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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Diego Faust Ramos

A Mensuração de Tempo dos Índios


Kamaiurá

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para
obtenção do diploma de Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Santa Catarina.

Rafael José de Menezes Bastos

Florianópolis, março de 2007


Nota introdutória

Para chegar até a Terra Indígena do Xingu o “caminho” comumente utilizado


começa na cidade de Canarana1, MT. A cidade, no que se refere aos indígenas, é
utilizada de várias maneiras. Ela pode servir de entreposto para uma viagem mais longa,
a Brasília ou Goiânia, por exemplo; serve também de posto de abastecimento dos mais
variados bens da sociedade ocidental utilizados na terra indígena; para divertimento ou
passeio, quando existe algum dinheiro sobrando para isso2; inúmeras vezes para
atendimento médico que não pode ser realizado no Posto de Saúde do Posto Indígena
Leonardo Villas Bôas; entre outras necessidades menos freqüentes.

1
A polarização de Canarana acontece mesmo estando boa parte do alto-Xingu dentro da área do
município de Gaúcha do Norte. Durante o tempo em que estive na área apenas duas vezes houve ocasiões
de relação direta com este município: uma vez os kamaiurá foram até a cidade participar de um
campeonato de futebol organizado pela prefeitura e outra uma funcionária da Secretária de Educação veio
até a aldeia para continuar desenvolvendo o projeto da escola da aldeia, mantida pelo município.
2
Principalmente os mais jovens, conforme tese de mestrado que pude ler na aldeia Kamaiurá, intitulada
“Os jovens KamaiuráKamaiurá no séc. XXI”, de autoria de Vaneska Taciana Vitti.

2
Figura 1: mapa da região do Alto Xingu3

Para se sair de Canarana e entrar na Terra Indígena existem duas possibilidades.


A mais utilizada, sempre que não é necessária a locomoção rápida ou que não se trate da
viagem de alguma autoridade, é através de estradas até a beira do rio Culuene e depois
por meio de barco motorizado (voadeira). Quando é necessária a locomoção de algum
paciente, autoridade ou pessoa que possa pagar R$1.500,00, um avião monomotor é
usado. Eu optei pela forma mais usual e barata.
No entanto, antes de poder viajar eu precisava encontrar alguém que estivesse
indo para a área indígena, tendo em vista a indisponibilidade de barco e a minha
inabilidade para pilotar o mesmo. Para minha sorte cheguei à cidade no sábado dia 30
de Setembro de 2006, antes do dia do primeiro turno das eleições daquele ano. A
quantidade de índios que estava na cidade para votar foi impressionante para mim que

3
A seta indica aproximadamente onde está a aldeia kamaiurá na qual residi. Mapa retirado de
http://www.socioambiental.org em 09 de Março de 2007.

3
não sabia que eles votavam com tanto afinco4. No hotel em que estava hospedado, por
exemplo, eu era o único hóspede branco em um hotel lotado. Logo que fui ao “Centro
de Cultura”5, também lotado de hóspedes, consegui, através da administradora do
Centro, uma carona com um branco que se chama Mané e que mora na Terra Indígena
há mais de 20 anos, nas proximidades da extinta Base do Jacaré. Para viajarmos
tínhamos que encontrar o Chico, filho mais novo de Takumã, pajé da aldeia Kamaiurá,
que estava na cidade, pois precisava vender sua máquina fotográfica digital e queria
voltar para a aldeia também. Depois de todos contatados, conseguimos deixar tudo
pronto para fazer a viagem na terça-feira, 3 de Outubro. Saímos de Canarana no dia
planejado, com algumas horas de atraso. Fizemos a viagem da cidade até a beira do rio
em 3 horas, chegando lá às 17 horas. Logo que carregamos o barco, partimos pelo
Culuene em direção ao ribeirão Tuatuari. Chegamos ao Posto Indígena Leonardo, à
beira do ribeirão, às 2 horas da madrugada de uma noite de lua cheia.
Por causa de nosso atraso, nossa carona (o trator dos Kamaiurá) já tinha ido
embora e pernoitamos sob as mangueiras do Posto Leonardo. Ao acordar, ás 06h30min,
Chico já havia preparado o café na fogueira acesa na noite anterior. Eu, sentado na rede
tomando café, olhando, da elevação na qual se encontra o Posto Leonardo, o horizonte,
que tinha imediatamente sobre si o sol, acabado de nascer, pensei que poderia começar a
minha busca pelo “sistema de mensuração de tempo dos índios kamaiurá”. Nesse
ímpeto perguntei a Chico6 como se falava, em Kamaiurá, a hora em que estávamos
naquele momento. Ele me respondeu: iawyeté, “quando o sol já apareceu”7.

4
Conversei com alguns índios sobre o ato de votar, na cidade e na aldeia, considerando que também foi
colocada uma urna no Posto Indígena Leonardo tanto no primeiro quanto no segundo turno. A maioria me
disse que votar era importante porque eles podiam escolher quem achavam melhor e quem ia ajudar mais
a eles, ou quem teria mais possibilidade de lhes dar mais, porém quase ninguém sabia o nome do
candidato em que ia votar. Exceção de alguns indivíduos em relação ao voto a governador para o estado
do MT, Blairo Maggi, reeleito no primeiro turno. Todos votavam com uma “cola”, muitas vezes uma
tabela de computador impressa, xerocada e preenchida a mão. Ao serem questionados sobre em quem
iriam votar entregavam-me esta “cola”, que não continha nem o nome do candidato.
5
É um centro de apoio mantido pela FUNAI que pode ser utilizado como dormitório, possui banheiros,
uma estação de rádio amador para comunicação com a área, cozinha, escritório, etc.
6
Chico foi um de meus principais informantes, juntamente com seu irmão mais velho, Kotok, e seu pai,
Takumã. Takumã é o pajé da aldeia, e é ainda reconhecido como cacique, cargo ocupado, na prática, por
Kotok. Takumã tem mais de 85 anos de idade, Kotok está por volta dos 40 e Chico tem 26 anos. Como
residi na casa de Kotok tive também muito contato com todos os seus filhos. É importante salientar que
com Kotok sendo cacique da aldeia eu tinha possibilidades de ser inserido rapidamente em vários meios,
fato que ocorreu diversas vezes tanto na aldeia quanto no Posto Leonardo.
7
Escreverei em Kamaiurá do modo como é feito na escola da aldeia. O estudo que possibilitou a
construção dessa grafia foi coordenado pela Profa. Luci Seki (que escreveu também uma gramática da
língua Kamaiurá (2000)), e subsidiado pelo ISA. As glosas que apresentarei entre aspas após as palavras
em Kamaiurá, sublinhadas, foram feitas pelos índios. No caso de alguma exceção está será frisada.

4
Introdução

Meu projeto de pesquisa para este Trabalho de Conclusão de Curso era


denominado “Um estudo antropológico sobre o sistema de mensuração de tempo dos
índios Kamaiurá”. Como acontece sempre, principalmente se não temos a oportunidade
de realizar um estudo pré-campo para a elaboração do projeto, quando nos deparamos
com a realidade que escolhemos estudar acabamos por perceber que mesmo não
querendo, mesmo fazendo um esforço para que isso não aconteça, pré-concebemos
diversos aspectos da realidade que queremos conhecer. Meu objetivo era, como se
depreende do título de meu projeto, destrinchar o sistema de mensuração de tempo dos
índios kamaiurá. Desenvolvi este TCC durante o tempo que fui bolsista do projeto
integrado de pesquisa (CNPq) coordenado pelo meu orientador, Rafael José de Menezes
Bastos, denominado "Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe"8.
Escolhi o verbo “mensurar” para caracterizar a relação dos kamaiurá com seu
tempo ao invés de “medir” por algumas razões, a maioria delas de ordem semântica
mesmo. Razões estas que, posteriormente, vieram a se mostrar contundentes nas minhas
observações entre os Kamaiurá. O primeiro ponto que abordo relaciona-se às nuances
de significado que cada palavra tem. Pesquisando o dicionário (Houais, 2001),
encontramos no verbete medir, diversos significados possíveis, todos relacionados com
o aspecto de precisão e avaliação que carrega a palavra. Alguns exemplos: determinar,
avaliar por meio de utensílio de medida; avaliar aproximadamente, calcular;
determinar, julgar a importância de (algo) comparando com outra coisa; etc. Ao
contrário, ao olharmos o verbete “mensurar”, encontramos apenas dois significados
possíveis, a saber: i). determinar as dimensões de, ou ter por medida; ii) dar ritmo lento
e cadenciado a, compassar. As nuanças às quais me referi podem se mostrar suaves
para nós, mas são bastante contundentes para quem se interessa pelo estudo do tempo na
sociedade Kamaiurá. No primeiro significado de medir encontramos a frase “por meio
de utensílio de medida”. Existe diferença entre um utensílio utilizado para medir alguma
coisa e um “utensílio de medida”. Este pressupõe a existência de um padrão utilizado
8
É a este projeto integrado que se vincula a minha bolsa de IC. Em relação ao financiamento da minha
pesquisa, ela faz parte de outro projeto igualmente coordenado por meu orientador, a saber, "Estudos
Antropológicos e Etnológicos no Brasil e na Argentina", relativo ao "Edital CNPq 19/2004 - Universal".

5
universalmente9 para medir aquilo a que se propõe, o que não ocorre com o primeiro
caso. Podemos utilizar “um instrumento para medir alguma coisa”, sem que seja preciso
trazer à baila um padrão de medição. Podemos utilizar uma caneta, por exemplo, para
saber o tamanho de um caderno, ou um pedaço de madeira para saber o tamanho de um
terreno. Quando penso sobre esse segundo jeito de “medir”, de mensurar, me ocorre
que o que estamos fazendo, e fazemos isso sem perceber em nosso cotidiano, é
“determinar as dimensões de, ou ter por medida” alguma coisa a partir da comparação
desta com alguma outra coisa.
Para meu tema de estudo o segundo significado da palavra – mensurar - - é mais
interessante e suscita maiores reflexões. Cadenciar, compassar. Não uma ação que visa
imprimir algum movimento ou ritmo a alguma coisa, mas sim como um modo como
identificamos e organizamos os ciclos que nossa cultura nos faz perceber. Na sociedade
ocidental, pelo seu modo de organização, utilizamos rotineiramente o relógio para medir
o tempo, a agenda para não o perder, a internet, o carro, o telefone, para não sermos por
ele atropelados. O sistema de segundos, minutos, horas, dias, semanas, etc., é bastante
próprio do ocidente e só funciona da maneira como o faz por causa da sua grande
capacidade tecnológica. Todos estes instrumentos nos habilitam a ter uma relação
exclusiva com o tempo. Os kamaiurá, por só muito recentemente terem tido contato
com alguns desses instrumentos para medir o tempo (ocidental)10, se relacionam com o
tempo (kamaiurá) de uma forma essencialmente diferente. As referências que utilizam
como base para isto são primordialmente aquelas que estão à sua volta. A posição do
sol, as estrelas, a lua, as cigarras, besouros e mais uma infinidade de acontecimentos.
Para entendermos melhor as diferenças a que estão sujeitos os ocidentais e os
Kamaiurá no que se refere à forma com que eles se relacionam com o tempo, farei uma
breve exposição sobre o sistema de medida ocidental e como algumas definições foram
se alterando com o tempo11. É importante destacar que ainda hoje a sociedade ocidental
utiliza diversos padrões de medidas para uma mesma grandeza. Citando como exemplo
apenas alguns referentes à medição de distâncias, temos a milha, a jarda, o quilômetro,

9
Universalmente no sentido de que ao nos referirmos ao peso, utilizamos quilos, gramas, etc.; à energia,
utilizamos caloria, joule, etc.; à distância, metros, kilômetros, etc., e assim por diante.
10
Ressalto este aspecto do contato com os instrumentos ocidentais de medição do tempo pois, como
veremos no decorrer do texto, estes acabam por exercer influência sobre os kamaiurá, principalmente as
gerações mais novas.
11
Para esta exposição utilizei como fonte Landes (1983), Eves (2004), e sites de institutos que estão
listados na bibliografia deste trabalho.

6
o pé, etc. A primeira tentativa de universalização dos padrões de medida12 aconteceu na
França, no ano de 1799. O sistema ali criado está em pleno uso nos nossos dias
paralelamente ao uso de outros mais antigos e regionais em todos os continentes. Esse
sistema foi chamado de sistema métrico decimal, sua principal “vantagem” é a de
estabelecer uma relação clara e simples entre todas as unidades de medidas das diversas
grandezas. A referência inicial do sistema foi a medida de comprimento chamada metro,
inspirada na braça inglesa, que correspondia ao comprimento que alcança as mãos de
um homem com os seus dois braços abertos, mais ou menos 1,8 metros, e bastante
adequada para medir distâncias de deslocamentos humanos sobre a superfície da terra. A
partir dessa medida chegou-se, por derivação, a todas as outras, tais como as do peso
por exemplo. Explicando, 1kg, a partir deste sistema, é quanto pesa a quantidade de
água que, à temperatura de 4 graus centígrados, pode ser armazenada em um recipiente
de 10 centímetros cúbicos. Dez centímetros, por sua vez, significam a décima parte de
um metro. E o que significa um metro? Na época em que foi criado, o metro era
definido como a décima milionésima parte da quarta parte do comprimento do
meridiano que passa sobre Paris. Mais tarde, no ano de 1983, por ocasião da 17ª
Conferência Geral de Pesos e Medidas, após o advento de novas tecnologias, o metro
foi definido como a distância percorrida pela luz em certo intervalo de tempo.
Os sistemas de medida ocidentais seguem todos o mesmo padrão, identificam
uma unidade básica a partir da qual, através de sobreposições e divisões, se é possível
chegar a qualquer outra unidade do sistema. Todo o desafio dos cientistas que se
debateram com as questões dos sistemas de medida era o de criar essa unidade básica
que permitiria estabelecer a rede de relações entre as diversas unidades, de modo que o
resultado de uma medição pudesse vir a ser expresso em qualquer uma das medidas do
sistema. Isso é o que significa padronizar as medidas. Para diversas dessas questões,
apenas a tecnologia ofereceu respostas satisfatórias. Algumas vezes, como percebemos
no caso do metro, foi necessário que antes se criassem padrões que por sua vez
serviriam como novos padrões para outras medidas. Afinal, dizer que um metro é a
distância percorrida pela luz em certo intervalo de tempo, faz com que a nossa medida
de distância exista apenas a partir de nosso sistema de medida de tempo.

12
É preciso deixar claro que o que chamo de “primeira tentativa” é já resultado de um processo no qual
estão envolvidos diversos fatores. Para citar alguns: o desenvolvimento dos estado-nações e a necessidade
da aplicação “imparcial” de impostos, leis, etc.; o desenvolvimento do capitalismo e a criação da jornada
de trabalho; etc.

7
É importante salientar que o tempo, aquele sentido pelos sujeitos, construído
socialmente, não se define a partir do modo como medimos esse tempo. No entanto,
esse modo singular de medir o tempo criado pela sociedade ocidental, me refiro tanto ao
próprio sistema de medida quanto aos aparatos criados para medir o tempo,
possibilitaram13 que a maneira como os ocidentais se relacionam com o tempo
assumisse características bastante peculiares. No livro “Revolution in Time, clocks and
the making of the modern world” (LANDES, 1983)14 o autor destaca que o
desenvolvimento do processo de “individualização do tempo” está muito imbricado
com o desenvolvimento dos relógios. Vale a pena desenvolver brevemente está idéia.
A pergunta inicial, da qual parte o autor para abordar este tema, diz respeito à
necessidade da criação do relógio. Antes, é necessário responder à pergunta: “a
necessidade de medir o tempo criou o relógio ou a possibilidade de medir o tempo criou
a necessidade?”. Sem argumentar porque, o autor acredita que a necessidade foi a força
motriz do processo. Essa necessidade, segundo ele, tem relação com a religião católica,
principalmente com o seu braço romano. No século III, aproximadamente, a igreja
católica como instituição ainda não existia como instituição, era apenas uma religião
nascendo e ainda em processo de diferenciação em relação ao judaísmo. A necessidade,
segundo Landes (1983), nasceu por causa dos horários em que os fiéis deveriam praticar
suas preces. Tanto no judaísmo quanto no islamismo não se tem especificado um
horário para a realização das preces diárias. Têm-se que rezar tantas vezes por dia, cada
uma dessas vezes em certo intervalo (de manhã, à tarde, à noite, por exemplo) ou
mesmo em intervalos mais curtos (logo após o nascer do sol, de manhã, logo após o
meio-dia, durante a tarde, logo após o por do sol, à noite). De qualquer forma, não se
define um ponto nesses intervalos onde as preces devam ser proferidas. É apenas algum
tempo após o surgimento da religião católica, que são definidos os horários para os
cultos.

13
Utilizo a palavra possibilitaram porque outras sociedades tiveram contato com o sistema ocidental de
medir o tempo e seus aparatos no momento em que eles estavam sendo criados na Europa e mesmo assim
apenas passaram a utilizar o relógio e a conceber o tempo como os ocidentais após a expansão
globalizante no planeta. Os Chineses, por exemplo, que já haviam construído aparatos que mediam o
tempo 5 ou 6 séculos antes dos europeus, mas que tinham, na verdade, como objetivo principal,
representar os movimentos dos astros, ao entrarem em contato com os relógios feitos na Europa ficaram
maravilhados, porém o consideraram mais como um brinquedo, algo sem valor comparado a
complexidade de seus próprios aparatos para representar e prever os movimentos astrais (LANDES,
1983)..
14
LANDES, David S. Revolution in Time: Clocks and the making of the modern world.Inglaterra,
1983.Harvard University Press.

8
Nesse momento ainda não podemos falar em “individualização do tempo”.
Assim como no caso chinês, onde os “astrônomos” através do poder e conhecimento
concedidos a eles pelo imperador, com suas observações e após grandes debates,
definiam o ritmo cerimonial que era responsável, como em diversos casos relatados na
antropologia recente, pelos marcos que possibilitavam a estruturação de um calendário.
Aqui os horários em que os cultos deveriam acontecer (não mais intervalos) ainda não
eram marcados pelo cuco na parede, mas sim pelo badalar dos sinos da igreja. Esse
processo de individualização do tempo acentuou-se quando da ascensão das igrejas
protestantes. Essa relação se assenta em algumas das idéias de dois clássicos da
literatura sociológica. Em ”As conseqüências da modernidade” Giddens (1991) 15 coloca
como uma das características do surgimento da modernidade, o surgimento da venda da
“força de trabalho” e concomitantemente, da jornada de trabalho. Em “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”, Weber relaciona magistralmente a ideologia das
religiões protestantes e as características básicas do capitalismo, entre elas a venda da
força de trabalho. Talvez as relações entre as argumentações das duas obras já se “auto-
expliquem”, tendo em vista que uma é o espelho da outra e é somente com o advento da
modernidade que a “individualização do tempo” se concretiza. De qualquer forma um
resumo será didático.
Lembrando de volta as idéias de Landes (1983), quando este afirma ter sido a
igreja católica a primeira a criar a necessidade para a “medição do tempo” devido aos
horários dos cultos. Acrescentando ainda as religiões protestantes, que se diferenciavam
da católica apostólica romana, entre outras coisas, pela individualização das preces por
causa da não necessidade de um mediador entre os sujeitos e “Deus” e da relação desta
com a ascensão do capitalismo. , Cconclui-se, no que diz respeito ao meu estudo, que
estes fatos acarretam uma mudança de marcos temporais instituídos antes
exteriormente, e que agora o são internamente, pelo próprio sujeito 16. O processo de
“individualização do tempo” ao qual Landes(ibid.) se refere, foi brevemente explanado
aqui, com algumas comparações feitas por mim.

15
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNEPS, 1991.

16
Se quisermos pensar em outra esfera, veremos que o marco antes também era inferido internamente,
apesar da “camuflagem” com que se apresentava. Ao ouvir o sino da igreja sabia-se que era tal horário,
mas importante mesmo era o sino da igreja importar, de ele ao soar mobilizar os fiéis. De qualquer forma,
existe uma diferença entre quando se precisa estar sob vigília para se saber as horas e quando ela se
anuncia pelos ares.

9
O fato de a relação dos kamaiurá com o tempo ser baseada nas referências
anteriormente citadas introduz certas características nessa relação, que se estendem ao
modo como os kamaiurá pensam e se referem sobre o tempo. O calendário dos
kamaiurá talvez seja um dos melhores exemplos de como uma relação com o tempo
baseada em certas referências produz reflexos na organização e na expressão do sentido
da relação. Os kamaiurá, não porque não têm planos e compromissos, mas porque
apenas, e tão somente, o fazem diferente dos ocidentais, sentem o tempo passar a cada
momento em que este se faz presente. Sabem que está na hora quando a hora chega,
quando ela se anuncia. O que isto significa, apenas no final deste trabalho pretendo ter
esclarecido.
Os meses, dias, anos, minutos e segundos, são todos termos de um sistema
baseado em certas referências que, de certa forma17, só podem ser sensíveis através de
instrumentos muito sofisticados, com os quais apenas pouquíssimos indivíduos têm
contato. Esse mesmo sistema, levando em consideração seu aspecto teórico/estrutural,
foi objeto de inúmeras discussões filosóficas, de inúmeros trabalhos científicos, em
todas as áreas existentes da Ciência. Foi sendo lapidado como sistema, e ainda o é, para
ser “vivido” pelos indivíduos nos seus dia-a-dia. No entanto, no dia-a-dia todas as
discussões filosóficas ficam para trás. Os trabalhos e teorizações bases do sistema não
existem além daquilo que ele nos mostra obviamente, as horas. As nossas referências
para “sentir o tempo” não são as referências nas quais o sistema está baseado, são sim
os instrumentos criados que têm exatamente por finalidade servir como referência (o
relógio). Esta possibilidade de “alienação” de nossas referências temporais é viável
porque temos outro ponto de apoio, um que não necessita de referências além daquela
sobre a qual está montada, o tique-taque. A criação dessa referência é fruto de uma
padronização que tem como conseqüência a criação de uma escala e de um sistema de
medidas baseado no tique-taque, a unidade básica que multiplicada ou dividida dá conta
de se tornar tudo que precisamos para medir o nosso tempo no mundo.
Concluindo esta introdução, depois de discorrer sobre o termo “mensurar”, vejo
agora que, ao contrário de “medir o tempo”, de fato, o que os kamaiurá fazem é
“mensurar o tempo”. Se no decorrer do texto eu conseguir mostrar porque digo que os
kamaiurá mensuram o e como eles fazem isso, além de esclarecer quais são as

17
O segundo, por exemplo, é atualmente definido como “9.192.631.770 períodos de radiação” de um
elétron, de certa camada, de um átomo de Césio 133. A duração dos anos, sendo a rotação da terra
irregular, tem de ser corrigida sempre, e para isso são necessários instrumentos que apenas muito
recentemente a cultura ocidental foi capaz de construir.

10
diferenças entre o sistema de mensuração de tempo kamaiurá e o sistema ocidental, os
objetivos deste trabalho estarão alcançados.
Os objetivos secundários de meu projeto de TCC foram: um estudo preliminar
da aritmética, da geometria e da língua Kamaiurá. Destes, apenas dois puderam ser
efetuados a contento, a saber, o da língua e o da aritmética Kamaiurá. O da geometria
kamaiurá não pôde ser levado a cabo por razões que serão explanadas posteriormente.
Não existem condições de se estudar como os kamaiurá mensuram o tempo sem antes,
ou durante, estudar sua língua. Os termos do sistema 18 de mensuração de tempo
kamaiurá não são, ao contrário dos do ocidental, os mesmos do sistema aritmético
kamaiurá. De pouco serve saber contar em kamaiurá para saber mensurar o tempo em
kamaiurá. Cada termo do sistema de mensuração de tempo dos kamaiurá tem um
significado que não se refere ao fracionamento de um período em períodos menores. Ele
não se baseia na repetição de uma unidade (de tempo ou de qualquer outra dimensão),
operável através de somas, subtrações, multiplicações, divisões, etc.. Cada termo do
sistema kamaiurá tem um significado relacionado com algo de específico de
determinado período. Sem conhecer estes significados e os períodos em si, não
conhecemos como os kamaiurá pensam seu tempo.
A seguir apresento a “temática” de meu trabalho, introduzindo algumas
informações sobre o Alto Xingu e os kamaiurá – como chegaram na região, um pouco
de suas relações com seus vizinhos, etc. – também algo sobre a criação da Terra
Indígena do Xingu.. Este TCC está dividido em três partes: a primeira começa na “Nota
Introdutória” e se estende até a “Temática”; a segunda seria “A mensuração de tempo
kamaiurá” e “A aritmética kamaiurá”; a terceira sendo minhas “Considerações finais”.

Temática – Os Kamaiurá e o Alto Xingu

O termo Alto Xingu é utilizado para referir-se à região que tem os seguintes
marcos geográficos: ao norte a cachoeira Von Martius, ao sul o planalto Matogrossense,
a oeste a serra Formosa e a leste a serra do Roncador (Seki, 2000). Na Terra Indígena do
Xingu, área atualmente com 2.642.003 hectares, vivem 14 etnias. Dez delas formam
18
Contrariando o parágrafo anterior eu continuo a falar em sistema de mensuração de tempo kamaiurá.
Faço isso, e continuarei fazendo-o, por duas razões. A primeira é que, já tendo dito que o sistema
kamaiurá de mensuração do tempo não é propriamente um sistema, ainda falta que eu explique as razões
de tal discrepância, de modo que continuarei falando em sistema até que as razões estejam claras.
Segundo que me falta um termo melhor que caracterize tudo aquilo a que se refere ao universo da relação
dos kamaiurá com o seu tempo.

11
aquilo que é conhecido como a sociedade xinguana: wauja, mehináco e yawalapití do
tronco aruak, kalapálo, kuikúro, matipú e nahukwá (karib), kamaiurá e aweti (tupi)
trumai, de língua isolada .Todos estes grupos se situam na porção sul do parque,
restando a porção norte para os ikpeng (karib); suyá (jê); kaiabi (tupi-guarani); e os
yudja, da família juruna, tronco tupi.
Pelas características geográficas da área, o acesso à mesma, durante os primeiros
séculos da colonização portuguesa no Brasil, por habitantes não nativos do novo
continente, deu-se de maneira esporádica. Esse isolamento relativo possibilitou que as
etnias ali residentes interagissem, até o séc. XVIII, sem que brancos mediassem suas
relações.
Foi por essa razão (o “isolamento” da área em relação aos brancos que
transitavam pelo continente), no que concerne aos pesquisadores, que décadas mais
tarde o interesse pela área foi tão grande. Quando Steinen visita pela primeira vez o Alto
Xingu, em 1884, entra em contato com 9 etnias, espalhadas por um número bem maior
de aldeias, ouve também relatos da existência de outras tantas etnias. Isto não é
surpreendente, pois o continente era densamente povoado, mesmo na época de Steinen.
O que chama a atenção do naturalista é o fato de todas essas etnias apresentarem traços
culturais semelhantes. Relata também ter encontrado, por toda as aldeias em que
passava, visitantes de uma ou mais etnias.
Esta impressão de Steinen, a de que existia ali uma cultura homogênea, da qual
as tribos que viviam nas cabeceiras dos afluentes do Xingu participavam, foi não apenas
corroborada mas muitas vezes superestimada. Dole, no artigo “Retrospectiva da história
comparativa das culturas do Alto Xingu: um esboço das origens culturais Alto
Xinguanas”, que se encontra no livro Os Povos do Alto (Francheto e Heckenberger
(org.), 2001), , nos dá uma lista dos mais eminentes antropólogos que escreveram sobre
a área tomando “características comuns como definidores de uma cultura única e
relativamente homogênea” (Dole, 2001. pp. 65). O mais eminente deles sendo,
provavelmente, Galvão (Galvão, 1979), responsável pelos primeiros estudos que irão
caracterizar o Alto Xingu como área cultural (a área do uluri).
“Uma sociedade, para ter existência, precisa de dispor de um ou mais sistemas
de comunicação que tornem viável o estabelecimento de relações entre seus membros”
(Menezes Bastos, 1978. pp. 30). Como já foi dito, as tribos xinguanas falam, cada uma,
sua própria língua. Inexiste na área língua franca. Tampouco existe ali multilingüismo

12
aberto19, isto é, diversos indivíduos entendem outras línguas que não a sua, mas não as
utilizam. A comunicação, portanto, entre os membros da sociedade xinguana, se dá de
maneira não verbal, ao menos não da maneira como nos acostumamos a lidar com ela.
Três são os canais de comunicação existentes entre os xinguanos. Um primeiro é
a troca matrimonial. O casamento de pessoas de tribos diferentes tanto cria alianças
entre essas tribos, como entre seus grupos/facções. As implicações dessas alianças
podendo ser tanto inter quanto intratribais. Aqui podemos também encontrar uma das
razões para um multilingüismo incipiente.
Na sociedade xinguana, a alteridade tem um papel tão importante quanto as
semelhanças. Os antropólogos e a sociedade ocidental em geral, têm-se preocupado
tanto com as semelhanças dos grupos formadores de tal sociedade exatamente pelo fato
de não haver uma língua que possibilite a comunicação “plena” (mais um de nossos
preconceitos) entre seus membros. Porém, para os xinguanos, aquilo que está em jogo
são as especificidades, estando sua língua, única, no ponto fulcral dessa diferenciação.
Por isso me referi ao multilingüismo ali existente como incipiente e não-aberto.
Diversos indivíduos entendem outras línguas. Os filhos de um casal cujos pais são um
de cada tribo falarão a língua da aldeia onde o casal for morar. Porém, o indivíduo que
se mudou de aldeia, poderá conversar com seus filhos em sua língua materna, estes
podendo lhe responder na mesma (Franchetto, 2001). Esta é apenas uma das razões pela
qual encontramos indivíduos que entendem duas ou mais línguas xinguanas, porém
falam apenas a sua.
O segundo canal de comunicação é o comercial. Aqui, duas são as possibilidades
de troca, uma envolvendo várias pessoas e sendo cerimonializada, outra que acontece
entre indivíduos e sem a mesma carga simbólica. Na primeira, os produtos trocados são
emblemáticos das tribos, tachos de cerâmica produzidos com maestria pelos wauja, são
trocados por redes, especialidade de outra tribo, por exemplo. Este tipo de troca era
muito mais importante no passado, antes de a área ser ”invadida” por uma imensa
quantidade de produtos ocidentais. O comércio individual envolve uma gama
variadíssima de produtos.

19
Com “multilingüismo aberto” me refiro ao fato de que no Alto Xingu a língua falada por cada etnia é
considerada característica essencial sua. Um indivíduo que não fale perfeitamente uma língua, nunca a
utiliza, mesmo sendo fluente no seu entendimento. Outro exemplo da grande importância dada à língua
nos é dado em Menezes Bastos (1989, p. 526). Ele, querendo saber por que esse indivíduo fala tão
diferente daquele outro, recebe a seguinte resposta: “aquele homem (evitando-lhe o nome), língua dele
não é kamaiurá não. Quer dizer, é kamaiurá mas não é não, assim, de verdade. Ele é neto de Arupaci,
outro tribo, antigo, que vem matar nós. Língua dele, assim, não é bom não”.

13
O terceiro e último canal de comunicação é o ritual. Existe na área um repertório
de ritos intertribais, sendo os mais estudados o Kwaryp e o Yawari. Citando Menezes
Bastos: “... o cerimonial, (é) não só o mais vigoroso atestado da identidade xinguana,
como, também, e relevantemente, a condição sine qua non da sua própria vigência...”
(1978. pp. 30). Adiante, terei oportunidades de me aprofundar neste tema e explicar, de
maneira breve, porque o ritual é esse espaço tão privilegiado na vida social xinguana.
Tratarei a história da sociedade xinguana focando na situação kamaiurá. Os
povos pró-kamaiurá (aqueles que vieram a formar o grupo que conhecemos hoje como
kamaiurá), falantes de língua tupi, com exceção talvez, dos aweti (Rodrigues, 1986)
começaram a chegar na área por volta do séc. XVIII (Menezes Bastos, 1989).
Migravam, a partir do norte, de duas macro-regiões diferentes, os interflúvios Araguaia-
Xingu e Tapajós-Xingu (ibid: 528), tendo cada qual suas razões para tanto. Os migrantes
da primeira região, tudo indica, tiveram seu deslocamento desencadeado pelos
“caraíbas” comedores de boi. Menezes Bastos relaciona este fato com a expansão
pecuária em Goiás (ibid: 530). Assim, ao contrário do que é normalmente referido, a
fuga dos pró-kamaiurá oriundos do interflúvio Araguaia-Xingu deu-se mais por desterro
que pelas expedições de escravização, caso da segunda macro-região de origem de
migração. Os pró-kamaiurá provenientes desta tiveram seu deslocamento ocasionado
por enfrentamentos diretos, tanto com outras etnias indígenas quanto com os “caraíbas”
escravizadores. Com outras etnias como os juruna e tonorý (os txikão ou ikpeng), a
disputa se dava em torno da terra, estes também fugindo dos “caraíbas”, responsáveis
por uma depopulação gigantesca.
Quando os pró-kamaiurá alcançaram a região do Alto Xingu, encontravam-se
extremamente fragilizados pela imensa depopulação, por esta razão sua estratégia se
embasava na política de alianças com os povos que encontraram na área. E que povos
eram estes? Como estavam organizados? Que relações mantinham entre si?
Escavações arqueológicas, e estudos sobre as migrações dos aruak apontam para
a chegada destes na área entre 800 e 900 d.C. (Heckenberger, 2001: p. 38). Estes
primeiros povos apresentavam um padrão composto por três dimensões: sedentarismo,
hierarquia interna, integração regional. Esse padrão teria se perpetuado, mesmo que
sofrendo mudanças, dos tempos pré-históricos até hoje. Porém, o que era antes um
padrão referente a populações descendentes de um mesmo substrato cultural, tornou-se
o padrão de grupos inicialmente bastante distintos, que continuam sendo, mesmo após a
adoção deste padrão. Uma das mudanças no padrão de assentamento, coloca

14
Heckenberger (2001), ocorreu por volta de 1400. Então, quando, ainda, apenas grupos
aruak habitavam a área, pode-se observar o surgimento de enormes estruturas que
serviriam para a defesa contra os “índios bravos”. As estruturas mais eminentes eram
valetas que chegavam a medir 15m de largura, 2,5km de comprimento e até 3m de
altura. Também são documentados enormes aterros que aumentavam gradativamente
sua altura conforme fosse se aproximando do centro das praças das aldeias, bem como
enormes caminhos, verdadeiras estradas, que ligavam aldeias a outras aldeias, e também
a rios e roças.
A instalação dos primeiros grupos karib na área deu-se, mais ou menos, cem
anos após o aparecimento dessas grandes estruturas de defesa, ou seja, entre 1500 e
1600. Estes povos instalaram-se na porção oriental do Alto Xingu. A proximidade destes
com os povos aruak permite afirmar que existiam relações intensas entre estes grupos,
relações provavelmente, também por causa da proximidade, pacíficas. Em meados do
séc. XVIII estes grupos karib, mais uma vez fugindo de “índios bravos”, possivelmente
povos pró-kamaiurá que, segundo Menezes Bastos (1983, 1989), chegavam à área na
mesma época, e também segundo Heckenberger (2001, b), que coloca a migração pró-
kamaiurá rumo ao norte da área atravessando exatamente os territórios do Complexo
Oriental, deslocam-se rumo ao centro do Alto Xingu, caindo no meio de território aruak,
ou pelo menos o que era território aruak. É apenas após essa migração que se
documenta aldeias anulares, típicas do padrão de assentamento aruak, ocupadas por
karib.
A política dos tupi ao chegarem ao Alto Xingu, como já foi colocado, baseava-se
em alianças. Porém, ao contrário do que é entendido de início, e comumente colocado,
essa migração não foi, de maneira alguma, pacífica. As alianças firmadas eram alianças
de guerra. Elas serviam para proteção e retaliação. Foram dois os locais escolhidos
pelos pró-kamaiurá como ideais para o estabelecimento de suas aldeias no momento de
entrada na área. O sítio de nome Ipavu, local, atualmente, da aldeia kamaiurá de mesmo
nome, e o ribeirão Tuatuari. Estes territórios faziam parte dos domínios aruak, o
primeiro relacionado aos wauja, o segundo aos yawalapití e mehináco. Já afirmei que
esse “processo de acomodação” (Menezes Bastos, 1994) dos pró-kamaiurá aconteceu de
maneira conflituosa. Existem alguns fatos que sustentam essa afirmação: o primeiro diz
respeito ao pavor dos aruak em relação aos pró-kamaiurá, principalmente os apùap, por
causa de seu poder xamânico, além de práticas como o canibalismo; o segundo é a

15
destruição de uma aldeia yawalapití (Paluchayupíti, atual residência dos mehináco), por
uma aliança dos pró-kamaiurá com os aweti.
Outros grupos com os quais os pró-kamaiurá travaram guerras são os suyá e os
juruna, estes também recém chegando à área. A relação dos suyá com os pró-kamaiurá
não pode ser entendida apenas bilateralmente. Há que se considerar tanto o papel dos
aruak (wauja e yawalapití), quanto dos aweti. Os primeiros tinham uma aliança com os
suyá, enquanto os segundos a tinham com os pró-kamaiurá. Mas as guerras não seguiam
apenas o eixo tupi-aruak/jê, tem-se indícios da destruição, por uma aliança dos pró-
kamaiurá com os txikão (karib), de uma aldeia arupaci, povo tupi. Ela aconteceu em
retaliação a um ataque destes aos txikão. Os sobreviventes passaram a residir com os
pró-kamaiurá.
Este estado de coisas, guerras com certas etnias, alianças com outras, faz parte, a
partir da divisão que faz Menezes Bastos (1994) da história dos povos pró-kamaiurá até
os kamaiurá de hoje em dia, da segunda fase da mesma história. A primeira se inicia no
início do processo de migração, quando estes começam a se locomover rumo às
cabeceiras dos rios, e termina quando chegam à área do Alto Xingu. A segunda, que
dura cerca de 200 anos, se inicia com o final da primeira e termina com o começo da
presença mais ostensiva do estado brasileiro ali. A terceira, que começa nas primeiras
décadas do século passado, compreende o início da presença do estado na área e vai até
a consolidação desta presença para os pró-kamaiurá, ou quem sabe já kamaiurá. É dessa
terceira fase que trato a seguir.
A terceira fase da história dos kamaiurá, e do Alto Xingu como um todo, é
marcada por um número enorme de epidemias. O número de habitantes da área é
reduzido de maneira drástica. No caso kamaiurá, a redução é da ordem de
aproximadamente 50%. Toda esta perda demográfica leva os pró-kamaiurá,20 das suas
quatro aldeias quando da segunda passagem de von den Steinen pela área, em 1887, a
apenas uma. Além desta perda, os pró-kamaiurá sofrem por serem alvos de alianças dos
yawalapití21 com, principalmente, os kuikúro, mas também outros povos aruak, e dos
juruna com os suyá e txikão.

20
Utilizo o termo pró-kamaiurá para referir-me aos kamaiurá de hoje, assim o faço pois é nesta fase,
segundo Menezes Bastos (1994, pp. 248), que se inicia seu processo de xinguanização. É ai, como
veremos adiante, que a identidade kamaiurá começa a ser construída como identidade kamaiurá, um povo
xinguano.
21
Estes yawalapiti são aqueles que, após terem a aldeia destruída pelos pró-kamaiurá/aweti, se exilam
com povos karib e aruak, os kuikúro sendo os que receberam o maior contingente (Menezes Bastos, 1994,
pp. 244)

16
Todas essas guerras faziam parte de um processo de acomodação que abrangia
todos os povos da área. Tanto os aruak e karib, os mais antigos ali, quanto os jê e tupi,
além de outros, por força do contexto se encontraram em um território relativamente
pequeno. Quando os primeiros brancos, no começo do século, começaram a tornar mais
contínuas suas visitas ao Alto Xingu, definitivamente presenciaram esse processo, nessa
forma “hostil”, em pleno andamento. Acredito ser possível apontar um relaxamento das
relações a partir do momento em que as epidemias começam a devastar as populações.
Mas, de qualquer modo, é só algum tempo depois, década de 40, que a pax será uma
instituição.
Na situação catastrófica em que se encontravam os kamaiurá nesta terceira fase,
o movimento que eles começam a perpetrar vai claramente em direção ao branco, que
aos poucos começa a se apossar da área. O “karaíba”, o elemento inicial da fuga desses
índios para o Alto Xingu, é agora objeto de desejo. O medo dos kamaiurá em relação ao
homem branco também assume a faceta da admiração. Dizem eles que os “caraíbas” são
detentores de grandes tesouros, além de mestres insuperáveis na arte de transformar.
Para isso basta salientar que ao “karaíba” cabe, como é corrente nos mitos de origem
xinguanos, a espingarda, representando a força bruta de um lado, e a cachaça, a máquina
fotográfica e o gravador de outro, representando seu extraordinário poder. Poder esse
que mais notabilizou os kamaiurá perante a comunidade xinguana, mas que é inútil
perante as forças dos “caraíbas”. A estratégia então, dos kamaiurá para sobreviver e
“vencer” seu inimigo, é juntando-se a ele. Esse movimento de aproximação dos
kamaiurá com os brancos tem como objetivo acesso a bens, e talvez mais importante
que isto, o controle do uso destes produtos perante as outras comunidades indígenas da
área.
Em relação à xinguanização dos pró-kamaiurá, o mesmo pode ser dito. A
situação de extrema fragilidade, tanto deles quanto dos xinguanos como um todo, leva
os primeiros a assimilarem uma nova identificação. Uma identificação que os legitimem
no universo em que se encontravam, e ainda se encontram, embora talvez de maneira
mais branda. Um fato que, segundo Menezes Bastos (1994, pp. 248), foi de grande
importância para o desencadeamento desse processo de xinguanização, foi o assassinato
de Awayu´i, último dos grandes chefes guerreiros apùap, pelos suyá. Sua morte e a
desqualificação de seu primogênito fazem com que os kamaiurá passem a ser chefiados
por um “neto” de kuikúro. Cito Menezes Bastos: “É desta maneira que a bravura dos
“kamaiurá de verdade” – assim como sua dieta carnívora, entre tantos outros traços –

17
começa a ser agora um passado sob censura, desarquivável apenas através da licença
ritual” (ibid., pp. 248).
Relembrando, a terceira fase da história kamaiurá se inicia nas primeiras décadas
do século passado com o início das grandes epidemias e do movimento em procura dos
brancos. Ela termina, mesmo momento em que começa a quarta fase, quando os
kamaiurá solidificam suas relações com o homem branco, no início da década de 40.
Esses anos que decorrem desde o começo da aproximação kamaiurá aos
“caraíbas” até a solidificação desta relação são marcados não apenas pela busca dos
brancos pelos índios, mas também ao contrário, pela dos índios pelos brancos. Os
contextos que se apresentam nessa época, anos 1940, são, no âmbito internacional a 2ª
Guerra Mundial e, no nacional, a política estadonovista, sentida na área através da
“Marcha para o Oeste”. Ambos os cenários tinham a ver com a expansão do controle
estatal do território nacional, para fins de defesa ou comerciais (ibid, 1994). Não focarei
a problemática da formação do Parque no âmbito jurídico ou estatal. Estou interessado
apenas, no momento, em que de que forma esse projeto estatal vai se fazer sentir na
área, especialmente no caso dos kamaiurá.
Foi através da Expedição Roncador-Xingu, fundada em 6 de junho de 1943, que
os Villas Boas vão começar seus contatos com os índios do Alto-Xingu. Orlando,
Cláudio e Leonardo começam a trabalhar na ERX em Aragarças (GO), na época apenas
área de garimpo, transformada em cidade pela ERX. Seguindo os objetivos da ERX -
“desbravar” e “povoar” o Maciço Central, especialmente as áreas de cabeceira do Rio
Xingu -, os Villas Boas, assim que finda o estabelecimento da base de Aragarças,
rumaram na direção do Rio das Mortes, fundando a base de Xavantina. Aí, a ERX já
encontrava indígenas xinguanos.. É então que começa a comunicação entre os Villas
Boas e o Marechal Cândido Rondon.
Os kamaiurá foram o segundo povo com os quais os expedicionários
mantiveram contataram. O primeiro foi os kalapálo, no Culuene. No primeiro contato
com os kamaiurá, os índios levaram os “caraíbas” à sua aldeia, indicando, inclusive, o
local de uma antiga aldeia trumai como sítio para o estabelecimento de uma nova base
de apoio. A primeira base fundada na região foi o Posto do Culuene, hoje nos limites sul
do Parque. A seguir, foi o Posto do Xingu, depois renomeado do Jacaré, muito próximo
à aldeia kamaiurá.
E quais são as conseqüências da presença dos Villas Boas? - A implementação
da pax xinguensis, ou seja, o congelamento do quadro bélico que descrevi na terceira

18
parte do resumo da história dos kamaiurá. Menezes Bastos (1994, pp.250) aponta quatro
características básicas do processo de implementação da pax:
1. “abastecimento contínuo de manufaturados, sempre escassos porém”
(ibid.);
2. contenção das epidemias;
3. filtragem rigorosa dos “caraíbas” que entram em contato com os índios;
4. “generalização legalizante da etiqueta da ‘xinguanidade’” (ibid.).

Algumas observações sobre este quadro. A primeira, pelo fato da escassez, nos
remete de imediato à consideração da importância que passa a ter o tipo de relação
estabelecida com a fonte dos recursos. No caso dos kamaiurá, vimos que estes tinham
relações amistosas com os Villas Bôas, estabelecidos no Posto do Jacaré, muito próximo
à sua aldeia. Dois fatos alteram esse estado de coisas. O primeiro é o restabelecimento
dos yawalapiti como grupo local, espalhados que estavam por diversas aldeias,
principalmente os kuikúro. O segundo, que na verdade são dois, é o fato de Lonardo ter
roubado a esposa de Tukamapì, chefe kamaiurá, e ter ameaçado de morte Matukã, filho
de Tukamapì. Após o restabelecimento dos yawalapiti, projeto dos Villas Bôas
primordial para a pax xinguensis22 e dos trágicos acontecimentos relatados
anteriormente, os Irmão saem do Jacaré e se mudam para o Tuatuari. É desse modo que
os yawalapiti alcançam uma situação privilegiada em relação às outras etnias no que
concerne o acesso aos bens importados pelos Villas Bôas. Em situação paralela se
encontram os kamaiurá, isso porque no Posto do Jacaré, além dos Villas Bôas e do
aparato da ERX, estava montada também uma base de apoio da FAB, que se manteve
no local como administradora do mesmo quando os Irmãos deixam o posto. É assim que
os kamaiurá encontram um modo de, digamos assim, competir com os yawalapiti, no
acesso a recursos “caraíbas”.
Para finalizar os comentários sobre a quarta fase da história kamaiurá, alguns
comentários sobre a 4ª. característica da pax. Para a generalização da “etiqueta da
xinguanidade”, alguns pré-requisitos deveriam ser preenchidos. O primeiro era a

22
Considero este fato primordial pelas seguintes razões: os yawalapiti montaram sua aldeia no Tuatuari,
historicamente pertencente a eles mesmos, roubado pelos pró-kamaiurá quando da sua chegada à área.
Esse restabelecimento, capitaneado pelos Villas Bôas num processo que durou anos, contou com índios
yawalapiti residentes em outras aldeias, entre elas os kuikúro. Relembrando, antes da pax os kamaiurá
sofriam com ataques de duas alianças, uma delas exatamente formada entre yawalapití, ainda exilados e,
principalmente, kuikúro. Esta aliança era empreendida como vingança pela tomada por parte dos
kamaiurá de territórios aruak, um deles exatamente o ribeirão Tuatuari.

19
supressão das características beligerantes dos grupos. O segundo, a participação nos
rituais intertribais de todos os grupos xinguanos. E porque, assim, se tornar xinguano? -
Era esse o passaporte para os novos recursos que circulavam na área. A criação da
categoria “xinguano”, cria também a de “não-xinguano”, caso dos juruna e suyá. Estes,
em aliança, empreendiam, na época da chegada dos Villas Bôas, uma guerra pelo
território kamaiurá. Com a pax, esses índios tiveram seu processo de entrada no
território xinguano travado, permanecendo no parque até hoje – em sua parte norte -,
sem, no entanto, serem xinguanos.
A 4ª. fase termina com a fundação do Parque em 1961, talvez um pouco depois,
quando da institucionalização da nova ordem, digamos assim, na área. O ano de 1973
pode ser considerado como um marco do começo dessa nova ordem, através da edição
do “Estatuto do Índio” que, em seu primeiro artigo, transformava o Parque Nacional do
Xingu em Parque Indígena do Xingu. Essa mudança coloca o Parque sob os auspícios
da FUNAI, fundada em 1967 e que respondia ao Ministério do Interior. Em 1971, é
legalizada a passagem da BR-080 (Xavantina-Cachimbo) na porção norte do Parque. O
agro-business começa a circundar o Parque, transformando-o pouco a pouco em uma
ilha no meio de gigantescas pastagens e plantações. O interesse fundiário pela área é
grande, havendo inúmeros editais que dão novas configurações à sua área. Também
acontecem o realocamento de tribos de fora do Parque para dentro. No final dos 1970,
toda a administração do Parque passa para as mãos dos índios, a central, a do Posto
Jarina, a do Posto Leonardo e, finalmente, a do Posto Diauarum (Menezes Bastos, 1994.
pp. 251-255)
Comecei a abordar a história xinguana para explicar porque a dimensão ritual é a
condição sine qua non da participação no éthos xinguano. Acredito ter esclarecido isto
de forma consistente. Uma última colocação sobre o ritual. Se ele é definidor da
xinguanidade, é também o espaço de expressão daquilo que não é xinguano, o passado
guerreiro dos kamaiurá, os grandes feitos de seus ancestrais, o que torna possível o
confronto do passado com o presente. O que significa isso? Que talvez todos estes
títulos criados pelos “caraíbas” não dão conta de entender de maneira satisfatória o
mundo em que esses índios vivem. A dualidade xinguano/não-xinguano, por exemplo,
talvez não seja operante entre eles. Ao menos de maneira tão clara segundo usualmente
se pensa.
A seguir, algumas informações sobre a aldeia fiz meu trabalho de campo e a
língua kamaiurá.

20
A aldeia se chama Ipavu, distante cerca de 35km ao sul do Morená23, 15km a
oeste do rio Curisevo e 20km a leste do rio Batovi. Ela está situada à beira da lagoa de
mesmo nome. Este local é considerado sagrado para os kamaiurá, mesmo na época em
que ali não residiam, era este p local de alguns enterros e de algumas práticas rituais, era
também onde eles estabeleceriam sua próxima aldeia, segundo relatos fornecidos a
Galvão (1979, p. 18).

Figura 224

2
N Lagoa Ipavu;
1 Casa da enfermeira;
5 enfermaria, etc.
4

A língua kamaiurá é classificada como pertencente à família tupi-guarani, já foi


sub-classificada junto com outras línguas da família, mas é agora considerada isolada,
mantendo relações de afinidade com diversas línguas, entre elas a kayabi e asurini
(ambas faladas no Xingu), a parintintin, tupi-kawahib, guajá, etc (Franchetto, 2001, p.
120)25. Menezes Bastos (1989) destaca a existência de diferenças dialetais entre os

23
Indicado pelos índios Xinguanos como o “centro do mundo” e também local de criação do mesmo,
seria a convergência dos rios Ronuro, Batovi e Kuluene.
24
Plano da aldeia kamaiurá. 1: Casa de Kotok; casa de Takumã; 3 casa das flautas; 4 casa de Tacapa; 5
casa de Mapyta e; 6 caminho de entrada da aldeia. Importante dizer que as roças estão por todo o redor da
aldeia.
25
Para a língua kamaiurá, conforme Seki (2000) e a literatura por ela usada.

21
falantes do kamaiurá dentro da própria aldeia Ipavu, mais um indício da ambigüidade
do ser kamaiurá, pois não é, como já colocado anteriormente, a língua um dos artifícios
mais severamente perpetuados na conservação do éthos de cada etnia?
Para finalizar, algumas informações sobre o nome kamaiurá. Menezes Bastos
(1989, p. 524) esclarece que o nome vem da palavra aruak kamã + yula, com tradução
aproximada de “mortos no jirau”. O sentido da palavra é uma referência à prática do
canibalismo pelos grupos falantes do tronco tupi, sendo usada para nomear todos eles. A
referência expressa ao canibalismo dos povos tupi reflete o pavor dos aruak e karib em
relação a estes. Esta etimologia quem faz é um índio yawalapiti. Um kamaiurá, ao ser
questionado sobre essa sua antiga hostilidade, como diz Menezes Bastos, “não podendo
negar simplesmente a renegam, a remetem para o passado ou, mesmo, a tratam sob
evasivas” (ibid, p.524). Mas esse aspecto dá conta de apenas um dos lados do ser
kamaiurá. Outro, e talvez não único, é aquele expresso no ritual, onde é o passado que
vem à baila, confrontar o presente, modulando seu funcionamento, se espraiando no
futuro. E, mesmo que somente na “máquina de torýp, ‘ritual”, esse passado seja
encarado de frente e se sobreponha ao éthos xinguano, não é só ai que ele está presente.
Nas próprias diferenças dialetais supracitadas, na denominação daquilo que seriam os
“kamaiurá verdadeiros”, esta sim pensada e falada por um kamaiurá, “apìaw anekopy”,
os “apiap verdadeiros”, na etimologia yawalapiti apresentada anteriormente, enfim, em
todo momento da vida dos kamaiurá, e também na do Alto Xingu, o passado é uma
força atuante.
Menezes Bastos (1978, p.81) em um parágrafo entitulado”máquinas para viajar
no tempo: o mawe e o ãng”, explana como entende a categoria tempo: “tomo tempo
como aquela metacategoria do discurso científico que, dimensão universal, se estabelece
como o espaço lógico das durações, isto complementarmente ao espaço, que é o espaço
lógico das extensões”. A partir daí podemos pensar o mawe ‘tempo mítico’ e o ãng
‘tempo histórico’, os dois diferentes modos através dos quais os kamaiurá se colocam
em relação ao tempo. O ãng, como a tradução leva a crer, é o tempo dos
Apyawanekopy, os ‘apiap mesmos’ literalmente, também traduzido por ‘kamaiurá
mesmos’. Este é o tempo dos “eventos prováveis”, aqueles que aconteceram ontem,
acontecem hoje e irão acontecer amanhã. Já mawe é o tempo dos Apyawaramãy, os
‘ancestrais dos kamaiurá’. Os eventos aqui são possíveis, não prováveis. Por tempos dos
ancestrais não devemos entender que esta matriz remeta inexoravelmente ao passado,
muito pelo contrário. Por eventos possíveis devemos ter em mente a idéia de

22
potencialidade, daquilo que foi, com certeza, mas que é eterno, sempre surgindo e
ressurgindo, dobrando e redobrando, corrigindo e explanando o presente. Por fim, com
relação ao mawe e o ãng, fato que vale ser ressaltado, é a complementaridade entre um e
outro tempo, não o antagonismo que facilmente se poderia crer existir.

A mensuração de tempo kamaiurá

Na aldeia, com vistas a superar as necessidades para a obtenção de meus


objetivos, tive como primeiro ímpeto o estudo dos termos do sistema de mensuração de
tempo dos Kamaiurá. A pergunta que me fazia era: que palavras os kamaiurá utilizam
para se referir aos diferentes momentos do dia, e, coisa que de fato ainda não sabia,
quais são os momentos do dia kamaiurá? Construí uma tabela com duas colunas, uma
relativa aos momentos do dia ocidental (1h, 2h, 3h, etc.) outra relativa ao momento
correspondente no dia kamaiurá. Seki (2000, p. 402)26, em sua Gramática do Kamaiurá
oferece uma tabela semelhante, com uma palavra em kamaiurá para cada umas das 24h
de nosso dia. Não consegui confeccionar tal tabela, penso que não por falta de
habilidade, mas pelo fraco valor heurístico que a mesma teria, frente aos meus
objetivos.
Depois que tive conhecimento de alguns dos termos27 utilizados pelos kamaiurá
para se referir aos momentos do dia, construí uma tabela colocando-os em ordem e
deixando espaços entre os já conhecidos para completar com os que faltavam para que
eu tivesse os vinte e quatro momentos do dia kamaiurá. Ao apresentar esta tabela para
Chico (filho de Takumã, pajé da aldeia kamaiurá, um de meus maiores informantes) e
pedir a ele que me ajudasse a completá-la, estranhei a dificuldade que ele teve para
achar os termos que se encaixariam nos espaços em branco. Alguns deles eram motivo
de discussão entre Chico e outras pessoas que estavam à sua volta. Ao final dessa
empreitada estava com uma tabela quase completa em mãos, mas desconfiava que ela
talvez pouco representasse o modo como os kamaiurá pensam o tempo.
Decidi, dessa maneira, me organizar para que pudesse montar uma tabela mais
fidedigna. Perguntei durante todo o tempo que estive na aldeia kamaiurá que horas

26
SEKI, Lucy. Gramática do Kamaiurá. Língua Tupi-Guarani do Alto Xingu. Campinas, SP: Editora da
Unicamp; São Paulo, SP: Imprensa Oficial, 2000.
27
Os termos estão apresentados na Tabela 1 na página 26.

23
eram, e como se falava em kamaiurá este momento. Anotando, a cada vez que
perguntava as horas e como eles se referiam àquele momento em kamaiurá, consegui,
acredito eu, montar uma tabela mais fiel ao modo como eles repartem e se referem a
essas partes de seu dia. Preciso ressaltar que tive poucas oportunidades para perguntar
“que horas são?”, durante a madrugada. Algumas vezes fiquei acordado até quase meia-
noite, assistindo televisão com outros índios enquanto quase todos dormiam, outras
acordava para ir ao banheiro e encontrava alguém fazendo o mesmo, ou voltando.
Apresentarei neste trabalho a tabela, fruto do processo investigativo mais
aprofundado, ao qual me referi antes. Ela apresenta os horários28 estimados de início e
final de cada intervalo ou momento29 do dia kamaiurá, seus nomes em kamaiurá e sua
glosa em português. Quero dizer que estava propenso a não utilizar a tabela, mas achava
importante, de qualquer forma, a apresentação extensa de todos os termos que os
kamaiurá utilizam para referir-se aos diferentes momentos de seu dia. Escrevê-los um a
um seria certamente muito maçante e de difícil interpretação. A tabela, mesmo sendo
apresentada no começo de meu texto, só poderá ser plenamente entendida após o final
deste trabalho. Ela representa apenas um primeiro esforço de aproximação.
Antes de apresentar as tabelas sobre os termos que os kamaiurá utilizam para se
referir aos diferentes momentos do dia, preciso falar sobre quando começa o dia
kamaiurá. Afinal, não posso começar arbitrariamente por qualquer termo. Menezes
Bastos (1989, p. 87)30 diz que o dia kamaiurá parece começar no final da tarde, começo
da noite. Essa transição, do final para o começo de um novo dia, seria marcada pela
reunião dos homens no centro da aldeia, sendo o período em que acontece, na verdade,
quase que um período fora do tempo. Nas conversas que tive com os kamaiurá, em tudo
que vi e ouvi dos índios kamaiurá, houve um fato que me levou a pensar da mesma
maneira que Menezes Bastos. Esse sinal eu encontrei em um livro (não editado) de
contos dos índios kamaiurá, que foi produzido na própria aldeia, relatado e traduzido
para o português pelos próprios kamaiurá. Em um conto chamado “A menina que enfiou
a mão no tewikwat (“ânus”) da anta”, encontrei uma fala onde a anta diz à menina presa

28
“Horário”, “hora”, “medir o tempo”, todos estes termos eu concebo como estando em relação direta
com o sistema ocidental de medir o tempo. Referem-se a ações frutos de um processo específico, que
pouco tem a ver com os kamaiurá, a não ser pelo fato do seu contato com o mesmo. Utilizo, no entanto,
“mensurar o tempo” como algo existente em todas as culturas.
29
Esta diferença entre a divisão das partes do dia kamaiurá, como será visível na tabela, é concebida em
momentos e em intervalos. Discutirei isto após a apresentação da tabela.
30
MENEZES BASTOS, Rafael José de Menezes. A festa da Jaguatirica: um partitura crítico-
interpretativa. São Paulo: 1989. Tese de doutorado. FFLCH, Universidade de São Paulo.

24
nela pelo braço, que os dois partiriam no dia seguinte (“amanhã vamos”). Em seguida o
narrador continua “...abaixou o sol. Os dois começaram a ir embora. Foram embora no
mesmo caminho. Chegaram à água. Começou a amanhecer quando chegaram à roça do
pai”. Esta foi a única informação que me foi possível extrair sobre o início do dia 31
kamaiurá. Confio nela, e também no que diz Menezes Bastos, mais ainda, pois faz
sentido, pelas observações que fiz, que o dia kamaiurá comece realmente no começo da
noite. Explicarei este “sentido” apenas no final deste trabalho.
Em relação à tabela (apresentada na página seguinte por razões de espaço)
algumas coisa precisam ser ditas. Primeiramente que o nome do momento do dia
kamaiurá referente às 21h do dia ocidental não me foi possível obter, transcrevo aqui o
que está inscrito na tabela de Seki (2000). Desconfio que este “momento de recolher”,
antigamente, acontecia relativamente mais cedo do que hoje. Isto por ter experimentado
a vida na aldeia, quando não é possível ligar o gerador durante uma semana inteira. Os
homens da aldeia foram jogar um campeonato de futebol em Gaúcha do Norte,
inclusive o rapaz que é responsável por ligar e desligar o gerador. Durante essa semana,
quando estavam na aldeia os velhos, as crianças, as mulheres e o antropólogo, pude
observar que mesmo durante a reunião dos homens no centro da aldeia, as casas que não
tinham ninguém fechavam as portas e, imagino, pois não me era permitido entrar nestas
casas nesse horário, porém pude observar o que acontecia na casa onde eu residia, todos
logo se recolhiam às suas redes, onde conversavam por algum tempo e dormiam.
Takumã me relatou que antigamente eles dormiam mais cedo, algum tempo após a
reunião dos homens no centro. Cogitei durante algum tempo deixar este espaço em
“branco”, o que significaria dizer que consideraria não existir um intervalo entre
ypytunim e Ypy,ajej ipota kóyt, considerando também que este intervalo não me foi
mencionado. Optei, finalmente, por utilizar o termo de Seki, pois acredito que faz
sentido a existência desse intervalo, ao menos hoje em dia, quando os kamaiurá estão
dormindo cada vez mais tarde, alguns após a meia-noite.

Tabela 1
Horário ocidental Momento do dia kamaiurá Glosa em português

31
Dia aqui entendido como o período de 24h que o sol leva para dar uma volta sobre a terra. Não o
período compreendido entre o nascer e o por do sol.

25
19h – 20h Ypytunim “quando já está escuro”

21h (segundo seki, até as Ypypipawamue “tempo de se recolher”


22h)
22h Ypy,ajej ipota kóyt “quase meio do escuro”
23h

24 Ypy,ajej “meio do escuro”


1h Ara apota kóyt “passa do meio do escuro”
2h
3h Ara uham “passa do meio do escuro”

4h Arimé kóyt “quase clareando”


5h Kuema moe “sol ta clareando”
6h Kuaraitsé “sol ta saindo”
7h Iawyeté “sol já saiu/apareceu (inteiro)”
8h – 10:30min Kopywaraapaa´p “voltando da roça”
11h Apyterowai ipota kóyt “sol ta quase no meio”
12h Apyterowai “sol ta no meio”
13h – 14h Werewaparap “sol está inclinado (pouquinho)”
15h – 16h Mameara “a tarde”
17h Karu kamõe “tarde”
18h Ka,aruk kóyt “sol ta descendo”

Outra colocação importante sobre a tabela refere-se ao intervalo que vai das 14h
até ás 16h. Na tabela de Seki o momento referente ás 14h é dito joetykawa wite,
“próximo à luta” e, logo após, ás 15h, joetykawa ‘arim, “em cima da luta”. É
interessante que nenhuma das vezes que eu perguntei que horas eram durante esse
intervalo alguém tenha me dado resposta similar à que Seki recebeu. Ressalto que entre
os kuikúro, povo falante de língua do tronco karib, o momento referente ás 15h tem
como glosa “tempo de luta”. Meus conhecimentos não tornam possível fazer qualquer
generalização deste fato para todas as tribos xinguanas. O que me parece, e isto é algo
que deve ser investigado em minha próxima visita aos kamaiurá, é que devem existir
momentos (longos ou duradouros, não importa) durante o ciclo anual kamaiurá que as
referências ao intervalo dito pelos ocidentais entre 14h e 16h são feitas pelos kamaiurá
com base nos momentos em que a luta deve acontecer, em outros momentos do ciclo
anual estes mesmo momentos são referidos de uma outra maneira32.
A maioria dos termos que os Kamaiurá utilizam para se referir aos diferentes
momentos do dia se relacionam e aludem, como podemos observar na tabela, à posição
do sol ou ao efeito luminoso característico do sol naquela dada posição. Meio-dia, por
32
Apenas para constar, no caso kuikuro, sabe-se quando é chegada a hora da luta quando a sombra
produzida pela casa dos homens no centro da aldeia atinge o banco situado a sua frente. A luta termina
quando a mesma sombra atinge os lutadores, Francheto (2002).

26
exemplo, é dito “Apyterowei” – “sol ta no meio”- o período entre 4h e 5h da madrugada
é dito “Arimé kóyt” – “quase clareando” ou “não tem mais escuro” – entre 18h e 19h
diz-se “Ka,aruk kóyt” – “sol ta descendo” ou “entrando”. Interessante notar que a
luminosidade do sol também dita o ritmo da noite, ao menos no que se refere aos termos
utilizados para referirem-se aos diferentes momentos da noite33. Entre 19h e 20h temos
o momento chamado de “ypy tunim” – “tá escuro”. O termo que identifica o momento
logo após este último referido significa “quase meio do escuro”, diz-se “ypy aiei ipota
kóyt”, para termos em seguida o “meio do escuro” que diz-se apenas “ypy aiei”. Após o
“meio do escuro” nós temos, naturalmente, “ara uha ipota kóyt” ou apenas “ara uham”,
significando, “passa do meio do escuro”.
É interessante fazer algumas colocações sobre o que foi dito no parágrafo
anterior e uma ressalva. Os horários que utilizei para “traduzir” os termos em kamaiurá
foram aferidos na aldeia, as vezes posteriormente ao tê-lo ouvido, com a ajuda de algum
índio, mas na maioria das vezes no momento em que perguntava “que horas são”, ou
melhor dizendo, “mame kuará?”, aos meus informantes. Assim, não adianta que um
viajante saiba que entre 18h e 19h diz-se “kuaraitsé kóyt” em kamaiurá, se acaso este
queira comunicar o horário de sua partida aos índios. Isso porque numa certa época do
ano ele estaria correto, em outra, certamente não. Se na nossa sociedade o sol nasce todo
dia em um horário diferente, na sociedade kamaiurá o sol nasce diferente todo dia em
um mesmo horário. Isto ocorre por causa das referências, totalmente diferentes em cada
um dos casos, que os indivíduos utilizam para serem sabedores das horas. Fica claro
também, o problema de uma tabela que faça corresponder cada termo para se referir a
um momento do dia kamaiurá a cada uma das 24h do dia ocidental.
No cotidiano, quando um kamaiurá se refere a algum horário, respondendo uma
pergunta sobre que horas são ou contando uma história, ele aponta o braço estendido em
direção à respectiva posição do sol. Quando se trata de relatar a duração de algum
evento, os kamaiurá não dizem que esse evento durou tanto tempo34. Ao invés, indicam
33
Isso porque as referências utilizadas pelos kamaiurá para saberem que “horas” são durante a noite não
partem, naturalmente, do sol, mesmo fazendo os termos utilizados para indicar os diferentes momentos
referência ao sol, ou à sua luz. Existe um grande número de referências que podem ser utilizadas pelos
kamaiurá para se localizar temporalmente durante a noite. A primeira que me foi citada é sobre as estrelas
(“ietatai”), tanto a posição deste ou daquele grupo de estrelas no céu, quanto o aparecimento de duas
“estrelas grandes” (“ietatau”) no céu. Também podem ser utilizados o som dos mais diversos animais,
insetos e pássaros na maioria. Em determinada época do ano esse determinado inseto faz esse
determinado barulho apenas depois de certa hora. Um referência dupla, sendo que indica um época do
ano e um momento na noite. Isso tudo será tratado adiante.
34
Não o fazem não por falta de instrumentos, tanto materiais quanto teóricos. O uso do relógio, como será
visto posteriormente, é bastante difundido entre os kamaiurá. Mesmo antes da difusão do uso do relógio a
medição do tempo não era obstáculo aos kamaiurá, como podemos perceber através da alta percepção que

27
o horário do início do evento, sempre com o braço apontado em direção ao sol, e o do
seu término, percorrendo com o braço estendido toda a extensão percorrida pelo sol
durante o acontecimento. Interessante notar que mesmo quando os Kamaiurá utilizam o
sistema ocidental de medir o tempo, fato que ocorre em algumas ocasiões mais que em
outras, eles estendem o braço em direção ao céu.
Desnecessário dizer, após tudo o que foi relatado, que é o sol a principal
referência utilizada pelos kamaiurá para saber em que momento do dia se encontram.
Lembro-me de ter perguntado, em uma manhã de tempo nublado, que horas eram a uma
mulher que trabalhava a mandioca para fazer polvilho. Ela, olhando para a posição onde
o sol deveria estar àquela hora da manhã, porém não vendo nada por causa das nuvens,
me disse que não sabia, que eu olhasse no relógio.
Às voltas com essa questão dos diferentes momentos do dia kamaiurá eu
comecei a procurar quais eram os momentos em que eles precisavam “saber as horas”
para desempenhar qualquer afazer que fosse. Na sociedade ocidental precisamos a todo
o momento saber que horas são. Precisamos começar a trabalhar em tal horário,
encontrar alguém, temos algo para ver na televisão em tal horário, temos que almoçar
em tal horário, etc. Comecei, para saciar minha curiosidade, por perguntar como se
falava “almoço” em kamaiurá. Responderam-me que esta palavra não existia, “que
quando o índio quer comer ele come, quando tem comida”. Realizei também algumas
entrevistas que tinham como objeto o uso do relógio entre os índios. Não foram muitas
as pessoas entrevistadas, mas todas elas foram unânimes em suas respostas. A principal
pergunta que fiz era “para que o kamaiurá usa o relógio?”. A resposta, sempre, “para
saber as horas”. E “para que os kamaiurá precisam saber as horas?”. Para diversas
coisas, mas todas essas coisas são oriundas da sociedade ocidental. Para saber o horário
de tal programa de televisão; de quando ligar o rádio amador e fazer as transmissões
necessárias; de quando ir a outra aldeia ou ao posto indígena para jogar futebol; etc.
Expliquei que na sociedade ocidental o relógio foi criado, principalmente, para lembrar
os homens de quando trabalhar. Diziam-me que “kamaiurá não é assim não”, “índio
trabalha quando quer, trabalha sempre”.
Mais uma vez encarando meu objeto a partir de meus preconceitos perguntei-me
se os kamaiurá simplesmente não precisavam saber as horas. E, depois de dissipada a
eles têm dos eventos que acontecem ao seu redor. A falta de um sistema aritmético poderia explicar esse
fato, mas, assumindo que exista algo a ser explicado, encontramos entre os kamaiurá um sistema
aritmético que, apesar de não ser muito desenvolvido permite a contagem. O fato, a meu ver, que faz com
que os kamaiurá se refiram às extensões de maneira diferente dos ocidentais, no que se refere à questão
do tempo, é que eles não têm a idéia de hora, ou da repetição. Tudo isso será abordado mais adiante.

28
confusão, percebi que não, devemos considerar “horário” fruto de uma construção
ocidental. Como já ressaltei no parágrafo anterior, os kamaiurá se interessam pelo
horário quando suas atividades são frutos da relação com a cultura ocidental. No
entanto, esse não era o meu primeiro objetivo, mas sim conhecer aquilo que se refere
“exclusivamente” ao modo kamaiurá de lidar com o tempo.
Começarei por relatar algo que ouvi enquanto fazia uma entrevista semi-dirigida
com um dos genros de. A entrevista, na verdade, era sobre o uso do relógio, a pergunta,
mais especificamente, sobre a freqüência com que ele o utilizava. Ele me disse que
usava bastante, “já tem relógio pra poder sair pra roça. Tem que ver lá o relógio da
pessoa pra poder sair pra roça, e volta, quatro horas pra casa”. Perguntei então se tinha
um horário certo pra ir pra roça, ele me disse: “Não, assim, pros mais velhos não tem
hora não, né.” É preciso uma contextualização para entender tudo isso, e o que afinal,
isso teria a acrescentar ao meu objetivo e não ao que se refere a nota 18, apesar de
certamente o faze-lo.
Um dos projetos mais duradouros e que mais mobilizou os kamaiurá durante os
últimos três anos foi o “Awawo Jamena Ko’’, que significa, literalmente, “Roça jovem”.
Ele era apoiado pela Petrobras e consistia no fornecimento, por parte da empresa, de
verba para a compra de materiais, para o pagamentos dos jovens que trabalhavam na
roça, a compra de insumos e o armazenamento e beneficiamento do que era produzido.
Boa parte deste projeto, como pode ser percebido, consistia no trabalho dos jovens nas
roças referentes ao projeto. Acontece que este trabalho, pago, tinha hora para começar e
terminar. Os jovens, de seu lado, como pode ser visto no dia-a-dia da aldeia, trabalham
bem menos nas roças, se é que trabalham. Estes dois fatores, acredito eu (seguindo meu
entrevistado), fizeram com que o relógio ganhasse uma importância para o trabalho dos
jovens na roça, sendo por ele pautado o início e o fim do da labuta. O entrevistado nesse
caso tinha 29 anos e foi um dos mais velhos a participar do projeto. Ressalto que ele,
após dizer que os mais velhos não tinham hora para trabalhar, disse que “ele mesmo não
tem hora, trabalha direto”.
O importante disso que relatei é o fato de os mais velhos agirem de modo
diferente dos mais novos. Isso não apenas foi me dito, como também observado, entre
outros acontecimentos, na maior freqüência, em relação aos mais jovens, com que via o
ir e vir dos mais velhos à roça. E, no entanto, mesmo não tendo um momento definido
para o começo e para o final, como me foi dito, vemos na tabela que apresentei um
termo que tem como glosa “voltando da roça”. Lembro que perguntei, numa das

29
diversas vezes que recebi a resposta Kopywaraapaa´p, como os kamaiurá sabiam que
era a hora de “voltar da roça”, a resposta que recebi, como já era de se esperar, pelo sol.
Mas, nesse caso, não pela posição do sol, mas porque “quando tá muito quente” está na
hora de voltar. Interessante pois não é que eles observam o sol em tal ponto do céu e
sabem que é aquele momento em que eles devem parar de trabalhar, ao contrário, é
quando o sol já está muito forte, esquentando demasiadamente, que é hora de parar de
trabalhar. Daí o grande intervalo designado pelo termo Kopywaraapaa’p, pois o mesmo
sol que em certa época do ano está brando, em outra já esta bastante forte.
Outra ocasião que se impõem como um marco no perceber o tempo dos
kamaiurá é quando é chegado o momento do Yawari. Este é indicado pela aparição do
Tawarit (as Plêiades, o popular “Sete estrelo”), em meados de abril (Menezes Bastos
1989). Quando ir pescar, diferente em cada época do ano, às vezes marcado pelo cantar
de uma cigarra, às vezes pelo parar de cantar de um grilo, também faz-se perceber no
tempo kamaiurá. E, como último exemplo, propositalmente nesta ordem, apresento o
payemet, literalmente “reunião dos pajés”, que acontece, como já falei, entre 18h
(Ka,aruk kóyt, “sol ta descendo”) e 19h (Ypytunim, “quando já está escuro”). O
indicador do começo da “reunião dos pajés” é certa luminosidade específica de um
momento dado do dia kamaiurá. A percepção dos sujeitos, é claro, não é uniforme, e
dessa maneira uns sempre se dirigem para o centro da aldeia antes que outros. De
qualquer maneira, como o local da reunião é o centro da aldeia, e como os momentos
absolutamente anteriores à “reunião dos pajés” constituem-se em reuniões das famílias
em frente a suas casas, quando os primeiros começam a se dirigir ao centro da aldeia, os
outros logo os seguem.
É importante ressaltar o caráter de marco temporal do payemet, e por
conseqüência a importância que este tem para a percepção do fluxo temporal dos
kamaiurá. Como já coloquei, o payemet marca o final e o início do dia (“período de
24h”) kamaiurá. Esse marco, que é sem dúvida muito bem definido, é também, de certa
forma fluído. De certa forma porque se pensarmos através do modo ocidental de medir
o tempo poderíamos dizer que o horário em que o payemet acontece varia durante o
ano35. Mas, o início é o início, não varia para aqueles que o tem como tal. Pode ser que

35
Durante todo o texto, até agora, faço esse exercício de “comparação” entre o “sistema ocidental” e o
“sistema kamaiurá” de pensar o tempo. Minhas interpretações do sistema kamaiurá de pensar o tempo
foram feitas, é claro, baseadas nas minhas percepções dos kamaiurá. Saber por que tais e tais
características do sistema kamaiurá fizeram com que eu, ser pensante “através” do sistema ocidental,
construísse determinadas interpretações, me ajudam a esclarecer tanto sobre o modo ocidental quanto
sobre o modo kamaiurá de pensar o tempo.

30
hoje ele inicie com chuva, amanhã com lua, com vento forte, calor ou frio, mas
continuará sempre sendo o início, e o fim.
Depois de apresentar estes exemplos fica claro que a pergunta que me fiz a
alguns parágrafos atrás, “quando os kamaiurá precisam saber as horas?”, só poderia
obter respostas vindas do espectro que mais se relaciona com aspectos da sociedade
ocidental da cultura kamaiurá. A pergunta correta, tendo em vista suprir meus objetivos,
seria, talvez, “quando os kamaiurá sentem o tempo passar?”. Como vimos no primeiro
exemplo, sobre quando voltar da roça é o calor que define este momento, calor que é
produzido pelo sol em intensidades diferentes durante o ano. Isto significa que o horário
em que os kamaiurá saem da roça varia durante o ano? Tomando como base a maneira
ocidental de medir e de pensar o tempo, a resposta correta é sim, no entanto, como
antropólogo, o que quero é exatamente entender o modo kamaiurá de mensurar e de
pensar o tempo, nesse caso, a reposta é não.
Pela mesma razão que posso dar respostas diferentes para a mesma pergunta,
dependendo se tomo como base um ou outro sistema de interpretação, pude dizer, no
segundo parágrafo da página 14, “Se na nossa sociedade o sol nasce todo dia em um
horário diferente, na sociedade kamaiurá o sol nasce diferente todo dia em um mesmo
horário”. Parece contraditória a frase a primeira vista mas considerando que a primeira
parte refere-se a uma cultura e a segunda parte a outra cultura – duas realidades
diferentes – a frase torna-se didática, pois expressa uma diferença latente.
Até esse momento trabalhei primordialmente com a forma como os kamaiurá
organizam e vivem essa organização do ciclo diário de suas vidas. Já utilizei como
exemplo, no entanto, a percepção das Plêiades, quando é chegado o tempo do Yawari. A
partir desse momento tratarei dos períodos mais longos de tempo que os kamaiurá
percebem e identificam, a forma como os identificam e a importância que estes têm.
Após a abordagem desta esfera pretendo tentar concluir este trabalho analisando a
dinâmica das relações destas duas esferas do sistema de mensuração de tempo
kamaiurá.
Os kamaiurá não têm na organização de seu sistema nomes que identificam e
diferenciam os “dias da semana”. Sabem e hoje em dia estão sempre atualizados em
relação ao sistema ocidental, que diversas atividades precisam ser efetuadas tais e tais
dias, assim como certos programas de televisão que passam em um dia, em outro não.
Esse conhecimento do sistema ocidental, no entanto, não interfere significativamente no

31
cotidiano da aldeia, sábado e domingo, por exemplo, são dias iguais aos outros, a não
ser pela programação da TV, o posto indígena fechado, o rádio desligado, etc.
“Hoje”, em kamaiurá, se diz ankóut, “amanhã” óiram e “ontem” ikué. “Depois
de amanhã” diz-se óiram amue. Uma conversa interessante que tive com um índio
chamado Tacapa (um velho, chefe de casa) e Antônio (marido da técnica de
enfermagem que mora dentro da aldeia) me permitiu vislumbrar a organização e a
relação dos kamaiurá com os “dias”. Era pouco antes do meio-dia e Tacapa chega na
casa de Antônio com as roupas bastante sujas e se lamentando de não ter ninguém que
lhe ajude a catar sapé para cobrir sua casa. Conversando sobre quanto sapé ele ainda
tinha que catar e de quanto tempo demoraria a terminar, percebi algumas peculiaridades.
Para dizer o que poderia ser traduzido para o português dessa maneira: “amanhã vou
tirar mais 2, depois de amanhã mais 2, depois mais 2, depois mais 2”; ele disse:
“amanhã vou tirar mais 2, depois amanhã mais 2, amanhã mais 2, amanhã mais 2”.
Como eu escrevi em meu diário de campo: “utilizando a palavra “amanhã” para se
referir ao dia seguinte daquele anterior, mas não tendo como referência o dia de hoje”,
mas o de amanhã, ou depois. Quando os ocidentais se referem à daqui a três dias,
falando “depois, depois, depois de amanhã”, têm como referência o dia de “hoje”, o dia
corrente. Os kamaiurá para se referirem a daqui a três dias, falam “amanhã, amanhã,
amanhã”, transferindo o ponto de referência também para “amanhã”.
Mesmo os kamaiurá não identificando os dias da semana quis saber se eles
identificavam algum ciclo relativo a semana. Pensei nesse intervalo de tempo porque ele
não é meramente “arbitrário”, no sentido de que existem ciclos naturais que indicam de
alguma maneira os ciclos “semanais”. Estes ciclos naturais, no caso, seriam as fases da
lua. Não que estas coincidam perfeitamente com o começo de cada semana no sistema
ocidental, posto que na realidade isto não importa, mas o que importava sim era que
perceber as mudanças de fase da lua poderiam sugerir a identificação de algum ciclo de
aproximadamente 7 dias. Investigando com o intuito de resolver este problema descobri
que os kamaiurá não identificam as fases da lua, quer dizer, não as fases da lua que os
ocidentais identificam e, mais importante, identificam suas próprias fases a partir de
suas próprias prioridades. Explico. Ao falar expressamente sobre as fases da lua
“ocidentais” sempre recebia a resposta que isso não tem aqui não, que isso é coisa de
karaíba. No entanto em outra oportunidade, percebi que as mudanças identificadas na
lua pelos kamaiurá não dizem respeito ao seu “tamanho” no céu, mas sim a posição e o
momento em que ela aparece no céu.

32
Conversando com Takumã sobre sua iniciação como pajé ele me disse que a
primeira parte desta tinha durado 8 meses. Já havia perguntado pra ele em outra ocasião
se havia alguma palavra em kamaiurá para mês, ele me respondeu, após uma longa
pausa, que não. Relembrei então isto que ele tinha me dito e perguntei como eles faziam
para saber quantos meses tinham se passado, ele me respondeu que pela lua. Percebi que
a percepção das mudanças da lua que eles tinham não tinha como objeto central seu
tamanho e sim a posição em que ela aparece no céu apenas no momento em que
Takumã esticou seu braço paralelamente ao chão e o movimentou horizontalmente
indicando a mudança de posição da lua conforme se passava o tempo36.
Em varias perguntas que eu fazia a Takumã, e ele foi um dos meus maiores
informantes, ele me dizia que não sabia, ou que não tinha, como no caso da palavra
“mês” relatada no parágrafo anterior. Algumas vezes que isso acontecia, quando tinha
alguém por perto, as pessoas diziam que tinha essa ou aquela palavra. Outras vezes,
quando estávamos sozinhos, eu fazia outra pergunta ou mudava de assunto e deixava
para fazer a mesma pergunta a outra pessoa em outro momento. No caso da palavra
mês, ao perguntar a Mapulu (filha de Takumã) como se falava em kamaiurá, ela me
disse iayarehek. Voltei, após ter essa informação, e perguntei a Takumã se mês não
poderia ser dito “iayarehek”, e ele me respondeu que sim.
Interessante que foi apenas algum tempo depois, quando já tinha saído da aldeia
e estava na cidade de Canarana, trabalhando com as palavras que eu tinha recolhido,
entre elas iayarehek, que percebi que iay significa “lua” e arehek, literalmente, “depois”.
Iayarehek, dessa maneira, não significa “mês”, no sentido que esta última tem para a
cultura ocidental. Significa, literalmente “lua depois”, que acaso vai ser sempre um mês
(como categoria exclusiva ocidental) após a lua de agora (lembrando que a partir da
maneira kamaiurá de perceber as mudanças da lua, pois através da maneira ocidental
“lua depois” seria “semana que vem”), mas que não obedece aos parâmetros de início e
fim a que estão sujeitos o período “mês” na cultura ocidental.
Talvez alguns possam pensar que o fato de Takumã ter me dito primeiramente
que não existia uma palavra em kamaiurá para mês tire a importância que iayarehek tem
36
É interessante colocar que existem dois modos de percepção da mudança na lua no que concerne a
posição em que aparece no céu. O primeiro é este já colocado, que tem como referência o movimento
horizontal de aparição da lua em relação ao horizonte e marca o ciclo que podemos chamar de “mês”. O
segundo percebe a mudança da lua verticalmente no céu e marca o ciclo que podemos chamar de “dia”.
Este outro modo de perceber a lua quem me mostrou foi Chico, ao me dizer que “ontem a lua nasceu
quando o sol morreu”, indicando com o braço estendido o local onde a lua apareceu, e depois, “hoje ela
vai aparecer umas 20h” (usou o termo em português, normal pelo fato de estar falando comigo) e apontou
o estendeu o braço em direção ao local onde ela iria aparecer “hoje”.

33
para a análise do sistema kamaiurá de mensuração de tempo. Sobre isso, tenho duas
coisas a dizer. A primeira diz respeito ao caso específico de iayarehek, e é que tomei o
dito no último parágrafo como uma explicação para o fato de Takumã não ter citado a
palavra, isso levando em consideração que ele é um ancião e teve muito menos contato
com o sistema de medir o tempo ocidental que os mais novos. A segunda foi-me dita
pelo próprio Takumã em uma das várias vezes que eu lhe trouxe palavras que os mais
novos tinham me dito e que ele dizia que não existia. Ele disse: “isso é assim mesmo, os
mais novos. É assim que inventa...”. Iayarehek, então, uma possível invenção dos mais
novos. Uma invenção motivada pela vontade de entendimento de um sistema
desconhecido, um entendimento que é guiado pela maneira de perceber e pensar o meio,
próprio de cada um, de cada cultura. E naquilo que de mais próximo eles teriam de
“mês” a relação foi feita.
No significado da palavra iayarehek (“mês”), podemos entrever que os kamaiurá
não nomeiam os meses, algo como Janeiro, Fevereiro, etc.. O “mês”, em kamaiurá, não
existe a não ser em sua passagem, a não ser na mudança de um pra outro, pra outro, pra
outro (e nunca pra “um” de volta). O intervalo “mês” é percebido, mas a percepção de
sua mudança não está assentada em um dia específico. É sempre “mês” que passou pra
alguma coisa. Hoje me acontece isso e a lua está lá, “lua depois” que vem, fará uma “lua
depois” que aconteceu comigo aquilo. Quer dizer, existem diversos ciclos de
aproximadamente 30 dias sendo percebidos ao mesmo tempo por diversos indivíduos da
sociedade kamaiurá. Um acontecimento importante pode ser percebido hoje e dá início
a um ciclo “mensal”, outro acontecimento amanhã, e mais um ciclo começa a ser
percebido, e assim por diante. Como nomear algo que é sempre diferente, ao mesmo
tempo em que é igual sempre em um mesmo aspecto? Ressalta-se o aspecto em comum,
exatamente o caso de iayarehek.
Outro ciclo a respeito do qual me preocupei em estudar como os kamaiurá o
identificavam e qual a sua importância deste para o dia-a-dia dos sujeitos foi o relativo
ao ano. Relembrando que os termos em português que utilizo para fazer referência aos
ciclos identificados pelos kamaiurá não são ideais no sentido que não definem
plenamente o que quero dizer, ou o que é o “ano kamaiurá”, por exemplo. Faço essa
ressalva porque de fato diversos dos ciclos identificados pelos kamaiurá tem alguma
relação com os ciclos identificados pelos ocidentais, principalmente no que diz respeito
a duração destes ciclos. No entanto, essa relação de afinidade dos tamanhos dos ciclos
identificados por uma e outra cultura é importante apenas se considerarmos importante

34
o tamanho dos ciclos. No caso anterior do “mês”, observamos que a relação que fazem
os índios de iayarehek com o ciclo mensal da cultura ocidental esta assentada sobre a
percepção da duração parecida de um e outro ciclo. Acredito que um ocidental,
pensando o tempo da sua maneira, não teria relacionado iayarehek com “mês” pois falta
ao primeiro um dia de início e fim, falta a possibilidade da predição de quando
começara este e acabara aquele, falta, enfim, aquilo que possibilita ao princípio da
repetição ter o papel que têm no sistema ocidental de medir o tempo, a saber, a unidade
básica que pode ser dividida e multiplicada.
Ano diz-se em kamaiurá kwaryp, tanto segundo Seki (2000) quanto informações
coletadas por mim na aldeia. Kwaryp é também o nome do ritual funerário intertribal
que tem grande importância na vida cerimonial dos povos alto-xinguanos37. São raras as
vezes em que um tribo alto-xinguana não participa do Kwaryp, seja como aldeia
hospedeira do rito, seja como aldeia convidada. Os kamaiurá, no ano de 2006
realizaram em sua aldeia o Kwaryp e enquanto estive lá pude observar o começo dos
preparativos para o rito deste ano (2007), que acontecerá apenas em Junho, mas que já
mobiliza boa parte da aldeia nos seus preparativos.
Tomando os significados originais de cada termo (“ano” e “kwaryp”) em suas
respectivas sociedades, veremos que a relação não é inequívoca, no sentido de que ela
não é tão óbvia quanto parece. O ritual do Kwaryp acontece todos os anos, tendo seu
início e fim mais ou menos à mesma época. Como já disse, enquanto estive lá pude
observar diversas atividades, tanto práticas, como preparar o pequi para ser guardado até
Junho, como rituais, como cantos e brincadeiras, sendo desempenhadas já para o
Kwaryp, sendo já, o Kwaryp. Nesse sentido o Kwaryp já esta acontecendo e só ira
acabar em Junho, quando o rito atinge seu clímax com a chegada das aldeias
convidadas. Dessa forma vimos que nem a duração do rito (mais ou menos seis meses),
nem seu fim coincide38 (sobre seu início trataremos a seguir) com as características do
ano ocidental.
É relatado na literatura da década de 80-90 sobre a área que o mês de Junho é a
época do Yawari. Esta invenção, citando Takumã, pode ter sido desencadeada por
mudanças climáticas. Um possível evidência é o fato de Agostinho apontar como o

37
AGOSTINHO, Pedro. Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo, 1974. Editora Pedagógica e
Universitária Ltda., Editora da Universidade de São Paulo.
38
No sentido de que se considerarmos que os kamaiurá hoje em dia tem conhecimento e compreendem de
certa forma o calendário ocidental, poderíamos pensar que, se acaso assim fosse, os kamaiurá teriam
traduzido “ano” em kwaryp por causa de coincidências entre a duração e as datas de início e fim que cada
conceito têm em sua respectiva sociedade tradicionalmente.

35
começo da época das chuvas e do amadurecimento do Pequi como sendo Outubro e, no
entanto, me lembro que mesmo alguns dias antes de ir embora Takumã me dizia que os
Pequis ainda não “caem muito”, sai da aldeia Ipavu no dia 14 de Novembro.
Perguntei ao Chico, depois que este me explicou como se falava “ano” em
kamaiurá, como eles faziam para saber quando muda o ano. Ele me disse que pela
chuva, “quando começa a chover, a gente sabe que tá mudando o ano, quando acaba,
mudou”. O ritual do Kwaryp tem certamente relação com o começo da estação chuvosa,
tendo em vista que é nessa época que os rios estão com um menor volume de água,
possibilitando o encurralamento dos peixes e sua conseqüente captura. Boa parte desta
pesca é feita para suprir a necessidade de alimentação dos convidados de outras aldeias
durante a parte intertribal do ritual.
Algumas considerações sobre o dito no parágrafo anterior. O fato de Chico ter
apontado as chuvas como marco entre um ano e outro pode ser reflexo já do calendário
ocidental.Porém alguns outros fatos me levam a pensar o contrário. Uma pergunta que
me fiz, e que já respondi no parágrafo anterior, foi porque o Kwaryp acontece quando
acontece e porque tem está periodicidade específica. Apenas para relembrar, por causa
do começo das chuvas, que impossibilita a pesca depois que enche os rios . A estação
chuvosa começa no mês de outubro e se estende até o mês de abril. O “tempo de
kwaryp”39 começa em novembro e termina, baseando-me no rito deste ano, no final de
junho ou começo de julho. Essa questão não pode ser solucionada neste momento, para
isso preciso voltar a campo e continuar minha pesquisa. Me pergunto se o ciclo “ano”,
traduzido pelos kamaiurá como “kwaryp”, era um termo tradicional do sistema de
mensuração de tempo kamaiura ou se este foi criado como resposta ao “ano”
ocidental40. Os fatos que expus acima me levam a acreditar que os kamaiurá tinham sim
um ciclo relativo a ano e que identificavam a passagem de um para o outro ano (mesmo
que essa passagem seja, como Chico da a entender, um processo longo e demorado, que
dura toda a estação das chuvas) na estação chuvosa, esta última essencial para o Kwaryp
(o rito). De qualquer forma, sendo ou não o ciclo “ano” um termo tradicional do sistema
de mensuração de tempo kamaiurá, é coerente eles traduzirem “ano” por kwaryp e

39
Para esclarecer, o Kwarýp de uma pessoa, como já disse, começa com a morte desta. O “tempo de
kwarýp”, kwarùwamó’e, se inicia com o começo dos preparativos por parte da aldeia para o ritual que
esta por vir.
40
Não sei se nome do ritual (Kwaryp) era utilizado também para se referir a um intervalo de tempo,
intervalo este que duraria um ano (uma relação estranha tendo em vista que o próprio ritual tem uma
duração bastante longa), mas sim se o intervalo de um ano, entre um Kwaryp e outro, por exemplo, é
significativo e significado de alguma forma especial pelos kamaiurá.

36
identificarem na estação chuvosa o marco de passagem de um ano para outro, mais
coerente pois é exatamente junto com a estação chuvosa que começa o “tempo de
kwaryp”.
Sobre a estação da chuva é interessante colocar que ela é a única que recebe um
nome, amary. Esta informação me foi passada por Takumã em uma conversa que estava
tendo com Chico. Depois de conversar sobre “qualquer coisa” durante algum tempo
perguntei a Chico se os kamaiurá também reconheciam as estações do ano, se eles
tinham nomes para a “primavera” o “verão”, etc. Ele pensou depois de pensar por algum
tempo. Me disse que não, que eles não tinham não. Nesse momento Takumã estava
passando e Chico resolveu perguntar a ele se eles tinham alguma coisa como estações
(me lembro de Chico falando em kamaiurá e depois os nomes das 4 estações em
português). Takumã respondeu que sim, mas que eles tinham só uma. Só o inverno.
Perguntei e o verão, como se falava verão. Ele me disse que não tinha não.
Até esse momento eu tratei quase que exclusivamente do sistema de mensuração
de tempo kamaiurá, tentei fazer uma descrição através de impressões e interpretações
que tive no campo, após ele, e também neste exato momento em que escrevo. Uma
conclusão eu não posso apresentar, eu nem mesmo sei o que seria ela diante de tudo que
tenho em minha frente. O que farei são algumas considerações finais amarrando
algumas idéias que podem ajudar a esclarecer o que é o sistema de mensuração de
tempo kamaiurá. Algumas idéias que se mostram bastante claras nesse momento, mas
precisam ser mais bem focadas para que suas entranhas apareçam apesar da luz. No
entanto estás considerações serão feitas apenas após falar um pouco sobre o sistema
aritmético kamaiurá.

A aritmética kamaiurá

A “aritmética” é a ciência matemática que estuda o modo como os números são


combinados através das quatro operações básicas. O sistema aritmético ocidental
(chamado na realidade de hindu-arábico) tem base dez. O sistema aritmético kamaiurá
parece ser um sistema quinário41, apesar de que o modo como é organizado o sistema
aritmético kamaiurá e o modo como é organizado o sistema aritmético ocidental não
permite que os classifiquemos a partir do número de elementos que cada um tem em sua

41
Menezes Bastos (1974, pp.156) sugeri que o sistema numérico kamaiurá seria de base quinária.

37
base. Penso que o modo como o sistema aritmético kamaiurá funciona talvez não me
permita classificá-lo a partir do número de elementos que ele tem em sua base, estas
dúvidas, no entanto, só poderão ser esclarecidas em minha próxima ida a campo.
Apresento na próxima página uma tabela com os termos kamaiurá referentes
aos números de um a dez. Este intervalo de um a dez não foi definido arbitrariamente.
Em minhas conversas com Takumã e Kotok diversas vezes ambos afirmaram que os
Kamaiurá contam apenas até dez. No entanto, como relatarei após tratar desses dez
termos iniciais, os sujeitos inventam estratégias a partir do modo como se relacionam
com um e outro sistema aritmético, estratégias estas que lhes permitem equacionar as
diferenças de um e outro sistema no seu dia-a-dia.
Ao contrário da tabela número 1, está não tem uma coluna para a glosa dos
termos em kamaiurá. Isto porque em sua maioria não foram colocadas por meus
informantes e eu não tenho condições de formulá-las com meus conhecimentos atuais
sobre a língua kamaiurá. De qualquer forma tenho algumas informações que devem ser
apresentadas. A palavra nhenepomõmap (5) foi dita como significando “mão cheia”. Os
números de 6 a 9, como pode ser percebido, é uma combinação dos primeiros quatro
termos com nheneva (“mão”). Perguntei a Kotok se a palavra amongaty significa
“mais”, ele me disse que não, significa “outro lado”. Quer dizer é uma mão, junto com
os dedos do outro lado, da outra mão, que representa 6 a 9. Por final, a palavra
nhenepopap (10), significa “acabou os dedos”42.
Tabela 2
Número ocidental Termo referente em kamaiurá
1 Mõiepete
2 Mõkoen
3 Mõaput
4 Mõinhon iru
5 Nhenepomõmap
6 Nheneva amongaty mõiepete
7 Nheneva amongaty mõkoen
8 Nheneva amongaty mõaput
9 Nheneva amongaty mõinhon iru
10 Nhenepopap

42
Sobre os significados que coloquei acima referente a cada termo, é importante dizer que quem os
construiu foram os próprios Kamaiurá. Importante também ressaltar que Seki (2000, pp.79-80) constrói
uma etimologia bastante aprimorada. Eu não transcreverei por completo estas etimologias pois acabam
por reiterar o significado colocado pelos índios, no entanto, posteriormente darei alguns exemplos de
etimologias úteis para o entendimento da discussão.

38
É desnecessário dizer a relação direta dos dedos (como veremos a seguir não
apenas os das mãos) com a forma como os kamaiurá contam. Acredito que a
representação subjetiva deste modo de contar se diferencia de maneira paradigmática
daquela produzida pelos números ocidentais. Um é um. Dois é um mais um. Três é um
mais... e assim por diante, até onde quisermos. No caso kamaiurá me parece improvável
que mokõen seja mõiepete mais mõiepete. Dois não é uma repetição de um. Algumas
observações sobre o modo como os kamaiurá contam irá ajudar a compreender porque
afirmo o que acabei de dizer.
A referência aos dedos não é um mero acaso. Quando um kamaiurá conta ele
invariavelmente utiliza seus dedos para isso. Seja quando o faz em kamaiurá seja
quando o faz em português (nesse último caso apenas até dez) a cada número falado um
dedo é estendido. Interessante que parece haver uma mão correta para se iniciar a
contagem, assim como uma ordem correta para a extensão dos dedos. Observei uma vez
a irmã de Kotok (Mapulu) contar quantos filhos tinha seu irmão. Kotok tem mais de
vinte filhos, fato que impossibilita a contagem destes em kamaiurá. Mapulu não
começou a contar desde o início, ela lembrava-se que ele tinha já um certo número de
filhos (mais que 15) e começou a fazer a conta a partir dos que foram nascendo desde o
momento em que ela tomou como referência. Ela tinha os dedos das duas mãos
estendidos e, sentada com as pernas esticadas, olhava fixamente para seus pés,
acrescentando filho por filho e dedo por dedo.
A aparição, no sistema aritmético kamaiurá, dos quatro primeiros termos nos
termos de 6 a 9 pode parecer uma repetição, uma adição de iguais. No entanto, como já
disse anteriormente, mas que talvez só agora se torne visível, amongaty não significa
“mais” mas sim “outro lado”. Esse “outro”, certamente, não um igual. É difícil acreditar
que um dedo que esteja em uma mão, e outro que esteja em outra mão, sejam o mesmo
dedo. Apenas a volta a campo irá tornar possível uma interpretação mais sólida desses
fatos que percebi. Dessa maneira, também não poderei nesse momento explicar e
justificar satisfatoriamente porque digo que mõkoen é mõkoen e não mõiepete mais
mõiepete. Faço agora apenas um esboço de como começo a equacionar tudo que vi em
relação ao sistema aritmético kamaiurá, porque penso o que penso e que informações
me serão úteis na construção de uma interpretação sólida.
Começo por pensar no fato de existir uma mão correta pela qual se deve
começar a contagem e uma ordem correta para a extensão dos dedos. Se existe uma
ordem é porque certamente ela significa ou representa algo. Se não podemos levantar

39
aleatoriamente um dedo a cada número contado é porque cada um desses números deve
manter alguma relação direta com cada um dos dedos. Seria importante, para
aprofundar esta linha de pensamento, saber se os kamaiurá nomeiam cada um de seus
dedos separadamente. De qualquer forma, em comunicação pessoal com meu orientador
soube que o lado direito (aeté katy) e esquerdo (iau katy) são equacionados,
respectivamente, como “bom”, “belo” e “sinistro”. Em Menezes Bastos (1989, p.212)
encontramos um relato feito por um de seus informantes que diz: “Na festa de verdade,
no Kwaryp, não se pode fazer isto. O Kwaryp está no ‘princípio’. O Yawari no ‘meio’.
O Yawari é uma ‘comédia’, é ‘ciúme’, é ‘vergonha’. Não há ‘respeito’ no Yawari”. A
relação que faço parte do fato de que os kamaiurá começam a contar sempre a partir da
mão direita43, o lado do “bom” e do “belo”, característica do Kwaryp, rito do
‘princípio’.
Concomitantemente, a forma como os kamaiurá se referem aos números é
também assentada sobre a percepção dos dedos. Alguns exemplos de como Seki (2000)
constrói as etimologias dos numerais cardinais irá clarificar o que quero dizer com
“assentada sobre a percepção dos dedos”.
“A palavra jenepomomap “cinco” é claramente constituída dos morfemas jene
“primeira pessoa inclusiva”, -po “mão”, mo- “prefixo causativo” e –pap “terminar”,
correspondendo literalmente a “fazer terminar nossa mão”, e a palavra para “dez”,
jenepopap, contém os mesmos morfemas, exceto o prefixo causativo, correspondendo a
“nossas mãos terminaram””. A correspondência não literal das palavras jenepomomap e
jenepopap são colocadas por Seki (idem) como, respectivamente: “cinco ou em cinco” e
“dez ou em dez”. Todas as glosas dos termos da tabela de Seki, exceto mojepete e
mokõen, que recebem como glosa respectivamente “um, uma vez” e “dois, duas vezes”,
seguem o mesmo padrão que jenepopap e jenepomomap, a saber: “n ou em n”, sendo
“n” o numeral correspondente ao termo kamaiurá em português.
Outras etimologias interessantes que Seki faz são as que se referem aos números
de 6 a 9, de 11 a 14 e, finalmente, de 16 a 1944. Os termos que ouvi referentes aos

43
Não apenas um acaso. Lembro-me que Kotok me falou expressamente dessa necessidade de se começar
a contar pela mão direita.
44
Disse anteriormente que nas diversas vezes que perguntei a Kotok e Takumã coisas sobre o sistema
aritmético kamaiurá sempre me foi reiterado que os kamaiurá contam apenas até dez. No entanto fui a
campo já tendo contato com a gramática de Seki e, dessa forma, sabendo da possibilidade de eles
contarem até mais que dez. Enquanto estive lá, duas vezes, uma conversando com o professor da escola e
outra conversando com um homem mais novo, pude entrar em contato com como contar além de dez. No
entanto meu encontro com essas pessoas eram sempre breves e muito pouco freqüentes, fato que me
impossibilitou anotar ou chegar mesmo a ter conhecimento de todos os termos utilizados nessa contagem.

40
números de 6 a 9 são bastante diferentes daqueles que Seki apresenta. “Seis”, por
exemplo, é grafado em Seki (2000 pp. 79) jene poa wero’yahap mojepete. A etimologia
para este termo é a seguinte: jene, “pronome cíclico primeira pessoa inclusiva”; -po,
“nome, significa mão”; -ero’yahap, “verbo, passar por, passar além de, atravessar” e;
mojepete, “numeral, um”. O significado literal apresentado por Seki como “passar por
nossa mão uma vez”. Os termos referentes aos numerais de 16 a 19 seguem a mesma
estrutura apresentada acima, sendo o morfema –po (mão), substituido pela palavra –py
(pé). Os termos para os números de 11 a 14 recebem o morfema pyai (dedo do pé) e são
montados em uma estrutura diferente. Um exemplo: 13 disse em kamaiurá mo’apyt jene
pyai wero’yahap. Não preciso explicar cada morfema individualmente tendo em vista
que já o fiz no começo deste parágrafo. O significado literal do termo, segundo Seki
(2000 pp.80) é “passar por três nosso dedo do pé”.
Seis são seis vezes um. O termo “seis”, no entanto, não remete diretamente a sua
trajetória até a “casa seis”. “Seis” pode ser seis, apenas. O termo correspondente a seis
em kamaiurá tem implícito em sua construção alguns sentidos “ocultos”. O termo
começa com um pronome na primeira pessoa, faz referência a mão, informando através
do verbo logo após que essa mão já passou, e em seguida o termo referente a “um”. Fica
implícito a passagem por toda uma mão, e depois mais um dedo, para chegar “em seis”.
A imagem subjetiva dos numerais cardinais kamaiurá me parece ser, impreterivelmente,
de uma densidade difícil de ser entendida a partir dos numerais cardinais ocidentais.
Todo número em kamaiurá, como disse no último parágrafo, não é apenas o número,
mas é também no número. Quer dizer, não se chega em seis sem antes percorrer todos
os caminhos até seis. Quero deixar claro que os kamaiurá, é claro, podem muito bem
falar em “6” sem ter que contar até “6”. Estou me referindo ao sentido do numeral em
si, ao significado implícito que a palavra carrega, e não a utilização dos termos.
Com estas poucas página escritas sobre o sistema aritmético kamaiurá acredito
ter dado conta de explicar boa parte daquilo que percebi em minha pesquisa de campo.
Um tema que ficou de fora, tanto na esfera do sistema kamaiurá de mensuração de
tempo, quanto da esfera do sistema aritmético kamaiurá, foi como a utilização de
artefatos (sejam simbólicos ou materiais) com origem na sociedade ocidental estão
fazendo com que os kamaiurá tenham que criar estratégias e resignificados que lhes
possibilitem um trânsito fácil entre um e outro sistema (o ocidental e o kamaiurá). A
razão por não abordar este tema foi a de que não este caberia neste TCC, e eu não teria

41
tempo para tal empreitada. Este será, sem dúvida, um dos meus objetivos em meu
projeto de mestrado.

Considerações finais

Acredito que o primeiro ponto que devo abordar em minhas considerações finais
deve remeter diretamente ao meu objetivo principal, o sistema de mensuração de tempo
kamaiurá. Já fiz uma descrição, o mais detalhada possível nos limites de minhas
possibilidades, da grande maioria daquilo que percebi durante meu trabalho de campo
entre os índios kamaiurá. O principal ponto dessa parte do texto será explicar através de
quais mecanismos o sistema kamaiurá de mensuração de tempo equaciona as relações
entre seus termos.
Como disse no começo deste trabalho, o sistema de mensuração de
tempo ocidental tem como um dos fundamentos para o seu funcionamento a
“repetição”. Repetição, no caso ocidental, que multiplica ou divide termos que através
dessas operações criaram novos termos. Temos como unidade básica de tempo no
ocidente o “segundo” e a partir dele podemos multiplicá-lo ou dividi-lo para
alcançarmos qualquer unidade de medida de tempo ocidental que existe. O sistema
kamaiurá de mensuração de tempo também tem como um dos mecanismos propulsores
de seu sistema a “repetição”, porém, neste caso, a repetição de termos que são de uma
natureza bastante distinta da do sistema ocidental45. Lembro meus leitores que nos
primeiros parágrafos da introdução disse que não basta saber contar em kamaiurá para
saber marcar o tempo em kamaiurá.
Nas últimas páginas do segundo capítulo, tomando contato com o sistema
aritmético kamaiurá descobrimos que os termos deste sistema e o de mensuração de
tempo não são os mesmos. No entanto, naturalmente, o sistema aritmético kamaiurá é
também usado para “saber o tempo”. Os kamaiurá costumam dizer, quando querem
contar quantos dias fazem que algo aconteceu, que se passaram “n dormidas”46. No
ritual do Yawari, por exemplo, o pareat (convidador) leva consigo um arco de imbira no
qual terá que fazer tantos nós quantos forem os dias que os convidados demorarão para
45
É preciso deixar claro que não apenas a “repetição” esta presente no sistema kamaiurá, mais adiante
veremos que tão importante quanto esta, para eles, é também outra dimensão do tempo. Veremos nos
últimos parágrafos deste trabalho que a “repetição” não é a única forma que percebemos o tempo, de
maneira alguma. Minha ênfase nesta esfera se dá por causa da ênfase que a sociedade ocidental põem
nesta.
46
Esta informação me foi passada por meu orientador.

42
chegar (o Yawari, “festa da Jaguatirica”, é também um ritual inter-tribal alto-
xinguano(GALVÃO, 1979)47. Nos dois casos o sistema aritmético é utilizado
paralelamente a outras noções para informar um certo intervalo de tempo.
Alguns comentários sobre o primeiro exemplo (“n dormidas”) e o começo do dia
kamaiurá. Uma pergunta que me fiz, ao não encontrar nenhuma “pista” sobre quando
começa e termina o “dia” kamaiurá foi se eu não estaria fazendo a pergunta errada.
Tentei perguntar “o que é a primeira coisa que o kamaiurá faz quando o dia começa?”. A
resposta que recebia era ou “banhar” ou trabalhar, as duas primeiras coisas feitas
durante a manhã. Ao revisar as etimologias de algumas palavras na gramática de Seki
(2000), encontrei a palavra em kamaiurá referente a “dia” em uma tabela que relaciona
os diferentes momentos do “dia” (período de 24h) kamaiurá com as respectivas “horas”
em português, dela também foi retirada a glosa “dia, luz”, para at. O significado da
palavra dia em português pode tanto indicar um período de 24h como o período
compreendido entre o nascer e o por do sol. At que é utilizada como termo para se
referir à 4h, não encontra “tradução” absoluta em nenhum dos dois significados
possíveis para “dia” em português, relaciona-se mais estreitamente, certamente, com o
segundo deles48. Este fato explicaria porque todas as respostas que recebi relacionando-
se com esse assunto indicavam como o começo do “dia” kamaiurá o amanhecer. Tenho
como certo que o começo (e seu fim) do “dia” (período de 24h) kamaiurá, seguindo o
que indica Menezes Bastos (1989), é marcado pelo payemet, este sendo o ponto de
intersecção entre um e outro “dia”. Como já foi dito, antigamente os kamaiurá iam
deitar-se bastante cedo, logo após o payemet, e tendo isto em mente, seria normal eles
utilizarem as noites de sono, a primeira coisa que fazem no começo de seus dias, para
marcarem o transcorrer destes.
Os ocidentais também utilizam, paralelamente ao seu sistema de medida o seu
sistema aritmético para expressarem medidas de tempo. Dizemos: “6 meses”’; “7 dias”;
“10 anos”. Estes exemplos, propositalmente escolhidos, nos permitem visualizar a
natureza da repetição do sistema de mensuração de tempo ocidental. Este sistema,
baseado em certas conexões com a realidade, interpreta esta realidade criando
“intervalos” de realidade, estes intervalos, por sua vez, podem ser agrupados e
reagrupados de modo a organizarem novos intervalos, e assim sucessivamente. Dessa
maneira “6 meses” se transforma em “1 semestre”, “7 dias” em “1 semana”, “10 anos”
47
GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades. Índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p.46.
48
At foi também a palavra que me indicaram para se referir a “tempo”.

43
em “1 década”. Voltando ao caso kamaiurá, “n dormidas” não será uma semana, ou mês,
independentemente de quantas noites se passarem. É interessante que eu não tenha tido
contato com este “modo” de expressar a passagem dos dias. Em nenhum momento eu
recebi como resposta, ou ouvi algo que fizesse pensar nisso que Menezes Bastos aponta.
Este fato pode ser esclarecedor.
Faz sentido que os kamaiurá marquem a passagem dos dias contando quantas
noites foram dormidas tendo em vista que o começo do seu dia se da durante o payemet.
A primeira coisa que fazem em seu “dia” marca a passagem deste. O payemet, no
entanto, este começo e final, é indicado por Menezes Bastos como sendo um intervalo
fora do tempo. Eu não ter tido contato com esta forma de mensurar o tempo kamaiurá
talvez tenha como explicação eu estar focando tudo exatamente no sistema de
mensuração destes. Menezes Bastos, interessado que estava com outros assuntos, mais
especificamente, no caso, com o ritual do Yawari, presenciou Takumã perguntar a
pessoa encarregada de convidar outras tribos para o rito: “quantas dormidas para a
chegada dos (...)?” Este “digitou “três”, apontando com o dedo indicador da mão direita
para uma série de três dedos da esquerda”. Interessante ressaltar que o “convidador”
voltou de sua jornada às 20h e que os convidados, três dias depois, mesmo já estando
nos arredores da aldeia kamaiurá há algum tempo, esperaram até às 19h45min para
oficialmente se apresentarem no rito.
Dessa maneira que eu, procurando por artefatos que mostrassem de forma mais
clara o sistema de mensuração de tempo kamaiurá, não pude encontrar esta forma de
mensurar o dia. Não porque fiz as perguntas erradas, mas porque procurei no lugar
errado. Procurei sempre onde havia o tempo para saber como os kamaiurá pensam o
tempo, o que percebo apenas agora é que tão importante onde há tempo, para os
kamaiurá é também onde não há. Marcar os dias pelas noites dormidas porque o novo
dia começa nessa “dormida”, um novo dia marcado por um “descontínuo”, um novo dia
“anunciado” durante o final do “dia”.
Esse descontínuo me parece ser a chave para entender a diferença crucial entre a
repetição kamaiurá e a repetição ocidental. A repetição exige que características em
comum existam entre os termos que estão sendo repetidos. Esta afirmação pode parecer
sem sentido, tendo em vista que se repetimos um termo de qualquer sistema teremos,
certamente, características em comum entre um e outro termo. No entanto no dia-a-dia a
repetição acontece baseada em certos “sinais” que nossa cultura nos faz perceber, em
outros não. Os kamaiurá tem como um desses “sinais” o momento do payemet, e a

44
subseqüente “dormida”. O fato de o payemet ser considerado um momento fora do
tempo faz com que a passagem de um dia para outro aconteça de uma forma
descontínua, marcada por um intervalo que, no que se refere ao meu estudo, e pelas
características próprias que têm, não podemos nem mesmo chamar de intervalo, posto
que é atemporal.
Esta descontinuidade me parece acarretar algumas características para o sistema
de mensuração de tempo kamaiurá. A repetição kamaiurá não é repetição de iguais, é
repetição de diferentes. A repetição ocidental é capaz de criar novos termos em seu
sistema a partir de outros termos, a semana, por exemplo, repetindo-se o dia sete vezes.
O sistema kamaiurá de mensuração de tempo não apresenta esta característica, novos
termos não são criados a partir da repetição de outros. A repetição kamaiurá é a
repetição dos ciclos naturais. Todo intervalo percebido pelos kamaiurá podem ser
repetidos quantas vezes estes forem capazes de contar. No entanto, a relação dos termos
do sistema não se da a partir da repetição. Os kamaiurá podem certamente dizer que já
fazem 5 dormidas que ele esta esperando, e ai certamente existe repetição, posto que ele
identifica as dormidas como 5. No entanto, ele poderá identificar quantas dormidas
forem que este intervalo não vai nunca se transformar em outro intervalo. Ele identifica
as dormidas em referências muito claras, seu próprio sono, seu próprio sonho (é
interessante que boa parte das conversas durante a manhã gire em torno dos sonhos da
última noite), mas a repetição destas referências não significa a repetição do dia, do
mesmo dia.
Quando digo que “não basta saber contar em kamaiurá para saber medir o tempo
em kamaiurá”, estou fazendo uma paródia transportando a lógica ocidental para o caso
kamaiurá. Agora, após ter esclarecido um pouco sobre o sistema aritmético kamaiurá,
posso dizer que este e o sistema de mensuração de tempo funcionam através dos
mesmos mecanismos. Isto não significa que os dois são parecidos, nada além daquilo
que acabei de dizer. Disse em algum momento que mokõen não é moiepete mais
moiepete (dois não é um mais um), por causa da relação intrínseca que a imagem
simbólica dos termos mokoen e moiepete têm com um objeto muito concreto, o(s)
dedo(s). O mesmo acontece com os termos do sistema de mensuração de tempo
kamaiurá, como pôde ser observado na tabela 1, e com as dormidas, comentada nos
últimos parágrafos. Ambos os sistemas tomam seus pontos de referência como
constituintes de seus termos, e o princípio que orquestra a relação entre estes termos tem
na forma como os sujeitos percebem as tais referências sua força motriz.

45
E aí temos esclarecida a repetição kamaiurá. A percepção da repetição dos ciclos
que eles escolheram perceber, é baseada em referências elas próprias constituintes do
sistema, como coloquei. O fato de estas referências serem elas mesmas constituintes do
sistema acarreta, pela concretude que estas carregam, uma percepção da repetição que
não vai além das próprias referências, posto que todo o resto é diferente. Como disse “se
na nossa sociedade o sol nasce todo dia em um horário diferente, na sociedade kamaiurá
o sol nasce diferente todo dia em um mesmo horário”. O fato de o sol nascer e
apresentar sua luz se repete, e é isto que é percebido, mas de maneira alguma o sol que
nasceu ontem de um jeito, vai ser hoje do mesmo. O fato de um dedo e outro dedo
serem ambos, dedos, é uma repetição, mas não conseguimos, olhando para nossos
dedos, confundi-los, ou imaginar que três mindinhos são um indicador.
Leach (1974) em dois artigos “Cronos e Crono” e “O Tempo e os Narizes
Falsos” estabelece que existem dois tipos de experiências no que se refere ao “sentir” o
tempo. Estas são: (1) “que certos fenômenos da natureza se repetem”; (2) “que as
mudanças da vida são irreversíveis”. LEACH (1974, pp.193). O autor diz ainda que na
moderna sociedade ocidental tende-se a dar mais valor para o segundo tipo de
experiência, mas que, pelo fato desta ser “desagradável” do ponto de vista psicológico,
busca-se fugir da mesma. Essa fuga seria o motor principal das religiões: achar um meio
de reverter as irreversibilidades da vida. O jeito mais usual de se fazer isso seria
identificando o “fim” com o “início”, equacionando o segundo tipo de experiência com
o primeiro.
Sobre “nosso modo de pensar” ele diz que “todo intervalo de tempo é marcado
pela repetição; ele tem um começo e um fim que são “a mesma coisa” (...) cada
intervalo de tempo é apenas uma parte de algum outro intervalo maior que, do mesmo
modo, começa e acaba repetidamente”. Esse pensamento nos levará a considerar que o
“próprio tempo (seja ele o que for) acaba por se repetir”. O autor argumenta que não
existe em nossa experiência fatos que sustentem esse modo de encarar o tempo e que
esse ímpeto viria exclusivamente da religião, ressaltando que o homem é um “animal
social”.
Antes de apresentar um outro modo de pensar o tempo, Leach ressalta o fato de
sentirmos o tempo “passar” de forma desigual durante nossa vida. Afirma que
realmente, como os organismos mais novos têm um metabolismo mais acelerado do que
os mais velhos, o tempo “passa” em velocidades diferentes para uns e outros, e o fato de
o considerarmos como uniforme também seria um reflexo da religião. Por fim diz que

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muitos povos não concebem o tempo como “rodando”49, mas como indo e vindo, como
um pêndulo. “Com uma visão pendular do tempo, a seqüência das coisas é descontínua;
o tempo é uma sucessão de alternações e paradas. Os intervalos são distintos, não como
os marcos de seqüência em uma régua de medida, mas como opostos repetidos (...).”
(LEACH, 1974. pp. 206).

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GALVÃO, Eduardo. Encontro de Sociedade: índios e brancos no Brasil. Rio de

49
Uma metáfora muito utilizada pelos matemáticos para representar a repetição do “próprio tempo”.

47
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GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNEPS, 1991.
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(Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, .
Orientador: Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira.

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Sites consultados

• http://www.socioambiental.org em 09 de Março de 2007;


• http://www.ipq.pt/museu/index.htm em 20 de Fevereiro de 2007;
• http://www.ipem.sp.gov.br/museu.asp em 20 de Fevereiro de 2007.

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