo não só perfeito, mas também realizável e que possa
adaptar-se facilmente a todos os povos" (Pal., IV, 1, 1288 b). É
necessário portanto propor uma constituição que tenha a sua base
nas existentes e vise realizar nela correcções e mudanças que a
aproximem da perfeita. Por isso a Política de Aristóteles culmina na
teoria da melhor constituição exposta nos dois últimos livros; mas a
esta teoria chega ele mediante a consideração crítica das várias
constituições existentes e dos problemas a que dão origem. Viu-se
que Aristóteles recolheu umas 158 constituições estatais, das
quais, no entanto, só uma, a de Atenas, foi encontrada.
Evidentemente, deve -ter-se servido deste material para as
observações que veio fazendo sobretudo nos livros IV, V, VI, da sua
obra, que aparecem compostos mais tarde.

Como Platão, Aristóteles distingue três tipos fundamentais de


constituições: a monarquia ou governo de um só ; a aristocracia ou
governo dos melhores; a democracia ou governo da multidão. Esta
última chama-se política, isto é, constituição por antonomásia,
quando a multidão governa para o bem de todos. A estes três tipos
correspondem outras tantas degenerações quando o governo
descuida o bom comum em favor do bem próprio. Com efeito a
tirania é uma monarquia que tem por fim o bem do monarca, a
oligarquia tem por fim o bem dos possidentes, a democracia o bem
dos pobres: nenhuma visa a utilidade comum. Na realidade, pois,
cada tipo de constituição pode tomar caracteres distintos. Não
existe uma só monarquia e uma só oligarquia, mas estes tipos
diversificam-se segundo as instituições nas quais se realizam.
Existem também distintas espécies de democracia segundo o
governo se funda na igual-
292

dade absoluta dos cidadãos ou se reserve a cidadão dotados de


requisitos especiais. A própria democracia transforma-se numa
espécie de tirania quando em detrimento das leis prevalece o
arbítrio da multidão. O melhor governo é aquele em que prevalece a
classe média, isto é, o dos cidadãos possuidores de uma fortuna
modesta. Este tipo de governo é o mais afastado dos excessos que
se verificam quando o poder cai nas mãos dos que nada possuem ou
daqueles que possuem demasiado.

Ao delinear a constituição melhor, em conformidade como o


princípio de que todo o tipo de governo é bom, enquanto se adapte à
natureza do homem e às condições históricas, Aristóteles não se
limita a descrever um governo ideal, mas determina as condições
pelas quais um tipo qualquer de governo pode alcançar a sua forma
melhor. A primeira e fundamental condição é que a constituição do
estado seja tal que proveja à prosperidade material e à vida
virtuosa e feliz dos cidadãos. A este propósito têm-se presentes as
conclusões da Ética, isto é, que a vida activa não é a única vida
Possível para o homem e nem tão-pouco a mais alta e que ao lado
dela e acima dela está a vida teorética. Outras condições referem-
se ao número dos cidadãos que não deve ser nem demasiado elevado
nem demasiado baixo, e às condições geográficas. isto é, ao
território do estado. Depois é importante a consideração da índole
dos cidadãos que deve ser corajosa e inteligente como a dos
Gregos. que são os mais aptos a viver em liberdade e a dominar os
outros povos. Também é necessário que na cidade todas as funções
estejam bem distribuídas e que se formem as três classes
fundamentais, segundo o projecto de Platão, do qual Aristóteles
exclui, no entanto, a comunidade da propriedade e das mulheres. É
necessário além disso
293

os anciãos, que no estado mandem, pois que ninguém se resigna sem


amargura às condições da obediência se esta não é devida à idade e
se não sabe que alcançará, com a idade, a condição superior.
Finalmente, o estado deve preocupar-se com a educação dos
cidadãos que deve ser uniforme para todos e dirigida não só a
adestrar para a guerra mas a preparar para a vida pacífica, para as
funções necessárias e úteis e acima de tudo para as acções
virtuosas.

§ 83. A RETóRICA

Entre as artes que são necessárias à vida social está a retórica. A


retórica é afim da dialéctica: como a dialéctica, não tem um objecto
específico porque concerne a todo o tipo e espécie de objecto e
todavia é própria de todos os homens porque todos "se ocupam a
indagar sobre qualquer tese e a sustê-la, a defender-se e a acusar"
(Ret., 1, 1, 1354 a). A função da retórica não é a de persuadir mas
de mostrar os meios que são aptos a introduzir à persuasão.

A retórica procura descobrir quais são estes meios relativamente a


qualquer argumento dado: neste sentido não constitui a técnica
própria de um campo especifico. O objecto da retórica é o
"verosímil", isto é, o que acontece o mais das vezes (enquanto o
objecto da ciência é o necessário, que acontece sempre): o mais,
das vezes é o análogo do necessário nas disciplinas cujo objecto é
privado de necessidade (lb., 1, 2, 1357 a).
Dado que todo o discurso é dirigido a um auditório que é o fim do
próprio discurso e o auditório pode ser ou um simples auditor ou um
juiz que deve pronunciar-se sobre coisas passadas ou futuras, há
três géneros de retórica: a delibe-
294

rativa, a judicial e a demonstrativa. A retórica deliberativa é a que


se volta para coisas futuras e deve persuadir ou dissuadir,
demonstrando que qualquer coisa é útil Ou Perniciosa. A retórica
judicativa refere-se a factos ocorridos no passado e o seu
objectivo é acusar ou defender, persuadindo que tais factos são
justos ou injustos. Finalmente, a
retórica demonstrativa refere-se a coisas presentes e o seu
objectivo é louvá-las ou condená-las como verdadeiras ou falsas,
boas ou más.

§ 84. A POÉTICA

A poesia, e em geral a arte, é definida por Aristóteles como


imitação. Mas a imitação pode ser feita com meios diferentes e por
modos diferentes e dirigir-se a objectos diferentes. Com efeito,
pode-se imitar por meio de cores ou de formas como acontece na
pintura, ou por meio da voz como ocorre na poesia, ou por meio do
som na música. Relativamente ao objecto podem imitar-se ou
pessoas superiores ao comum dos homens, como acontece na
epopeia e na tragédia, ou pessoas comuns ou inferiores ao comum,
como acontece na comédia. Relativamente aos modos da imitação,
pode-se imitar narrativamente ou dramaticamente: neste último
caso, introduzem-se as diferentes pessoas a agir e a falar
directamente, como acontece na tragédia e na comédia.

Além destas determinações gerais do conceito da imitação, a


Poética de Aristóteles na parte que chegou até nós não contém mais
que a teoria da tragédia. Esta define-se como "imitação de uma
acção grave e completa em si mesma, que tenha uma certa
amplitude, uma linguagem adornada em
proporção diferente conforme as diferentes partes; e desenrola-se
através de personagens que actuam
295

em cena, não que narrem; e produza finalmente' mediante casos de


piedade e de terror, a purificação de tais paixões" (Poet., 6, 1449
b). Aristóteles detém-se especialmente a ilustrar a unidade da
acção trágica. Esta deve desenrolar-se com continuidade do
princípio ao fim de modo tal que todos os acontecimentos se
encadeiem e não seja possível suprimi-los ou mudá-los de lugar, sem
mudar e desorganizar a ordem do conjunto. Por isso o objecto da
tragédia mais que o verdadeiro é o verosímil, aquilo que pode
verificar-se "segundo verosimilhança e necessidade". Por isso,
também, ca poesia é mais filosófica e mais elevada que a história: a
poesia exprime principalmente o universal, a história o particular
(1b., 9, 1451 b). Efectivamente a história narra tudo aquilo que
aconteceu a uma dada personagem ou num dado período, segundo a
pura e simples sucessão dos acontecimentos; a poesia imita somente
o verosímil, o qual como se disse (§ 83) é aquilo que acontece mais
geralmente e é portanto o análogo da universalidade (ou da
necessidade) própria dos objectos da ciência.

Se Platão sustenta que a acção dramática, interessando os


espectadores nas paixões violentas agitadas em cena, encoraja
neles tais paixões, Aristóteles crê pelo contrário que a tragédia
exerce uma função purificadora e liberta a alma do espectador
das paixões que a tragédia representa. Aristóteles reconhece o
mesmo efeito na música. "Alguns daqueles que são dominados pela
piedade, pelo temor ou pelo entusiasmo, quando ouvem cantos
orgiáticos como os religiosos, acalmam-se como por efeito duma
medicina e de uma catarsis. Por isso é necessário que se submetam
a tal acção aqueles que se vêem sujeitos à piedade, ao temor e em
geral às paixões, de modo conveniente a cada um, a fim de que se
gere em todos uma
296

um alivio aprazível" (Pol., VIII, 7,

ris teles vê assim na arte e em particular na poesia e na música um


meio potente de educação, e no carácter imitativo da arte já não vê
como Platão motivo para considerá-la ilusória. O mundo sensível, que
a arte imita, não é para Aristóteles simples aparência, mas é
realidade que pode ser objecto de ciência; também a imitação dela
através da arte perde portanto o carácter de aparência ilusória.
Aristóteles pode assim reconhecer à arte aquela função catártica
que lhe dá valor educativo e formativo nos confrontos do homem.
Sobre a catarsis, faltam na Poética elementos explícitos que
consintam compreender a sua natureza. Intérpretes antigos viram
nela um tratamento médico das paixões, uma cura que combate, o
semelhante com o semelhante. E não é claro se a catarsis se
entende como purificação pelas paixões ou antes como purificação
das paixões. Todavia se se considera que a catarsis está ligada ao
valor propriamente artístico da tragédia ou da música, pode-se
excluir que ela seja, para Aristóteles, apenas uma medicina das
paixões. À catarsis está ligado um momento mais alto da vida
espiritual, um momento no qual a paixão não está excluída, mas
purificada ou exaltada. E efectivamente enquanto a paixão se dirige
unicamente ao objecto (coisa ou pessoa) que liga ao homem com o
amor ou com o ódio, com o temor ou com a esperança, a arte,
apresentando a paixão realizada num complexo ordenado de
acontecimentos (como ocorre na tragédia) ou de sons expressivos
(como na música), afasta o homem do objecto da paixão para
interessá-lo na paixão em si mesma, naquilo que ela é, na sua
substância. A paixão tem como seu telos a obtenção do seu objecto,
a arte tem como seu telos a paixão na sua realidade representada.
Aristóteles inclui isto
297

na sua teoria da catársis. A arte liberta a paixão do seu término


natural porque a faz volver à própria paixão, à sua substância
realizada na arte.

§ 85. A LÓGICA

A organização do saber num sistema de ciências, cada uma das quais


se constitui com relativa independência das outras, colocava a
Aristóteles o problema da forma geral da ciência. Aristóteles 72)
dividia a ciência em três grandes grupos: ciências teóricas, física,
matemática e filosofia, que têm por objecto o ser em alguns dos
seus aspectos especiais ou o ser em geral (Met., X1, 7, 1064 b);
ciências práticas ou normativas, das quais a principal é a política,
que têm por objecto a acção; ciências poiéticas que regulam a
produção dos objectos. É evidente que estas três espécies de
ciências, na medida em que são todas igualmente ciências, têm em
comum a forma, isto é, a natureza do seu procedimento.
Considerando à parte tal forma. mediante a abstracção de que cada
uma das ciências se serve para isolar o seu objecto, obtém-se uma
disciplina que descreve o procedimento comum de todas as ciências
enquanto tais; e tal disciplina é a lógica, que Aristóteles chama
analítica e que ele foi o primeiro a conceber e fundar como uma
disciplina em si, utilizando e sistematizando as observações e os
resultados dos seus predecessores e especialmente de Platão. Mas,
evidentemente, o valor de uma lógica assim entendida depende da
legitimidade de distinguir a forma geral das ciências do seu
conteúdo, isto é, do objecto particular de cada uma delas: isto
depende da legitimidade da abstracção mediante a qual cada ciência
singular, incluindo a filosofia, consegue determinar o seu objecto.
Por sua vez a legitimi-
298

dade de abstracção funda-se na teoria da substância. em efeito,


considerar a forma separadamente de cada conteúdo particular, só
é procedimento legítimo se a forma é, ao mesmo tempo, a
substância, isto é, a essência necessária daquilo que se considera.
Se a forma não tivesse a validade que lhe vem do ser e não fosse
ela só a substância daquilo de que é forma, o considerá-la à parte
através da abstracção seria uma falsificação. A abstracção
justifica-se portanto apenas como consideração da essência de uma
coisa separada das suas particularidades contingentes. A lógica,
como procedimento analítico, isto é, resolutivo da forma do
pensamento como tal, está portanto fundada sobre a metafísica
como teoria da substância e sustém-se e cai com ela. Num passo da
Metafísica (IV, 3,
1005 b, 6) em que Aristóteles parece considerar a lógica como a
técnica indispensável da investigação, ele tem o cuidado de
acrescentar que a consideração dos princípios silogísticos diz
respeito ao filósofo e a quem especula sobre a natureza de qualquer
substância. A lógica é assim reconduzida por ele próprio ao seu
pressuposto indispensável: a teoria da substância.

Por outro lado, esta teoria é o fundamento da verdade de todo o


conhecimento intelectual. A forma é ao mesmo tempo ratio essendi
e ratio cognoscendi do ser: Como ratio essendi é substância, como
ratio cognoscendi é conceito ou definição. Ela garante pois a
correspondência entre o conceito e a substância e assim a verdade
do conhecimento e a racionalidade do ser. Por isso Aristóteles pode
dizer que o ser e a verdade estão numa relação recíproca: que, por
exemplo, se o homem é, a afirmação que o homem é, é verdadeira; e
reciprocamente se é verdadeira a afirmação de que é, o homem é.
Mas Aristóteles acrescenta que nesta relação o fundamento é o ser
e que o ser não é
299

tal porque a afirmação que o concerne é verdadeira, mas a


afirmação é verdadeira porque o ser é tal como ela o expressa
(Cat.. 12, 14 b, 21). Noutros termos, a verdade do conceito funda-se
na substância e não vice-versa: a metafísica (ou em geral a ciência)
precede e fundamenta a lógica.

Não pode pois sustentar-se que Aristóteles tenha querido fundar a


lógica como ciência "formal", no sentido mo-demo do termo, isto é,
como ciência sem objecto ou sem conteúdo, constituída unicamente
por proposições tautológicas. A lógica tem um objecto, segundo
Aristóteles, e este objecto é a estrutura da ciência em geral que é
também a própria estrutura do ser que é objecto da ciência. Nesta
base, Aristóteles afirma que a lógica deve analisar a linguagem
apofântica ou declarativa que é característica das ciências
teoréticas, na qual têm lugar as determinações; de verdadeiro e
falso se a união ou separação dos termos (em que consiste uma
proposição) reproduz ou não a união ou a separação das coisas.
Aristóteles não nega que existam discursos não apofânticos, por
exemplo a oração súplica. Mas privilegiando o discurso apofântico,
faz dele a verdadeira linguagem, aquela sobre a qual as outras mais
ou menos se modelam ou do ponto de vista da qual devem ser
julgadas. Efectivamente a poética e a retórica que se ocupam de
linguagens não apofânticas são tratadas por Aristóteles à parte e
subordinadamente à analítica. A linguagem apofântica não tem nada
de convencional. Segundo Aristóteles, as palavras da linguagem são
convencionais: tanto assim é verdade que são diferentes duma
língua para outra. Mas elas referem-se a "afecções da alma que são
as mesmas para todos e constituem imagens dos objectos que são
os mesmos para todos" (De inierpr., 1, 16 a, 3). A combinação das
palavras é comandada por isso, através da imagem mental,
300

pela combinação efectiva das coisas que lhes correspondem: assim..


por exemplo, só se podem combinar as palavras "homem" e "corre"
na proposição "o homem corre" se na realidade o homem corre. Pode
dizer-se portanto que a linguagem é para Aristóteles
convencional no seu dicionário, não na sua sintaxe: a lógica deve
voltar-se portanto para esta sintaxe para analisar a estrutura
fundamental do conhecimento científico e do ser.

As partes do Organon aristotélico, na ordem em que chegarem até


nós, tratam de objectos que vão do simples ao complexo, começando
pelos mais simples, isto é, pelos elementos. Tais elementos são
considerados e classificados nas Categorias. "Categorias" significa
predicados; mas na realidade Aristóteles trata no livro em questão
de todos os termos que "não entram em nenhuma combinação",
porque são considerados isoladamente como "homem", "branco",
"corre", "vence", etc. Dos termos assim compreendidos, não se pode
dizer nem que são verdadeiros nem que são falsos, pois verdadeira
ou falsa é apenas uma combinação qualquer dos termos, por
exemplo, "o homem corre". Aristóteles classifica-os em dez
categorias 1) a substância, por exemplo, homem; 2) a quantidade,
por exemplo, de dois côvados-, 3) a qualidade, por exemplo, branco,
4) a relação, por exemplo, maior; 5) o lugar, por exemplo, no liceu;
6) o tempo, por exemplo, o ano passado; 7) a situação, por exemplo,
está sentado;
8) o ter, por exemplo, tem os sapatos; 9) o agir, por exemplo,
queima; 10) o sofrer, por exemplo, é queimado.

obviamente, dado o assentamento geral da lógica aristotélica, a


classificação das categorias não visa só os termos elementares da
linguagem mas também as coisas a que se referem: mais, visa os
primeiros só porque, antes de mais, considera estes últimos.
Conformemente à direcção da sua metafísica, Aris-
301

tóteles considera como categoria fundamental a substância. Um dos


pontos mais famosos do escrito é a distinção entre substâncias
primeiras e substâncias segundas. A substância primeira é a
substância no sentido próprio que não pode nunca ser usada como
predicado de um sujeito e nunca pode existir num outro sujeito: por
exemplo, este homem ou aquele cavalo. As substâncias segundas
são ao contrário as espécies e os géneros: por exemplo a espécie
homem, a que cada homem determinado pertence, e o género
animal a que pertence a espécie homem juntamente com as outras
espécies. Porquanto considere de algum modo justificado chamar
substâncias às espécies e aos géneros que servem para definir as
substâncias primeiras, Aristóteles repara que só as substâncias
primeiras "são substâncias no sentido mais preciso, na medida em
que estão na base de todos os outros objectos" (2 a, 37).

No livro Sobre a interpretação, Aristóteles examina as


combinações dos termos que se chamam enunciados declarativos
(logoi apophantikoi) ou proposições (protaseis), isto é, as frases que
constituem asserções e não já súplicas, ordens, exortações, etc. A
asserção pode ser afirmativa ou negativa segundo "atribui alguma
coisa a alguma coisa" ou "separa alguma coisa de alguma coisa". Por
outro lado pode ser universal ou singular: é universal quando o
sujeito é universal (entendendo-se por universal "aquilo que por
natureza se predica de várias coisas", por exemplo: homem; é
singular quando o sujeito é um ente singular, por exemplo Callia.
Mas um mesmo termo universal pode ser tomado numa proposição
quer na sua universalidade, como quando se afirma "todo o homem é
branco", quer na sua particularidade, como quando se afirma "alguns
homens são brancos". Aristóteles preocupa-se em estabelecer a
relação entre a proposição universal
302

e a proposição particular, cada uma das quais pode por sua vez ser
afirmativa ou negativa. Estas relações resultam do esquema
seguinte:

universal afirmativa (A) todo o homem é branco;


Universal negativa (E) <Nenhum homem é branco>
Particular afirmativa (i) <Alguns homens são brancos;
Particular negativa (O) <Alguns homens não são brancos>
(por uma questão de apresentação gráfica, o esquema não está igual
ao do original)
O esquema foi construído desta maneira (que reflecte exactamente
a doutrina aristotélica) pelos Lógicos medievais que lhe chamaram
"quadrado dos opostos" e que indicaram as várias espécies de
proposições com as letras maiúsculas que foram usadas. Como
resulta daí, Aristóteles chamou contrária a oposição entre a
proposição universal afirmativa e a particular negativa e
contraditória a oposição entre a universal afirmativa e a universal
negativa. A relação entre a particular afirmativa e a particular
negativa foi chamada pelos Lógicos medievais oposição
subcontrária. Trata-se de uma oposição para a qual, segundo
Aristóteles, não é válido o princípio da contradição. Com efeito, nas
duas proposições "alguns homens são brancos", "alguns homens não
são brancos", podem ser ambas verdadeiras. Pelo contrário, para as
proposições que estão entre si em oposição contrária e
contraditória, o princípio de contradição é rigorosamente válido.
Uma delas tem de ser falsa e a outra tem de ser verdadeira. Esta
segunda existência (isto é, que uma delas deve ser verdadeira) é a
expressa pelo princípio que muito mais tarde se chamou do
"terceiro excluído" e que Aristóteles, embora sem distingui-lo do
princípio da contradição, expressa-o e defende-o várias vezes
(Met., IV, 7. 1011 b, 23; X, 7, 1057 a, 33), afirmando que "entre os
opostos contraditórios não há um
303

meio". Todavia Aristóteles considera uma dificuldade que pode


surgir do uso deste Princípio quanto aos acontecimentos futuros. Se
se afirma "amanhã -haverá uma batalha naval" e "amanhã não haverá
uma batalha naval", destas duas proposições contraditórias uma
deve ser necessariamente verdadeira. Mas se uma delas é
necessariamente verdadeira, por exemplo, aquela que afirma
"amanhã não haverá uma batalha naval", isto quer dizer que
necessariamente amanhã não haverá uma batalha naval;
verdadeiramente porque é necessariamente verdadeiro que
"amanhã não haverá uma batalha naval". Em tal caso do uso do
princípio do terceiro excluído, referido aos acontecimentos
futuros, surgiria a tese da necessidade de todos os
acontecimentos, mesmo daqueles que são devidos à escolha do
homem. Aristóteles não afirma que estas consequências sejam
legítimas e que todos os acontecimentos aconteçam por
necessidade. Uma das duas coisas expressas por uma proposição
contraditória necessariamente se verificará no futuro, mas esta
necessidade não assume qual das duas coisas é que se verificará.
Noutros termos, não é necessário, atendo-se ao princípio do
terceiro excluído, nem que amanhã haja nem que amanhã não haja
uma batalha naval, qualquer que seja a alternativa que se verificará
amanhã. Mas é necessário que amanhã aconteça ou não aconteça
uma batalha naval. Noutros termos, a necessidade consiste na
impossibilidade de sair da alternativa de uma contradição, não no
verificar-se duma ou doutra destas alternativas (19-a, 32).
Aristóteles não nota que, se a alternativa é necessária, ela não pode
ser senão alternativa, isto é, não pode decidir-se nem num sentido
nem no outro: pelo que seria necessária precisamente a sua
indeterminação; e amanhã não poderá nem haver nem não haver uma
batalha naval. Como quer que seja, a solução de
304

Aristóteles e toda a discussão do caso mostram claramente o


primado que ele atribui a uma das duas modalidades fundamentais
das proposições, isto é, precisamente à necessidade. A outra
modalidade de que fala e que também permaneceu tradicional na
lógica é a da possibilidade. Mas a própria possibilidade é definida
por Aristóteles como não-impossibilidade, isto é, como simples
negação da necessidade negativa ("impossibilidade" significa de
facto "necessidade que não seja"). E só na base desta definição do
possível, ele pode afirmar que também o necessário é possível
porque aquilo que é necessariamente, não deve ser impossível. Mas a
redução do possível a "não impossível" demonstra como tem andado
completamente esquecido, na
lógica de Aristóteles, o significado da possibilidade que Platão tinha
esclarecido como fundamento da dialéctica (§ 56).

Os Primeiros Analíticos contêm a teoria aristotélica do raciocínio.


O raciocínio típico é, segundo Aristóteles, o dedutivo ou silogismo:
definido como "um discurso em que, postas tais coisas, outras se
derivam delas necessariamente" (24 b, 18). As características
fundamentais do silogismo aristotélico são: 1) o seu carácter
mediato; 2) a sua necessidade. O carácter mediato do silogismo
depende do facto de que silogismo é a contrapartida lógico-
linguística do conceito de substância. Em virtude disto, a relação
entre duas determinações de uma
coisa só se pode estabelecer na base daquilo que a coisa é
necessariamente, isto é, da sua substância, por exemplo, se se quer
decidir se o homem é mortal, apenas se pode encarar a substância
do homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar assim:
todo o homem é animal, todo o
animal é mortal, portanto todo o homem é mortal. A determinação
"animal", necessariamente incluída na substância "homem", permite
concluir da mor-
305

talidade do próprio homem. Neste sentido diz-se que a noção


"animal" fez de termo médio do silogismo: ela representa no
silogismo a substância, ou a causa ou a razão, e que só ela torna
possível a conclusão (94 a, 20): o homem é mortal porque, e só
porque, é animal. O silogismo tem portanto três termos: o sujeito e
o predicado da conclusão e o termo médio. Mas é a f unção do
termo médio que determina a figura (schemata) do silogismo. Na
primeira figura, o termo médio faz de predicado na primeira
premissa e de sujeito na outra, como no silogismo agora citado. Na
segunda figura, o termo médio faz de predicado em ambas as
premissas (por exemplo, "Nenhuma pedra é animal, todo o homem é
animal, logo nenhum homem é pedra"). Nesta figura, uma das
premissas e a conclusão são negativas. Na terceira figura o termo
médio faz de sujeito em ambas as premissas (por exemplo, "Todo o
homem é substância, todo o homem é animal, logo alguns animais são
substâncias"). Nesta figura a conclusão é sempre particular. Cada
uma das três figuras se divide depois numa variedade de modos,
segundo as premissas são universais ou particulares, afirmativas ou
negativas.

Aristóteles levou até a um certo ponto esta casuística dos modos


silogísticos que na lógica medieval devia encontrar o seu fecho,
mesmo em relação aos desenvolvimentos que a própria lógica sofreu
na antiguidade por obra dos Aristotélicos e dos Estoicos. O
silogismo é por definição dedução necessária: por isso a sua forma
primária e privilegiada é o silogismo necessário, que Aristóteles
chama também demonstrativo ou científico. Dos silogismos
necessários, a primeira e melhor espécie é a dos silogismos
ostensivos que Aristóteles contrapõe aos que partem de uma
hipótese. Estes últiMos não são aqueles que se chamarão em
seguida "hipotéticos" (nos quais a premissa maior 4 cons-
306

tituída por uma condicional). mas aqueles cuja Premissa maior não é
a conclusão de um Outro silogismo nem é evidente por si, mas é
tomada por via de hipótese. Um de tais silogismos é aquele que
opera a redução ao absurdo. Entre os silogismos ostensivos mais
perfeitos estão os silogismos universais da primeira figura, aos
quais é possível reconduzir todas as outras formas do silogismo.
Finalmente, do silogismo dedutivo distingue-se o silogismo indutivo
ou indução, que é a outra das duas vias fundamentais através das
quais o homem alcança as próprias crenças (68 b, 13). A indução,
segundo Aristóteles, é uma dedução que, em vez de deduzir um
termo do outro mediante o termo médio (por exemplo, a
mortalidade do homem mediante o conceito de animal), como faz o
silogismo verdadeiro e legítimo, deduz o termo médio de um
extremo, valendo-se do outro extremo. Por exemplo, depois de ter
verificado que o homem, cavalo e o macho (1.O termo) são animais
sem bílis (termo médio) e que o homem, o cavalo e o macho são de
longa vida (2.O termo) deduz que todos os animais sem bílis são de
longa vida: na qual conclusão compara o termo médio e um extremo.
O "ser sem bílis" é, neste caso, o termo médio, porque é a razão ou
a causa pela qual o homem, o cavalo e o macho são de longa vida. A
indução é válida apenas se se esgotar em todos os casos possíveis;
se, no exemplo em exame, o homem, o cavalo e o macho são todos
animais sem bílis. Por isso, é de uso limitado e não pode suplantar o
silogismo dedutivo, semo se para o homem é um procedimento mais
fácil e claro (68 b, 15 segs.). Aristóteles sustenta por isso que pode
ser usado não na ciência, mas na dialéctica e na oratória, isto é,
como instrumento de exercício ou de persuasão (Ret., 1, 2, 1356 b,
13).
307
Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina as premissas do
silogismo e o fundamento da sua validade. Aristóteles parte do
princípio de que toda a doutrina ou disciplina deriva de um
conhecimento preexistente" (71 a, 1). Para que o silogismo conclua
necessariamente, as premissas de que deriva devem por sua vez ser
necessárias. E para ser tais, devem ser, em si próprias, princípios
verdadeiros, absolutamente primeiros e imediatos; e, no que
respeita à conclusão, mais cognoscíveis, anteriores à conclusão e
causa dela (71 b, 19). "Imediatos" significa que são indemonstráveis,
embora evidentes por si próprios: pois que, se não fossem tais,
haveria princípios dos princípios e assim até ao infinito (90 b, 24).
Alguns destes princípios são comuns a todas ciências outros são
próprios de cada ciência. Comum é, por exemplo, o princípio: se de
dois objectos iguais se tiram objectos iguais, os restos são iguais.
Especiais são por exemplo os seguintes princípios da geometria: a
linha tem a seguinte natureza; a linha recta tem a seguinte
natureza, etc. (76 a, 37). Mas os princípios, especialmente os
princípios particulares, não são outra coisa, segundo Aristóteles,
senão as definições e as definições são possíveis só pela substância
ou pela essência necessária. (90 b, 30). A validade dos princípios em
que se funda a ciência consiste por isso em serem eles expressão da
substância ou, melhor, do género das substâncias sobre que versa
uma ciência particular; e pois que a substância é causa de todas as
suas propriedades e determinações como os princípios são causa
das conclusões que o silogismo delas deriva, todo o conhecimento é
conhecimento de causas.

Como dissemos a propósito da ética, Aristóteles admite um órgão


específico para a intuição dos primeiros princípios que é o intelecto:
uma das virtudes dianoéticas, isto é, dos hábitos superiores
308
racionais do homem (§ 81). Como virtude ou hábito racional, o
intelecto não é uma faculdade natural e inata mas, como todas as
outras virtudes, forma-se gradualmente através da repetição e do
exercício. Em particular, forma-se a partir da sensação. Da
sensação deriva a lembrança e da lembrança renovada dum mesmo
objecto nasce a experiência. Depois, na base da experiência, se
consegue surpreender a substância que é una e idêntica num
conjunto de objectos, tem-se então o
intelecto, que é o princípio da arte da ciência. Por consequência, o
conhecimento sensível condiciona, segundo Aristóteles, a aquisição
do intelecto dos primeiros princípios e também de toda a ciência;
mas não condiciona a validade da ciência. Tal validade é, segundo
Aristóteles, completamente independente das condições que
permitem ao homem alcançar a ciência e consiste unicamente na
necessidade dos primeiros princípios e na necessidade das
demonstrações que daí resultam.

Enquanto os Primeiros e Segundos Analíticos têm por objecto a


ciência, os Tópicos têm por objecto a dialéctica. A dialéctica
distingue-se da ciência pela natureza dos seus princípios: os
princípios da ciência são necessários, isto é, absolutamente
verdadeiros, os princípios da dialéctica são prováveis, isto é,
"parecem aceitáveis a todos ou aos mais ou aos sábios e entre estes
ou a todos ou aos mais ou aos mais notáveis e ilustres" (100 b, '21).
Fundados em princípios deste género são os raciocínios usados na
oratória forense ou política (que Aristóteles estuda na Retórica),
quer nas discussões, quer nas que são feitas com o simples
objectivo de exercitar-se na arte de raciocinar. A maior parte dos
Tópicos, é dedicada ao estudo dos argumentos que se usam nas
discussões: como se disse, os Tópicos de Aristóteles são, no seu
corpo principal, a primeira formulação da lógica
309
aristotélica, a que ele concebeu debaixo da influência do
platonismo, que mantinha a discussão dialógica como o único método
de pesquisa. A análise de Aristóteles visa substancialmente isolar,
dividir classificar e valorizar no seu valor demonstrativo (isto é,
relativamente às formas correspondentes do silogismo científico)
os lugares lógicos, isto é, os esquemas argumentativos que podem
ser usados na discussão. No âmbito da dialéctica encontram
também lugar e reconhecimento os problemas: pois que estes,
enquanto são constituídos por uma pergunta que pode ter duas
respostas contraditórias, não nascem nem quando se trata de
deduzir consequências necessárias de premissas necessárias (como
acontece na ciência) nem a propósito daquilo que a ninguém aparece
como aceitável, mas sim naquela esfera do provável que é própria da
dialéctica. (104 a; 104 b, 3). Assim a que aparecera a Platão como a
ciência filosófica por excelência, a dialéctica, é confinada por
Aristóteles numa zona marginal da ciência e inferior a ela; e
adquire um significado totalmente diverso. Certamente, a dialéctica
platónica não tem o carácter de necessidade que Platão atribui à
ciência; mas não tem este carácter porque não o tem mesmo o,
próprio ser que é seu objecto e que é definido por Platão como
possibilidade. Assim a ausência de necessidade que é para
Aristóteles a deficiência fundamental da dialéctica platónica, que
ele chama "silogismo fraco" (Pr. An., 1,
31, 46 a, 31), não é tal para Platão que a considera antes como
condição indispensável para que o procedimento dialéctico possa
submeter a crítica as suas próprias premissas e mudar
oportunamente tais premissas segundo a complexidade do objecto.

Enfim, nas Refutações (elenchi) sofísticas, Aristóteles examina os


raciocínios refutadores ou erísticos dos Sofistas. Ele entende por
raciocínios críticos aquele em que as premissas não são nem
310
necessárias (como as premissas da ciência) nem
prováveis, (como as da dialéctica), mas só aParentemente prováveis.
os argumentos erísticos, a que Aristóteles chama sofismas e que os
Latinos indicaram com o termo de falácias, são divididos por
Aristóteles em duas grandes classes: os que dependem do modo de
exprimir-se e aqueles que são independentes disso. Exemplo dos
primeiros é a
anjibolia que consiste no uso de expressões que têm um significado
duplo e que são tomadas ora num ora noutro destes significados.
Por exemplo, quando se diz: "aquilo que deve ser é bem", mas "o mal
deve ser; logo é bem", o "deve sem, na primeira premissa é tomado
como aquilo que é desejável que seja e na segunda como aquilo que é
inevitável. Da segunda espécie de falácias, um exemplo é a petição
de princípio que consiste em tomar, de forma dissimulada, como
premissa da demonstração, aquilo que se deveria demonstrar.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

67. Chegaram até nós as seguintes e antigas vidas de Aristóteles:


1.- DIõGENEs LAÊRcio, V. cap. 1 segs.; 2.1 DIONISIO DE
~CARNAsso na carta a Ammeo, cap. 5; 3.* Vida menagiana, assim
chamada pelo seu editor Menagio; 4.o Vida neoplatõnlca, que nos
chegou em três redacçõ es distintas; SUIDAS, Léxico, na palavra
Arlstõteles; 6.* Biografias sirlaco-ãrabes compostas entre os
séculos V e VM. ]Entre as reconstruçõ es modernas: ZELLER, 11, 2,
u. 1 segs.; GoMPERz, M, p. 20 segs.; JAMER, A~., p. 11 sega., 133
sega.,
149 segs.. O testamento de Aristóteles foi-nos conservado por
DIõGFNEs LAÉRcio, V, 11.

§ 68. Sobre o problema dos escritos aristotélicos: JAEGER, Op.


Cit.; MORFAU, As listas antigas das ~as de Aristótelw, Lovaina,
1951.-Uma tentativa para revolucionar a atribuição dos escritos
aristotélicos encontra-se em ZURCITER, Aristotel~ Werk und
Gei8t, Paderbon, 1952. Sobre a cronologia das obras lógicas
311

de Aristõteles: P. GomKE, Die Enatchung der ariBtoteltechen Logik,


Berlim, 1936; F. NUYENS, LIéVOIUt" de Ia psychologie d'Aritote,
UYvaina, 1948, e os autores do volume colectivo Autour d' Aristote,
Lovaina, 1955, negam que o livro XII da Metafí&ica seja uma obra
juvenil, segundo a tese de Jaeger, mas sem argumentos válidos. Cfr.
M. UNTERSTEINER, In. "Rivista di filologia elassáca>.

§ 69. Os fragmentos dos escritos exotéricos foram recolhidos por


VALENTIN ROSE, Leipzig, 1866. Veja-se também: WALZER,
Aristotelis dialogorum fragn~ta, Florença, 1934. Sobre as obras
perdidas de Aristóteles: JAMER, Op. Cit.; BIGNONF, L'Aristotele
perdudo e Ia formazione filosofica di Epicuro, 2 vols, Florença, s.
d..

§ 70. A edição fundamental das obras de Aristóteles é a da


Academia das Ciências de Berlim ao cuidado de Bekker (1831), a
numeração de cujas páginas vem reproduzida em todas as edições e
serve para as citações. A e-asa edição foi acrescentada o utilíssimo
Indice de BONITZ. Notável também a edição Firmán-Didot, 4 vols.,
Pari.3, 1849-69, com tradução latina. Numerosissimas as edições
poateriores das obra6 aristotélicas, entre as quaL9 é Importante a
que Ross publicou na Oxford University Press. Do próprio Ross é
fundamental a edição comentada da Metaf~a, 2 vols., Oxford, 1924;
ainda mais a monografia Aristotele, trad. ital., Bari, 1946. Esta é
actualmente a melhor obra geral sobre Aristételes. Na
historiografia moderna a interpretação da figura de Aristóteles
tomou duas direcções simétricas e opostas: a que faz de
Aristóteles um naturalista e um empirista; aquela que faz dele um
espiritualista. Como exemplo da primeira interpretação: C. PIAT,
Aristote, Paris, 1912; J. BURNET, Aristotle, Londres,
1924. A segunda interpretação foi iniciada por F. RAVAISSON,
Essai sur Ia métaphy8ique d'Aristote, Paris,
1913, e encontrou a sua melhor expressão na monografia de O.
HAMELIN, Le système d'Aristote, Paris,
1920.

§ 71. Que a elegia se referia a Sócrates é a ~tese de GompERz, II,


p. 72, que contradiz os testemunhos antigos e é desmentida pela
crítica recente: JAMER, p. 138 segs.; BIGNONE, I, p. 213 segs.-
Sobre as duas fases da Metaffsica: JAMER, cap. 4.

H 73.-74. A doutrina da substância exposta nos livros VII e VIII


da Metafísica é o resultado mais

312

maduro da Investigação "totélica, segundo as coaclusões de Jaeger.

§ 75. A crítica a Platão repete-se multas vezes na M~1~, I, cap. 9;


VII, cap. 13; 14 e 15; XH1, cap. 4 e 5; XIV, cap. 1 o 2. A
forma maIs organizada da crítica é a expoeta no livro XII ;
CHERNISS, Ari8totWs Criti~ of Plato and the Aca-demy, John
HopkIns Univ. Preas, 1944.

§ 76. A doutrina das quatro causas está na Met.,


1, 3, 983 a, e na Fís., 11, 3, 194 b.

§ 77. A potência e ao acto dedica Aristóteles todo o livro EK da,


Met., no qual se fundamentou a exposição do texto. J. OWENS,
The Doctrine of Being in the Aristotelian Metaphysic8, Torontoi
1951.
§ 78. Sobre a substância imóvel, veja-se Met., Xil, 8, 1072 a segs. e
Fís., VUT, 5, 256 b, 20. A doutrina das outras inteligências
motrizes está no cap. 8 do mesmo livro XII. H. VON ARNIM Die
Entstehung der Gotte%1ehre des Aristotele, Viena, 1931.

§ 79- Sobre a física aristotélica: MANSION, Introduction à Ia


physique aristotélicienne, Lovaina, 1913; M. RANQUAT, Aristote
naturaliste, Paris, 1932; J. DE TONQUÉDEC, Qu_-stion-s de
cosmologie e de physique chez Aristote et St. Thomas, Paris, 1950.
Uma tentativa para determinar a sucessão cronológica dos escritos
recolhidos na Física foi feito por RUNNER, The Develo~nt of Ari-
stotIe i11ustrated from the earliest books of the Physics,
Kanipden, 1951. A ordem seria esta: livro VI (composto cerca de
361); livro I e parte do II, livro V e VI entre os anos 346 e 337.

§ SO. Sobre a psicologia: C. W. SHUTE, The Psychology of


Aristotle, Nova lorque, 1947.

§ 81. Sobre a ética: H. VON ARNIM, Die drei Aristotelischen


Ethiken, Viena, 1924, e Eudemische Ethik und Metaphysik, Viena,
1928; WALzER, Magna Moralia und Aristotelische Ethik, Berlim,
1929; HAmBURGER, MoTaIs and Law: the Growth of ArístotWs
Lega Theory, New Haven, 1951; J. A. THOMSOM, The Ethics Of
Arístotle, Londres, 1953.

§ 82. Sobre a politica: BARKER, Political Thought Of Plato and


Aristotle, Londres, 1906; H. VON ARNIM, Zur
Entstehungsge,,,chichte der aristotelischen Politik, Viena, 1954.

§ 83. Sobre a retórica: ZELLER, 11, 2, p. 754 segs.; GOMPERZ,


IIII, cap. 36-38.

§ 84. Sobre a poética: A. Rostagni, La poetica XAristotele, Turini,


1927; S. H. BUTC=, AristotIeIs

313

Theory of Poetry and Fine Art8, Nova Iorque, 1955; GMALD E. IM


, Arl[8tOtW8 P00~ The ArPUM~, Leiden, 1957.

§ 86. Tradução Italiana de Organon, com introdução e notas de G.


001", Turim, 1955.-P~L, Ge8hichte der Log., I, p. 87 segs.; C~EDO,
I jundamenti deUa Logica ari8totelica, Florença; " BLOND, Logique
et méthode cheo A~ote, Paria, 1939; C. A. VIANo, La logica di
Aristot^ Turim, 1955.-Para uma valoração da lógica aristotélica do
ponto de vista da lógica contemporânea: J. LUXASIEWICS,
ArtatotWa Syllogiatic fr<"n the Standpoint o/ Modem Pormal
Logio, 2.1 ed., Oxford, 1957; W. KNEALE-M. KN~, The Devel~ent
of Logic, Oxford, 1962, p 23-112
314

INDICE

PRE)FACIO DA PRIMEIRA EDIÇAO ... ... 7 PRMFACIO DA


SEGUNDA EDIÇAO ... ... 15

PRDdEIRA PARIT,

FILOSOFIA ANTIGA

I-ORIGMN8 E CARACTER DA F11,0SO-

F7A GREGA .. . ... ... ... ... ... 19 II-A ESCOLA MNICA ...
... ... ... ... 35 M-A ESOOLA PITAGORICA
... ... ... 53 rV_A ESOOLA ELEATICA ... ... ... ... 63
V-OS FISICOS POSTERIORES ... ... ... 81 VI - A
SOFISTICA. ... ... ... ... ... ... 97 VII - SWRATES ...
... ... ... ... ... ... 115 VM -AS ESCOLAS SOCRATICAS
... ... ... 133

IX - PLATA0 ... ... ... ... ... ... ... 147 X -A ANTIGA
ACADE3 . ... ... ... ... 225 )CI - ARISTÓTELES ...
... ... ... ... ... 233

Este livro acabou de se imprimir em Julho de 1976

para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA.

na

Empresa Gráfica Feirense, L.da

Vila da Feira Tiragem 3 000 exemplares

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