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A apropriação do solo no Brasil colonial e

monárquico: uma perspectiva histórico-


jurídica

Carlos Alberto Bittar Filho

Agora que se comemoram os quinhen-


tos anos do descobrimento do Brasil, nada
mais oportuno do que proceder a uma pro-
funda análise da apropriação do solo nos
períodos colonial e monárquico. O objetivo
do presente trabalho é, com supedâneo em
uma perspectiva histórico-jurídica, procu-
rar aclarar quais os títulos jurídicos que,
antes do advento do Código Civil (1917),
permitiam o acesso à terra.
Uma das formas de apropriação do solo
foi a aquisição de sesmarias. Surgidas em
Portugal para o povoamento e o aproveita-
mento útil das terras conquistadas aos mou-
ros, as sesmarias eram terras distribuídas
pela Coroa sob concessão. Se a terra conce-
dida não fosse devidamente aproveitada, a
Coroa tinha o direito de retomá-la. Falava-se,
nesse caso, emterra devoluta(= devolvida).
Assim que se iniciou a efetiva coloniza-
ção do Brasil, inclusive com o estabelecimen-
to das capitanias hereditárias e, posterior-
mente, dos Governos Gerais, houve a neces-
sidade de que se povoasse o território, ga-
rantindo-se a posse efetiva para a Coroa de
Portugal e, passadas as ilusões quanto à
existência de ouro na faixa litorânea do Bra-
sil, realizando-se o cultivo das terras. As-
sim, lançou-se mão da experiência da con-
cessão de sesmarias.
O primeiro produto cultivado foi a cana-
Carlos Alberto Bittar Filho é Procurador do
de-açúcar, em dois pontos fundamentais:
Estado de São Paulo e Doutor em Direito pela São Vicente e Pernambuco. Após um perío-
USP. do de prosperidade, São Vicente transfor-
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mou-se numa das regiões mais pobres da do descobrimento era estimada em cerca de
colônia, principalmente em decorrência de um milhão de habitantes. Os escassos re-
sua distância com relação a Portugal. Mas cursos técnicos na área agrícola não permi-
em Pernambuco a situação foi completamen- tiam aos portugueses enfrentar os desequi-
te diversa. A cana adaptou-se extraordina- líbrios e as incertezas típicas do clima tropi-
riamente bem ao solo, chamado de massa- cal (enchentes, chuvas torrenciais, saúvas,
pê, vermelho, oleoso e fertilíssimo. Além dis- etc.). Para a produção de açúcar em larga
so, o Nordeste tinha o privilégio de encon- escala, para exportação, havia a necessida-
trar-se mais próximo de Portugal. de de razoáveis cabedais; aliás, eles cons-
A partir de Pernambuco e do Recôncavo tituíam um dos requisitos oficiais a serem
Baiano, o cultivo da cana alastrou-se rapi- preenchidos pelo candidato a uma sesmaria.
damente por todo o litoral nordestino. A Estavam geradas as condições que per-
Zona da Mata, quente e úmida, passou a mitiram o surgimento do latifúndio no Brasil.
ver, pouco a pouco, o verde da floresta tropi- Sesmaria, monocultura de cana-de-açúcar,
cal ser substituído pelo verde da cana. Nordeste, escravidão, nobreza da terra e fa-
Por que a cana? O açúcar extraído dela brico de açúcar para exportação: essas foram
substituiu o mel como adoçante nas mesas as engrenagens fundamentais do sistema la-
européias. O cultivo dela já era realizado tifundiário nos primórdios da colonização.
por Portugal na Ilha da Madeira; os portu- A mentalidade de época ainda se encon-
gueses, portanto, já dominavam o seu culti- trava profundamente marcada pelo modo
vo e a tecnologia do fabrico do açúcar. O de produção feudal e pelos valores a ele re-
solo e o clima do Nordeste do Brasil se mos- lacionados, entre os quais estava a alta re-
traram extremamente favoráveis ao cultivo putação da terra. Iniciada a monocultura da
em larga escala. Já que a extração em massa cana-de-açúcar, sustentada pelo latifúndio
do pau-brasil praticamente o havia extin- escravista, dentro ainda de uma mentalida-
guido e também havia gerado sua desvalo- de feudal, a terra tornou-se logo alvo de to-
rização por excesso de oferta, e como a espe- das as atenções. Afinal, no princípio da co-
rança de encontrar ouro fácil não se confir- lonização, era a grande fonte de poder, ri-
mou, a cana era a alternativa econômica queza e status. Muita vez, o grande sonho
mais viável de Portugal na sua colônia atlân- do português que desejava fixar-se em solo
tica. Por fim, a progressiva decadência do brasileiro era tornar-se proprietário de ter-
comércio com as Índias (Orientais) e a ame- ras. Mesmo se fosse comerciante, em conse-
aça estrangeira sobre o Brasil (principal- guindo acumular um certo capital, por ve-
mente por parte dos franceses) exigiam da zes pleiteava sua sesmaria e se incorporava
Metrópole medidas mais efetivas de povoa- à aristocracia açucareira.
mento e colonização. Aos latifundiários eram concedidos di-
A cana gerou um ciclo econômico pró- reitos políticos (por exemplo, participação
prio, tendo dado base para o surgimento da nos Senados das Câmaras – que tinham po-
primeira aristocracia brasileira; a aristocra- deres legislativos, judiciários e administra-
cia da cana-de-açúcar foi a primeira mani- tivos –, na qualidade de “homens bons”).
festação da chamada “nobreza da terra”. Eles detinham a terra, que era o bem de pro-
Mas a cana tinha as suas exigências. Seu dução mais importante, onde plantavam a
cultivo demandava grandes extensões de cana e produziam o precioso açúcar. Den-
terra para apresentar retorno econômico. tro de suas terras, tinham um poder quase
Necessitava de muita mão-de-obra escrava absoluto sobre tudo e sobre todos. Conse-
– primeiramente os índios (“negros da ter- guiam, em certos casos, armar poderosos
ra”) e, após, os negros africanos –, mesmo exércitos de índios flecheiros, negros e mes-
porque a população portuguesa na época tiços. Dentro da organização da sociedade

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colonial, faziam parte da elite. Eram, em gran- As melhores condições climáticas e ali-
de medida, os senhores feudais do Brasil. mentares permitiram essa extraordinária ex-
Além do cultivo da cana, outra ativida- pansão pecuária no Sul, cujo gado era mais
de de importância no Brasil colonial foi a robusto do que o criado no Nordeste, em que
criação de gado. Seu foco inicial de expan- o clima semi-árido e a carência de boas pas-
são foi o litoral do Nordeste. Como o litoral tagens representavam fatores que conspira-
foi sendo paulatinamente ocupado pelos vam contra a qualidade dos rebanhos. As
engenhos de açúcar, a criação de gado foi boas condições naturais logo tornaram a
sendo empurrada para o interior nordesti- região meridional a fornecedora, por exce-
no, até ganhar o sertão. Um dos maiores er- lência, de charque e tropas de mulas, extre-
ros econômicos, aliás, que a nossa história mamente importantes para o transporte de
registra foi exatamente essa separação en- cargas e dos produtos das minas, descober-
tre agricultura e pecuária, pois, se o gado tas no final do século XVII.
tivesse sido criado nos latifúndios açuca- Mais recentemente, a partir da Monar-
reiros, certamente a produtividade da lavou- quia, deve-se registrar o avanço do café. Tra-
ra teria sido maior (com o aproveitamento, zida da Guiana e implantada inicialmente
por exemplo, do esterco na adubação dos no Pará, a rubiácea foi levada ao Rio de Ja-
terrenos destinados à cana). neiro, onde se adaptou bem, por conta do
O sistema de sesmarias foi empregado, clima quente e úmido. A produção de café,
alastrando-se a criação de gado pelos ser- reduzida no início, rapidamente se alastrou,
tões. O Rio São Francisco serviu como refe- até ocupar, no primeiro surto expansionis-
rencial para a expansão pecuária, a ponto ta, toda a região do Vale do Paraíba, ainda
de ser denominado “o rio dos currais”. Uti- sustentada pelo braço escravo.
lizou-se a mão-de-obra escrava, principal- Constituiu-se uma classe de latifundiá-
mente indígena. Empregou-se, no trato com rios afidalgados. Os escravos negros – cuja
os escravos, a sistemática de parceria, por fonte de abastecimento, com a proibição do
meio da qual eles recebiam cabeças de gado tráfico internacional (Lei Eusébio de Quei-
após alguns anos de serviço. A criação, tipi- rós), passou a ser o decadente Nordeste açu-
camente extensiva, deu origem, assim, a uma careiro –, as queimadas (ou “coivaras”) e o
nova classe de proprietários: os latifundiá- clima quente e úmido sustentavam essa cas-
rios do gado. ta de proprietários. Mas, após o pico de pro-
Mas o gado não se limitou ao Nordeste dução (entre as décadas de 1850 e 1870), a
do Brasil. No Sul, após ter sido introduzido cultura cafeeira entrou rapidamente em de-
pelos europeus, o gado multiplicou-se livre- cadência, até reduzir o Vale do Paraíba a
mente, tornando-se praticamente selvagem. um fantasma do que havia sido – de que as
Com a expansão paulista para o Sul, em cidades mortas foram, indiscutivelmente, o
busca de índios para escravizar e vender, retrato. Os fatores de decadência foram, fun-
bem como em suas constantes guerras com damentalmente, a erosão e o esgotamento
os espanhóis (os “castelhanos”), esses re- dos solos, as técnicas obsoletas de plantio e
banhos selvagens foram sendo progressiva- o relevo montanhoso do Vale. Não se pode
mente apropriados, formando-se grandes deixar de mencionar, igualmente, a Aboli-
fazendas de criação, denominadas “estân- ção, efetuada por meio da Lei Áurea (13 de
cias”. Elas também se basearam na extra- maio de 1888).
ção de um produto vegetal típico da região: Após sua passagem pelo Vale do Paraí-
a erva-mate. Esses estancieiros, assim, fo- ba, o cigano café seguiu rumo ao Oeste pau-
ram os latifundiários do Sul do Brasil. Eram lista, numa expansão simplesmente avas-
traços seus marcantes a belicosidade e o saladora. A Mata Atlântica, que ocupava a
senso de independência. maior parte do atual território do Estado de

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São Paulo, gemeu a golpes de machado e a após a Proclamação da República (1889),
queimadas. O Oeste paulista foi tomado pelo acabaram por dilapidar o patrimônio pú-
verde dos cafezais, cuja fúria expansionista blico, criando-se, às suas custas, imensos
ia engolindo mais e mais terras e florestas à latifúndios particulares.
medida que o café ia ganhando espaço pri- Por fim, o acesso à terra era igualmente
vilegiado no mercado externo (EUA e Euro- legitimado por meio do arrendamento, da
pa). Com uma técnica mais aprimorada e já enfiteuse e do morgadio.
aproveitando a mão-de-obra livre (constitu- O arrendamento configurava um contra-
ída principalmente de imigrantes), o Oeste to entre o proprietário e o arrendatário, ce-
paulista viu a agonia e o fim do Vale do Pa- dendo-se a terra por certo tempo, em troca
raíba, passando a ser o maior produtor de de remuneração em dinheiro ou produtos.
café do Brasil. Essa relação contratual pôde ser observa-
Neste ponto, é importante que se menci- da, exemplificativamente, no caso dos lavra-
one que a aquisição de sesmarias – que cor- dores de cana cativa, na área canavieira, dos
respondiam à propriedade plena sobre a pequenos proprietários voltados para o
terra, livre de quaisquer encargos, exceto a abastecimento de cidades como o Rio de Ja-
tributação sobre os seus frutos – não foi a neiro, Salvador e as vilas mineiras, e dos
única forma de apropriação do solo, mesmo sitiantes nas regiões pecuaristas.
porque elas deixaram de ser concedidas por Por meio da enfiteuse, o proprietário –
causa da Independência do Brasil (1822). um sesmeiro, originalmente – cedia parte do
(Aliás, os proprietários de engenho, a fim domínio ao enfiteuta, recebendo em troca o
de aumentar suas propriedades, recorreram foro (anual) e o laudêmio, quando da trans-
a vários expedientes, adquirindo doações ferência do domínio de um para outro enfi-
em nome de membros de suas famílias ou teuta. Foi a enfiteuse (ou aforamento) caracte-
de amigos.) Duas outras formas foram a ocu- risticamente utilizada por ordens religiosas
pação (“posse”) e a compra – além, obvia- como fonte de renda (por exemplo, na cidade
mente, da sucessão hereditária. A fim de que do Rio de Janeiro e nas suas cercanias).
o acesso à terra fosse elitizado, barrando-se No que tange ao morgadio, constituiu ele
a aquisição dela aos escravos e aos imigran- instrumento jurídico tipicamente estamen-
tes, já no período imperial, baixou-se a Lei tal, garantindo a estratificação da socieda-
de Terras (1850). Por força dela, apenas a de. Originário de Portugal, foi aplicado no
compra era o meio legítimo para a aquisi- Brasil sobretudo nas propriedades dos se-
ção da propriedade da terra. nhores de engenho. Lastreava-se no direito
A Lei de Terras, regulamentada só alguns de primogenitura, por intermédio do qual
anos depois, previa a possibilidade de que somente o primeiro filho herdava o patri-
as posses até 1854 fossem devidamente re-
mônio paterno, garantindo-se, destarte, a
gularizadas. Mas essa data fatal para as
indivisibilidade da propriedade. O morga-
posses passíveis de regularização foi, de
dio assegurou a estabilidade social e econô-
tempos em tempos, dilatada, o que favore-
mica dos senhores de engenho, determinan-
ceu os latifundiários. O processo de regulari-
do o destino dos demais filhos: as mulheres
zação era administrativo, o que facilitava as
recebiam o dote; o segundo filho homem
fraudes; só com a Revolução de 1930 é que as
bacharelava-se em Direito em Coimbra; o ter-
questões relativas às terras devolutas passa-
ram para a competência do Poder Judiciário. ceiro filho ingressava em uma ordem religio-
As fraudes quanto às datas de posse e a sa. Em 1835, o morgadio foi abolido por lei.
transferência das terras devolutas – que
passaram a pertencer, com a Independên-
cia, ao governo imperial – para os Estados,

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