You are on page 1of 635
HISTORIA po CERCO DO PORTO PRECEDIDA DE UMA EXTENSA SOBRE AS DIFFERENTES PHATES POLITICAS DA MONARCHIA DESDE 08 MAIS ANTIGOS TEMPOS AT# AO ANNO DE 1820, E DESDE ESTE MESMO ANNO ATE 40 CcOMECO DO SOBREDITO CERCO POR 7 SIMKO JOSE DA LUZ SORIANO BACHAREL FORMADO NA FACULDADE DE MEDICINA. VOLUME SEGUNDO. LISBOA NA IMPRENSA NACIONAL. 1849. PREFACIO. Histories contemporaneas nao sera facil escrevél-as, sem reclamac&o, ou queixa da parte de alguns indiyiduos, aliés descontentadicos, ou porque nellas nto yéem mencio- nado algum pequeno facto, insignificante na marcha dos Grandes acontecimentos, (mas que para elles 6 da maior importaacia, pela reputacao e nome, que entendem lhes po- dja dar a sua mencdo historica), ou porque em fim, (e este @ © maior numero), a narrag3o de taes ou taes aconteci- mentos nio esté escripta de modo que os satisfaca, para Jhes dar todo o subido realce, em que na sua estimativa graduam os seus proprios servicos, ou porque tambem a apreciacgio dos actos da sua vida publica thes é mais ou ‘menos desfavoravel na opiniao do historiador. Se d’algumas inexactiddes de maior ou menor monta se péde ds vezes accysar o escriptor deste importante ramo de literatura, e adequedamente empregar contra elle o voila comme on écrit Thisoire, taapbem € certo que no hayeré poucas, em que muilo se abusaré da applicacto de taes termos. Com esta dase pois, jé se va que a minha historia do cérco do Porto nao podia ser isempta da regra geral, e por conseguinte tam- hem teve contra si, como as mais historias contemporaneas, " algumas reclamagées, e de nomes aliés, que parecem con- fundir o do seu author, pela pequenez deste, e magnitude daquelles. Entretanto repetirei aqui o que ja disse no meu discurso preliminar, isto é, que dos presentes ndo espero misericordia, nem |h'a encommendo: a minha obra é dedi- cada s6 4 posteridade, ¢ 6 sé esta que eu cuido me fara justica. Ao publico devo todavia dar conta destas reclama- des, do nome dos reclamantes, e das razdes que tive para os nao attender. Apparecéo-me, como primeiro aggravado, o filho do ex- intendente geral da policia, o sr. José Joaquim Rodrigues de Bastos, appellidando de calumnia o commedido juizo, que deste senhor aprescntei a pag. 222, linhas 12 e seguintes, do meu dito discurso preliminar. Diz o reclamante que seu pai nio fora o intendente, que assignira a circular das eleicdes para os tres-estados, expedida em 17 de maio de 1828, por isso que jA em 12 de abril daquelle anno havia sido. demittido do dito logar de intendente. Para remover toda a duvida, que se possa levantar sobre este objecto, (pois eu niio digo alli quem foi o intendente, que tal circular assi- gnou, sendo o mesmo sr. Bastos quem muito graciosamente suppéz que eu me releria a elle na assignatura de tal cir- cular), devo com effeito declarar que o pai do queixoso foi realmente demittido naquella data, e aos seus successores, Barata, Veiga, Belfort, etc., se deve attribuir tudo quanto de bom e de mo pela intendencia geral da policia se pas- sou, e expedio depois daquelle dia. Entretanto semelhante demissio parece ter sido dada a pedido do demittido, e nie ter provindo de indisposicao da parte do governo usurpador a seu respeito, como bem se collige da sua prompta entrada e aceitagdo no gremio dos mesmos tres-estados, que accla- Mt maram D. Miguel como rei, e do muito socego e tranquil- lidade, com que, durante aquelle turbulento governo, fruio aa melhor paz o seu alto logar de desembargador do paco. Quanto porem 4 sua inconstancia de opinides, e censurayel procedimento em politica, e nao menos 4 parte, que como tal tomou em aplanar o caminho para a usurpacao, em nada absolutamente tenho a reformar as minhas expressdes e jui- zos. As rardes, em que para esta persistencia me fundo, alem da crenga e reconhecida notoriedade de factos, que a comprovam, 0 leitor as poderé encontrar nos seguintes es- criptos, que todos se deram 4 estampa, sem reclamacao al- guma da parte do supposto aggredido, que desde 1827 até 1834 n&o se mostrou tao escrupuloso em tomar na linha de affronta as arguicdes, que a imprensa liberal durante aquelle tempo the fez. Os escriptos, para que remetto o leitor, sao: —Galeria dos deputados de 1821, pag. 250 e 2541.— Historia de Portugal, de José Maria de Sousa Monteiro, vol. 3.°, pag. 351, 355, 356, 360, e 367.— Revista His- torica de Portugal, 1." edicdo, pag. 58.— Ensaio politico sobre as causas da usurpagio de D. Miguel, por José Libe- rato Freire de Carvalho, pag. 59, 94, e 112'da 2.* edi- ¢ao. No primeiro destes logares citados (0 de pag. 89) se diz: « Era este Bastos homem azado para tudo quanto se « quizesse ; porque em 1820 soube represeutar admirayel- « mente a figura de republicano ; em 1823 ligou-se 4 causa__ «dos tnauferiveis; e no tempo da Carta, e da sua intenden- «cia, desembainhou denodadamente a sua espada contra os «chamados republicanos, ou saldanhistas, a quem alcunhou com estes nomes, para melhor lhes assentar 08 seus golpes. » Aparte activa, que o mesmo sr. Bastos tomou em 1828 nas perseguicdes, feitas aos Liberaes, que elle déo entdo como preteidendo acclamar a republica, d’onde nasceram as ex- pressdes. de republica de Bastos, como synonimo de cousa fantastica, (procedimento a que eu dei a interpretacdo de Ww aplanar 0 caminho para a usurpacdo), consta dos seus mes- mos officios, que em 16 de outubro de 1834 se publicaram no n.° 81 da Aguia do Occidente, pag. 323 e 324. N'um destes officios dizia elle para o visconde de Santarem, em 4 de agosto de 1827: «Apcezar das noticias, que hoje che~ «garam do Porto, a noite est mais tranquilla. No theatro « locou-se @ cantou-se o hymno; mas nao houve um 80 vi- «va, um $6 verso, e tudo se passou na melbor ordem. As «ruas da capital estao limpas de ojuntamentos, e os cida- « daos pacificos jé transitam por ellas sem susto. Remetto a «v. ex." a relaco dos pessoas, que hoje se prenderam. «(Eram j& ent8o umas 150 pessoas, incluindo os condes da «Cunha, d’Alva filbo, c deSampaio, o arcebispo bispo d°El« «yas, o desembargador Duarte Leit’o, 0 ex-ministro da « justica Guerreiro, etc. etc.) Nos dias seguintes contima-se «na diligencia de prender os demais réos: sao tres os juizes, «que est8o tirando as devassas. O effeito dos prisdes esta «ja manifesto. Hontem, apezar do grande apparato da tro- «pa, foi estrepitoso o theatro; hoje, ao contrario, reinow alli «o maior socego, e pelas ruas nem vestigio, nem sombra «de ajuntamentos. Os que os faziam estao occultos com amedo, e outros provavelmente fugiram. Em fim medidas «energicas sao as que tem restabelecido a ordem, e nellas «deve proseguir-se. O demittido redactor da Gazeta, 0 do «Periodico dos Pobres, e os do Portuguer devem set sume « moriados, e os censores igualmente. Mas para isto é ne= «cessaria uma pertaria, dirigida a mim, pata mandar pro= «ceder a seu respeito na conformidsde das leis. Todos os «periodistas, que tem entrado em processo, o hao sido por «ordem. Eu passo dmanha a exigir esta ordem, e se prom- «ptemente 0 nio conseguir, o communicarei a v. ex." » Eis~ aqui a ltberdade de imprensa no tempo da celebrada inten- dencia do sr. Bastos, eis-aqui a sua dedicacao 4 Carta Cons~ titucional, com a pintura, que elle mesmo nos faz, da sua v conducta de fidelidade ao legitimo rei, durante aquelle omi- foso tempo. Tenho pois respondido a este senhor d’uma ma- neira, que me parece sem réplica; mas se alguem ainda quizer vér mais obra sobre este ponto, consulte o energico artigo, que no n.” 94, pag. 678, da mesma Aguia do Oc- cidente se imprimio em 31 de outubro do dito anno de 1834, em represalia e vindicta 4 reclamacio, que sobre aquelles officios fizera o dito sr. Bastos, para atenuar o ef- feito, que da sua leitura se podia seguir no publico. Entre os reclamantes apparecéo-me tambem, da parte do sr. duque de Palmella, um alto empregado de sua casa, om quem, depois de trocadas algumas razdes, conveucionei, (e talvez que indiscretamente, pelas desairosas illagdes, que isto podia trazer_ao meu nome, mas a que sémente a boa {8 e © omor de apurar averdade me levaram), 0 permittir- ‘Ihe onnexer 4 minba historia do cerco do Porto umas notas, com 0 titulo de spontamentos acerca da vida politica do mesmo duque. Estes notas, em que os seus amigos e come mensaes, (e péde ser que por elle mesmo bafejados), o bus- cavam apresentar, em relacho 4s assercdes, que a seu res peito se viram no meu 1.° volume, como o missus a Deo, © isempto da macula do peccado original em politica, che- gando a imprimir-se para aquelle fim, obrigaram-me pela mitha parte a carregar-lhe mais as tintes da pintura, que delle tinha a fazer no logar competente do meu 2.° volume, onde vae inserto o seu respectivo juizo critico, e até mes- mo a spresentar, em nota especial a semelhante juizo, o8 arguicdes, que os contemporaneos contra elle the levantaram em diferentes tempos. Tres fortes razdes houveram para “este meu proceder: 1. para se vér que o sr. duque era, ° vi como qualquer outro homem , participante do bem e do mal, que a cada individuo cabe por sorte a0 naseer neste mundo: 2." para lhe dar todo o logar a justificar-se de qualquer exageracfo, que em taes arguigdes se podesse dar, nfo se me podendo taxar de injusta a mencao, que de todas estas fizesse, ainda mesmo a das mais fortes, depois da minha concessto em poder elle juntar a sua justificagio 4 mesma obra, em que as mais graves censuras se lhe irrogassem, o que de certo j4 nao succedia: a qualyuer outro contempora- neo, a quem por esta causa devia poupar muito mais do que as. ex.*: 3." finalmente para desviar de mim o affron- toso labéo de parcial, on por motivos de interesse, que me Teputassem annexos, ou por quaesquer outras consideracdes commentos, com que sobre mim cahissem. Facil ¢ de an- tever que semelhante conducta ndo podia agradar aos in- teressados, e no s6 houveram desde logo pretencdes para que eu apresentasse o sr. duque pela mesma face do quadro, por que os seus amigos c dependentes 0 viom, dando-se-me por escripto as ra7des, em que para isto tinha de fundar-me, mas até me chegaram a offerecer inteiramente mutilado de cima a baixo o meu primitivo artigo, inserto a pag. 577 e seguintes do presente volume, a respeito de s. ex.", arti- go que, redigido todo em abono do interessado, cu tinha a substituir por aquelle, que se Ihe reputava e dizia desfavo- ravel. A exigencia era muito forte para poder ser attendida, e talvez mesmo que menos desairosa para mim, em quanto a nBo aceitasse, do que para quem m’'a fazia; mas este desaire ainda redobrou mais de gravidade com a insistencia.- Revolvendo na minha intima consciencia os actos de toda a minha vida, quer publicos, quer privados, depois que como + homem feito me acho na sociedade, ingenuamente confesso que ainda até hoje ndo sei quaes fossem os que podessem ter chegado a0 conhecimento do proponente, ou de quem para junto de mim o mandou com tal commisstio, a ponto vin de Ibes merecer to iafeliz conceito! Que me pedissem mo- dificar as minbas expressdes em tal ou tal logar, retirar taes ou taes assercdes c juizos, isto entendia-se, uma vez que para isso me dessem as convenieutes ‘razdes, ou me apresentassem 03 necessarios documentos; mas redigir um artigo todo elle de cima a baixo 4 vontade da parte inte- ressada, e offerecer-m’o para que 0 impremisse por mey, iputilizando aquelle que eu tinha jé escripto, n8o sei como qualificar semelhante exigencia ! O leitor Ihe dara por mim © nome, que entender lhe compete. Entretanto debalde fiz vér a injustiga de tao insolita pretencao, 0 affrontoso de semelhante exigencia, e finalmente a mancha, que no meu caracter de historiador me podia por tao indiscreta annuencia, se alguma tentacdo tivesse de a levar a effeito, porque em fim, havendo fama de que al- guns redactores de jornaes tinham sido levados, por bene- volencias do sr. duque, a sobre-estar na publicagdo de al- guns artigos, que lhe eram desfavoraveis, ndo era possivel desviar de mim as mais desairosas suspeitas, quando por ventura aceitasse a mais ligeira moditicagto na redaccao do meu escripto, ou mutilagdo dos juizos, que a respeito de 4 3. ex." fizesse, visto que, para contrariar taes juizos, 86 se me apresentavam assercdes gratuitas, inteiramente dostitui- das da comprovacio de um unico documento, e por conse- guinte incapazes de poderem merecer 6, e destruir factos sabidos, e reconhecidos por todos.’ Acrescentei ainda mais que se eu, na opinido de s. ex.", ou dos seus amigos, que tinbam redigido as notas, que j4 se achavam impressas para se annexarem 4 minha obra, uao podia justamente offereccr no meu escripto uma completa abnegacdo dos sentimentos de affecto ou indisposigio, acerca dos homens ¢ das cousas, 86 pela circumstencia de ser contemporaneo dos aconteci- mentos, que relatava, e porque n’algum delles havia tomado mui acanheda parte, s. ex.", sendo um dos principacs pro- + vain togonistas do grande drama historico-politico, que havia eccupado a minha penna, era por esta regta absolutamente incapaz de poder fazer fé, e particularmente quando se pro- pozesse @ ajuizar os actos da sua mesma vida, como era © caso em questio, em que forcosamente, e até mesmo sem © querer e o pensar, os havia de apresentar retintos com o sentimento de favor e parcislidade. Finalmente que se eu era injusto, e até inexacto nas minhas assercdes e juizos a respeito de s. ex.", na mao delle e dos seus amigos havia o conveniente correctivo, repellindo de si todas as arguicdes infundadas, por meio de quaesquer notas, que a gravidade da materia exigisse, notas que eu de muito bom grado aceitaria, por gostar de que junto de taes arguicdes fossem logo os necessarios descontos, para se vér o que nellas havia de verdade. Mas se pora o commissionado deste negocio de nada valeram os minhas razdes, confesso que para mim ainda menos eproveilaram os que pela sua parte me epre- sentou em sentido contrario, que nenhumas me expdz elle, dignas de consideracao. ~ Perdidas pois os esperangas de me levarem & indiscreta annuencia de dar & luz, como meus, artigos historicos, ar~ ranjados aliis por outrem, e a contento dos intercssadas, seguiram-se as ameacas: 1." de se me retirarem as notas, que se projectavam elaborar em relacio ao segundo volume da minha historia: 2." de se fazer tambem o mesmo és que ja se echavam impressas, com referencia ao primeiro: 3." fi- nalmente de se ir trabalher na confeccto de um volume, que se havia de imprimir sobre o assumpto, ¢ em que eu provavelmente nao havia de ser poupado. Este desfecho foi para mim o maior incentivo possivel para me recusar a to~ das as exigencias, que por to insolita maneira se me fa- ziam, sem que a isto fosse arrastado por insensatos caprichas pessoaes, mas sim pelo grande interesse publico, que na historia e titteratura do paiz entendi desde logo havia de ne- + IX cessariamente produzir um escripto de tal natureza, ¢ bafe- jado por to elevada e sabedora pessoa, ainda mesmo a des- peito de alguma incompetencia de juizos, que nelle se po- desse encontrar. Quanto a moralisar agora as ameacas, que se me Gzeram, direi, e com toda a franqucza o fago, que as nao reputo filhas do resentimento, que alguem possa altri- buir ao sr. duque, em quem, bem pelo contrario, supponho ruila elevagio d’alma e supcrioridade d'espirito, para quo por semelbante maneira o acredite impressionado pelo mes- quinho prazer de t&o insignificante vinganca, sendo alias tao pobre e cavalheiro. Todavia, julgando-o alheio a este obje- clo, nio se me affigura estranho 4 commissdo, com que junto de mim se me apresentou o alto empregado da sua casa, que de certo no seguio a melhor marcha para o ar- ranjo desta sua negociagto. Quanto a mim, desisti de bom grado da annexacao das notas em questdo, e assim 0 com- muniquei por um bilhete meu ao respectivo individuo: 1.° para inteiramente desviar de mim quaesquer suspeitas, a que com razio me prestaria, conduzindy-me ‘de oulra ma- neira, depois do succedido; 2.° pela inutilidade da inseryao de taes notas, logo que se me promettia a publicagko de um volume, que de certo bavia de ser obra de muito maior, e mais acabado interesse na litteratura patria, do que as mesmas notas, sendo aquelle interesse um dos motivos, senao © principal, que me levéra a permittir a annexacao dellas 4 minha obra; 3.° para mostrar tambem que, em ver de hoora e favor, que talvez alguem entendesse que eu recebia com isto, era exaclamente o contrario o que tinha logar, n86 quanto @ honra, que a ninguem a posso dar, ndo tendo por mim mais do que o meu humilde nome, por falta de brasdes e jerarchias de familia, que infelizmente me nao acompanham; mas quanto a favor, que grande o fazia eu em deixar incorporar ao sr. deque tudo o que the era em seu abono, na mesma obra em que se tiraya 4 luz alguma x cousa, que lhe podesse servir de desaire; 4.° finalmente para dar todas as possivcis garantias de que nao escrevi sendo a verdade, ou 0 que se me antolhou como tal, des- prezando todas as influencias externas, que na redaccio e alinho do meu escripto podera ter recebido, certo de que, «se algum defeito o acompanha, é mais a severidade das mi- nhas crencas, do que precipitada transaccao com as albeias. Eis-aqui pois o facto, contado como realmente se pas- sou, € aqui o apresento ao publico com a possivel singeleza, nao com as vistas de menoscabar o eminente personagem, com quem elle tem relagao, se d’algum deslustre isto lhe péde servir, quando alids tributo a esse personagem, como todos os portuguezes o fazem, e o devem fazer, os mais sinceros respeitos, e bem merecida consideracao; mas por- que em fim devo neste caso zelar mais a reputag8o do meu nome, do que deixar-me levar de contemplacao pelos albeios. Tendo pois a collecc&o das notas retiradas, e que ja se achavam impressas para se annexarem 4 minha obra, um prefacio meu, com alguns cumprimentos de civilidade para com © seu author, e até alguns outros artigos meus, alem da citac&o que fiz de taes notas a pag. 382 do presente volume, era-me conseguintemente forcoso dar de tudo isto uma cabal e plena satisfagto ao publico, entre quem ellas virdo talvez isoladamente a correr, para que deste modo possa elle ex- plicar as anomalias, que nellas poderé achar, e que por ou- tro Ihe ndo seré facil entender. E todavia notavel que, ten- do-se ajustado comigo a annexacio de umas notas a uma obra minha, em quanto se julgou que por esta forma se podia constituir em epopea da elevada pessoa, a quem tio esperdicadamente se queria desvaneccr, depois as retirassem, quando para aquelle fim existiam j& impressas, e commen- tadas por mim, s6 porque em vez da condescendencia e do- de, que me suppunbam, acharam alguma firmeza de opinides, e persistencia de crencas! Ainda mais. Esses mes- XI mos elogios, que no preambulo de semelhantes notas se en- contravam em relac3o 4 mioha historia, irdo talvez trans- formar-se em amarges e pungenies expressdes nesse tal vo- lume, com que estou ameacado. Mas qual destas duas ver- sOes seré a verdadeira nos bicos da mesma penna? O pu- blico o decidiré a seu tempo. E esta a yolubilidade dos bo- mens, ¢ 0 fallaz dos seus elogios e censuras, com a incons- tancia das suas opinides! Na minha puericia tambem ja fui sujeito ao sentimento destas e outras semelhantes pirracas com os meus iguaes; e até era frequente succederem-se en- {80 com a mais incrivel ropidez, e sem justificado motivo, as demonstragées da mais amigavel caricia, os actos do mais carrancudo amuo. Naquella idade porem tudo se me des- culpava; mas hoje qualquer acto destes seria em mim s0- bejo motivo para a mois singular estranheza, depois de tao branquejada a cabeca pelos annos. Venha pois esse volume, de que estou ameacado. A lilteratura patria de certo o ha de estimar, como deve, e olbal-o como bem acabada pro- duccao, pela sua elegancia, bom gosto, correceao de eslillo, com pareza de fraze, e nto menos pelas altas e importantes verdades historicas, que certamente tem de comprehender, alem de todos os mais titulos, por que desde ja se torna recommendayel. Deva-me o paiz este importante servico, embora com elle me possam vir particularmente d’envolta alguns dissabores, porque em fim, sendo tal obra escripta com a gravidade, que a materia exige, c que todos nés te- mos a esperar dos seus authores e collaboradores, resignado me conformarei com a minha sorte. a despeito de quaesquer “assergdes, que me toquem, ainda mesmo que com algom desvio da verdade, ou precipitagao de juizos. Tempo houve - j@,-em que um alto personagem, graciosamente me suppéz envolvido, na ilha Terceira, em projectos de o querer assas~ sinar, segundo as revelacées, que entao alguem me fez; sup- Posicf@o para que ainda hoje ignoro quaes fossem os-funda- - - x mentos, que muito desejava vér apresentades no pnblico por +- quem em tal acreditou. Se entdo se me fez tao grave in- justica, nto me admiraré que se me facam ainda novas, e tdo infundadas accusagdes como esta. Aqui acaba o que tinba a dizer sobre © assumpto, e aqui devia comecar agora a comprovac3o das assercdes, que no meu citado juizo critico se encontram, com a idéa de desfavor fcerca do sr. duque de Palmella; mas como esta comprovacdo me levaria por certo a uma miuda anslyse dos actos publicos da vida de s, ex.*, o que talvez daria logar + 4 crenca de que, em vez de um prefacio para preceder a leitura d’uma obra histurica, tinha feito um artigo de ante- cipada e desabrida polemica para se inserir nos jornaes politi- cos, antes quero por ora conservar-me no campo do commedi- mento e resguardo, do que expdr-me a ser taxado de ex- cessivo, ainda antes de saber ao certo os argumentos, eom que se buscam rebater quaesquer daquellas assercdes. En- tretanto se por este modo aguardo o que a tal respeito nos poderd @ seu tempo vir a revelar a imprensa, desde ja alfir- mo que nada avancei sem fortes e meditadas razdes, e ap- pellaudo para o imparcialidade do publico, peco a este que + me julgue, e adequadamente avalie se eu fui com effeito ex- cessivo na apreciacdo de s. ex.", devendo ingenuamente con- fessar-Ihe que antes quero ser tido na conta de demasiadamente austero, e talvez mesmo que convencido de injusto, para com 8. ex.", do que reputado benevolente, com suspeicao de in- fluido, ou ligeiramente captado pela sua generosidade. To- davia pouco seri de estranhar 0 juizo que emitti, depois que um distincto escriptor contemporaneo se abalancou tam- bem a fazer outro que tal juizo, dando-o 4 luz nos seus ex- cellentes folhetos, Hontem, Hoje, e Amanhd, juizo que eu me p&o posso abster de ir textualmente aqui reproduzir, sendo para minha inteira defeza, como modélo que adoptei, ao menos para se vér que eu nao fui o primeiro, que tomei mat a ousada resolucio de avaliar com severidade as altas qua- lidades, e 0 distincto merito do sr. duque de Palmella. O juizo, a que me refiro, é 0 seguinte: « Duque de Palmella. Todas as consideracdes me obri- «gam a fallar em primeiro logar deste notavel estadista. «© duque de Palmella tem talento, algum estudo, bastante «conhecimento dos homens e das cousas, e muita pratica «dos negocios do Estado; mas, bem ajustadas as contas, a «final 0 nome & maior que a realidade. Nao me deterei com «a -carreira diplomatica do nobre duque, pois ndo escrevo a eva vida, ¢ com quanto nao falte nella materia para a cen- « sura, é certo que tambem nao fallece para muito louvor. » « Regressado a Portugal com o sr. 1). Jodo 6.°, de bem «lembrada memorie, o duque, enlao conde de Palmelld, nao « merecéo a confianca dos Liberaes; mas depois contrariou «os planos e ardis ambiciosos da rainha D. Carlota, e de « D. Miguel. Os Liberaes tioham-lhe dado mais importancia, «do que elle mostrow merecer wa abrilada, Este movimento «resolucionsrio nunca chegaria a ter logar, se Palmella, aentio vo ministerie, e nelle, com o conde de Subserra, « principal influoate, possuisse a metade da aptidao, que se abe altribuia: e & para notor que o movimento no foi 0 «que se intenlére, por incapacidede dos que dirigiam D. « Migucl, e que nao vingow, gracas unicamente 20 illustrade «procedimento do corpo diplomatico, ¢ mais que tudo aos «acerlades esforcos dos ministros de Franca e de Inglaterra, «Hyde de Neuville, e Thornton. » «No movimento de 16 de maio de 1828, contra a usur- «paso de D. Miguel, Palmella tomou a vor da justica, e «veie de Iaglaterra ao Porto; mas a belfastada & como 0 « borrio leacado em (#o formosa pagina, e que nfo a deixa « decifrar satisfatoriamente. O proceder do duque, em quanto «4 sua lealdade ao throno da rainba, é, em minha opinito, «inveprebensivel. » xv + — «Restaurado 0 paiz, para o que o duque muito concor- «réo, antes e depois da chegada de D. Pedro & Europa, e ado seu desembarque no Mindello, Palmella foi por vezes «ministro da Carta; e, malquisto, calumniado, perseguido «pela gente da Opposicfo, nao houve quem nfo o acredi- «tasse, apezar dos altos e baiwos, que offerece a sua vida «publica, sincero e decidido cartista. Entretanto, na para «sempre famosa crize do entrudo, o duque de Palmella «aceitou ser presidente do ministerio, que se propéz com- «bater a Carta com as baionetas do arsenal ! » « Depois disto, e segunda vez restaurada a Carta, 0 no- «bre duque tem estado sempre n’uma posigéo falsissima. «Ora se quer acreditar de cartista, ora fax negacas aos «colligados. Nao é possivel ajuizar ao certo quaes sejam as «suas opinides, porque suas obras sio tao equivocas, como «todo o seu proceder ha sido contradictorio. » «O que porem nao devo omittir ¢ que o duque de Pal- «mella nao péde levar a bem que ministro algum presuma «governar sem o auxilio das suas luzes, que todavia tantas «vezes se tem mostrado em deficiencia de fulgores. A exa- «ctidao do que aqui reflicto esté no seu comportamento nas * «negociagdes, que trata com o internuncio Capaccini. Nin- «guem as podia tratar menos approvadamente. Capaccini o «tem ludibriado de modo lastimoso; e o duque tornou-se, «sem talvez o acreditar, miseravel instrumento do feotismo, «que se serve delle, e o escarnece. As negociagdes com In- «glaterra, tambem é minha opiniao, podiam ter sido ainda «mais satisfatorias. » «Em resumo. O duque tem feito ao seu paiz muitos «servigos, e alguns excellentes; porem a patria nao lhe tem «sido ingrata. O duque ostenta de superior a todas as ca- «pacidades do paiz; mas a carreira politica do duque 6 «cheia de taes desigualdades, que nado o extrema do com- «mum dos homens, que tem trilhado o seu caminho.. Final- xv «mente Palmella, sendo menos do que parece, nao 6 tio «pouco tedavia que todos os partidos o nao queiram seu; «porem como odo consente que do lado, em que se acho, «lbe tome outrem 0 passo, e os homens perspicazes e in- «fluentes de todos os matizes o tem reconhecido falho ao «toque e ao pezo, forcejam por emancipar-se da sua tutoria. «Que resulta? Que Palmella esté em calculada desharmo- «pia com todos os homens, entre os quaes nio é o primeiro. «As circumstancias especiaes do duque de Palmelle, seu «nome, seus servigos, a riqueza immensa da sua familie, «bao de conservar-lhe sempre grande importancia: com «tudo a sua invencivel propensBo para 08 qui pro quos po- «liticos no Ihe consentiré nunca ser o homem de nenhum - « partido. » + Substituigdes para o 1." volume da Historia do cérco do Porto. A segunda nota a pag. 92 deve ser substituida pela seguinte, O exer cito portagues, durante guerra peninsular, eve na sua maior fora em 1812 quatro regimentos de artilheria com 4:922 homens; doze regimentos de cavallaria com 6:501, 3:316 cavallos; vinte e quatro regimentor de in- fanteria com 37:417; doze batalhSes de cagadores com 7:968, sendo o seu total 56:808 individuos de 1.* linha, e oito baterias de artilheria, que entra- vam em campanha. Em 1808 a forga do mesmo erercito contava 4%:659 homens de todas as armas de 1." linha : em 1809, 47:958 : em 1910, 51:841 : em 1811, 54:117 : em 1813, 53:302: e em 1814, 51:431, advertindo que 0 numero dos corpos foi sempre constante, em virlude da organisaglo decre- toda, sendo of variavel a forge de cada corpo. No numero acima nfo se comprehende a guarda real da policia de Lisboa, que contava 1:520 infan- tes, além de @60 cavallos; nem 5:000 recrutas, que nos annos de 1811 ¢ 1812 existiam no deposito geral ; nem a forca de 1.8 ¢ 2.* linha, que havin nas ilbas da Madeira e Acéres ; ¢ nem flaalmente 53 regimentos de milicias com 52:00 homens de guarnigko no continente do reino, e nas prages de ‘A pag. 487 ha um engano de conta quanto & forga, que Ié se dé aoe Vatalhdes nactonaes, ereados no Porto, e por conseguinte o que alll se achn, XVI derde linbas 8 até ao fim do paragrapho, tem de ser substituide pelo sc- guinte: —deve siber-se que em Julho de 183%, p.imeiro mex da sua crea- fo, apenas o seu numero chegava a 1:788 individuos, que to men ile se- fembro do mesmo anno se elevavam jé a 3:093 : com as creagves que depcis Vieram, estes corpos subiram em jaueiro de 1833 a 7:023 homens, que em margo do mesmo anno decabiram alguma cousa, contando-se entéo 6:872 in- dividuos. No mex de julho, em que as tropas constitucionses flzeram a sua entrada em Lisboa, os batulh3es moveis do Porto contavam 1:188 homenr, € 06 Gixos 4:951, ov 6:139 d'ambas as especies. Emendas mais notaveis a fazer no 1.’ volume da Historia do cérco do Porto, e que nelle se ndo acham apontadas a pag. 584. Pag. Tin. Erre Emendes 3 35 ~ collegidas colligidas 37°14 hesitava hesitéra 3@ 26 perca perda 44° 2 on vidos ouvidos 129 1e® secumbindo succumbindo 134 11 torre de Belem torre de S. Ji 201 «19 eminente i ale 202 «13 © delles 222 9 exacragto exceragio 879 1% Font Pont 292 Be 9 do quadrante do aul dos quadrantes do sul 302 & nos trnmas nas (ramus 31115 ponteficios pontificios B11 15 Alemanha Austria 338 17 brocos ‘troccolus 341 Be 3 ald os alicercen alé nos utivercer 358-37 é de querer 6 de crer 379 35 Francisco Antonio Luiz Antonio 393 £0 Sartorine Sartorius 417 29 casin caga 433 34 ito ele 482 13.614 os ministros ¢ secrctarios d'es- 3 mnfnistros e secretarios d'es- tado tado de D. Miguel 510 11 e12 da sun causa publica da causa publica 533° 26 = se buscavam se buscava. ‘HISTORIA Do : CERCO DO PORTO. CAPITULO I. © general visconde do Pero da Regoa, dando sem vantagem os seus primei- ros ataques ao Porto, ¢ & Serra do Pilar, deite-ve depois a levantar bate- tias, € 8 construir o seu cawpo intrincheirado com o manifesto fim de es- tabelecer o bloqueio daquella cidade, a que ainda no dia 29 de setembro dé um novo, e decisive ataque, e depois & Serra em 14 de oulubro com consideravel perda pela sua parte, circumstancia que o leva a pedir mais gente para Lisboa, e occasiona a vinda de D. Miguel para as provincias do Norte, sendo a final demittido do commando do exercito, ¢ substituido pelo general Santa-Martha. Este, adoptando o syslema da guerra pastiva, leva ao ultimo apuro as fortificagdes do seu campo, bombea® Porto por grande numero de baterias, ¢ estabelece contra exta cidade o mais comple- cto estado de sitio, até fechar de todo a barra do Douro, com grande ter- ror, ¢ lastima dos constitucionaes, que spesar dos seus triumphos de terra, e mar, luctaram j4 com grande apuro de meios, e falta de gente, que 55 podiam obter de pais estrangeiro, depois de terem pedido em seu favor a mediagdo inglesa, . A triste jornada de Souto Redondo, e os seus funestos effeitos andavam impressos na carregada fisionomia de todos os habitantes, e defensores do Porto, que a voz baixa, o1 comsigo mesmo, delles incessantemente murmuravam nos primeiros tempos, e para elles incessantemente olhavam co- mo para esses terriveis caracteres, annuncio da proxima destruigo de um antigo povo, escriptos sobre a muralha de Babylonia por uma misteriosa, e desconhecida mao diante de Balthazar. O mesmo D. Pedro nao péde fesistir ao geral sentimento de tao avultado desastre, julgando-se perdido, lembrancas Ihe occorreram até de procurar refugio a bordo vou. 1. 1 2 HISTORIA DO CRRCO'BO PORTO. da fragata inglera Stag, que cruzava em frente da harra '. Foi o coronel Hare, que tao relevantes servigos prestéra & causa constitucional pela sensatez de seus conselhos, e acérto das suas opinides militares, quem nesta melindrosa conjun- ctura fez conhecer a D. Pedro o desaire de tao imprudente passo, @ a descredito que farcosamente Ihe havia de acarre- tar na Europa quando o realisasse, vendo-se que deixava ao desamparo o Porto, e aquelle mesmo exercito, que por sua causa, ¢ apoiado no prestigio do seu nome, viera arrostar os perigos de tao arriscada guerra, particularmente podendo elle ter a certeza de que nunca lhe faltariam embarcacdes de guerra inglezas, que o recebessem a elle, e 4 sua comi- tiva, quando naquella cidade se ndo podesse conservar por mais tempo. Estas razdes commoveram tao promptamente o animo do regente, que abandonando logo tao ruim lem- branga, continuou desde entao por diante na sua resoluta, e corajosa marcha de se defender no Porto a todo 0 risco. J& se vé pois que o apuro das circumstancias tornava bem evi- dente, e palpavel o erro de tanto se ter confiado em vao no nome de D. Pedro desde a sua chegada aos Acres. Todos os que haviam cercado este principe lhe apresentaram nas proximidades da sua partida daquelle archipelago para Por- tugal o lisongeiro quadro das suas fantasticas combinacdes, ou das suas imaginadas probabilidades de victoria; mas as suas crencas, ou antes as suas proprias vontades, e desejos, tinhom-lhes exagerado consideravelmente as suas conjectu- ras, levando-os a antecipar como favoraveis acontecimentos, que alias thes deviam sahir contrarios, segundo o calculo de todas as probabilidades humanas. Os factos que agora os surprehendiam bem mostravam quanto fallazes haviam si~ do todas as hypotheses da sua desejada victoria. Aqui, co- mo em muitas outras cousas, se v8 quanto os homens da 4 \Esta lentagio de D. Pedro correo tio duvidosamente no publico, que muitos o repularam sempre sobranceiro a todas as scdugdes a tal res- peito; maa pessoa de todo o credito, e que estava bem av alcance do que se passava, me affirmon o facto, e me remetteo até para o testemuvho do coronel Hare, nas mfos do qual puram cerlamente ainda hoje as provas do que aqui vae escripto. VoL. tt, — CAP. f. 3 politica, e da governanca se devem esmerar em descriminar sempre a realidade dos factos das suas proprias conjecturas, e desejos. A opiniao que os conselheiros de D. Pedro toma- ram como fundada no espirito publico, e no seu imaginado enthusiasmo nacional, suppondo que aquelle principe ndo pre- cisava para desarmar os seus inimigos mais do que apresen- tar-se-lhes diante, e que por conseguinte o Exercito Liber- tador nao tinha a fazer mais do que uma marcha triumphal desde as margens do Douro até 4s do Tejo, devia comple- tamente desvanccer-se desde 0 seu desembarque uas praias do Mindello: e todavia tarde, e muito tarde veio o desen- gano. A tenacidade das crencas a tal respeito nem mesmo em presenca dos factos que as contrariavam, se podiam des- vanecer inteiramente. Que mal se nao tinha pois calculado @ resistencia, que a causa da usurpacdo podia oppér 4 da le- gitimidade! Foi necessario que uma serie de experiencias trouxesse para os mais incredulos o salutar desengano do que tao imprudentemente, e sem maior fundamento se ha- via imaginado. As esperancas, desvanecidas de dia para dia, vieram sémente a cahir em presenca dos dados mais posi- tivos, ou dos acontecimentos que nao admittiam contra. S6 quando D. Pedro, e 08 seus companheiros, se viram 868, € cercados por toda a parte de um numerosissimo exercito, ¢ que conheceram bem as illusdes, que até alli os haviam ar- rastado. Foi entdo que claramente se vio o mal que resultara de se nao haver em seguida ao desembarque do Mindello tharchado logo com toda a forca reunida sobre o inimigo mais proximo. A descoberta, ou reconhecimento de Vallongo, emprehendido contra forcas inimigas seis vezes superiores &s dos constitucionaes, tirara ao Exercito Libertador 0 pres~ tigio da victoria, ficando-se desde entdo por diante co- thecendo sem prevencao de lisonja, que os constitucionaes eram uns poucos de homens, que vinham agredir outros ho- mens, mas de escasso vulto pela sua parte, e consideravel- mente crescido pela do lado opposto. Na accho de Ponte- Ferreira o inimigo fugira por fraco; mas a falta de caval- laria sentio-se entdo no seu auge nas fileires de D. Pedro, 4 MISTORIA DO CERCO DO PORTO. essa sua amargurada victoria bem cara he custou pela irreparavel perda de gente, que soffreo, e sobre tudo pela propinquidade da perda do Porto, e pela vergonha de vér © fugir precipitadamente para bordo de uma embarcagao, além dos seus ministros, e conselheiros, muitos officiaes de nome, e de antiga, e bem comprovada reputacdo militar. Todas as tentativas para levar o reino a uma sublevacdo tinham com= pletamente falhado: duas escunas, que no principio de agosto appareceram em frente da Figueira, tiveram de re- tirar d’alli sem poder communicar com a terra; um ber- gantim de D. Pedro, carregado d’armas, e provido de di- nheiro, procuréra tambem sem fructo a barra de Aveiro, para municier, e soccorrer alguns corpos de guerrilhas, que se davam como existentes na Beira, mas estas guerrilhas, pequenas em numero, e deixando a sua antiga guarida das serras da Estrella, Bussaco, c Boialvo, para se aproximarem de Coimbra, foram finalmente surprehendidas na matta da cortica, junto de Penacova, fugindo uns, e sendo immedia- tamente fuzilados outros. O guerrilheiro, frei Simao, que no Porto tinha adquirido algum nome pelas correrias, que d’alli fizera sobre as immediacdes da cidade, teve na ultima dellas a desgraca de ser cortado pelo inimigo, e de correr depois sobre S. Pedro do Sul pela estrada de Treita, e Cabreiros, até ir metter-se n’um corgo da ribeira de Raques, nas fraldas da serra de Treita, onde teve de entregar-se 4 des- cripc3o, depois de um vivo fogo em que consummio todas , 43 munigdes, sendo a final executado em Vizeu com mais doze dos seus infelizes companheiros. O exercito realista, firme como se mostrava nas bandeiras da usurpaytio, tenaz como na sua defeza se apresentéra em todos os recontros, que tivera contra os constitucionaes, dava bem a entender que o principe, cuja causa abracira, tinha entre elle, e o povo portuguez o mesmo fanatismo que entre os seus tinha D. Pedro, e por couseguinte que este devia renunciar a to- das as lisongeiras esperancas de alcancar a mais pequena vantagem, que a forca das armas lhe nao conseguisse. Esse mesmo exercito, fanatisado como estava por D. Miguel, via- VoL. 1.— CaP. I. 8 se ja em volta do Porto, ameacando decididamente a cidade de um cérco em que todas as probabilidades eram contra os sitiados: e todavia nem D. Pedro se resolyia ainda a lan- car-se abertamente na defensiva, nem os seus ministros, vendo proxima a estac&o invernosa, se entregayam a0 cui- dado de fazer o mais pequeno deposito para munigdes de béca, e de guerra. Posta pois a realidade do cérco, e tolhidas as communicacdes, @ soccorros do interior com o Porto, #6 restava a esperanca do abastecimento por mar, abastecimento a que os temporaes do inverno ha- viam de pér limites, mas que felizmente nao foram o mais duro inimigo para os constitucionaes: pedia pois a razio, exigiam-o as cautellas, e a continuac8o da guerra que quanto antes se fizessem semelhantes depositos na im- minencia do sitio, que jA se estava sentindo, o que todavia se nao fez. N’um conselho militar, que na noite de 7 para 8 de agosto se convocéra depois dos funestos acontecimentos de Souto Redondo, e que duréra até & uma hora da madruga- da, se ventilou a questdo de occupar-se, ou no, e defender- se difinitivamente o Porto, attenta a natureza do seu terre- no, @ extensdo do seu recinto, e des obras que para tal fim demandava. O terror, que aquelles mesmos acontecimentos determinaram n’alguns dos membros deste conselho, no s6 08 pozera em estado de exagerarem os perigos, que a sua imaginagao lhes pintava, mas até os arrastéra a0 voto do total abandono do Porto, isto é, & manifesta repeticiio das vergonhosas scenas do vapor Belfast em 1828, estribados, como ent&o, nos especiosos pretextos de que os moradores daquella cidade se nao deviam expér 4s calamidades de um sitio de tho sinistros auspicios. Alguem sustentou alli a ne- cessidade de mudar a base das operacdes militares para ou- tro ponto mais defensavel, e em communicacio com o mar ; e outros houve finalmente que julgavam se devia penetrar pelo interior do paiz, ou entéo por uma especie de contra- marcha ir por mar desembarcar n’algum ponto do Sul, quando as tropas inimigas estivessem ji em forca no Norte. 6 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. Nada porém se decidio neste primeiro conselho ': as incer- tezas da guerra conlinuariam como d’antes, a nao ter plano fixo, e 0 quadro, que tao carregado, e negro se apresentava para o futuro, seria como até alli abandonado ao mero acaso, se D. Pedro, levado mais por inspiracdo propria, e pelos desejos de entreter a espectacao publica, do que por uma resoluco fixa, e bem concertada na opini8o dos seus generaes, n&o tomasse por si a decisto de progredir com 0 systema das fortificagdes do Porto, e com ella lhe n&o so- breviesse a idéa de se defender dentro de taes fortificagdes até 4 ullima extremidade, porque em fim desvanecidas as primeiras impressdes do funesto dia 7 de agosto, sen’o pas- sou a viver satisfeito, entregou-se pelo menos aos cuidados de remediar como lhe era possivel os seus passados desas~ tres. Deste modo, sendo em si mesma de tao terriveis ef- feitos a vergonhosa debandada de Souto Redondo, nao se pode todavia deixar de olhar como de summa vantagem para a causa constitucional pelo desengano que por fim pro~ duzira em D. Pedro, de que o seu nome nada valia nas fix leiras dos seus contrarios, e n&o menos pela convic¢fo que Ihe trouxe da necessidade de se fortificar quanto antes, no Porto. E é muito para lamentar que neste seu systema de fortificagdes se nao curasse de conservar desde logo como livres, cobrindo-as igualmente das surprezas do inimigo, as communicagdes do Porto com o mar, n&o sémente para ha- ver os generos de que se necessitava, mas para receber tambem os reforgos de bracos de que tanto se carecia, 0 material de guerra, e 03 meios pecuniarios, sem os quaes o Exercito Libertador seria dentro em breve levado ou a rene der-se por falta de mantimentos, ou a entregar-se por falta de munigdes, Conseguintemente a Foz, e todo o mais ter- reno que de 14 yem até Lordello, os pontos mais culminan~ tes da margem esquerda do Douro, os que a cavalleiro do~ 4 Chegon a correr com toda a voga no publico, e o proprio José Xa- vier Mouzinho da Silveira, minisiro que foi da justiga, e fazenda no Porto, © affirmou nas Cértes em 1834, que 0 resultado deste conselho fora o difiaiv tivo abandono daquella cidade : entrelanto eu sigo a negativa, feita a tal res- peito na mesma occuallo pelo ministro dy guerra, Agostinbu Joxé Freire. VOL. .— CAP. I. 7 minam, ou flanqueiam o Porto, os que lhe podiam embara- gar, e obstruir a barra, taes como o alto da Bandeira, o antigo castello de Gaia, a Furade, « Pedra do Cao, junto do Cabedello, e sobre tudo a formidavel posigaio da Serra do Pilar, cuja importancia j4 em 1809 fora reconhecida pelo marechal Soult, néo foram incluidos na primeira linha de defeza, posto que esta ultima posic&io o viesse a ser depois com o tempo: com o mesmo desacerto se abandonaram tambem pela margem do Norte as importantes alturas do Regado, das Antas, Covello, e até a posic8o de Lordello, tdo necessaria para ligar o Porto com a Foz. Verdade é que a experiencia, como a melhor mestra da arte, e as cir~ cemstancias occorrentes foram depois esclarecendo a8 idéas, iHustrando as intelligencias, dando mais conhecimento dus vantagens do terreno, e finalmente formando a opinitio, que successivamente foi remediando os descuidos commettidos da parte de D. Pedro, e de nfo menor monta da parte do inimigoy que escolhendo posigdes nas visinhancas da cidade, incorreo no seu fatal erro de se nao assenhorear da For, erro tao irremedeayel, de que s6 mais tarde lhe veio a conhecer bem todos os funestos efeitos: os olhos viam, mas a reflexio é que no attendia, nem estava formado o bebito de applicar a theoris 4 pratica. Deste modo o sitio, € a defeza do Porto anteviam-se ja de parte a parte até meado de agosto de 1832, mas como um desses principios laminosos, dessas verdades d’alta importancia, que uma in- telligencia superior esta proxima de alcangar, mas que a obscuridade do momento retem ainda antes da sua mani- festa descoberta. ; S6 D. Pedro, arrebatado dos desejos de conservar um nome-de bravo, e€ corajoso capitio, que de certo se nto gecha sem correr os riscos da guerra, dotado de uma con- viegho tBo forte, que o levava ao enthusiasmo pela sua cau- sa, e de uma vortade tio prompts, e decidida, quanto o podia ser, inspirado por lodos aquelles sentimentos, era ca- paz de tirar a defeza do Porto da molle apathia em que até entao estivera submergida: s6 0 seu nome, e o seu exem~ 8 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. plo podiam acabar de uma vez com a irresoluc8o, e.inercia de que eram jé victimas muitos dos que o rodeavam, le- vando-os 4quella ardente paixdo de gloria, que tanto mais tenaz, e persistente se torna, quanto maior 6 0 cémulo das difficuldades que encontra. Foi assim que D. Pedro, con- fiando na bsavura, e fidelidade dos seus solddlos, metteo hombros 4 empreza com toda a perseveranca, e zélo, con-— tando que os seus desejos, e fadigas seriam coroados com a mais exemplar disciplina do seu pequeno exercito, cujo cre- dito entendeo restaurar teimando na defeza do Porto. De- baixo do fervor das suas immediatas vistas, des repetidas visitas que durante o dia fazia aos pontos, que fortificava, se foram pois levantando com incrivel celeridade as famosas linhas do Porto, todas ellas devidas 4 energia, e actividade de D. Pedro. Semelhantes a0 que j& tinham sido em 1809, ‘corria uma destas linhas pelo interior da cidade, formada por parapeitos, travezes, e cortaduras o’algumas ruas, com fornilbos, ¢ rastilhos nas entradas da mesma cidade; a ou tra cingia-a pela parte de féra com extensos parapeitos, nu- merosas trincheiras, e fossos, guarnecidos de estacadas, e abatizes: pelas differentes alturas, e pontos culminantes se leyantavam tambem multiplicados reductos, e baterias, e por este modo se estendiam estas fortificagdes desde a quinta da China, e Campanha, a Leste da cidade, até 4quem de Lordello pela parte de Oeste, dirigindo-se pela Lomba, igreja do Bom- fim, ermida do Captivo, Aguardente, Monte Pedral, Carva- Ihido, Bomsuccesso, e casa do conego Teixeira, ficando as~ sim de fora, como ja se disse, as importantes alturas do Re- gado, Antas, Covello, Lordello, e todo o mais terreno, que na extensiio de duas milhas se estende desde aqui até 4 Foz. Na margem do Sul do Douro algumas ligeiras fortificagdes se comegaram tambem a fazer na Serra do Pilar por ordem do governador militar do Porto, trabalhos que nfo mere- cendo por ent&o a inteira approvacao de D. Pedro, nao foram todavia d'encontro 4s suas expressas determinacdes. Ainda assim © exercito constitucional era bastante escasso para {Go extensa empreza; faltavam-lhe bracos nas suas fileiras VOL. 1l.—= CAP. 1. 9 para devidamente guarnecer tao avultada linha, e d’ahi nas- ceo nao se poderem logo occupar muitos outros pontos, tanto n’uma, como n’outra margem do Douro, posto que as van- tagens d’alguns no fossem inteiramente destonhecidas. Com esta falta se reunia tambem a do tempo, elemento indispen- savel para ® acabamento, e perfeicao de todas as couses, quando por toda a-forma urgia a imminencia dos riscos, e a grande penuria dos trabalhadores, que tornava o mal dupli- cadamente funesto, conspirando assim todas estas causas para se n&o emprehenderem muitas obras simultaneamente, sob pena de nenhuma se concluir com a rapidez que o aperto das circumstancias exigia. Na escacez dos meios de que se dis- punha, a obra foi sempre medrando, e adiantando-se com a diligencia, porque as mesmas tropas, que haviam de guar- necer as linhas, eram as que tambem assistiem 4 construc- gio da fabrica, que em parte se commetteo acs comman- dantes dos corpos nos districtos, cuja defeza thes fora con- fiada, expediente que foi assis importante para a brevidade do apérto, e maior solidez dos trabalhos. Das vias publicas, das quintas, e terrenos de particulares se foram tirar os pinheiros, e as mais arvores necessarias para as trincheiras, e estacadas, para a construccfo de barracdes, que servissem como de quartel 4 tropa: estas causas, reunidas com a pro- cura de combuslivel para os ranchos, limparam dentro em pouco tempo todos os terrenos em yolta do Porto, ficando assim inteiramente despidos de arvoredos por mais respei- taveis que fossem os suas dimensdes, e antiguidade. Entre tanto era sobre os habitantes do Porto que mais particular- mente recahiam os trabalhos das fachinas, e obras de forti- ficagio, dando por turno os bracos necessarios para seme- Ihaotes obras, ou fornecendo aos cabos de policia uma certa quantia com que depois se pagava aos jornaleiros, e homens de trabalho, que para este fim se andavam todas as manhas apprehendendo pelas pracas, e ruas da cidade. Desde entéo tudo se aproveitou com incrivel hda vontade, e diligencia nas m&os dos constitucionaes, que de tudo careciam pera sua salvagao, e seguranca. As cincoenta bécas de fogo, aban- 10 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. donadas pelo general Santa Martha no Trem, ou no Arsenal do Porto, ainda que muitas dellas velhas, todas com o an- dar do tempo se foram successivamente mettendo em hate- tia, cabendo igual sorte a dois morteiros de bronze de 16 pollegedas, que & porta do mesmo Trem se encontraram, com grande quantidude de granadas, e balls rezas, separa- das depois calibre por calibre, pela mistora informe em que umas com outras se achavam. A promptificag3o das plata- formas, e reparos, algues dos quaes o mesmo D. Pedro de- lineéra, ndce mbaracou pouco o completo estado da guar- nicdo dos reductos; mas de tantos, e tao variados trabalhos, que a construccdo, e guarnigao das respectivas linhas de- mandavam, nao se péde dizer que houvesse em todo o mez de agosto mais do que os primeiros tragos das obras, que para a defeza do Porto se precisavam, ou para dentro dellas se poder devidamente abrigar o Exercito Libertador. De todos estes trabalhos era effectivamente D. Pedro a alma, e o centro; a sua extraordinaria actividade, e perse- yeranca a tudo e em toda a parte estava sempre presente, parecendo que nesta defeza mais presava a honra de solda~ do, que a fama de capitio.” Em quanto por um lado pro- gredia o alistamento, e armamento dos corpos nacionaes, por outro attendia-se igualmente a todos os mais arranjos necessarios a tao activo estado de guerra: foi assim que se deo maior extensdo ao Trem militar, que se formou um ar- senal, que se crearam os laboratorios de polvora, de cartu- xame, de mixtos, e de projecteis de toda a especie. Ao passo que progressivamente iam avultando os meios de de- feza do Porto, despediam-se igualmente todos os transportes, que sinda se achavam ancorados defronte da barra do Dou- ro, e chegaram quasi a0 seu estado de aperfeicoamento as baterias, e reductos de Massarellos, que impediam a entrada da cidade pelo caminho da Foz, da Lomba, quinta da Chi- na, e Bomfim, delineando-se a par destas as baterias do Sério, Congregados, Aguardente, Monte Pedral, Senhora da Gloria, Bomsuccesso, Cemiterio dos inglezes, Torre da Mar- ca, Victoria, e Seminario. A todas estas baterias, e redu- VOL. 1. — CAP. 1. it ctos se dirigia frequentemeote D. Pedro durante a sua construcgdo, e depois della, ndo 96 para vigiar, e presidir 208 seus respectivos trabalhos, mas para observar igualmente © inimigo, contra o qual fezia alguns tiros, que os hebitan- tes do Porto tomaram nos primeiros dias como outros tan- tos signaes de acommettimento, e ataque nas linbas. Assim levantava elle os animos abatidos destes mesmos habitantes, em quem a pouco e pouco foi pelo sea exemp'o gerando Dbrios marciaes, e cimentando cada vez mais a crenca de que a defeza da cidade, confiada ao Exercito Libertador, seria levada até 4 ultima extremidade, e de que neste mes- mo exercito achariam seguro ampsro para si, para a sua fortuna, e familia. Mas este estado de crenca nao foi obra do momento; veio atraz do tempo o habito da guerra, que Dio se adquire em pouco, e tanto mais que o abandono por que tinbam passado em-1828 estava ainda presente na lem- branca de todos. Foi por isso que os primeiros efeitos do sitio n8o poderam deixar de contristar os animos; as sub- sistencias comecavam a rarefazer-se, subindo proporcional- mente de prego, & medida que crescia a sua raridade. As detonagées das pecas em bateria, e o fogo de fuzilaria, mais ou menos entretido j& nos postos avancados, eram uma no- vidade com que os espiritos mal podiam ainda familiarisar- se, Esta attitude militar do Porto, e este continuado estado de guerra cootrastavam tanto mais com os antigos habitos dos moradores do Porto, quanto deversificam entre si os caidados, as vigilias, e as durezas de uma vida essencial~ mente activa, passada n’um acampamento intrincheirado, observado de perto pelo inimigo, do espirito emprehende- dor, commercial, e d’industria dos habitantes de uma cida- de, tal como o Porto, dada essencialmente a especulacdes de semelbante natureza, e de continuo occupada na vasta extens#o, e aperfeigoamento de seus trabalhos artisticos. A suspenséo destes trabalhos, a paralisagao do commercio ex- terno, e interno, o péso dos aboletamentos, os excessos, & exigencias de alguns aboletados, o servico pessoal das fachi- has, ou o pagamento dos jornaes aos que por outrem iam 12 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. trabalhar na construccao das linhas, as suas quintas, terras, e casas de campo devastadas, e devassadas nos pontos por onde as mesmas linhas passavam, a vista dos feridos, que de quando em quando se acarretavam ja para os hospitaes, e finalmente o apparecimento da esquadra miguelista, amea- gando igualmente aquella cidade de um bloqueio por mar, langavam o terror, € a magoa no centro de muitas familias, algumas das quaes pela sua falta de meios, pelos seus cui- dados oa subsistencia futura, e pelo esmorecimento geral, que evidentemente se divisava em todas as classes, ndo se recatavam em patentear signaes de tristeza aos seus mesmos aboletados, queixando-se da mesquinha sorte a que as tinha reduzido o presente estado de guerra. Na Chronica do Por- to, ou periodico official do governo, se publicaram artigos, aconselhando os mais timidos a que sahissem da cidade, e a deixassem aos que a todo o custo nella se propunham a sustentar a causa da Liberdade. O mesmo governador militar do Porto mandou que, como incursos na pena de morte, fossem immediatamente presos, e conduzidos 4 sua presenca quaesquer individuos, que em tempo de guerra, e o’'uma praga militar, como aquella cidade estava sendo olhada, se achassem difundindo o terror; 0s nao alistados tiveram or- dem para nao sahirem de casa durante as noites em que houvesse’ movimento de tropas, ou combate com os inimi- gos; e para obstar quanto possivel fosse 4 escacez de vive~ tes, probibiu-se finalmente a sshida de carros, ou cargas de generos de primeira necessidade para féra do Porto, provendo-se todavia no modo por que podiam ser levados aos moradores suburbanos. Para cumulo do desalento a esquadra constitucional, que depois do desembatque do Mindello se retiréra para a foz do Tejo, resolvida a bloquear Lisboa e Setubal, appareceu nas agoas do Douro com todas as apparencias de vencida, porque tendo j& tido no dia 10 de agosto um pequeno re- contro com a esquadra miguelista, de que ambas ellas se reliraram com alguma avaria na sua mastreagao e macame, vinha na frente della endireitando com o rumo do Norte. A VOL, H.— CAP. 1, 13 consternagtio, ¢ 0 suslo recresceu ent&o na proporgtio do pe- rigo, vendo-se as forcas constitucionaes, depois de reforcadas j@ por alguns brigues mercantes, armados em guerra, que 0 governo Ibes pudera mandar, como fugidas diente de um inimigo, que @ todos se antolhava vencedor. Ainda que o engano foi curto, todavia as informacdes soltas, ou noticias vagas, que ent&o se publicaram pele imprensa sobre 0 com- bate naval, sem caracter official, em vez de aquietarem, vieram desassocegur ainda mais a anxiedede publica pela reserva com que pareciam sér dadss. « Ahi vem a esquadra «inimiga, dizia por este tempo um artigo da Chronica do «Porto, 14 vem a nossa; vieram os guerrilhas até Rio Tin- «to; foram as nossas avancadas até tal ou tal ponto, eis a «conversagao do dia, no que gastam inutilmente o tempo «03 ociosos, 8 indifferentes, e os inimigos da rainha, e da « Liberdade. Uma espingarda 4s costes, patrona cheia de «cartuxos, uma espada bem afiada, uma enchada, ou pica- «Feta, ou machado, um cesto, eis os instrumentos de que «deve j& lancar mao todo o cidadao. Reunir-se aos batalhdes «moveis, ou fixos, e adestrar-se para repellir o inimigo; «cavar a terra, e ajudar a formar os fossos; quebrar a8 « pedras, e carrega-las alé a0 logar dos fortes; ser em fim «util & patria, e concorrer da maneira que puder para o « triumpho da causa publica, eis a unica occupagio digna do « homem, que tem honra, brio, e vergonha, que tem uma «patria a quem deseja vér livre e desopprimida.» A esta anxiedade veio todavia por cdbro a mesma esquadra inimiga, porque dirigindo-se a Villa.do Conde, onde desembarcéra algumas munigdes para o seu exercito, e tendo dado logar a igual desembarque dellas na Figueira, e Aveiro, principal fim com que dizem sahira do Tejo, procuréra novamente a barra de Lisboa‘. A crenca de que o inimigo alli entrara fugido, se n@o era verdadeira, teve pelo menos o mesmo resultado entre os constitucionses, cajas furcas navaes, repa- radas com estranha brevidade, tornaram novamente para o 1 No dia 18 de agosto. 14 HISTORIA DO CEKCO DO PORTO. bloqueio de Lisboa *, nas vistas de se assenhorearem dos mares, de fazerem as possiveis presas, e tolherem de todo © commercio, conseguindo com effeito apresarem alguns na- vios importantes, sendo o mais notavel delles a charrua da India S. Jo&o Magnanimo, ou Maia Cardoso. Eis-aqui pois D. Pedro, e o Exercito Libertador, tao diminuto na sua primitiva origem, e desfalcado pelos com- bates que sustentara, e desercdes que quotidianamente sof- fria, limitando todas as suas esperancas & unica defeza, e conservacio do Porto, para onde tinham jé attrabido um consideravel numero de tropas inimigas*, e chamando para 14, e para os suas immediacdes todo o theatro da guerra, cuja duracio ameacava ser to longs, e protrahida, quanto bem sustentada de parte a parte; mas para isto se conse- guir necessario era tambem aos constitucionaes remediarem a sua grande falta de meios, um outro mal dos mais graves, que contra si tinham, e que nio concorreu pouco para es- friar os ardentes zelos com que D. Pedro buseava soprar 0 amortecido fogo da Liberdade entre os seus partidistas, e arrancar os moradores do Porto 4 perigosa indifferenca, que pela sua causa tinham nos primeiros tempos mostrado. Logo que chegéra ao Porto havia lancado mao de todos os meios, que as circumstancias Ihe depararam, authorisando o thesou- reiro geral da comarca para receber todos os fundos do Estado, e satisfazer igualmente com elles todas as despezes pablicas: foi assim que elle se fez.apropriar dos cofres da 4 Estas forcas, commandadas pelo almirante Sartorius, compucham-se de duas fragatas, um bergantim, e dois barcos de vapor, além de alyumas escunas, sahindo mais adiante de barra em {Sra para se Ihes reunirem tres Saleras barces, armadas em corvetas, e mai bergantine. As fragatas eram a Rainba de Portugal, c a D. Maria 2. corvetas a Conatitulsio, 8 Portuense, e a Regencia de Portugal ; os brigues o Vinte e tres de Julho, © Mindello, e o conde de Villa-Fidr. As forgns miguelistas, que do Tejo ha- - viam sahido, commandadas pelo chefe de esquadra, Jodo Felix Pereira de Campos, compunham-se da néo D. Soko 6.°, da fragata Princesa Real, das corvetas Cybelle, ¢ Isabel Maria, dos bergantins Audaz, Providencia, e Vinte e dois de Fevereiro. 3 Avultavam jé neste tempo a 25:000 homens, e esperavam-se dentro em pouco mais 10:000, que constituiam a terccira divisdo do exercito de Dz Miguel. 7 VOL. 1. — CAP. 1. 15 mitra, e das quantias apuradas nas sdministragdes do taba- co, companhia das vinhas do alto Douro, e contracto do consulado d’Alfandega. Mas todos estes meios se mostravam, além d’insufficientes, mesquinhos: e para mais fatalidade pera o seu exercito o proprio ministro da fazenda, José Xa- vier Mouzinho da Silveira, julgando que o governo devia em tudo dar provas das suas intencdes pacificas, do seu decidido respeito para coin o direito de propriedade, e finalmente do seu amor & justica, odo obstante as circumstancias excepcio- aes em que se achava collocado, como se devessem ser regu- ladas pelas dos tempos ordinarios, tinha j& nos Acores levan- tado os sequestros nos bens dos miguelistas, e opposto no Porto a mais viva resistencia aos seus collegas, que de facto que- riam considerar a cidade em estado de sitio, ou praca de guerra, occupada como estava seado militarmente, recusen- do-se a par disto so respeito que elle pertendia mostrar pela propriedade inimiga, para sobre a dos amigos se nao fazer recahir, como depois succedeu, todo o peso dos sacrificios, que necessariamente se haviam de empregar. Mourinho, que com as suas intempestivas leis julgéra chamar para as filei- ras de D. Pedro tantos soldados fiers, quuntos eram no paiz 0s individuos por ellas beneficiados, enganéra-se completa- mente, odo encontrando mais do que pertinaz perseveranca nas bandeiras inimigas, e decidida obstinacdo de peleja nas tropas de D. Miguel: e todavia nem desistia do seu syste- ma, nem abandonava a sua crenca de que no seu devido tempo haviam as mesmas leis de produzir forcosamente os seus imaginados effeitos. Na falta pois dos sequestros tinha © ministro da guerra recorrido ao expediente de mandar passar vales pelo fornecimento do exercito; mas 0 seu col- Jega da fazenda publicou logo pela imprensa uma portaria, dirigida ao thesoureiro geral, convidando 0s possuidores del- les a irem receber a sua respectiva importancia, obrigando- se & consignagdo de um conto de réis por dia para occorrer 4s despezas do commissariado, obrigacdo a que logo faltou no fim de dez dias, chegando até a expedir fquelle mesmo thesoureiro uma outra portaria, que se ndo publicou, para 16 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. cessar com 0 pagamento de semelhante consignacao. Deste’ modo se fez promptamente sentir a carencia de meios’ até no fornecimento do exercito, remediando-se este mal como - podia fazer-se, recorrendo-se ao credito, ou antes 4s effica- zes diligencias de alguns empregados, que em pouco tempo chomaram sobre o commissariado os mais avultados alcances. Esta grande falta de recursos j4 em principios de agosto tinha chegado ao seu auge, como era bem d’esperar, porque concentrado 0 governo constitucional no Porto, e vendo-se obrigado’ a sustentar, e a fornecer um exercito, a manter uma esquadra, e a custear todas as avultadas, e inevitaveis despezas da guerra, nao 96 tinha estancado todas as suas fontes de receita n’aquella cidade, mas nem credito tinha j& para alcancar mais dinheiro dentro, ou fra do paiz, submer- gido como ‘estava n’um consideravel empenho, consumidas todas as entradas ujustadas para os pagamentos do empres- timo anteriormente contrahido para a expedic&o, e esgotados finalmente todos os meios, que 4 sua disposicfo puzera a commissao dos aprestos em Londres, téo embaracada tam- bem pela sua parte. com os repetidos pedidos, as multipli- cadas requisigdes, e os avultados saques sobre ella feitos pelo governo do Porto. Por uma nova fatalidade esta mesma commissao, reduzida apenas a Manoel Goncalves de Miranda, ea J. A. y Mendizabal, depois da vinda de Sartorius para Portugal, fazia em Inglaterra muito méo officio, quanto aos negocios da sua gerencia e fiscalisagto: Miranda, nao sa~ bendo onde as cousas se vendiam, no conhecendo 0s corre- tores, nem os vendedores, e ignorando até os precos cor- rentes, era um membro perfeitamente nullo na commissio, Teduzida de facto a Mendizabal, 0 agente unico, que aprom- ptava o necessario para a manutenc&o, e augmento do exer- Cito, e€ 0 que por conta dos emprestadores ia fazer as com- pras, tratar dos equipamentos e fardamentos, alistar recrutas - de mar e de terra para o exercito do Porto. Nos fins do mez de julho achava-se pois esta commissio n’um avultado alcance de £ 40:000, quando em Inglaterra se soube do resultado das accdes de 22 ¢ 23 co mesmo mer. Estas no- VOL. 1. — CAP. I. 17 ticias, reunidas 4 derrota de Souto Redondo, e & determina- ¢4o de fortificar o Porto, produziram alli entre os amigos da causa portugucza, e sobre tudo nas combinacies, e calcu- los dos emprestadores, 0 maior desalento, accrescentado de mais a mais pelos boatos falsos, e exaggeradas conjecturas, e sempre em taes circumstancias apparecem. A casa de Crbovel em Londres, o unico agente da commissao fora della, 0 set directo credor, e o que por seus bens se tor- ndra responsgvel para com todos aquelles que forneciam fundos, vendiam embarcacées, e negociavam todos os mais effeitos necessarios para o Porto, immediatamente se ressen- tio do descredite do governo de D. Pedro, da inefficacia das suas armas, e do nenhum prestigio do seu nome, confundida moralmente esta casa com o mesmo governo de D. Pedro, posto que nao legalmente, por intermedio da citada com- missio. Na presenca de tao duras circumstancias, e na ur~ gencia de lances de tamanho apuro, novas difficuldades se vieram ainda mais misturar com tao ruim estado de cousas: o gabinete de Madrid, o principal apoio da causa da usur- pactio neste reino, e o que com ella identificdra a sua pro- pria existencia, ndo admittindo quebra, nem possibilidade de modificar o regimen absoluto, que tao duremente fazia pe+ ear na Hespanha desde 1823, achava-se disposto a interferir decididamente a favor de D. Miguel, ministrando-lhe como tal todos os soccorros de gente e munigdes, que he podes- sem ser necessarios para debelar og constitucionaes no Porto. Nao havia por ora argumentos positivos para se realisar a Promptificacio de semelhantes soccorros; mas as disposigdes do gabinete de Madrid pareciam ser bem patentes a tal respeito. Nao era difficil levar dentro em pouco o Exercito Li- bertador a uma capitulacto, realisada que fosse a interven- ¢4o hespanhola, e para lhe obstar ¢ que D. Pedro appellou entao para a politica externa, e recorreu & intervencao in- gleza, fazendo sahir do Porto para Inglaterra *, como pleni~ potenciario junto 4 corte de Londres, o marquez de Palmélla, 41 Em principios de agosto. YOR, 1. 2 18 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. que além da sua misséo diplomatica * levava, com nfo me-+ nos recommendacio e empenho, a incumbencia de negociar para um fim determinado, que se nao realisou, e sobre uma hypotheca de cinco mil pipas de vinho de Villa Nova, um emprestimo supplementar de £ 600:000, que tanto se jul- gavam precisas para alistar mais crescido numero d’estran- geiros, para comprar até 300 cavallos e arreios, e para finalmente adquirir uma embarcagto de grande lote, que se podesse armar em néo raza. Entretanto a chegada do mar- quez de Palmella a Londres acabou de difundir o desalento nos amigos da causa portugueza, correndo logo que o seu unico e mais importante fim era o sollicitar a mediacdo do governo inglez *, dando-se a mesma commissdo para junto do governo francez a D. Francisco d’Almeida, que por este tempo tivera em S. Cloud uma audiencia do rei dos france- zes, a quem entregéra uma carta de D. Pedro*. Desde en- tao 0s periodicos liberaes inglezes deram-se 4 publicag&o de numerosos artigos a favor dos gdes desembarcadas, ainda que. escagamente, na Foz pelos bravos mareantes do Douro, que na noite de 18 de fevereiro tiveram a coragem de lutar com o fogo das baterias de ambas as margens do rio, e nao menos com o estado do mar, que por fortuna lhes déo um pequeno remanso naquella noite, salvaram a causa constitucional de uma perdigao cer- ta: estes pequenos recursos, e alguns mantimentos, que se conservavam escondidos, sem terem sido dados ao manifesto, foram alimentando os moradores e defensores do Porto, e deram assim logar a desvanecerem-se progressivamente us noticias de capitulagao, de que no s6 houve conhecimento entre os miguelistas, mas até della correram boatos em Londres, onde 0, Evening Mail chegou a publicar a tomada do Porto por capitulagao, e a fuga de D. Pedro para fora da cidade, d’onde a muito custo se podera evadir. Grandes eram com effeito os soffrimentos do Exercito Libertador, e demasiadamente triste a situacdo de todos os defensores do Porto; mas a intolerancia e a barbaridade do partido mi- guelista eram as mais poderosas causas, que levaram os constitucionaes a suportar resignados todos os males e pri- vacdes de tao arriscado cérco. Porém as tropas miguelistas tambem nao estavam menos expostas 4s calamidades de uma guerra, que tanto affligia ji todo-o reino. Victimas “das 4 © imperador, encontrando alguns dias depois 0 corone! Badcock, perguntou-lhe por graga se com effeilo tinha ido a Braga.tracta: com sett irmio. 2 Em 22 de fevereira. VOL. 1l.—— CAP. Il, * 143 grandes eofermidades, causadas pelas excessivas fadigas de um sitio, em que durante todo o rigor do inverno apenas se Ihe ministrava, para se recolherem, algumas barracas atulhadas de gente por todo o tempo [rio e chuvoso de se- melhante estaco, os soldados do exercito sitiante eram aquelles que, desertando para o Porto, traziam impressa na physionomia, e a0 desgracado fardamento, com que se co- briam, a mais evidente prova da miseria, que os opprimia. Em taes circumstancias, e entre taes apuros, era bem na- tural que o general Santha-Martha, como homem moderado, eo mais competente para avaliar adequadamente os males, por que os seus soldados estavam passando, ligasse toda a importancia ao acabamento d& guerra, e que reputando este negocio 0 de maior momento para o seu partido, votasse n’um conselho militar pata que os artigos da capitulacao, em que se fallava a respeito de D. Pedro, fossem taes, que este pela sua parte no podesse ter duvida em os aceitar. Mas a opinido contraria foi a da maioria do conselho, o que para o mesmo Santa-Martha equivaléo ao decreto da sua frompta demissao ', sendo com effeito substituido logo no dia 21 de fevereiro o0 commando do exercito em volta do Porto pelo ministro da guerra, conde de S. Lourengo, que neste emprego o foi tambem pela sua: parte pelo tenente general conde de Barbacena. Pela opiniao proferida pelo ministro dos negocios estrangeiros, visconde de Santarem *, claramente se vé que a opi dos mais exaltados era que 0s constitucionaes jamais deviam ser admittidos a tratar di- rectamente com os generaes realistas, mas sim por interme- dio dos inglezes, e authoridades britannicas, por isso que entre a legitimidade de D. Miguel, e a rebelliao cunstituida da parte dos constitucionaes, ndo devia haver transaccdes. Mais se vé que, 4 excepg&o de sargentos, cabos, e soldados, { Natural € que para semelhante demissio figurawse tambem a recusn + de Santa-Martha em atacar as linhas do Porto, pela convicgto, que tinha’ do méo resultado de semelhante atague. 2 Véja na Chronica Constitucional de Lisboa o officio. que sobre este ponto elle déo em rexposta, ua data de 24 de margo de 1833, a0 duque de Lafges. (A Chronica ¢ n.° 46 de 17 de setembro de 1833, pag. 244). 144 WISTORIA DO CEACO DO PORTO. a todos 08 mais se permittia unicamente embarcar para [éra do paiz, incluindo nestos os habitantes do Porto, que se ti- vessem compromettido, concessio que ainda assim tinha de ficar subordinada 4s circumstancias militares e politicas no momento de tratar, « por isso que o general em chele podia «ser mais exigente, 4 medida que a situicio dos constitu «cionacs se tornasse mais critica, e tal podia ser ella, que «mais conviria forcal-os a cortarem a linha, e a baterem- «se em campo aberto, do que deixal-os partir sem recebe- «rem a justa punicao do attentado, que commetteram » '. Foi por esté tempo que os dois exercitos comegaram a conhecer melhor as vantagens do terreno, que cada um del- les occupava, e foi tambem desde ent@o que a deleza das liahas do Porto se tornou cada vez mais importante. J4 nao era cousa estranho ouvir um simples paisano, ou qualquer dos voluntarios, debater as vantagens de uma posicao mili- tar, e as possibilidades de um ataque, ou de uma defeza feliz, o que n’alguns casos chegou a prejudicar bastante o bom cxito de alguns movimentos e operagdes, porque ante- cipadas estas no publico, ou reveladas diante dos espides miguelistas, immediatamente preveniam dellas os siliantes. No mez de fevereiro tinha o Exercito Libertador recebido © consideravel reforco de 702 estrangeiros, entre os quaes se contava o corpo de irlandezes do coronel Cotter, subindo ent3o o total deste mesmo exercito a 18:340 homens de todas as armas, incluindo 7:044 individuos dos batalhdes nacionaes: a cavallaria chegara tambem neste mez a 311 cavallos de fileira. Entretanto as circumstancias de apuro tinham chegado ao seu auge dentro das linhas do Porto, e 0s seus atterradores effeitos iam produzindo, como resultado de tao triste situacRo, a pouca ou nenhuma esperanca de salvac¢io da causa constitucional, quando appareceram noti- cias de que o reducto do Pastelciro seria dentro em pouco 1 Fnotarel que quem asim escrevera semelbante parecer, dando de mio a todas ns idéas de politica e hnmanidade, ndo duvidasse annos depoia aceilar dos constitucion.es miiva cheias de beneficios, e alé o logar de guarda-mér da Torre doTombo, que o espirito de partido tirou a um dos conatitucionaes de mais nome, e que mais decidido tinha arrosiado com o3 males da emigracko. VOR. 11. — CAP. ML. 145 tempo atacado pelos inimigos. Conhecedor da importancia desta parte da linha, e da extrema necessidade da sua con- seryacio para se manter aberta a communicacao com o mar, o general Saldanha tinha-se dedicado com incrivel actividade ao levanlamento e arranjo das suas respectivas fortificagdes, cstando ainda longe do seu acabomento, contra estas obras premeditou com effeito o novo commandante em chefe do exercito realista, depois de despertado por ellas do seu le- thargo, um prompto e decisivo ataque, bem antevisto e es- perado da parte dos constitucionaes. Era jé entrada com effeito a noite de 3 de marco, quando um dos moradores de Villa Nova, que tinha um irm&o no campo inimigo, di- rigindo-se ao paco, alli avisou D. Pedro de que as posicdes de Lordello seriam atacadas em forca na manha do seguinte dia. Acrescéo ainda mais que no mesmo dia 3 de margo desertara um cabo de infonteria n.° 10 para o inimigo, le- vando a tioticia de que o reducto do Pasteleiro se nto achava artilhado. Com este aviso de ataque, provcram-se de muni- goes, e foram vantajosamente reforcados com efficaz habili- dade e zelo pelo general Saldanha os mais importantes pon- tos do sew respectivo districto: aquelle reducto foi imme- diatamente guarnecido de boa artilheria, conservando-se-lhe tapadas as suas respectivas canhoneiras. O reducto do Pinhal foi confiado ao coronel Pacheco, e 4 sua brava infanteria n.° 10, reforcada pelo batalhao nacional do Minho, e o da casa do Pasteleiro tinka de guarnigao infanteria u.° 3; 0 reducto da Luz defendia-o o primeiro batalhao movel, com- mandado pelo major Rangel; Lordello estava occupado por infanteria n.° 9, e a communicagto deste ponto com o Pas» teleiro tinha por defensores os escocezes do major Shaw, e uma porcdo de inglezes, que se designavam pelo nome de rifle-men: toda esta infanteria recebéo ordem de nfo fazer um 86 tiro, em quante o inimigo nio viesse perfeitamente ao alcance de espingorda. Na manha de 4 de margo fize~ ram og realistas um ataque falso sobre Paranhos, Cruz da Regateira, e Contomil, ameacando tambem toda a mais di- reita da linha desde Campanha até S. Roque da Lameira: vou. 1, 146 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. ao mesmo tempo toda a segunda divisto, commandada pelo marechal de campo Joaquim Telles Jordao, veio seriamente contra Lordello, e desde esta povoucio até ao mar. As ba- terias do monte da Ervilha, e do monte do Castro, secun- dadas pelas da margem esquerda do Douro, romperam n‘um activissimo fogo contra o reducto da Luz, em quanto que a de Scrralves fazia tambem o mesmo contra o do Pasteleiro. Os atiradores realistas vieram tanto mais ousados, quanto menor era a resistencia, que encontravam pela retirada, que para dentro das linhas tinham feito os piquetes constitucio- naes. Estavam ja ao aleance de se hes distinguir perfeita- mente os botdes das fardas, quando as descargas de metra- Tha, acompanhadas de uma activa fuzilaria, os desbarataram, ¢ Ibes fizeram uma horrorosa carnagem: todavia o inimigo veio ainda contra a flecha dos mortos, e a que ligava o re~ ducto do Pasteleiro com o do Pinhal; mas o seu ataque tinha 6 perdido a forga, porque procurando na fuga a salvacdo, nada era capaz de trazer os soldados realistas a um firme e deci- sivo combate, tendo de passar por entre os cadaveres dos seus, alcancados tae de perto pelo fogo dos constitucionaes, A Serra do Pilar tambem neste dia se tornéra o alvo de todas as baterias inimigas, que a podiam descobrir: o fogo comecéra pelas tres horas da manhaa, e acabira pelas tres horas da torde, calcu!ando-se em mais de mil as bombas e balas, lancadas contra aquella posic¢do: do campo da Cravéla sahio uma columna para a igreja de S. Christovao, donde tomou o caminho de Quebrantées, e depois‘o do Pinhal, para vir contra a cérca da mesma Serra, ao passo que ou- tra columna, seguindo para o lado da Fervenca, parecia ameacar d’alli a direita dos constitucionaes; mas nada disto passou de um simples amcago, retirando-se finalmente os realistas sem combater ‘. A cidade do Porto foi, segundo o costume, quem soffréo 0 castigo do mo successo do inimigo, que contra ella dirigio um activo bombardeamento, durando 4 A perda dos conslitucionaes foi neste dia de £4 mottos, e 134 feri- dos, a dor realistas fui por elles mesmo computada em 50 mortos, € 335 fe- ridos; mas é de cre qne nesta conta haja aiuda sua diminuigio. vou. 1) — cap. in. 147 até 4s tres horas da tarde, e causando algumas mortes e ferimentos. O conde de §. Lourenco, que chamou a este ataque um reconhecimento em forca, como o visconde do Péso da Regoa chaméra a accto de 29 de setembro, ma- nobrou neste dia com bastante actividade, como quem que- ria levar a palma aos seus antecessores; mas os seus soldados € que Ihe nao secundaram a sua actividade. Da parte dos constitucionaes os resultados do dia 4 de marco podiam-thes ser de grande vantagem, se o marechal Solignac, deixando os seus habituaes receios, e demasiadas cautelas, em pre- senga da critica situacto do Exercito Libertador, tivesse convenientemente manobrado: Saldanha duas vezes Ihe man- dou rogar que fizesse um movimento sobre a esquerda do inimigo, apenas 0 visse em derrota na sua direita; mas elle continuou sempre inactivo 4 ilharga de D. Pedro na linha do Bom-Successo, perdendo assim uma nova occasiio de se poder novamente occupar o monte do Castro. Desde entdo claramente se vio que o general francez para nada mais servira entre nés do que para obstar 43 imprudentes sorli- das, a que tinha posto cdbro. : O conde de S. Lourengo, perdidas igualmente pela sua parte as idéas de poder levar as linhas do Porto por assalto, entregou-se ao augmento das baterias do bloqueio, e na ponta do Cabedello, (areal que na foz do Douro aperta as aguas deste rio, pela margem esquerda, e as leva a fazer alli uma estreita garganta contra a outra margem,) appare- céo em 9 de marco levantado um parapeito para manobrar a fuzilaria, e a coberto delle poder cuidadosamente vigiar os desembarques da barra, que contra si veio a ter na mesma margem esquerda do Douro seis baterias, duas na Pedra do Cao, duas no Cabedello, uma em Sampaio, e a sexta na Furada: na margem direita tinham igualmente este officio tres baterias, duas junto 4 praia de Carreiros, e a terceira no monte do Castro. N’algumas destas baterias contavam- se cinco canhoneiras com as suas respectivas pecas; mas em nenhuma dellas havia menus de tres. Senbores, como os miguelistas se achavam, de todas as alturas, que dominavam 148 UISTORIA DO CERCO DO PORTO. © Douro, a sua artilheria no sé obstruia a barra, mas até hatia de flanco quasi toda a cidade do Porto, onde, como ja se vio, conseguiram levantar alguns incendios, pela enorme quantidade de bombas, balas, e outros projecteis, que quo- tidianamente contra ella arremessavam. Quanto 4s fortifica- des inimigas, formavam ellas por este tempo um grande arco em redentes e ressaltos, comprehendendo quasi quatro mil bracas, ou mais de cinco legoas de extensto! Os seus fortes do monte do Castro, da Ervilha, ¢ Serralves, em que pelo lado do mar, e ao Norte do Douro os sitiantes se apoiavam, cram muito mais considerayeis do que as yulgar- mente chamadas fortificagdes de campo entrincheirado. To- das estas obras, de tao extensos contornos, eram muito bem concebidas, perfeitamente executadas, ¢ a sua artilberia era toda ella tio boa, quanto bem servida por toda a parte se achava. Os seus engenheiros tinham habilmente aproveitado para formar esta linha todas as ondulagdes do terreno, e as posi¢des mais vautajosas achavam-se entre si ligadas por muros de seves ¢ estevas, reforcados com parapeilos 4 prova de bala. A primeira e segunda linha eram sobre tudo guar- necidas de palicadas nos intervallos dos tres fortes acima mencionados, tendo pela sua frente fossos de 12 a 14 pal- mos de largura sobre 10 a 12 de profundidade. Semelhan- tes entrincheiramentos, sustentados pelas baterias, a que el- les iam terminar, e por todas os mais, de que se achavam cercados, interceptavam completamente as communicacées com a cidade do Por‘o. Effectivamente os miguelistas ti- nham cortado as avenidas, que da cidade se dirigiam a to- das as povoacdes circumvisinhas, haviam“olém disto destruido todas as casas, queimando aquellas que Ihes ficavam na fren- te: todos os muros das quintas ou foram por elles demoli- dos, ou seteirados, obstruidos todos os caminhos, e estabe- lecidas finalmente cortaduras com os seus competentes tra- vezes e abatizes em todos os logares e encruzilhadas de mais tranzito, ou embocaduras de caminhos, que deitavam para 0 lado do Porto. Além da sua muita artilheria de ba- ter, (morteirus, obuzes, e pecas de grande calibre,) os rea- VOL. 1. — CAP. 11. 149 listas tinham tambem por si 0 consideravel reforgo de mui- tos parques de artilheria volante. Eis-aqui pois as linbas inimigas no scu maximo ponto de perfeicio, que com effeito haviam alcangado em marco de 1833. Pela sua parte os constilucionaes haviam dividido a sua linha em quatro distri- ctos. Na extrema esquerda achava-se alguma cavallaria, e no centro havia de reserva uns duzentos cavallos de lanceiros, e mais alguns corpos de infanteria de pequena forca, sendo no Caryalhido o ponto dado para a reuniiio do batslhdo de empregados publicos, e para todos as mais pracas ¢ officiaes sos: em occasito de fogo. A forga da artilheria volante ia apenas em tres meias brigadas, alem da artilheria de bater, que guarnecia os fortes. De todas as baterias, que serviam de apoio ao pequeno crercito constitucional, as mais regulares eram certamente a do monte da Luz, a do Pinhal, e Pastcleiro, e finalmente as do monte Pedral e Congrega- dos. A primeira destas ultimas, ou a do monte Pedral, re- vestida de leiva, e de pedras sollas e toscas, era a mais te- mivel de todas, pela sua elevacdo sobre as outras pequenas haterias; mas o seu accesso era ainda assim tanto mais fa~ cil, quanto pela maior parte ella @ todas as mais se acha- vam desprovidas de golas e {éssos, correndo-lhes apenos por diante, a maior ou a menor distancia, segundo o permittia © terreno, uma singella linha parapeitada para a infanteria, linha formada cm muitas partes de vallados, de barricas, pipas, leivas, e muros irregularmente delineados. As forti- ficagdes, que muito 4 pressa se havia levantado desde o Carvalhido até 4 Foz, e que se olhavam como um quinto dis- tricto, eram geralmente feitas de terra, constituidas n’algu- mas partes por uma simples ordem de barricas e pipas, e Tevestidas n’outras por taboas, com que a mesma terra se amparava, correndo-lhes por diante féssos de nao grande prolundidade, que lhe vedavam o accesso da parte do ini- migo. A sua respectiva artilheria no era geralmente bon, por falta de capacidade para poder jogar 4 yontade no local, em que se achava assestada. Conseguintemente os constitucionaes #6 verdadeiramente 150 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. tinham em favor dos seus desembarques a bateria do monte da Luz, e a artilheria do castello da Foz, onde o seu go- vernador, o coronel de cayallaria, José da Fonseca, nao sé ia resistindo ao continuado fogo de artilheria das baterias realistas, @ até ao do canhdo-obuz, que para defronte delle foi mudado, ficando alli ao alcance de ponto em branco, mas até pessoalmente auxiliava os mesmos desembarques, pe- gando nas padiollas, para com seu exemplo animar a este servico os soldados, pouco familiarisados com semelhante especie de trabalho. Foram as baterias do Cubedello as que mais particularmente acabaram de fechar a barra; por causa dellas se viraram algumas catraias, ou foram mais ou menos avariadas as que dentro do Douro vinham procurar a praia da Cantareira, com a pressa de se lhes escapar do fogo: a foz do rio ficou ent&o completamente obstruida, tendo todas as catraias dos desembarques de ir procurar para elles a pequena praia dos ingleres, j& fora da barra, junto ao monte da Senhora da Luz. Na mesma praia da Cantareira se as- sestaram, da parte dos constitucionaes contra as baterias do Cabedello, duas pegas, as quaes, ainda que auxiliadas pelas do castello da Foz, nada podiam conseguir de vantagem ; uns vinte voluntarios, desejosos de adquirir fama, meltendo- se em barcos, foram sobre o Cabedello ‘ para destruirem aquellas baterias, que geralmente s6 estavam bem guarue- cidas durante a noile; mas vindo sobre elles um bando de cacadores realistas da bateria de Sampaio, e d’outros mais pontos fortificados, tiveram de retirar & pressa, deixando ainda por [4 ficar uns tres mortos, além dos feridos, que para ca trouxeram. Apesar de todas estas baterias, os des- embarques foram sempre continuando, effeituados desde as ave-marias até 4s duas horas da madrugada, nao sem al- gumas desgragas durante as nojtes, exageradas por vezes pelos mesmos barqueiros, quanto ao numero dos afogados, ou dos mortos pelo fogo do inimigo, nas. vistas de desviar a concurrencia dos companheiros, e couservar quanto possivel os altos precos de tao arriscadu servico. Com os escacos 4 No dia 95 de marco. VOL. M.— CAP. 1. 161 desembarques ultimamente feitos se foram pois supprindo as necessidades do Porto; mas o apuro dos mantimentos foi ainda assim subsistindo, e nfo menos o das municdes de guerra. Nas noites de 10, 11, e 12 de marco fizeram-se alguns desembarques, entre os quaes se contaram 400 bar- ris de polvora com cincoenta quintaes de chambo, e 300 irlandezes, consideravel reforgo para quem se achava em tamanho apuro. Em fins de marco o governo teve de redu- zir a metade os direitos do bacalhéo e arroz; mas j& ent8o se contavam ao largo 28 navios mercantes, que ao abrigo da primavera vinham procurar a descarga. Contra estes na~ vios, e as catraias empregadas nos desembarques, mandaram entéo os miguelistas sabir de Mattozinhos seis lanchas arti- Ibadas, contra as quaes o governo teve de mandar pdr nu mar algumas canhoneiras, que escoltando as embarcacdes dos desembarques, as pozessem a coberto das aggressdes do inimigo. Com este pequeno auxilio, e o da escuridao das noites, e sobre tudo pelo remanso, que o mar foi pouco a pouco adquirindo, depois de meiados de marco, poderam os homens atrevidos de semelhantes embarcacdes arremessa- rem-se ao mar no meio de tantas contrariedades, tendo por cima da sua cabecs, em quanto remavam 4 voga surda, um continuado fogo de balas de artilberia, granadas, bombas, e furilaria, e por baixo da quilha logares aparcelados, ssperos. e ericados de cachopos, encobertos pelas aguas da maré cheia. Foi assim que os desembarques de 21 de marco, ainda que de algum vulto, s6 na noite de 27 e 28 se tor- Daram copiosos, e adquirindo desde entao mais alguma re- gularidade, fizeram desvanecer os receios da fome no Porto, cujo mercado, apresentando-se soffrivelmente fornecido de quasi todos os generos de primeira necessidade, affastou de Moitas mezas 0 enjoativo arroz com assucar, de que muita gente se tinha por algum tempo alimentado‘. Com a ener- 41 Eu mesmo, findo nas rages, que me dava o governo, mu fis provi- mento de coura alguma ; mas o resultado disto foi o ter de recorrer tambem Ao arrog com assticar por [res on quatro dias, por n&o se encontrar & vend no Porto espeeiv de adubo, com que se porlesse temperar x comida. 152 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. gia das forcas fisicas, determinada pela abundancia dos man- timentos, adquiriram novo vigor as forcas moraes, e as idéas de capitulag8o pela fome desappareceram inteiramente d’en- tre os defensores do Porto. Se os desemibarques de generos desviaram do Porto as calamidades, que determinéra a sua falta, um outro mal de difficultoso remedio, e de no menor gravidade, veio succe- der aos apertos, que até alli affligiam o governo e os go- yernados. O thesouro havia chegado a faltar com os paga- mentos devidos aos seus credores de bacalhto e arroz pars sustento do exercito, estendendo-se esta mesma fulta aos fornecedores das racdes diarias para os hospitacs; mas se 08 despezas do commissariado, acrescidas com as do ministerio da guerra, excediam as posses do thesouro*, as da esquadra jam pelo mesmo theor. Os fornecimentos dos navios de guerra eram geralmente feitos por meio de letras, sacadas sobre a commissio dos aprestos; mas no se tendo podido pagar algumas das mesmas letras em Londres, este n.eio havia cahido em descredito, de que resultou o atrazo dos pagamentos, chegando a haver guarnicdes com nove mezes de atrazo! Com isto se reunio igualmente a falla de vestua- rio, de que proveio crescer progressivamente a indisciplina e os ameacos, que diariamente se ouviam, de fugirem as tri- pulacdes com os respectivos navios para Inglaterra, como effectivamente veio a praticar a escuna de guerra Graciosa. Neste aperto, Sartorius resolvéo-se a escrever a D. Pedro uma carta em termos mais asperos e fortes do que até alli tinha feito, indicando nella como meio mais prompto de pa- gamento o desertar com a esquadra para Inglaterra. D. Pe- dro reputou logo esta carta como um insulto feito 4 sua pessoa, e levando-a a conselho de ministros, onde s6 o da marioha a defendéo, como filha da melindrosa e arriscada posic&o, em que o almirante se achava, della resultou a fi- 4 Ezlos despezas foram no mex de fevereiro, arsenal ¢ fortificades, 6:284$950 ; intendencia geral de viveres 8008000 ; hospitaes 2:300$000 ; sol- dos, prestages, gratificagdes de expediente 18:536$866 ; prels 33:4688075, montando todas estes verbas no total de G1:380S891 réie. VOL, MN. — CAP. INL. 153 nal a exoneragao de Sartorius, e dar-se 0 commando da esquadra ao capitao de mar e guerra Sackville Crosby, que entio se achava no Porto. Semelhante resolucdo era com effeito arriscada e perigosa, e o ministro de marinha, pon- derando noyamente a inconveniencia della, teve por fim de referendar a medida, por consideracdo e deferencia 4 pessoa de D. Pedro. A esquadra, desde a infructuosa sortida do monte do Castro, fora para as ilhas de Bayona, e alli se conservava realmente sem paga, sem mantimentos, e até mesmo cortada das suas communicacdes com a terra, e quasi forgada a fazer-se ao mar por uma esquadra hespanhola, que d'alli a queria vir offaster, a pretexto do apparecimento da cholera morbus a bordo della. Entre estas difficuldades se achava Sartorius, quando o vapor London Merchant, lar- gando das aguas do Porto contra as ordens do governo, foi levar a Vigo 0 numero da Chronica, ou do periodico official do governo, em que por dobrada imprudencia se publicéra a exoneragio de Sartorius. Chegéra a Vigo em 23 de marco, a bordo do brigue-escuna S. Bernardo, 0 novo commandante da esquadra com algum dinheiro, que se confiéra ao cuidado de um official superior da marinba portugueza, levando igual- mente em sua companhia sir John Milley Doyle, a quem, ~ para caémulo da imprudencia, se dera a commissdo de ir installar em Vigo 0 capitao Crosby no seu novo commando. Sartorius, depois de prender o seu successor, e o proprio sir John Milley Doyle, nao sé lhes intimou que elle, os seus officiaes, e as suas diferentes tripulacdes jamais abandona- riam os nayios, em quanto previamente se Ihes nio pa- gasse a sua divida, mas até se assenhoreou do dinheiro, que levava o official de marinha portuguez. A conducta de Sar- torius foi certamente de pernicioso exemplo para a disci- plina militar; mas parece f6ra de duvida que se o almirante Tesignasse 0 commando, era inevitavel o passo das guarni- des desertarem effectivamente com a esquadra para Ingla- terra, principalmente a da fragata D. Pedro, que estava ja em estado de completa insurreig&o. Foi 0 mesmo vapor London Merchant que em 29 de marco apparecto-no Porto 154 FISTORLA DO CERCO DO PORTO, com uma solemne declaragdo, em que o almirante e os seus officiaes exigiam o seu prompto pagamento até 3f de mar- ¢0, sob pena de farerem navegar a esquadra para Inglaterra, para alli lhes servir de hyputheca 4 sua divida: todavia pelo mesmo vapor, Sartorius escrevia parlicularmente aos generaes Saldanha e duque da Terceira, participando-lhes as razdes do seu procedimento, ¢ protestando que jamais desampararia a causa da Liberdade portugueza, e que promptamente ap- pereceria no Porto, logo que alli apparecesse tambem a * esquadra inimiga. Desde este momento Sartorius, ganhando na opinido das suas tripulagdes 0 que perdia na do governo, - péde com effeito obstar a que os seus navios abandonassem @ causa constilucional, ese retirassem para Flessinga, para onde as suas tripulagdes os queriam conduzir. Julgar o governo que um official inglez, commandando uma esquadra tripulada por inglezes, e a quem se linha faltado a quasi todos os ajustes, havia de resignado entre- gar-se com todos as apparencias de prisioneiro nas maos de um homem seu inimigo pessoal, que assim reputava sir Milley Doyle, o mesmo que nenhum credito merecia entre os scus patricios, foi certamente o requinte da maior boa {6 no fantostico poder da sua authoridade. Eutretanto a sua posic&o aggravou-se consideravelmente pelas suas impruden- cias. D’Inglaterré no the podiam vir esperancas de encon- trar meios para tao avultados pagamentos n’uma occasiao, em que a commissio dos aprestos mal podia satisfazer as letras, que sobre ella se sacavam pelo fornecimento da es- quadra, e em que a casa de Carbonell, de acdrdo coin os seus principaes credores, deixava a sua residencia em Londres, para se transferir a Paris. Os emprestimos abertos no Porto tinham j4 dado o que era possivel'; 0 mesmo succedia ao producto dos sequestros, e bens dos conventos abandonados, e todavia foi ainda nestes apertos, e no meio das calami- dades, por que estava passando aquella heroica cidade, que lJembrou por mais esta vez recorrer em tamanho perigo 40 exemplar patriotismo dos seus moradores. A nada se exi- 4 Montaram ao todo em 380:365$351 réus. VOL. M1. — CAP. IL. 165 miram os negociantes e capitalistas, chamados pelo ministro da fezenda a sua casa; mas na commissio do thesouro se louvaram elles para que, n&o fazendo pesar s6 sobre uns os males da patria, derramasse tambem por todos os que po- dessem coutribuir a parte proporcional aos seus teres, na certeza de que elles pelo seu influxo fariam quanto podessem para que os collectados n3o repugnassem 4 paga do que as~ sim se thes lancasse. Desde entdo 0 governo, revestindo-se da energia, de que em taes circumstancias precisava para realisar a satisfagao das quotas de um novo emprestimo, que s6 veio a ser decretado em 29 de abril, nfo duvidou impér aos refractarios a pena de cadeia, e de pagarem den- tro della o dobro da primitiva derrama, e no fim de certos dias 0 dobro desta ultima, quando ainda assim contiouassem em persistir remissos, subtrabindo-se 4s suas respectivas en- tradas*, De Lisboa poucos ou nenbuns recursos de vulto Ihe _ podiam ir, nao s6 pela vigilancia, com que o governo usur- pador perseguia os Liberaes, mas porque quasi todos elles se achavam exilados, presos, e privados da administracéo de seus bens, e neste caso mal podiam ter para si, quanto mais para emprestar. Entretanto o ministro da fazenda para la escrevéo, e 0 barfio de Quintella, que sobre o contracto do tabaco, que lhe offereceram, tinha ja adiantado quantias de vulto, no duvidou agora adiantar mais ¢ 20:000 sobre In- glaterra, que com as anteriores quantias por elle adiantadas, perfazia um total de £ 65:000. Por outro lado acrescéo tambem que o governo, sem Ihe embaragar com o fecho da barra, mas obrigado pelos apuros em que se via, tembem 4 Todos os morailores do Potto estarko ainda hoje lembrados de que o aegociante Lubo, da Reboleira, tendo recusado satis{arer a sua quota de 2:0008000 7éis, foi por enla causa mettido na cadeia, e intimado para pagar de 1é quatro no fim de cito dias, eszotados ox qunes, teve de pagar oito para sor soll: ¢ & galante o que além disto se acrescenta mais, diteado-se que ente bumem, alids de uma grande reputagdo de usurario, affrméra, tificar a sua conducta, que estando muito mal parada a causa const no Porto, tomdra por expediente foxer toda esta simnlade resisten iguclistas o deixassem depuis gozar em paso revlo da sua grande fortuna, diminnida pels empreslimus forcadoa da parte dos realistas # dos constitucionaes. Deste mudo pide o governo, anxilindo pelo tempy, reali- sar deste emprestimo a quantia de 103:0858000 réis. 156 MISTORIA DO CERCO DO PORTO. ndo duvidou decretar em 15 de margo que os generos exis- tentes na alfandega, inclusos os de exportacto, despachas- sem e pagassem no praso de 15 dias os respectivos direitos de consummo ou de sahida, medida esta que contra si teve nao pequenos clamores; mas que nem por isso deixou de executar-se, e o thesouro de levantar as quantias, de que precisava em tamanha urgencia. Mas a morosidade andava necessariamente annexa a todas estas medidas, e para a neutralisar, teve D, Pedro de escrever uma carla a Sarto- rius*, rogando-Ihe que permanecesse fiel 4 causa, que abra- ¢ara, e a0 mesmo tempo certificando-o de que as suas re- clamacdes seriam em breve satisfeitas: singular contradic- ¢80, a que os repentes do scu genio arrcbatado, e a irre- flectida condescencia dos seus ministros o arrastira, depois da carta regia da demissio de Sartorius! Do emprego de todos estes meios. resultou pois que o governo pdde nao sé satisfazer dentro em pouco tempo 4s reclamagdes da esqua- dra, que depois de meiado de abril se apresentou nas aguas do Porto, mas até pagar as letras, que nto tinham sido aceitas na praca de Londres, sacadas no Porto sobre a casa de Carbonell. Aplanadas assim estas difficuldades, e abastecido o Porto desde os fins de margo, outros males de novo vieram ainda acometter a cidade: 0 fogo da bateria do Candal, e o da construida por detraz do castello de Gaia, aterrava conside- Tavelmente a todos. O alto de Gaia domina completamente todos og bairros do Porto, e D. Pedro, nao obstante os avisos que o coronel Hare lhe fizera para o occupar no principio do cérco, desprezéra-o pela grande falta de gente que tinha para guarnecer toda a sua extensa linha. Desde os fins de fevereiro que os miguelistas o tinbam fortificado, e 0 seu fogo destruidor comegou a ser desde entao o terror de toda a cidade: alcancando o bairro de Cedofeita, e a Ramada Alta, nao houve d'ahi por diante logar seguro para pessoa alguma, e o mesmo D. Pedro esteve a ponto de mudar novamente de habitacto. Quantas vezes as bombas daqucllas 4 Rim 30 de marco. VOL. 11. — CAP, 11. 187 baterias, passado um certo silencio depois do seu tremendo estampido, nao faziam sshir das casas em que cahiam, e arremessar para @ rua as pessoas de um e outro sexo, que espavoridas, arrepelando os cabelos, e borbulhando-lhes as lagrimas pelos olhos fora, gritavam pela falta de algum pa- rente, que tinba ficado victima do terrivel projectil ! Assim se annunciavam algumas vezes as mortes dos que succum- biam por semelhante.forma. Estas scenas n&o era raro re- petirem-se a bem pequena distancia umas das outras, e posto que em grande numero tivessem logar na rua de Belmonte, e geralmente na encosta que olha para Villa No- va, desde a bateria da Victoria até 4s praias do Douro, desde a igreja da Sé até 4 de S. Pedro Gonsalves, comtudo os outros bairros da cidade comecaram desde o mez de marco a ser terrivelmente incommodados. No primeiro deste mesmo mez se assestou no Prado do Bispo uma bateria de duas pecas e um morteiro contra a do alto de Gaia; mas ndo produzindo vantagem, e recorrendo-se ao estudo dos fogos cruzados sobre aquelle alto, teve de se construir a meia encosta sobre o caes de Magarellos, e junto de S. Pe- dro Gonsalves, uma nova bateria, que junta com a das Vir- tudes, Victoria, e Prado do Bispo, cruzavam todas os seus fogos sobre a terrivel bateria de Gaia. Desde entio os es- tragos nella causados foram tantos, e de tal ordem, que os realistas lhe pozeram o nome de matadouro, e de apougue, sendo depois disso necessario quintar até os soldados que a deviam ir guarnecer *. 4 Apesar deste cruel bombardeamento, nada fasin desanimar os defen- sores do Porto: conversas rocas entretinham elles com os seus inimizos durante as noiles de inverno. Alli, sobre as alcantiladas ribanceiras, que dei- tam para o bello caminho da Fuz, se ouviam gritar, no silencio das noites, para os seus contrarios, de piquete em Santo Antonio do Valle da Pie- dade: 6 corcundas! 6 caipiras! Qutras vezes entabolando conversas ¢ argu- mentagdes, levantavam os miguelistas a vox, ediziam : 6 mathado: sentado m'uma cadcirs vé de um a6 golpe de vista todo o seu reino: 0 que 08 conslilucionacs respondiam : assim scrd; max errto é que words ha nove mezes que andam @ marchar por elle, e ainda ndo poderam entrar na sua capital. Todo o mex de margo foi neste anno de quarcema, e referindo-se a esla circumslancia disse uma vex um realista: rocés 0 dexgeacalos, que nem padres (cm para neste lempo se confessarem: a que um dus suldadds 158 HISTORIA DO CERCO NO PORTO. Pela parte do Norte do Porto o inimigo procurava in- cessantemente estudar todas as elevacdes do terreno, onde podesse construir baterias, para nao deixar ficar na cidade um 36 ponto morto, e com estas vistas se apressou com a construccao de uma dellas em frente de Campanha, snnun- cio de outra que em breve teria provavelmente de apparecer na bella posigado do monte das Antas, onde amcagava ser to terrivel como da parte do Sul o era a bateria de Gaia. Aquelle monte tinha sido até entao occupado por um sim- ples piquete constitucional; mas D. Pedro mandou na noite de 23 de marco levantar nelle uma trincheira para coméco de fortificagdes de mais vulto. Ao amanhecer do dia 24, vendo aquelles trabalhos os piquetes da descoberta dos rea- listas, entraram com cacadores n.° 6 n’um continuado tiro- teio, que em breve foi auxiliado pela marcha de uma bri- gada. Corria um domingo no citado dia 24 de marco, e D. Pedro dirigia-se, segundo o seu costume, 4 missa da igreja da Lapa com todo o seu estado maior *, quando no eaminho foi informado de que as tropas inimigas, sahindo dos seus entrincheiramentos em forca de 2 a 3:000 homens, avancavam em atiradores sohre o monte das Antas. Os constitucionaes, atacados por forca tdo superior, tiveram de retirar sobre as suas reservas, vindo a tomar posic&o perto das suas linhas, 0 que déo logar a que os atacantes podes- sem demolir as obras levantadas, derrubar a banqueta das pipas, que ja la havia, e entulhar finalmente um fosso que se tinha aberto na extensio de algumas bracas. Feito isto os mesmos realistas deram em passar depois grandes forcas para o lado da Foz, ameacando por alli um ataque serio; constitueionaes replicou: de padres nfo temor nis cd falta; manda-nos de Id wm bei, gue nds te mandaremos wn padre. A estas conversas, que iam dege- nerando em pnngcntes satyras, fex D. Pedro por cobro. Solignec, depois da sua chegada ao Porto, foi quem resolvto D. Pe- dro a assislir com apparato militar & missa na igreja da Lapa em todos os dina de preceito, collocando-ee para esse fm na capella mér duquelle ma- gnifico templo cadeiras razas de veludo vermelho, disposias em fileira do lado da Epistela, no pavimento baixo do subpedaneo do altar, a primeira das quaes era destinada a D. Pedro, a segunda av marechal Solignac, seguindo- 8e depois as outras para os mais genernes, e concorrentes. VOL. 1 — CAP. UL 159 mas chegando as tres horas da tarde sem apparecer seme- Ibante ataque, o mesmo D. Pedro se resolveo a mandar retomar a posicao do moute das Antas, occupada ja por uma forga inimiga, ao inferior talvez a 6:000 homens. Para este effeité sahio pela estrada de Vallongo uma columna, que devia atacar a esquerda dos realistas: uma outra columna se destinou para os atacar na direita, commandada pelo co- ronel Francisco Xavier da Silva Pereira, que marchando corajosamente a occupar o disputado monte, vio fugir diante de si o inimigo, que apoiado nas suas reservas, voltou nova- mente ao ataque, e disputou teimosamente o terreno. Entao foi gravemente ferido o bravo major Sadler, que mais tarde veio a succumbir das feridas que recebeo. O conflicto tor- nara-se bastante critico, e a confusdo appareceo outra vez entre os conslitucionaes, e particularmente entre os inglezes, que tiveram de abandonar por segunda vez o local das suas projectadas fortificacdes, de que j4 se achavam senhores. Foi neste momento que a columna, subida pela estrada de Val- longo, dando animo e calor aos fugitivos, promptamente os fez tornar a si, e os levou com tal impeto contra o inimigo, que este teve de retirar-se precipitadamente, dando assim logar a que a posicio disputada ficasse por terceira e ulti- ma vez em poder dos constitucionaes, que desde entao po- deram definitivamente levantar sobre 0 monte das Antas o reducto do seu mesmo nome '. Continuave pois o Exercito Libertador coberto de gloria pelos seus recentes triumphos; mas oy que nos reductos do Pasteleiro e Pinhal tinham sido alcancados pelo general Saldanha, em 4 de marco, eram outros tantos motivos de dissabor e amargura para o ministerio, e 03 seus partidistas, que nas derrotas do inimigo viam o annuncio dos seus pro- prios desastres pela desmedida influencia de um rival, que de dia para dia se tornava cada vez mais poderoso pelas 4 Os constitucionaes liveram neste dia a perda de $1 mortos, 212 fe- Fidos, ¢ 3 prisioneiros ou extraviados, cumprehendenido ao todo 236 homens, dos quaes 29 eram officiaes : segundo uns mappas vindos de Lisboa, a perda do inimigo foi de-226 homens; mas no Porto computaram-na em nfo menos de 1:000, incluindo 186 mortos no campo. 160 NISTORIA DO CERCO PO PORTO. suas victorias. Saldenha’ tinha orgenisado para a parte da Foz um club, em que entre muitos militares entravam tam- bem alguns olliciaes superiores do Exercito, de muito bom nome ¢ reputacao. Pela sua parte o governo tambem tinba destas associagdes, a que naturalmente ndo podiam deixar de pertencer os aspirantes 4 magistratura, e 208 mois em- pregos do Estado, e no seré para accusar de temerarios os que a estas aes associacdes altribuirem 0 systema, que as de um ¢ outro partido se propozeram seguir para o seu re- ciproco ataque e defeza, e donde por conseguinte partiram os planos com que os dois partidos, transpondo os limites do licito e justo, reciprocamente se tornaram cada vez mais inimigos, Nestes termos ndo admira que os meios de que o governo ultimamente se servira para manter o exercilo, e conservar a esquadra, fossem transtornados pelos seus \i- gos, e por elles olhados como outras tantas violencias e ex- torses; a carta, diziam elles, acha-se infringida a cada pog~ so, ¢ 0 caminho para o absolutism trilha-se assim a langos € seguros passos. Vé-se pois que no mesmo dia, em que 96 ministros mendigavam pelas portas dos capitalistas algumas quantias para custearem as mais urgentes despezas, varrides como estavam os cofres publicos de todo o numerario; no mesmo dia, em que no commissariado se ignorava pela tarde quses seriam 0s generos, com que na manha seguinte se havia de fornccer as tropas, esperando pelos desembarquos da noile proxima, nesse mesmo se tramavam cada vez mais fortes as intrigas contra elle formadas. A Opposicao olhou sempre para D. Pedro-como necessitado a viver no Porto, quaesquer que fossem os desgostos por que o fizessems passar, nao se lembrando que sem este centro forte, que de-baixo do seu nome escudava a causa constitucional dentro.e fira do paiz, sem-um certo freio, com que impunba respeito-4s. der masias de ambos os partidos, nao era possivel conservarem- se por um $6 dia unidos os defensores do Porto. Entretanto a mesma Opposicio passou de palavras a vias do facto, quen- do, para guerrear o ministerio, mandou da Foz em deputacao a0 Porto 80 ministro da marinha, Bernardo de Sa Nogueira, VOL. 1. — CAP. IIL. 161 dois dos seus mais distinctos membros, para lhe sollicitar a queda dos seus collegas, exceptuado elle unicamente. Era muito exigir de um homem de honra, reduzil-o a fazer 0 papel de traidor para com os seus collegas. Bernardo de $4, bem longe de annuir ao que delle se exigia, buscou socegar os da deputacdo, pintando-thes a mé situagdo, a que a causa constitucional se achava nequelle tempo reduzida; a penuria de dinbeiro para custear as despezas de cada dia, a escacez das municdes de gucrra, e finalmente a falta de viveres, reunindo-se ainda a tudo isto a necessidade, que os minis= tros tinham, por maior desgraga sua, de se mostrarem ale- gres e prasenteiros no publico, para que se nao desanimas- sem os amigos da causa, nem se dessem esperancas aos seus, inimigos. A tudo isto Ihes acrescentou mais, que esta penosa situagao era to conhecida de D. Pedro, que elle mesmo havia j& eseripto para saa esposa, dizendo-lhe que 86 por milagre se podia salyar a empreza, em que se tinha met- tido: e se nesta confissto ingenua claramente se via que elle 86 por capricho continuava unido ao Exercito Libertador, nfo se iria com semelhante passo dar-lhe um pretexto hon- reso para se poder desfigar da sua unio com os defensores do Porto, vendo assim desacatada a sua authoridade, e coarctadas revolucionariamente as suas prerogativas consti- tucionaes? Ese 0 seu capricho offendido o conduzira ultima- mente a abdicar por caso analogo a coréa imperial do Bra- sil, n8o seria elle capaz de dar agora de m&o 4 fantastica regencia de Portugal? E finalmente se indispensavel para a seguranga da causa constitucional era a presenca de D. Pe- dro no Porto, nfo se iria dar logar, quando elle se houvesse de retirar, a que D. Miguel entrasse triumphalmente naquella cidade, e mandasse de prompto executer a quantos Libe~ raes lhe parecesse convcniente sacrificar 4 seguranca do seu triumpho? Eis-aqui pois a razao, com que pela negativa foi despedida a deputacdo da For, levando de mais a mais a certeza de que a demissio de qualquer dos ministros havia de necessariamente trazer comsigo a delle, Bernardo de Sé, -porqae com todos elles se achava em boa harmonia ligado. you. tt, u 162 HISTORIA DO CBRCO DO PORTO. Todas estas razdes, ainda que fortes, e capazes de im- pressionar os homens nao fanatisados pelo espirito de parti- do, ndo foram todavia bastantes, j4 nao digo para desviar, mas nem ao menos para retardar projectos tao mal conce- bidos. Foi do mesmo lado da Foz que se continuaram a por em campo todos os possiveis manejos para derrnbar os mi- nistros dos seus logares, chegando até a formular-se uma peticao com bem pouca honra para a disciplina militar, que devia ser assignada por todos os commandantes de divisdo, e de brigada. Neste importante papel, que se deve conside- rar como um libello famoso contra os ministros do regente, se dizia 1.° que elles o tinbam enganado, pintando-lhe com falsas cOres o estado da nacio.em 1832, e as difficuldades da empreza, a que se abalancéra com a sua expedigao sobre Portugal, por isso que dando-lbe todo o reino como suble- vado 36 pelo credito e magia do seu nome, que yalia mais do que quantas baionetas se podessem empregar, logo que a expedi¢&o assommasse no horisonte dos mares de Portugal, segundo as suas lisongeiras expressdes, nada mais se tinha encontrado do que a firme e pertinaz resistencia da parte dos realistas: 2.° que haviam retardado as fortificacdes do Porto, e adoptada uma vez a sua defeza, se baviam esque- cido n&o 6 de occupar as vantajosas posigdes da margem esquerda do Douro, mas até toda a porgao de terreno, que desde Lordello vae até ao mar, expondo-se assim 0 Porto a nao receber de fora o mais pequeno soccorro, e por conse- guinte o Exevcito Libertador on a morrer de fome. ou a atacar desesperadamente as tropas realistas, em forca de 40:000 homens, defendidos pelas suas formidaveis linhas de circumvalagao e contravalagéo: 3.° que se nao procedera com franqueza e lealdade, n&o annunciando aos babitantes de Villa Nova a necessidade de se retirarem para 0 Porto com todos os seus effeitos e generos: 4.° que todo 0 minis- terio, e no um s6 dos ministros, era responsavel de se nio ter feito recolher para a cidede a grande riqueza dos vinhos e aguas ardentes, que a companbia do alto Douro tinha nos armazens de Villa Nova: 5.° que estreitando-se 0 cérco, se VOL. 1 — CAR. IN. 163 deixaram levanta: ao inimigo quantas baterias lhe aprouve, e sobrevindo o bloqueio da barra, nem antes, nem depois se fizeram depositos de mantimentos, nem de munigdes de guerra, sendo por este modo 0s ministros os verdadeira- mente culpados nos males, por que tinham passado, e esta~ vam passando os habitantes e defensores do Porto: -6.° que nao se tendo sustentado o principio da liberdade de com- mercio, teve de se recorrer depois ao violento systema res- trictivo, e 43 contradictorias medidas do ministerio a tal - respeito, medidas que tao poderosamente haviam contribuido para a fome e miseria, que se soffrera, e continuava soffren- . do: 7.° que 0s unicos recursos dos ministros sé eram as exe- cugdes fiscaes, os emprestimos forcados, e as multas despo- ticamente impostas, vesando-se assim, por meios tao ex- traordinarios e violentos, um povo jé espoliado por D. Mi- guel n’um milhdo de cruzados, e agora mesmo subrecarre- gado por tantas maneiras, quando se achava paralisado o commercio interno e externo, e quando mais necessidade havia de exaltar o patriotismo dos cidadaos abatidos por tantos trabalhos e sacrificios feitos: 8.° que em vez de se animar o valor, de se recrutarem soldados, e agenciarem municdes para o exercito, se tinham creado tribunaes fan- tasticos, e nomeado juizes sem vara, além do aparato de reparticdes inuteis, tal como a de seguranca publica: 9.° que Dao tendo o ministerio por si a opinido publica da cidade, do exercito, e dos governos da Europa; que havendo temido a urna eleitoral, pela no ter consultado para dar aos habi- tantes do Porto os seus magistrados municipses, pedia-se_ em tal caso que, usando o regente do poder moderador, houvesse por bem demittir o seu ministerio, e nomear um presidente do conselho, que reunindo a confianga do publico, a do mesmo exercito, e « da Europa com a delle regente, lhe propozesse as pessoas, que déviam compér e completar a nova administracdo. E bem facil de ver que o general Saldanha era nesta peticao o indigitado para o logar de presidente do conselho, e & notavel que nem um sé dos in- dividuos Ihe prestrasse 0 seu consenso com a sua assignatura, Me 164 HISTORIA DO CERCO DO roRToO. sendo tantos os que o deviam fazer. Parece que uma vez approvada a materia do seu contheudo, com pressa se pro- cedéo 4 sua redaccao; mas o duque da Terceira, que pri- meiro a devia assignar, duvidou fazel-o, e a traz delle to- dos os generaes de divisto e brigada, desculpando-se em querer primeiro ver assignados os de mais antiga e elevada graduacdo. No meio desta indecisio alguem houve, que nto querendo perder o trabalho de tal peticao, nao sé a levou ao marechal Solignac, mas. alé-o resolvéo a apresental-a a D. Pedro, que pela sua parte a entregou promplamente aos seus ministros, correndo entao os fins do mez de feverciro, ou principios de marco. Solignac, que por este tempo tinha perdido completamente o prestigiv do seu saber militar, @ que nada mais fazia que conservar-se teimosamente no seu systema de inercia, resistindo sempre 4s insinuagdes, que o governo lhe fazia para entrar em operacdes activas, como o unico meio de salvar a Causa constitucional, forcosamente havia com este passo de rematar o seu total descredito, e chamar contra si a mais viva indisposigao dos proprios mi- nistros, intromettendo-se tio aberlamente nas intrigas dos partidos contra elles dirigidas, e patrocinando a causa do general Saldanha. Em breve se verdo os funestos cffeitos de tao indiscreta conducta da parte deste general. Por este tempo era chegado o dia 4. de abril, anniver- - sario do nascimento da rainha, mas porque tinha cahido em quinta feira santa, fora o recebimento da cérte transferido para a segunda feira da pascoa, em que se contavam 8 do referido mez. Tristes eram por certo as circumstancias do Ports para se festejar condignamente tao solemne anniver- sario: todavia fez-se o que se podia fazer. A salva real das seis horas da manha, repetida ao meio dia, e 4 noite, cha- mou sobre a malfadada cidade do Porto todo o fogo das baterias inimigas da margem do Sul do Douro. D. Pedro, depois de assistir em grande uniforme ao solemne Te Deum, que a camara municipal fizera cantar na igreja da Lapa, veio receber o'uma sala do quarte!l militor do campo de Santo Ovidio, com mais ar de general que de imperante, o VOL, 1b — CAP. M1. 165 cortejo proprio do dia, publicando-se alli por esta occasiag a lista dos despachos, no primeiro dos quaes figurava o mu- nicipio do Porto com a honrosa commemoragio dos sacrifi- cios, por que se achava passando, ordenando D. Pedro que © segundo filho ou filha dos reis destes reinos tivesse o ti- tulo de duque ou duqueza do Porto, e que o escudo muni- cipal da cidade, nao sé fosse ornado em harmonia com equella mercé, com a coréa ducal, mas que até fosse acres- centado com a insignia da gra-cruz da Torre-e-Espoda, ser- vindo o respectivo collar de orla ao mesmo escudo, tendo a medalha pendente‘. Apesar do desogrado em que 0 mar- quez de Palmella incorrera para com D. Pedro, os seus va~ liosos servicos, tanto os que em 1828 prestara como embai- xador em Londres, dando 4s mais legacdes portuguezas o primeiro exemplo de corajosa opposi¢io 4s pertencdes de D. Miguel, como os que igualmente prestéra durante a emi- graco, particularmente na qualidede de presidente da re- gencia na ilha Terceira, ndo poderam ficar esquecidos neste dia, sendo-lhe como tal galardoados com o titulo de duque do Fayal de juro e herdade, commutado depois para o de Pal- mella, garantindo-se-Ihe a par disto uma dotacdo perpetua, que se decretaria em tempo competente. Entre os restantes despachos notou-se que se muitos houve de justica, outros po- diam ficar omissos, servindo todavia de maior reparo que en- tre os agraciados nem um sé se encontrasse de reconhecida desaffeicao aos ministros. E com effeito os importaites ser- vigos dos defensores da ilha Terceira ficariam em completo esquecimento, a no se ver na lista dos despachados um dos individuos, que nella mais se haviam distinguido; mas os da celebrada victoria da villa da Praia de 11 de agosto de 1829, e os da campanha dos Acores nfo tiveram por si a mais pequena commemoracao. Pela noite a cidade illumi- hou-se como era possivel no meio das circumstancias de 4 Quando no anno de 999 a cidade do Porto foi reedificada, ¢ ain- Pliada pelos fidalzos gascBer, querendo-se elles mostrar agradecidos para com jomaram para armas da cidade a imagem da mesma Vir- nito Filho reclinado sobre o peito, collocada entre dues torres, com uma letra que diz: Civitas Firginis. 166 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. - apuro, em que se achava. Em frente da casa da camara na Praga Nova, ou Praga de D. Pedro, levantéra-se um bem desenhado obelisco, que com uma brilhante illuminagao sus- tentava o retrato da joven rainha. A celebre Torre dos Cle- rigos, de um langado elegante e delgado, que parece querer ir sumir-se na altura das nuyens, chamou sobre si, pela sua vistosa illuminacao, os repetidos tiros das baterias inimigas, que desta vez a erraram, como sempre thes succedera em todos os mais anniversarios, que alli se festejaram. O nu- mero das bombas, que nesta noite cahiram na cidade, foi sobremaneira excessivo, havendo a desgraga de uma dellas matar na sua propria cama um dos mais eatendidos facul~ tativos da emigragdo, o medico Paulino de Nola Dias Car- réro, que victima das suas idéas politicas emigrara com a ~ Divisio Leal por Galliza em 1828. : Em quanto 0 fogo do inimigo assim continuava activo por uma boa parte da noite, os ajudantes, e mais pessoas do estado maior do marechal Solignac, e dos commandantes de divisio, tiveram ordem de comparecer sobre a madru- gada nos seus respectivos quarteis generaes: todos anteviam um ataque proximo no campo inimigo; mas por onde fosse nao se sabia ao certo, posto que se suspeitasse. O monte _ Cobello tinha sobre si chamado a attencdo do conde, de ’ §.Lourengo: isolado e sébranceiro como aquelle monte esta a um dos extremos da cidade pelo lado do Norte, nelle se podia construir uma bateria, que nas. miaos dos realistas seria dos mais funestos efeitos para os constitucionaes. Este monte, apesar de muito avangado das fortificagdes inimigas, e de ser flanqueado por duas gargantas de terreno baixo, tendo sobre a sua direita o monte da Sécca, que facilmente podia ser ganho por um precipitado arrojo, nfo sé era a séde de um piquete miguelista, mas comecdra dosde os fins de marco a apresentar uma estacada, e ,depois. della uma banqueta de pipas, que jé no dia 8 de abril nao bastava para encobrir a actividade dos trabalhos de fortificacao, que 4 sombra della se faziam, Eram estes trabalhos os que com toda a razdo afligiam os moradores do Porto, criminando o VOL. 1. — CAP. In, 167 desleixo de tao descangadamente se deixarem levantar for- tificagdes inimigas dentro do alcance do ponto em branco das triocheiras constitucionaes. D. Pedro, que excessivamente activo, algumas veres fez succeder a maior energia 4 grande apathia dos seus generaes, mandou finalmente atacar o monte Cobello pela tarde do dia 9 de abril, ataque que teve por si a fortuna de nSo ser pressentido pelo inimigo, em vista do segredo com que foi acompanhado desde a sua concepgio alé 4 sua execucdo. O coronel José Joaquim Pacheco, en- carregado desta operacdo, péz-se em campo pelas cinco ho- ras e meia da tarde, com duas pequenas columnas, uma das quaes, sahindo pela estrada da Aguardente, ou Cruz da Re- gateira,-tinha por fim marchar sobre @ esquerda do monte em questdo, em quanto a outra, largando pela estrada do - Sério, devia assaltar a direita do mesmo monte. A marcha das tropas executou-se por caminhos encobertos, e cheios de muros, e com tante presteza se fez, que os realistas foram completamente surprehendidos, tendo alli infanteria n.° 12 e 13, um regimento de milicias, e um batalhio de volun- tarios. Neste ataque portaram-se os constitucionaes com a maior bravura e coragem, e a sua celeridade foi tal, que em sete minutos e meio pozeram os inimigos em fuga, e assenhoreando-se do disputado monte, demoliram as obras por elles comecadas, e levantaram em sentido contrario as suas, favorecidas pelo material que alli acharam, e pela es- curidao da noite, que sobreviera logo ao seu triumpho. Apesar disso os realistas ginda durante a noite se propoze- _Tam occupar o monte da Sécca, sentidos pela perda da sua bella posic¢éo do Cobello, sendo todavia postos em completa debandada, e acabando pelas quatro horas da manha do dia 10 0 tiroteio, que se entretivera por toda a noite. Por se- gunda e terceira vez tornaram elles a tenter fortuna, vindo sobre o Cobello; mas os constitucionaes estavam ja tao se- guros da sua posse, que epesar de nao terem alli mais de umas tres companhias de infanteria, nem as reforgaram, nem foram desalojados, porque em fim os miguelistas, depois de terem neste mesmo dia ameacado ivfructuosamente as for- 168 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. tificagdes de Lordello, e o monte das Antas, achavam-se com bastante razio fatigados, os animos abatides, e as es- perancas acabadas quanto a recuperar o ponto, que anterior- mente baviam occupado, vingando-se somente em empregar contra elle por muitos dias depois um activo tiroteio, met- tidos por varias casas e muros, donde a seu salvo entreti- nham aquella fuzilaria. Esta operacio sobre o Cobello foi com effeito uma das mais rapidas e brilhantes de quantas © se fizeram no Porto, e da qual o mesmo D. Pedro por va- Tias yezes se vangloriou depois‘. Todas as baterias constitu- cionaes, que podiam alcancar as tropas realistas, desde a dos © Congregados até 4 Ramada Alta, sustentaram sempre um bem dirigido fogo durante o ataque: da parte dos defenso- res do Porto nem um 36 deixou de cumprir com os seus deveres, em quanto que os realistas ficaram conhecendo por mais esta derrota a inefficacia dos seus esforcos, e a irre- ularidade dos seus ataques, podendo afoutamente dizer-se que to prolixo cérco havia de continuar indefinidamente em quanto os sitiados alcangassem meios para entreter a-lucta. Tal cra com effeito o estado do exercito sitiante, e si- tiado, no fim de nove mezes de multiplicados combates, extraordinaria perda de vidas de parte a parte, de modo que se os defensores do Porto eram insufficientes para ven= cer em campo os seus contrarios, tambem os miguclistas se mostravam impotentes para poderem entrar n’uma cidade, defendida n’‘algumas partes por acanhadas fortificagdes, mas em troca disso coberta de quando em quando por uma nu- vem de bombas e balas, victima,de duas graves epidemias, a cholera e o typho, e finalmente ameacada de fome, como esteve por algum tempo. Os desembarques, effeituados na pequena praia dos Inglezes, eram por conseguinte a unica salvagio do Porto. O coronel José da Fonseca, governador “do castello da Foz, tinba j4 sido o alvo de desatinadas mur- muragGes, por no ter devidamente obstado, nem destruido em tempo as terriveis trincheiras e baterias do Cabedello, 4 A cccupagko do Cobello custou nos constitucionaes a perda de 31 tmortos, 138 feridos, ¢ 9 extraviados. YOU. 1, —- CAP. 111, 169 e maiquistado depois disso com o piloto mér, authoridade para quem em taes circumstancias eram necessarias todas as attengdes do governo pela sua influcncia nos homens das catraias, e por conseguinte na maior copia, e boa direccao dos desembarques, e reunindo com tudo isto a qualidade de votado partidista de Saldanha, e de pronunciado inimigo dos ministros, nada o podia conservar em semelhante logar, pa- ra o qual de prompto se lhe designou substituto na pessoa do brigadeiro Diocleciono Leao Cabreira, que com 0 governo daquelle castello, teve, como o seu antecessor, de proteger igualmente os desembarques 4 custa de combates. A chegada da esquadra constitucional 4s aguas do Porto, em 18 de abril, fizera desapparecer do mar as lanchas dos miguelistas, que armadas e guarnecidas se destinavam a embaracar os barcos das descargas, algumas das quaes ainda neste mez foram tao escassas para o governo, que na falta de manti- mentos teve elle de recorrer 4 distribuic&o de arroz e assu- car 4 tropa, havendo igualmente dias em que por falta de meios se vio obrigado a lancar mio da odiosa medida de embargar o pao, que achou nos diferentes fornos, para con- sumo da cidade. Foi neste apuro de meios que elle fez en- trar no thesouro os dinheiros que achou uo deposito publico, e no cofre dos orfaos, chegando até a aprehender nas maos de um inglez uma letra de oito contos de réis, pertencente @ pessoa que se achava no campo inimigo. Um fortuito caso Ihe veio inesperadamente dar mais um pequeno auxilio, que nas suas circumstancias foi todavia de grande soccorro. O ministro da fazenda, mostrando dar-se mal na casa em que vivia na rua de Cedofeita, mudou de habitagao para outra na rua de Santo Ovidio: a esta mudanca se seguio o boato, e em seguida delle o achado de um thesouro escondido, que foi logo para casa do juiz do crime do bairro de Santa Ca- tharina, e de 14 em direitura para o thesouro, importando a quantia achada em trinta e sete contos de réis; mas que © povo elevéra nas suas conjecturas a obra de mais vulto. Para tudo se tornar cuidadyso ao governo, até a falta de vinhos comecava a merecer-lhe a sua attenciio; mas elle 170 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. mais cauteloso agora do que o féra no anno anterior, nao 86 ordenou ‘ que se procedesse a um embargo em todo o vinbo de propriedade portuguera, existente nos limites das linhas de defeza; mas até decretou * permittida no Porto a entrada de vinhos nacionaes e estrangeiros, e a de licores, e mais bebidas espirituosas, 4 excepcao da aguardente, de- baixo de qualquer bandeira que fosse. Os miguelistas pela sua parte a nada mais recorriam do que a bombear o Porto, esquecidos de que as victimas deste seu barbaro procedimento em nada concorriam para a en- trega de uma cidade, cujos moradorés, familiarisados j4 com as desgracas de tal bombardeamento, resignados se confor- mavam com a sua sorte, ao passo que os verdadeiros com- batentes, em armas sempre junto das linhas, eram os que menos experimentavam o effeito destruidor de tantas balas, bas, e granadas. Defronte da quinta da China, ou na Fonte da Pedrinha, e em frente do monte das Antas, ainda por este tempo os inimigos levantaram novas baterias. A sua raiva nem ao menos perdoava aos hospitaes, sendo ne- cessario que o capitéo Glascock, commandante da corveta ingleza Orestes, intercedesse para com o general Lemos, e livrasse 03 miseraveis doentes de semelhante flagello. As duas unicas escunas de guerra, que D. Pedro tinha ainda dentro do Douro, fizeram com que 0 mesmo genefal Lemos officiasse ao consul inglez para fazer desviar do pé daquelles navios as embarcagdes mercantes da sua nagdo, por ter de ir abrir o fogo contra elles. Este repentino movimento de semelhantes embarcagdes, largando do seu ancoradouro da margem direita para a esquerda do Douro, assustou a todos os proprietarios dos navios portuguezes, que immediatamente os pertenderam metter a pique. A confusto redobrou ainda mais quando no meio destas circumstancias corréo que pelo Tio abaixo devia descer uma flotilha de canhoneiras, contra a qual se projectou ainda o emprego de umas amarras de. ferro, atravessadas de uma para outra margem. O tempo fez 4 Portaria de 23 de marco. 2 Em 3 de abril. ‘ VOL. i. — CAP. UL. 171 em breve conhecer a falsidade destes boatos, e posto que contra o brigue-escuna Liberal rompesse effectivamente o fogo da bateria do Candal, todavia illudindo durante a noite de 17 de abril a vigilancia das baterias inimigas, o seu commandante péde conduzil-o a remo até ao Cabedello, onde teve entdo contra si o fogo de mosquetaria, e o das baterias daquelle mesmo local, e a que elle respondéo sem- pre tiro por tiro, até que sahio a barra 4 espia pela volta da meia noite, com a perda de um guarda-marinha, e dois marinheiros a bordo ‘. Perdidas pois entre os miguelistas as idéas de que o Porto capilulasse, resolveram por mais outra vez seduzir ainda os seus defensores, introduzindo dentro da cidade por meio de mulheres e homens peitados, e até mes- mo dentro das bombas, que contra ella empregavam, uma ordem do dia em francez, inglez, e portuguez, em que o general conde de S. Lourengo 0$ convidava 4 desercio : esta ordem do dia a fez D. Pedro publicar logo na Chronica, nas mesmas tres linguas, em que vinha, escripta, sem que depois disso as desergdes se mostrassem mais copiosas do que d’antes eram *. Era exactamente no meio de tentos apuros, e grandes difficuldades , que o indocil espirito de partido entre os constitucionaes rebentou indiscretamente no Porto contra Solignac. Féra o ministro da justiga o que mais particular- mente tomou a seu cargo, como chefe de policia, vigiar de perto o marechal, e até.mesmo haver 4 mao a correspon- dencia delle para Franga, receiando-se que por ella chegas- sem ao conhecimento da imperatriz do Brasil, D. Amelia Augusta, segunda esposa de D. Pedro, algumas queixas con- tra o ministerio. Para este fim se chegou a comprar até o secretario do mesmo Solignac, e se conseguio com effeito . alcangar uma parte da sua desejada correspondencia, ndo sem que o marechal disso fosse informado algum tempo depois 4 Ben commandante desta escuna o segundo tenente Froncisco Soares Franco Junior. 2 No dia 11 de abril tinba D. Pedro mandado fusilar nos campos de Cedofeita dois desertores e um alliciador, todos tres convencidos do seu crime. 172 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. pela confissio de um francez, que mandéra prender, e se Ihe torndra suspeito pelas continuadas visitas ao seu secre~ tario, Colerico e abrasado na mais justa ira, Solignac foi de prompto queixar-se a D. Pedro, e depois de energicamente The expdr o delicto dos seus ministros, e de lhe pintar o descredito, que tinham fora e dentro do paiz, e a necessi- dade de os substituir, concluio pedindo pelo menos a demis- s30 do ministro da justica, que téo gravemente o offendera, ou no caso contrario, a sua exoneractio do commando do exercito. Pouca falta fazia quem a tal desconceito chegara, e D. Pedro, que o olhava j como-um importuno, nem de- mittio 0 ministro, nem déo a exoneracdo ao marechal, que continuando assim ludibriado, augmentéra aos olhos de toda a gente o despreso, em que desde certo tempo havia entre todos cahido. D. Pedro, que tinha altribuido tudo isto 4s intrigas e ambicdes de Saldanha‘, no podia j4 hesitar na opcio; mas a questdo, que se Ihe antolhon a elle e a0 seus ministros, era ao da pessoa, que devia substituir Solignac. O duque da Terceira achava-se ainda debaixo do enorme péso moral da vergonhosa debandada de Souto-Redondo. Stubbs, além de nao ter por si reputac&o para general de’ plano, era por outro lado ja bastante idoso, parecendo inca- paz da actividade e fadiga’s, que em toes casos demandava © commando de um exercito, cousa para que tambem nao concorria pouco o seu temperamento flegmatico. Restava, por exclusio dé partes, sémente o general Saldanha, e ainda que rival poderoso, forcoso cta transigir com elle, e com elle effectivamente se transigio, fazendo tentar a sua ambi- do *. Era pela tarde de 19 de abril, quando chegou 4 Foz um mensageiro, pessoa no desagradavel a0 mesmo Salda- nha, que da parte do governo lhe foi offerecer 0 commando do exercito, sob o especioso pretexto de o livrar do desaire de ser commandado por um estrangeiro, Ou fosse que Sal- danha quizesse pagar a Solignac os bons officios da entrega 1 Veja Memoria de José Liberato, vol. 4.°, pag. 58. 2 Subre este facto continio a reportar-me d& ji ciladas Memorias de José Liberato. VOL, M.— CAP, It. 173 da petic&o, em que j4 se fallou, ou fosse que semelhante convite, ainda que lisongeiro, lhe infundisse suspeitas da parte de quem lho fazia, a sua resposta foi pela negativa, allegando que maior desaire era demittir sem causa um ge~ neral estrangeiro do commando do exercito pértuguez, do que conserval-o agora n'um logar para que. tinka sido con- vidado. Entretanto o ministerio, ou pelo menos o ministro da justica, tinha decretado a demissdo de Solignac: era-lhe forcose leval-a a effeito, e se as vias legaes Ihe nao fayore~ ciam os seus planos, a3 revolucionarias foram as que mais Propicias se lhe antolharam. Nao tem corrido no publico o fio dos escondidos trabalhos, que para tal fim se emprega~ ram ; mas pelo que entdo corréo, e pelo que se tem jé visto impresso, Saldanha devia pagar com a vida a recusa ou des- preso do commando, que se the offerecera, em holocausto aos odios, que desde tanto tempo se lhe votavam. Alguem 0 foi avisar_deste plano 4 Foz, prevenindo-o de que para dar logar 4 execucdo, e & destituicto do general francez, as ruas do Porto deviam ser testemunhas, na noite de 20 para 24 de abril, de grupos de povo amotinado, gritando por toda a parte: abaixo com Solignac, e viva Saldanha! Eis-aqui pois como o partido ministerial tambem .nao quiz ficar a traz aos excessos do partido contrario, sacrificando com tanta sem razao e imprudencia a causa constitucional 4 vertigem dos seus loucos caprichos. A premeditada revolta passou a mais de projecto: os _Commissarios, cabos, e mais agentes de policia, que jf en- {Zo andavam por numero bastante crescido, foram vocal- mente instruidos pelo juiz do crime do hairro de Santa Catharina *, que Solignac era traidor, que devia sahir do Porto, e que para se levar a effeito esta sahida, elles tinham de correr pelas pracas e ruas da cidade, gritando abaizo Solignae, e viva Saldanha! Mais sizudo que quem dera taes 4 © brigadeiro Cunha Matlos, nas suas Meinorias da cai D. Pedro em Purtugal, dis a pag. 306 do 2.° volume, que o justign , Joaquim Antunio de Magalhaes , fra quem ordenira no Juiz, José Bernardo da Silva Cabral, que fixcsse semelbante intimacio acs eabos ¢ agentes de policia. 174 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. ordens foi um dos mesmos commissarios, quando de prom- pto corréo a pedir conselho a quem para tao arriscado lance The merecia mais confianga. Desde entao o sigillo revelou-se, porque avisados os ministros da guerra e fazenda de tao loucos planos, a que se mostraram estranhos, no somente 03 reprovaram, mas conseguiram até contramandar as ordens ja expedidas '. A vista disto a noite de 20 de abril passou- se tranquilla, e sé na manha seguinte corréo definitivamente no publico a crise de que todos estiveram ameagados, e 4 qual alguns commandantes de corpos se nao diziam estra- nhos. Como em satisfagio 4 moral publica Joaquim Antonio de Magalhies foi entio demittido de ministro da justica *, e José da Silva Carvalho, que desde 26 de marco havia interinamente substituido no ministerio da marinha a Ber- - nardo de S4 Nogueira, pelo seu ferimento no combate das Antas, deixou esta repartigdo para ir interino para a da justica, continuando effectivo na da fazenda: o marquez de Loulé passou por esta occasiao a ministro interino da ma- tinha, permanecendo nos estrangeiros, ficando como d’antes no ministerio do reino Candido José Xavier, e na guerra Agostinho José Freire. Com esta modificacao ministerial veio igualmente a demisséo do juiz do crime do boirro de Santa Catharina, e até a repartic@o da denominada segu- ranca publica passou do ministerio da justica para o do reino, com o nome de policia preventiva’, a que por de- ereto de 29 de abril se deram as mesmas attribuicdes que o alvaré de 28 de junho de 1760 marcéra para a inten- dencia geral da policia: lembranca bem infeliz de um mi- “ nistro, tal como Candido José Xavier, que contra si tinha a recordagao do seu desastroso ministerio da guerra em 1827, e que neste tempo se tornéra duplicadamente distin- cto, fazendo reviver no anniversario da outhorga da Carta Constitucional as leis e creacgdes do tempo eminentemente Cunha Mattos, logar citado, e Jon! Liberato, vol. 4.°, pag. 53 ¢ 54. Decreto de #1 de abril Decreto de 23 de abril Decteto de 28 de al VO. U.— CAP. HI. 175 despotico do marquez de Pombal. Entretanto os manejos contra Solignac e Saldanha n&o pararam com as demissdes decretadas: 4 mais celebre folha do partido miguelista, a Defeza de Portugal ‘, se foi buscar para se transcrever no periodico official do governo, a Chronica Constitucional do Porto, um famoso artigo contra Solignac, Saldanha, e Stubbs. Neste artigo, que pelo modo da sua publicacao visivelmente importava o consentimento, e approvacdo tacita de algum, ou alguns dos ministros, se accusava-o marechal de faluo, inepto, ¢ tolo; de general dos ctrios ;.de farfalhao, que fu- gira das milicias portuguezas, e por fim que jd pelo governo francez tinha sido demittide por ladrao. Saldanha e Stubbs pouco mais poupados eram, porque em quanto este se accu- sava de ter ja fugido do marquez de Chaves cm 1827, quelle dava-se-lhe o epitheto de general das archvtadas ! Tido como um libello famoso, este artigo déo desde logo pe- nosa e afflictiva occupagdo a todas as intelligencias, porque - correndo de mao em mao por todo 0 exercito, forgosamente acarvetava o descredito para os seus generaes mais distinctos, e era até mesmo um passo para a indisciplina. O clamor pu- blico foi por tanto geral contra elle, e fazendo o seu devido effeito, trouxe por conseguinte comsigo a suppressto do res- pectivo numero daChronica*, e a remessa para os tribunaes ordinarios dos cumplices na publicacdo de um artigo, em que com tao grave escandalo, e iotoleravel abuso se ludi~ briavam personagens os mais respeilaveis, e que como taes mereciam toda a consideragdo ao governo nos importantes cargos de que se achavam revestidos. Apesar disto nunca uma tal linguagem os ministros a barmonisaram com os seus factos subscquentes. Por esta forma remittiram, mas nBo esqueceram de 4 Ente fotha era redigida por um exaltadissimo apostolo da usurpagio, © famoso padre Alvito Brella, nalural deGalliza, donde se passou para este teino em companbia do notorio marques de Chaves, depois de lé ter sido membro de la santa hermandad. 49 Esla suppressdo foi todavia feita de Zo m& vontade, que n’algumnae repartigdes publicas apenas se entregaram os novos numeros do periodico em questo, sem sc pedir a restituigdo dus supprimidos. 176 MISTORIA DO CERCO DO PORTO. todo as animosidades dos ministros contra Solignac, nto concorrendo pouco para esta especie de tregoa os importu~ nas requisi¢des do coronel Bacon, o commandante de lan- ceiros, que chegou a ponto de pedir a sua demissdo, na quasi absoluta carencia das cousas, que precisava para o seu regimento, requisic¢des que o governo por falta de meios lhe nao podia satisfazer. Por outro lado era este 0 tempo, em “que as desergdes e emigracao de Lisboa para o Porto tinham chegado ao seu auge, e dia houve em que se apresentaram um major de engenheiros com 60 soldados de artilheria, e 4 paisanos. Com estes soccorrds de gente, e o recrutamento estrangeiro, o Exercito Libertador contava em abril 18:011 homens, com 282 cavallos de filcira, e no mez de maio 17:857, com 296 cavallos, avultando naquelle numero uns 6:11 individuos de batalhdes nacionaes. Deste modo a forca de primeira linha do exercito de D. Pedro, depois de tantos combates e desercdes, mais algum vulto fozia do que aquella com que desembarcéra nas praias do Mindello; mas as es- perancas, com que viera a Po?tugal, tinham j4 caducado, ¢ 4G0 diminuta forca nao era possivel poder ter vantagem em campo contra o numeroso exercito realista. Pela sua parte, este exercito, contaminado pela desconfianga, e propenso co- mo tal a appellidar sempre de traicdo a derrota dos seus generaes, achava-se igualmente cancado de tao diuturna Guerra, e de cérco tao prolongado. O mesmo D. Miguel Parecia augmentar mais esta desconfianca pela sua conti- nuada nomeacio de commandantes para o exercito, e até por fim com a destituicio do marcchal de campo, Joaquim Telles Jordag, que chamado novamente para o governo da Torre de S. Juliao, veio espalhar em Lisboa a crenca da impossibilidade do cxercito realista poder levar de vencida as trincheiras dos constitucionaes do Porto. Desde ent&o o descontentamento fez-se geralmente sentir no exercito, e o epitheto de malhado', que qualquer dos seus soldados pro- feria contra os seus officiaes, equivalia a uma proxima des- 4 Palavra chula, com que os realistas costumavam denominar os consti- lucionaes. . . VOL. 1. — CAP, M11. 177 ligagdo: finalmente em quanto muitos dos milicianos deser- tavam para suas casas, os voluntarios realistas vigiavam nos postos avancados, que os soldados de primeira linha n&o fu- giseem para os constitucionaes. Foi entfo que D. Miguel Julgou necesserio passar uma segunda revista ao seu exer- cito, que effectivamente tcve logar no dia 10 de mai. Apesar disto, e dos vivas com que incessantemento o sau- davam, a sua visita nem trouxe mais disciplina, nem mais coragem aos seus soldados, arreigando-se cada vez mais a crenga, que se os Liberaes nao tinkam forca bastante para sahir das suas linhas, e bater os realistas em campo, tam- Bem estes pela sua parte se achavam no mesmo caso para poder vencer as linhas do Porto. O cérco apertéra-se; mas a porfia com que se pegdra nas armas eternizava-se, tendo- $6 por esta causa tornado gloriosos of trabalhos de tal cérco. B com effeito pela marcha dos successos claramente se mos— trava que as tropas de D. Miguel nada mais faziam que desacreditar o prestigio, que até alli infundia o seu poder, honrar sobremaneira a constancia das tropas de D. Pedro, ¢ ternar altamente celebre no mundo o valor e resolugao do pequeno Exercito Libertador. - Nesta impossibilidade pois de terminar tio pesada e€ castose guerra civil pelos imperiosos dictames da forca, di- ligenciaram os inglezes ver se a acabavam por algum ajuste amigavel. Jé em meiado de marco procuraram elles faciliter entrevistas, e promoyver Conferencias entre os generaes consti+ tucionaes ¢ os miguelistas; mas naquelle tempo os deste partido julgavam ainda o triumpho certo pelas armas, difficilmente convinham em entrar em arranjos amigaveis com os seus contrarios. Em abril e maio as circumstancias tinham jé mudado, e a bordo do brigue Nautilus, da marioha ingleza, compareceram n‘um jantar os generaes Saldanha e Lemos. A conversa da mess versou, como era bem natural, sobre as contendas politicas, ¢ a situacdo reciproca dos dois partidos contendores ; mas as esperancas de terminar a lu- te, a nfo ser pelas armas, acabaram logo nesta primeira conferencia, por nao concordar nem um, nem outro dos dois You. Ht. 12 178 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. generaes em pretcindir dos direitos 4 corda dos seus respe- ctivos soberanos. Todavia ainda se nfo desistio de novas con~ ferencias, para que de parte a parte se prestaram, acrescen- tando Lemos que, para nto infundir suspeitas entre os seus, algumas vezes viria em logar delle o barto de Haber, o visconde de Torre Bella, ou o da Bahia, cunhado do pro- prio Saldanha. Nao é facil descobrir razao, que cabalmente defenda o procedimento deste ultimo general n’uma questao to melindrosa e to grave perante a disciplina militar, de que alias devia ser o primeiro e mais rigido mantenedor, pela sua eminente posic#o no exercito: aceitar com effeito, e entreter n’uma praca de guerra, e sitiada, como estava sendo o Porto, entrevistas e communicagées com 0 inimigo, com a condigao expressa de nao serem sabidas nem pelo seu governo, de quem nao tinha licenca para tratar, nem pelo seu general em chefe, o proprio D. Pedro, que igual- mente ignorava taes entrevistas, tio longe de lhes serem permittidas, seria isto motivo bastante para dar 4 disciplina mais um exemplo de severo castigo, e tanto mais digno de reparo se tornava este seu procedimento, quanto que no campo inimigo o sigillo, ndo sendo tao rigorosamente observado da parte do general Lemos, n&o era por conseguinte fundado em justa reciprocidade, nem podia ter por si boa fé. A fi- delidade de Saldanha julgava-se por este tempo ao abrigo de todas as suspeitas; mas ¢ neste caso féra de duvida que o seu desmedido capricho o levou a arrogar-se uma impor- tancia tal no acabamento da luta, que quando possa hon- rar as suas particulares intencdes, ndo o péde de modo al- gum desculpar diante das leis militares, porque em fim com a mesma razdo, com que elle sé sobre si se prestéra a taes Negociacdes e ajustes, o podia fazer tambem qualquer outro general, e por conseguinte qualquer coronel, e correndo ainda pela escala militar descendente, qualquer capitdo, ou mesmo um official subalterno. Tao natural era que o gene- ral Saldanha nao acudisse a taes conferencias, sem ser de acérdo com © seu governo, que o proprio capitao Glascock, commandante das forcas navaes inglezas do Douro, udo du- VOL. 1.— CAP. 111. 179 vidou referir-se a ellas n'uma dispute, que teve no dia 30 de maio com o marechal Solignac. Desde ent8o o negocio corréo logo aos ouvidos de D. Pedro, que justamente irri- tado pela falta de consideracao, que com elle se tinha, a alguem se queixou com amargura da irreflectida conducta de Saldanha: a estas queixas de D. Pedro se the respondéo, «que sendo absolutamente necessaria a sua presenca no «Porto, podia sua magestade infligir affoito a0 delinquente «as penas @ castigos, que as leis militeres lhe impunham, «na certeza de que elle e todos os mais militares, que se «presavam deste nome, sentindo em extremo as irreflexdes «de um seu camarada, ‘haviam de necessariamente confor- «mar-se com as disposi¢des das mesmas leis.» Entretanto um negocio de tal magnitude tomou-se no publico como cousa de politica, porque em fim sendo este um passo, que podia franquear caminho 4s desregradas ambicdes de par- tido, louvou-se como virtude na pessoa do general Saldanha © que por todos os modos era grave delicto. Triste condicao de uma nagdo, quando os partidos no olham para as leis, mas para as suas proprias conveniencias, ou quando faltos de sinceridade, e de amor ao gue é justo, ultrapassam os limites da moral, louvando muitas vezes 0 que 86 merecia a mais se- vera censura. Apesar dos preceitos da disciplina, os militares tambem nao s&o isentos das paixdes dos homens, e por conse- guinte dos caprichos e vaidades dos partidos: nem podie ser de outro modo, por nao mudar a natureza humana nas dif- ferentes classes e jerarchias sociaes, nem a nobre profissio das armas é por si 86 capaz de alterar a natureza moral do homem, por mais rigidos que sejam os seus preceitos e leis. Neste embate de purtidos, e por deferencia com um dos mais distinctos generaes da emigracio, D. Pedro entendéo fioalmente por melhor relevar faltas de tao dificil perdao Doutros tempos, para nao por em risco a causa de sua fi- Tha, sem que nada mais resultasse das conferencias de Le- mos com Saldanha. Um outro acontecimento inesperado tinha vindo interla- gar d’algum modo os nossos com os acontecimentos politicos 180 180 HISTORIA DO CBRCO DO PORTO. do reino visinho. A questio da successio na Hespanha con- tinuava a agitar-se alli fortemente entre D. Carlos e a filha primogenita do decrepito rei Fernando: com a sorte desta innocente princeza tinham os Liberaes daquelle reino ligado a sua sorte politica, pelas boas disposigdes que na esposa.do mesmo Fernando achavam em seu fayor, nao sendo 4 mis- terio fallar-se na convocago das antigas cértes, particular- mente depois que a Revista de Hespanha nio duvidava j& publicar sobre ellas alguns artigos e commentos. A. propor- ¢8o pois que ia crescendo o partido da joven princeza das Asturias, tramava o de seu tio D. Carlos, com quem se li- gara a princeza da Beira, D. Maria Thereza, @ seu filho o infante D. Sebastiao. Para desviar da Hespanha tdo pode- rosos concorrentes, D. Maria Thereza recebéo ordem ex- pressa de se pdr immediatemente a caminho de Portugal, @ para levar a effeito tal ordem tomaram-se logo as adequadas providencias, decretando-se igualmente que na sua viagem fosse acompanhada pelo infante D. Curlos. Aos 26 de marco chegara a real comitiva a Aldéa Gallega, e no mesmo dia descéra pelo Tejo abaixo, e se hospeddra no palacio da Aju- da, donde se transferio depois para o do Ramalhao. Com a sua chegada a Portugal recebéo D. Carlos ordem para fazer uma viagem 4 Italia, 4 qual todavia se recusou; mas sendo depois procurado da parte de seu irmio Fernando pelo em- baixador da Hespanha em Lisboa, para declarar se tinba ou nao teng8o de prestar juramento de obediencia 4 princeza das Asturias, D. Moria Isabel Luiza, que em 4 de abril fora mandada jurar como presumptiva raioha reinante da Hespanba pelos prelados, grandes, titulos, e deputados das cidades e villas com yoto em cértes, reunidos como deviom ser para aquelle fim, no dia 20 de junho, no real mosteiro de S. Jeronimo de Madrid, abertamente se manifestou pela negativa, appa~ ~ recendo logo em conformidade desta sua resolugdo, n’alguns jornaes do Meio-dia da Franca, um protesto com data de 22 de abril, em que declarava, que nem a sua consciencia, nem a sua honra lhe permittiam poder prescindir dos seus direitos 4 coréa da Hespanha, quando D. Fernando nao VOL. 1. —= CAP. I.” “184 deixasse filho varao. Apresentado por esta maneira em pu- blico como pretendente 4 coréa do reino visinho, D. Carlos ligou desde entio a sua sorte com a de seu sobrinho, D. Mi- guel, e para que a tal respeito nao restasse duvida alguma, de Lisboa se dirigio elle para Coimbra, onde o mesmo D. Miguel Ibe foi sabir ao encontro com suas irmas. De Coimbra passon 1). Carlos a Braga, donde tornou para Coim- bra, e depois foi para Lamego em consequencia dos extra- ordinarios acontecimentos que levaram D. Pedro a Lisboa. Estavamos entrados no mez de junho; mas o futuro do Porto era ainda temeroso pelo seu estado de incerteza, c 0 presente estava tao cheio de perigos como no principio da luta. E com effeito os constitucionaes nada mais tinham por si do que o prestigio das suas armas, fundedo n’um sem numero de combates, de modo que a recordacdo dos seus repetidos tritmphos era quem assombrava os seus ini- migos, e guardava os tenues muros do Porto. Alli velava dentro de taes muros o heroismo resignado, vivia o amor da Liberdade, e ardia finalmente o enthusiasmo da gloria, que como o sagrado fogo de Vesta nunca morréra no peito dos fieis soldados do pequeno Exercito Libertador. A enge- nhosa esperanca com a necessidade atrevida por vezes apre- sentava a muitos dos sitiados risonhos quadros de um lison- geiro porvir; mas para outros de mais rigido pensar a re- flexdo era verdugo que thes amargurava o presente, e lhes denegria o futuro. A coragem, porém, e a perseveranga do homem tem grande imperio 6s vezes na marcha dos acon- tecimentos, e th’a faz até mudar de aspecto, ao ponto de alcancar s6 com isto grandes resultados: e estas eminentes qualidades do Exercito Libertador deviam com effeito ser recompensadas com to feliz desenlace. No principio da guerra todas as probabilidades colhiam a favor do cxercito mais numeroso; mas como depois de tantos combates se conhecesse que semelhante vantagem de nada valia contra um punhado de bravos, fechados n’uma cidade, e alli perse- guides por quantos males a natureza humana conhece, 6 re- sultado da futa veio desde entdo a considerar-se dependente 182 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. upicamente de quem maiores recursos tivesse, devendo suc- cumbir primeiro aquelle dos dois partidos a quem elles primei- ramente faltassem. Desgracadamente ainda os probabilidades estavam neste caso a favor de D. Miguel, porque além dos recursos que achava em (odo o reine, em gente, em meivs pecuniarios, e até nos chamados dons voluntarios, nao duvi- dou recorrer tambem aos meios violentos, quando ordenoy que os mercadores de la e seda, da cidade de Lisboa, apre- sentassem por cada loja, dentro em 24 boras, no focal que se hes designasse, cem covados de panno das cores em uso bo exercito, e que os mercadores de lencaria entrassem iguolmente por cada loja com cento e cincoenta covados de panno de linho para fornecimento dos: hospitaes, sob pena de serem uns e outros executados no dobro, quando se nao verificasse a entrega pela maneira indicada. Por esta forma ia D. Miguel custeando as enormes despezas do seu exerci- to; mas D. Pedro, depois das violencias ultimamente prati- cadas no Porto, pora valer 4 esquadra, e fornecer 0 exer- cito, tinha esgotado no reino todos os possiveis recursos, e em Londres, depois da falta de confianca em que alli tinham cahido as suas armas, e da funesta sensagdo que causira a sublevacio da esquadra eiu-Vigo, jé n&o podia achar quem The emprestasse a mais pequena quantia. Ainda assim a commissto dos aprestos pide mandar para o Porto um navio carregado com differentes effeitos, enviou 160 marinheiros para compensar as desercdes da esquadra, apromptou e re- metteu £ 1:500 para do modo que lhe foi possivel satisfazer 4s reclamagdes tanto della, como de dois navios em que tinba feito transportar 620 recrutas francezes, armados e esquipados. Esgotados por esta forma todos os seus recursos, @ mesma commissAo sé pz as suas esperancas em negociar as £ 200:000 em Ronds do emprestimo suppletorio, que se acbavam depositados no banco de Inglaterra; mas neste tempo era tal a desconfianca nas armas de D. Pedro, que 80 havia quem os aceitasse, dando dez libras por cada cem. O mesmo Times tinha ja dado por duvidosa a conser- vagto de D. Pedro no Porto, e quando uma folha de prio- VOL. IL. — CAP. 11. 183 cipios tdo liberses, e defensora sempre da causa constitu- cional portugueza, se achava debaixo de tao tristes impres- sdes, poderé bem colligir-se qual n&o seria o desconceity a que ella tinha chegado. Com estes elementos facil é de antever que o estado fisico da tropa constitucional no Porto nao podia ser lison~ geiro: o seu muito trabalho e méo passadio, e a falta de provisdes frescas, reunidos com as epidemias reinantes, con- tinuavam a devasta-la, enchendo os hospitaes de doentes ‘. Quanto ao moral, nem o medo havia entrado dentro do peito dos defensores do Porto, nem o susto lhes havia to- mado a ascendencia sobre as suas faculdades e accdes, como claramente se via da pertinaz resistencia por elles opposta ao multiplicado numero de ataques, que os sitiantes tinham dirigido contra as suas tenues linhas de defeza. Os factos respondem pois pela verdade do que acabo de expér, e sem contradiccao demonstram que a grandeza dos perigos mul~ tiplicava alli as forcas dos sitiados, cuja salutar energia sempre bem patente em todos, em todos reciprocamente inspirava a inflexivel coragem, que tao celebres tornou o cérco e 03 constitucionaes do Porto. Entretanto posto que Bio faltasse valor, notava-se ainda assim um certo esmore- cimento quanto ao definitivo triumpho da causa constitucio- nal. Todavia nem os officiaes transigiam com 0 inimigo, nem queriam ouvir fallar em interferencia estrangeira; mas as repetidas desercdes dos soldados, effeituadas nio por mao espirito, pois as desta ordem haviam tido logar no principio da luto, mas pela falta de um passadio regular, altestavam © cancasso dos mesmos soldados, e a sua falta d’esperancas to acabamento de uma guerra, que, sem decidir, tanta gente matava quotidianamente. O estado dos arsenacs e ar- Mmazens nfo podia ser abundante pelo consumo diario de munigdes, pela falta de meios para as comprar, e risco que havia nos seus desembarques. Era um facto demonstrado que as armas constitucionaes, aggressoras ou aggredidas, tinham sempre achado por si constante a fortuna dentro do 4 Em abril eram ox decntes nos huspitnes 1:934, em maio 1:788. 184 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. Porto: combater e vencer fora a sua sorte; mas as victo- rias alcancadas no campo n&o bastavam para destruir os serios apuros supervenientes 4 duracdo da guerra, nem as difficuldades de toda a natureza, que naquella cidade se oppu- nham 4 sua conservacao, antes parecia que essas mesmas vi- ctorias destruiam os proprios vencedores, e thes faziam esca- cear tudo o de que precisavam para sahir do Porto. Neste es- tado facil era conhecer que a nao se arriscar algum lance de desesperacao militar para com elle se mudar de posicao, as victorias haviam de necessariamente acabar pelo definhamento do exercito, e mais que tudo pela falta de meios para custear as enormes despezas de to prolongada luta. Neste apuro de circumstancias, e estando j4 em meio a primavera, o go- verno, e sobre tudo o ministro da guerra, manifestou cada vez mais os desejos d’entrar em operacdes activas, conven- cido de que se por este modo .nio podesse salvar a cause, pelo menos se collocaria em posicio mais vantajosa do que presentemente estava: com esta crenca insistia elle forte- mente com o marechal Solignac para que, deixando a sua inaccho, empregasse alguma operacdo decisiva, ¢ sabindo da cidade com o seu exercito, procurasse o inimigo, e com elle ayenturasse uma batalha. Tal era a posiclo desesperada do geverno, ndo vendo que o exito de semelhante conflicto forcosamente Ihe havia de ser sdverso, subindo as forcas realistas por este tempo a perto de 40:000 homens, occu- pando de mais a mais posi¢ées escolhidas, e nellas magnifi- camente entrincheiradss. Todavia ventilou-se como questéo prévia saber qual a ordem por que sc devia sahir, por onde, e qual o ponto que se devia atacar. Alguem julgou que um ataque pela retaguarda e frente era o mais proficuo de to- dos. Compustas como j& estavam as dissidencias da esqua- dra, efficaz como devia sér a coopcracto de Sartorius, nada mais facil do que receber elle na tranquillidade e socego de uma noite 2:000 homens de tropa expedicionaria, e fazen- do-se com elles a0 mar, vir no meio do maior sigillo dei- ta-los na seguinte noite em Mathozinhos ou Lega, c @ horas taes que podessem levar é granadeira, e ao romper o toque VOL, 1. — CAP. HL. 185 de alvorada, o acampamento inimigo, que simullaneamente devia ser atacado pela frente com a maior forge que podesse sahir da Foz. Se com este ataque o inimigo fosse surpre- hendido, levaria certamente 0 terror aos mais ecampamen- tos, e o exercito miguelista podia neste caso expdr-se a uma derrota, Obrigado o governo a desistir da sua expedicao longinqua, vie-se agora necessitado a romper a linha inimiga, porque quaesquer que fossem os seus contras, (e nao ha plano de guerra que os nao tenha,) forcoso era deixar & fortuna o que por outro modo se n&o podia remediar. En- tretanto a julgar por algumas disposigdes de Solignac, e pelas ordens dadas para se concertar e restabelecer a ponte de barcas sobre o Douro, 0 seu projectado ataque era sobre Villa Nova. Nunca se soube ao certo qual seria o seu plano: tres pontos na linha inimiga, e outras tantes maneiras de ataque tinha elle imaginado, expondo a relagto das vante- geas que havia em cada um delles; mas apesar disso talvez que um quarto fosse o preferido. O certo é que quando toda a cidade do Porto se achava alvorogads, augurando o mais lisongeiro futuro do golpe decisivo, que assim se ten- tava, ficou este de nenhum effeito pelas noticias da proxima chegada de consideraveis reforgos de gente, vindos d'Ingla- terra, de alguns barcos de vapér, e numerario sufficiente pera se emprehender negocio de mais alta monta, ¢ de mais feliz desenlace, 4 vista de tao importantes recursos. O illustre emulo da gloria de Nelson, 0 novo heroe dos mares de S. Vicente, o celebre capitao Napier, que tanto sim- pethiséra com a causa portugueza, desde que nos Agores pre- senciéra o valor dos emigrados da Terceira na campanha da- quelle archipelago, para onde fdra mandado d’observacao pelo governo inglez, commandando a fragata Galathéo, tinha final- mente a¢citado em Londres o commando da esquadra consti- tucional, ¢ associado assim o seu nome aos illustres defensores da mais nobre causa, que por este tempo com tanta fama se litigava na Europa, e posto que persistente ainda na sua expe- digho do Tejo, no recusou todavia optar pela expedicao do Al- garve. Sartorius, prevenido por elle te sua proxima deslituicao, 186 HISTORIA DO CERCO DO PONTO. psrecto resignado com a sua sorte, e nesta conformidade respondéra amigavelmente a0 aviso de Napier, queixando- se-lhe todavia da ingratidao do governo portuguez, e nao menos das iotrigas contra etle promovidas pelos seus pro- prios officiaes. Desde ent8o a expedig&o, addiada por falta de meios, comecou a receber consideravel impulso: as idéas de terror, espalhadas em Londres sobre a quéda do Porto, tioham-se desvanecido, o a tenacidade da defeza dos consti- tucionaes, realgando em seu logar com admiragdo de toda a Europa, fez apparecer de novo o alento e a contiancs entre os amigos da causa liberal da Peninsula. A commissdo dos aprestos achava-se em principios de abril alcancada proximamente na quantia de £ 165:000; mas sem deses- perar da sua melindrosa situacfo, resolvéo finalmente que a projectada expedicio se preparasse, levando d'Inglaterra para o Porto 1:200 soldados, 200 marinheiros, e um nu- mero de barcos de vapér sufficiente para transportar de 2:300 a 3:000 homens a qualquer parte do reino, que mais vantajosa parecesse, antolhando-se-lhe tambem de preferen- cia as praias do Algarve. Corria de crenca que a populacdo maritima desta provincia era na sua maioria a favor da causa da rainha, e que desguarnecida de tropa, e dificil de ser promptamente soccorrida, tinha em si todos os elemen- tos para um poderoso féco de insurreig&o, que ganharia sem custo a provincia do Alemtejo, e particularmente Beja, cujo espirito era de reconhecida affeicto ao systema liberal. Na- pier entendia pela sua parte que forgando a barra do Gua- diana, e puchando os vapores até Mertola, podia a tropa de desembarque effeituar uma marcha rapida sobre Beja, e de la estender o insurrei¢to por todo o Alemtejo; mas como para isto era de necessidade empregar de preferencia os tropas portuguezas, que elle julgava nao lhe poderem ser affeigoadas pela sua qualidade de estrangeiro, mettéo em tel caso por condicdo o ser acompanhado, além de Mendizabal, pelo duque de Palmella, que em raz’o do desagrado de D. Pedro se achava de parte, e nao consultudo sobre estes projectos e arranjos. O duque, apesar dos motivos de quei- VOL, 1. — CAP. HI. 187 xa e desgostos que o acompanbavam, nfo duvidou tomer parte na empreza para que o convidavam, e por esta causa deixou promptamente Paris, onde se. achava com a sua fa- milia, para se apresentar em Londres. Chegado 0 negocio a estes termos, a commissdo dos aprestos cuidou entao em negociar a venda de cem das duzentas mil libras em Bonds, que tinha em deposito no banco de Inglaterra, conseguindo com effeito vende-las pelo preco de 38 por cento, a saber 20 de contado, e 8 ao estabelecer-se 0 governo em Lisboa, ficando na mao dos emprestadores as 10 restantes como ju- ro, que se devia vencer no 1.° de Junho de 1833. Este negocio, marchando todavia com lent:d&o, necessario foi que os amigos da causa do Porto fizessem algum avanco, que effectivamente realisaram com a condigo de que os reforcos que fossem d’Inglaterra nao desembarcariam uo Porto, e que Napier Ihes garantiria effeituar immediatamente a expedicao, pera o bom resultado da qual sendo indispensavel o segredo, forgoso se tornou communicar ainda assim a0s emprestado- res o respectivo plano, cousa que todavia nao prejudicou se- melhante segredo pelos interesses que a todos elles o obri- gavam a guardar. © mez de abril consumira-se em Londres em todos os precedentes arranjos, aos quaes sobrevieram as satisfatorias Qoticies da tranquillidade da esquadra, da resignagdo de Sartorius em entregar o commando della, e finalmente de ter largado de Vigo, e ido jé fundear em frente do Porto. Estas noticias, fazendo renascer as amortecidas esperancas nas armas de D. Pedro, trouxeram mais alguns especulado- Tes 4 praga, e facilitaram as transaccdes da commiss&o dos aprestos, que achando mais commodamente os meios de que . Precisava -para levar a effailo a expedi¢&o projectada, para ella péde fretar cinco barcos de vapor, e ultimar as provi- dencias j4 dadas para o alistamento dos 200 marinheiros, e de um batalhdo de belgas, e outro de inglezes, que teve por commandante um antigo official da guerra peninsular, © coronel Dudegeon. Por esta mesma occasido se facilitaram tambem ao general Romarino os meivs necessarios para re~ 188 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. cratar um batalhao de 600 polacos ¢ francezes, alistamento que n&o se levando a effeito, s6 servio de pretexto para o mesmo general vir mais adiante a Lisboa pedir em seu fa~ vor a execucao dos artigos de um contracto, que nao cum- prio, e 0 pagamento de cousas que n&o apresentou. Infeliz- mente toda esta expedicio, & semelhanca do recrutamento anteriormente enviado para Portugal, nem teve ordem, nem detalhe algum regular, de que resultaram graves transtor- nos, muita perda de gente, e o peior foi muita outra de dinheiro, chegando quasi tudo a ponto de falhar por seme- Ihante motivo, Nao sendo possivel receber a gente alistada de uma s6 vez no Tamisa, necessario foi leva-la a pouco e co com enormes despezas para os pontos de reuniao, Portsmouth e Falmouth. Algumas scenas de embriaguez se deram nestas viagens parciaes, rompendo os amotinados em actos de insubordinacio e desordem, puchando por facas, e arreando finalmente escaleres e lanchas em que fugiram para terra, virando-se uma dellas com perda de vidas, pon- do assim em risco de ser a expedicao embargada pelas au- thoridades. Napier chegou a 22 de maio a Portsmouth em companhia do vapor Britannia, que transportava o batelhao do coronet Dudegeon, e no qual succedéra uma semelhante, porém menos violenta scena. Algumas precaugdcs se toma- ram em Falmouth para evitar a renovacio de taes aconte- cimentos ; mas 0s amotinados, depois de se thes ter alli dado uma libra a cada um dos alistados, para os indemni- sar dos seus suppostos prejuizos, conseguiram levar os se- gundos guardiaes a apitar durante a noite==toda a gente para terra==de que resultou correrem todos impetuosamente 4 espia e aos aparelhos das lanchas, que cortaram, dirigin- do-se para terra quantos nellas poderam caber. Por fortuna’ a pequene das lanchas ndo lhes permittio levar muita gen- te, e a expedicio dos cinco vapores, depois de terem che- gado a Falmouth o duque de Palmella ¢ Mendizabal, pode finalmente largar d’alli no dia 28 de maio, condurindo 160 officiaes marinheiros, e umas 322 pracas, pertencentes aos batalhdes inglez e belga. Nestes termos a commissio dos . VOL. 1, — CaP. TIL. 189 aprestos resolvéo finalmente vender as ultimas cem mil li- bras em Bonds, resto das ue havia depositado no banco, e as negociou com effeito pelo mesmo preco e maneira das antecedentes, trazendo o mesmo Mendizabal: para o Porto, para as pdr 4 disposic&o do governo, as vinte mil libras metalicas, que d’alli resultaram, 4 excepco de duas mil, que ficaram em Londres para os ajustes do general Roma- rino. Com esta negociagio déo a commiss&o dos aprestos finda a sua missdo, ficando as suas transaccdes com um alcance de £ 190:000, de que s6 verdadeiramonte era res- ponsavel para com os respectivos credores a casa de Kamon y Carbonell. Pela noite do 1.° de junho surgio Napier em frente do Porto com o seu importante reforco, ultimo empenho das muitas esperancas e ardentes desejos até entfo n&o realisa- dos, e annuncio feliz de uma nova época, destinada a coroar dos mais immarceciveis louros a pertinacia e inabalavel constancia, com que os defensores do Porto sustentavam por perto de um anno uma luta de tao desigual peleja, e tao cheia de perdas, lamentadas ainda hoje, de esforcos e ras- 08 de patriotismo, que de modelo servirao a historia para feitos de igual valor. O activo fogo, occasionado pelos des- embarques na Foz, foi tomado pelos recem-chegados como um rijo combate, de parte a parte com vigor sustentado. A esquadra constitucional achava-se fundeada em frente do Porto, e além della am numeroso comboi de navies mer- cantes, esperando pela descarga dos seus generos, ou das municdes e petrechos de guerra, que a seu bordo conduziam para o exercito. Napier, Mendizabal, e Palmella, foram logo a bordo da fragata almirante, onde Sartorius thes manifes- tou os pesados desgostos com que largava o servigo da rai- nba. A esquadra miguelista estava-se entao apromptando a toda a pressa, esperando-se que dentro em breves dias po- desse sahir do Tejo. Napier conhecto bem a inferioridade das forcas nayees, que vinba commandar contra um inimigo Proporciooalmente tao poderoso, e o que peor era contami- nadas de insubordinag&o as guarnigdes de que dispunha: 190 HISTORIA DO CENCO DO PORTO. ° todavin como genio forte e sobranceiro a todos os perigos, hem longe de perder a coragem, mais caprichou em levar por diante o seu desejado triumpho. Effeituado o seu des- embarque durante a noite, na madrugada seguinte seguio toda a comitiva da Foz para a cidade: o tempo estava bello e risonho, 0 aspecto do paiz lindo, o golpe de vista summa- mente interessante, particularmente para quem vinha da almosphera nublada de Londres. Sobre a margem esquerda do Douro, e no entrincheiramento inimigo ao Norte da ci- dade, viam-se nas suas baterias desenroladas as suas ban- deiras, e até se Ihes distinguiam as suas sentinellas: as al- cantiladas ribanceiras do rio, os continuados tiros de ar Iheria, arremessados contra as linhas constitucionaes, distin- ctas das realistas pela sua bandeira azul e branca, o som dos tambores, clarins, e cornetas, os surilhos d’armas com que de quando em quando se deparava, e finalmente a va~ riedade dos fardamentos dos differentes corpos, forcosamente haviam de impressionar um genio marcial como o de Na- pier, e determinar nelle uma sensagdo, que bem facil sera comprehende-la quem bem estiver acostumado ao confuso arruido da guerra e dos acampamentos. Soffrivelmente co- berta, como naturalmente ¢, a estrada que vae da Foz para © Porto, e s6 em poucos sitios perigosa por aquelle tempo aos possageiros, Palmella, Napier, e Mendizabal chegaram sem inconveniente ao Porto, onde o ministerio, e sobre tudo © ministro da guerra, nao teve pequena duvida em se con- formar com a entrada do mesmo Palmella oaquella cidade, ao qual nesta occasiao certamente valéo de muito a compa- ahia e proteccio do novo almirante, porque em fim recusar a entrada ao duque, e excluil-o dos conselhos e debates, que iam ter logar, seria dar de mao aos importantes servicos, que do mesmo almirante se esperavam, e renunciar por con- seguinte a todas e quaesquer idéas da projectada expedig&o. A vinda do duque de Palmella toroara D. Pedro sum- mamente frio, e até mesmo indisposto contra Napier, que apresentando-se-lhe pela primeira vez, déo-se por muito of- feadido quando se vio recebido 4 porta de um quarto pelo VOL. .— CAP. 11. 191 imperador, que estava de maos cruzadas a traz das costas, e parecia muito enfadado, pelo modu aspero com que fallava. D. Pedro, reputando a expedic&o como destinada a prival-o da regencia, pela parte que nella se dera ao duque de Pal- mella, olhava decididamente para ella com vive indisposigao, e até o mesmo Solignac se declarou seu adversario, ndo of- ferecendo a Napier uma recepcdo mais cortez do que lhs fiera D. Pedro. Na manha seguinte dirigio-se 0 marechal, e Napier ao quartel general do imperador: alli se repre- sentou a necessidade da prompta execucao de uma operacio decisiva, que salvasse a causa Constitucional dos ameacos de depér vergonhosamente as armas aos pés dos seus inimigos. Oalmirante insistio ainda nos seus planos de forcar a barra do Tejo n‘uma noite de bom vento, ow entao de fazer o desembarque entre Peniche e Lisboa, para n’uma marcha rapida se apresentar a tropa 4s portas da capital. Tudo isto ficou para se tratar n’um subsequente conselho militar, @ Napier retirou-se desta vez da presenca de D. Pedro mais satisfeito do que se retirara da primeira. Os desgostos que por este tempo experimentéra Palmella, e uma especie de repulsa, que entre os ministros achava, alguma vogo e po- pularidade lhe principiaram a dar entre a Opposicao, que J4 pela sua parte o nfio duvidava aceitar para chefe de uma nova administrago, a qual se nto péde realisar, apesar das diligencias, que para esse fim se empregaram, inclusivamente da parte do marechal Solignac: tal é & sorte das Opposicdes aceilarem sempre os descontentes, ainda que lhe venham do partido contrario, Restituir ainda assim naquella occasiao o duque de Palmella as béas gracas de D. Pedro, e rehabili- tal-o a ponto tal de lhe confiar a formacao de um novo mi- nisterio, era empreza realmente difficil, quando alias 0 jul- gava disposto a prival-o da regencia, e a querel-o remover para fora do reino. Entretanto Mendizabal mostrava-se impaciente pela de- mora da expedic&o, para a qual, depois de um conselho de gabinete, se convocou um conselho militar’, em que se agi- 4 Neste consélho se conhecto que a forga do exercito era neste mes 192 HISTORIA DO CRRCO DO PORTO. taram as quatro importantes quesides: 1.* seré conveniente cmbarcar todas as tropas disponiveis, e fazer com ellas um decisivo ataque sobre Lisboa? 2.* Sera melhor embarcar 2 ou 3:000 homens, ¢ fazer com elles um ataque sobre algum ponto distante da capital, e do Porto? 3." Deve ser Villa Nova atacada por um desembarque feito na retaguar- da? 4." Deve effeituar-se um ataque na retaguarda des li- nbas inimigas, ao Norte da cidade? Solignac inclinou-se a mandar um exercito de 5:000 homens para ser lancsdo nas visinhangas de Lisboa, offerecendo-se elle ou para o com- mandar em pessoa, ou para ficar no Porto, por cuja conser- vac&o se responsabilisava neste caso. Napier enteadia que se abandonasse a Foz, e se limitassem as linhas unicamente & defeza do Porto, que estava abastecido pera tres mezes, ¢ com a maxima porcio de gente de que se podesse dispdr, se fosse com ella fazer um ataque repentino sobre Lisboa, projecto a que Solignac se oppéz, preferindo antes um ata~ que em forca contra o campo inimigo pela parte do Norte ou do Sul do Douro. O ataque pela retaguarda era muito incerto pelas vicissitudes do desembarque, que era necessa- tio fazer em qualquer ponto da costa: a probabilidade de bom exito era conseguintemente pequena, e se a [orga ata- cante ficasse cortada, a conservacio do Porto arriscava-se em demasia: conseguintemente este plano olhou-se como arrojado e indiscreto. A maior parte do conselho optou pela opiniao de Napier, que felizmente se nfo veio a seguir, aliés quando se tomasse Lisboa, hypothese do melhor resultado, © Porto cabiria em poder do inimigo, porque nao tendo provisdes para mais de tres mezes, e nao se podendo antes disso arranjar na capital um exercito, capsz de fazer rosto a08 miguelistas, e obrige-los a levantar o sitio, a fome ba- via-lhe de trazer uma capitulacdo, e quando para evilar isto se conservasse a Foz, as linhas do Porto seriam naturalmente de 18:021 homens, dos quaes 10:439 eram de infanteria e cagadores, 1:125 de arlitheria, 445 de cavallaria, e 6:01% do batalhdes macionses fixos © mo- veis: abatendo desta forca 1:607 doentes, € 08 corpos nacionaes fixos, ape- nag fe podia contar com 10:000 homens promptos para manobrarem activa- mente no campo. VOL. 11. — CAP. 111. 193 levadas por qualquer ataque sério, que contra ellas se fizes- se, attenta a falta de baionetas constitucionaes para guerne- cer tamanbo espaco. Sartorius, tendo pedido a sua demis- sto‘, foi entao substituido por Napier, que com a sua pa- teate de vice-almirante da marinha portugueza, e comman- dante em chefe da esquadra, accumulou tambem as funcodes de major general da armada. A sua forca naval consistia bas tres fragatas D. Pedro (de 50 pecas), Rainha de Portu- gal (de 46), 0 D. Maria 2." (de 42), na corveta Portuense (de 20), e ao brigue Conde de Villa-Fldr (de 18): as guar- nigées consistiam em mil e tantas pessoas, entre officines e marivheiros. Com estes unicos meios, e no estado de indis- ciplina.a que a esquadra se achava reduzida, tinha o novo almirente constitucional de conduzir ao campo da gloria uma expedicde, que se destinava a libertar Portugal, a derrubar D. Miguel, e a collocor subre o throno portuguez, por este usurpedo, @ joven rainba D. Maria 2.", e Ludo isto feito em presenca de um -exercito de perto de 80:000 homens de todas as armas, e d'uma esquadra, que contava por si duas fos de lieba, uma charrua armada, montando 50 peas, wma fragata de outras 50, tres corvetas, e quatro brigues, promptos a sahir do Tejo. Carlos Napier, troeando o seu verdadeiro pelo supposto nome de Carlos de Ponza, para commemorar o seu bello feito de armas por elle praticado na Italia, e sobre tudo para iNudir as leis inglezas, que the vedavem, com pena de perda de patente, entrar no service estrangeiro, sem prévia permissdo do scu governo, ao icar o seu pavilhao falléra 4s suas guarnicdes pelo seguinte mo- do: « Companheiros! Temos batalbas a“dar, e grandes es- «forcos a fuzer: conservai a disciplina, respeitai os vossos cofficiaes, e triumpharemos. Os olhos de toda a Europa «est8o fitos sobre véa; 0s vossos patricios, e tambem as « vossas patricias, estdo desejosos de vos dar as boas viridas «pela vossa feliz chegada a Inglaterra; e quando a batalha «estiver ganha, e voltardes para os vossos lares, sereis sau~ 41 Déo-se-lbe por carla regia de 8 de junho, dia em que Napier tomay, igualmente posse du esquadra. vou. it. ct) 194 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. «dados como homens que livraram o infeliz Portugal da ti- «ranpia e da oppressao. » . Quanto 4 expedicao. 0 conflicto das opinides tornéra os planos della cada vez mais incertos, porque em fim todos os grandes negocios ttm sempre difficuldades grandes que ven- cer. Ao principio optéra-se pela opinido de Solignac, quanto 4 sahida de uma divisto de 5:000 homens contra Lisboa ; mas depois resolyéo-se que D. Pedro e Solignac ficassem no Porto, enviando-se para o Algarve uma expedico mais pe- quena, cujo embarque Solignac Ihe tinha demorado, repro- vando-a com todo o calor, como inefficaz e sem plausivel raz8o militar que a justificasse. Foi entdo que o almirante, desconfiando das dissengdes do marechal com o governo, [ex signal telegraphico para terra, dizendo que aquella nao era certamente a maneira de ganhar a causa da rainha. Vem soldados, ou nao? Perguntou elle. A vista da resposta obra- rei conformemente. Entretanto a demora continuava, e 03 dias 9 e 10 de junho passaram-se sem mais decisio de embarque. No dia 11 declarou o almirante para terra, que 86 nao embarcava a tropa, immediatamente arrearia a sua bandeira, e seguiria sem demora para Inglaterra. Neste aperto convocou-se um novo conselho militar, e nelle se decidio finalmente, que o&o se podendo mandar para féra do Porto, sem risco de perder esta cidade, uma divisio dé 5:000- homens, forgoso era recorrer ao emprego de uma pequena expedicao de 2:500 homens, que se destinaria ao Algarve, expedigao que de vada valeria se Ihe nfo viera em auxilio a memorayel victoria naval, que precedéo a sua marcha sobre Lisboa. Esta resolugio fot promptamente par- ticipada a Napier por uma carta, que D. Pedro lhe escre- véo', na qual dizendo-lhe a forca da expedicao, e promet- tendo-lhe toda a sua possivel energia e actividade no em- barque. da tropa, se notavam as seguintes lisongeiras expres- sdes: «ide, meu querido almirante. Eu vos sigo com os «meus votas, e espero vér-vos voltar a mim coberto de «gloria, e com as benc&os de uma nag&o grata, a quem 4 Era do mesmo dia 11 de junho. YOL. 1, — CAP. III, 195 «viestes com generosas intengdes fazer brilhantes servicos. » Solignac, irado por vér tao friamente rejeitada a sua opiniao e conselho, pedio a sua demissao, que promptamente se Ihe déo por carta regia de 13 de junho. Na sua despedida ao exercito dizia elle « terei sempre presente na memoria a boa «disciplina, zelo, e valor, que constantemente observei da «parte do exercito, ao qual terei por ventura vér-me outra «vez unido. Em toda a parte em que me achar poderei «afoutatente assegurar aos portuguezes fieis, que um tal «exercito é digno da justa causa que defende. » Em breves dias’ tentando o marechal sabir a barra para se dirigir a Franca, nao o péde fazer sem ser ferido n’um brago, levan- do assim uma perpetua memoria da gua estada no Porto; e sobre tudo 0 castigo de nao ter feito todas as possiveis diligeacias para conservar o monte do Castro. Solignac éra todavia general de ulgum merito; mas os seus annos ti- nham-lhe cancado a sua actividade, e o constituiam incom- modo pelo seu genio irascivel. No Porto fez o grande ser- vigo de acabar com as malfadadas sortidas; mas a discipli- na e administracio do exercito em nada se resentiram do ‘seu governo. Despido de credito, retirou-se a final sem dei+ xar um 86 amigo, e nem dos seus mesmos patricios recebdo a0 menos a mais pequena prova de sentimento. A demissdo de Solignac trouxe para Saldanha a sua elevacdo a0 impor- tante logar de chefe do estado maior imperial, para o bri- gadeiro José Lucio Travassos Valdez a nomeatdo de aju- dante general, e a de quartel mestre general para o major Balthazar de Almeida Pimentel, a quem para tal nomeagao touito aproveitaram as intrigas de palacio, e sobre tudo a decidida influéncia que Candido José Xavier alcangéra no animo de D. Pedro, levaudo-o a mandar inutilisar 0 decreto, que para este logar de seu quartel mestre general se tinha j& passado a°favor do brigadeiro Bernardo Antonio Zagallo. Soava finalmente a hora extrema para o reinado da usurpagio miguelista : a tropa destinada 4 expedicdo do Sui do reing, comecando o seu embarque no dia 12 de junbo, estava toda ella a bordo no dia 14. O duque da Terceira 196 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. fora o nomeado commandante da expedigao ‘, com amplos poderes para levar a effeito quaesquer medidas militares, que entendesse a proposito: nas suas respectivas instruccdes se lhe dizia, que a divistio tinba de se dirigir ao ponto em que mais facil fosse o seu desembarque, fixado todavia esse ponto por um conselho militar, composto a bordo da esqua- dra delle duque da Terceira, do de Palmella, e do vice- almirante Carlos de Ponza. Desembarcadas as tropas, ficavam ellas desde ent&o debaixo do seu immediato commando, ¢ elle general revestido das prerogativas de dar execugdo ds sen- tencas dos conselhos de guerra; de punir os paisanos e ec- clesiasticos, apanhados com armas na mao; de promover a alferes os cadetes e officiaes inferiores, que mais se distin- guissem em acc8o; de receber todas as pessoas que se lhe apresentassem, quaesquer que fossem as suas opinides, ow erros passados, podendo conceder aos militares 0s postos que tivessem adquirido, ainda mesmo durante a usurpagdo, sem que todavia os podesse empregar em servico effectivo, a n8o ter a certeza da sua lealdade & causa constitucional, ou sufficiente garantia pela importancia dos servicos, que ulti- mamente Ihe houvessém prestado. © duque de Palmella re- cebéo na mesma data da do duque da Terceira a sua no- meagao de governador civil provisorio, para nesta qualidade acompanhar tambem a expedic&o, para reger e governar os territorios, que necessariamente fossem entrando na obe- diencia do governo legitimo, psra proclamar acs povos, @ communicar-lhes a natureza da sua missio, para receber tambem todas as pessoas que se lhe apresentassem, quaes- quer que fossem os seus erros e opinides passadas, nBo po- dendo todavia emprega-las sem a conviccdo da sua fideli- dadey ou a garantia dos seus récentes servicos: Palmella podia de mais a mais castigar militarmente os paisanos ¢ ecclesiasticos, aprehendidos com armas na mio, nomear pessoas aptas para os cargos municipaes, officios de justica e fazenda, cobrar os dinheiros publicos; prover a tropa ex~ pedicionaria do que the fosse necessario; captar a benevo- 4 Por carta regia de 13 de jumbo. VOL. Il. — CAP. IIL. 197 lencia dos inimigos, conciliando-os quanto fosse possivel sem offensa da lei; prometter e conceder as recompensas que julgasse a proposito; e finalmente execotar quaesquer outrag—~~ medidas de administragao politica, civil, e economica, a sua discricao Ihe sugerisse, dando de tudo conta a0 pé¥erno. Os duques foram no dia 18 de junho recebido® pelo almi- rante a bordo da fragata Reinha: as acommodacdes que alli acharam eram bem fracas para titulares de tao alta monta. Uma roda de tao bella gente, e d’officiaes tao promptos a se resignarem com as privacdes de to apuradas circumstan- cias, surprehendéo Napier: nesta mesma vingem uma parte da companhia dos artilheiros academicos de Coimbra apenas alli achou, por toda a acommodacao, uma vela estendida por haixo da meia coberta, com ragao do pordo para -passadio: S6 no dia 20 por noite pdde a expedicao concluir todos os seus arranjos, ndo sem grandes esforcos para se alcancar lenha e agua, que por descuido e outros inconvenientes sc nao tinham tomado em Vigo, sendo aliés cousa de summa difficuldade obter no Porto estes dois artigos a bordo, o pri- meiro pela sua raridade, e ambos elles pelas difficuldades do embarque. No mesmo dia 20 officiou o almirante para terra, communicando co governo as suas ultimas providen- cias, e as ordens que dava ao official, que durante a sua ausencia ficava em frente do Porto, a bordo do navio Edward, official a quem igualmente confiava o brigue-escuna Liberal, e todos os mais hiates que se haviam apresado. Feito o si- gnal telegraphico da despedida, os vapores comecaram a levantar ferro pela noite, e a esquadra, que jé no dia 19 tinha perdido alguns ferros em razio da resaca, fet-se finalmente de vela pelas sete horas da manh& do dia 21, € reunida com os vapores seguio o rumo do Sul, com vento bonanca e mar de feigho ‘. Apezar de to consideravelmente desfalcada de gente, a guarnigdo do Porto, animada pela 4 Bata expedigio compunha-se de cinco barcos a vepor, Birmingham. Waterford, Britannia, Darmouth, e Pembroke, e das tres fragatas Rainha de Portugal (navio almirante), D. Pedro, e D. Maria 2.*, bem como da cor- Teta Portuense, ¢ do brigne Conde de Villa-Fldr: a tropa de desembarque 198 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. presenga e actividade de D.Pedro, sentia bater-lhe 0 cora- g&o de alegria pela esperangosa perspectiva que se lhe an- hava. O mesmo D. Pedro tinha feito preceder a sahida rca de uma proclamacac, em que nfo somente an- om e uma diyisto expedicionaria do Exercito Liber- nuncia’™wrrdjuvar o desenvolvimento dos sentimentos .de tador ia cc . a fidelidade ytra com a rainha e a Carta Constitucional ; mas chamava oj povos igualmente 4s armas, e 08 convidava a auxiliarem-n0 na restauragdo do throno legitimo. « Contai, «dizia elle, que sereis recebidos com a generosidade, que é «propria de um governo justo e liberal, e que em breve a gozareis da paz domestica, de todas as felicidades sociaes, «e da Liherdade legal. As armas, portuguezes! Viva a rai- gnha e a Carta!» gomprehendia cacadores n.° $e 3, infanteria n.? 3 ¢ 6, primeiro batalbio do primeiro regimento de infenteria ligeira da rainha (francercs), um desta- camento de Innceiros apeados, e outro de artilheria de montanha, formado pelos academicos de Coimbra. CAPITULO Iv, Em quanto o duque da Terceira se assenhoréa do Algarve, e o general mi- ‘guelista, visconde de Mollelos, pasea ao Alemtejo, e em quanto finalmeate ‘Napier ganba s famosa acco naval do cabo de S. Vicenle, chega ao campo tealista o marechal de Franga, Bourmont, que sem fructo acommette ‘as linhes do Porto, onde depois de tal acommettimento chega a noticia uella mesma acgio naval. Napier aprompta-se pela sua parte para bloquear Lisboa, e o duque rceira, aproveitando-se da demora do visconde de Mollelos em sobre o Alemtejo, entra em Seta- bal, donde sfugenta uma divisdo movel, que de Lisboa para alli mandéra ‘0 duque de Cadaval, evem aCacilhas derrotar uma outra divisto inimiga, foxendo com a ousada marcha retirar da capital do reino o mesmo duque de Cadaval, que assim Ihe facilita a sua entrada triumphal em Lisboa, pata onde acode logo D. Pedro, retirando-se os realistas sobre ‘© que tambem fax Bourmont, deixando o Porto, cujo sitio & definitivamente levantado por Saldanha, depois do inimigo ter incendiado os armazens de vinhos de Villa Nova: Bourmont finalmente, sahindo de Coimbra, marcha sobre as margens do Tejo para por o cérco a Lisbog, O reinado de D. Miguel estava ja em via da sua total ruina e perdigio, porque em fim, apezar de ter accumulado - em volta do Porto a tropa, que de toda a parte do reino alli péde fazer reunir; apezar dos postos, titulos, foros de fidal- go, commendas, habitos, e alcaidarias méres com que a maos generosas galardoava os brios militares de muitos do seu exercito; e apezar finalmente da distincgio honorifica da cruz escarlate de panno, com a legenda de valor ¢ merito, que mandéra pér sobre o braco direito das pragas de pret mais distinctas por seus brilhantesfeitos d’armas, nada po- dia levar as suas tropas a romper as invenciyeis linhas do Porto. Quando muitos pareciam duvidar associar o seu no- me ao dos illustres defensores desta heroica cidade, esgota- dos todos os seus recursos moraes e physicos; quando a causa liberal, olhada como tinba sido por muitos portugue- zes como a da Fazio, da honra, e da justica, parecia ter perdido todo'o interesse e apégo que inspiraya uma grande 200 MISTORIA DO CERCO DO PORTO. causa, era exactamente entdo que apparecia um ultimo es- forgo de reaccio, por meio do tual tmuitas vezes um corpo doente recobra o seu antigo estado de saude. Se o Exercito Libertador nunca foi commandado por um official -de grande genio, foi pelo menos dirigido com soffrivel bom senso, quanto 4 sua conservacdo c arranjo: a espectativa em yue a necessi- dade 0 collocéra, aguardando do tempo a marcha dos. aconte- cimentos, a sua concentracao no Porto, e o seu plano ulli sus- tentado de guerra defensiva, cancou extremamente o exercito contrario, fatigou-o com a prolongagao da luta, fez-lhe exhau- rir de todo os seus recursos moraes e physicos, e foi finalmente quem coroou os esforcos mais patrioticos do mais feliz resul- tado. Este plano nao foi todavia insinuado a priori por uma intelligencia superior; mas foi imposto a D. Pedro pela pon- derosa occorrencia das circumstancias, e impossibilidade de poder activamente manobrar em campo. Foi esta sua Jonga pertinacia quem para o mesmo D. Pedro constituio em pros- pera a sua adversa fortuna, e quem, além do descredito em que estava, tornou gasto, fastidioso, e incommodo o governo de seu irmao, nullificando-Ihe a omnipotencia dos meios de que em todo 0 reino dispuoba. Oito mil homens d’armas primiti- vamente, acrescentados depois com os batalhdes oacionaes do Porto, tinham tornado impotente um exercito de quarenta mil, qre naquella cidade os sitiavam, haviam feito perder a confianca jos mais distinctos e acreditados generaes realistas, tornado inutil o immenso materiel de campanha e de sitio, que se reunira em volta do Porto, repellido todos os ataques des seus inimigos, e reduzido finalmente ao desprezo, ou pelo menos 4 indifferenca o seu activo bombardeamento, arrei- gando por toda a parte a crenca de que o maior numero nem sempre pode vencet o menor. Desde ent&o nasceram os enfados com a prolongacdo de uma guerra, cuja prolixa indecisiio faria com toda a razto suppor que o exercito constitucional nao era tao desprezivel quanto se dizia: d'aqui nascéo a desmoralisacto dos soldados miguelistas, amargu~ rados pelos trabalhos e privacdes de um cérco de que n&o viam fructo, faltos de yestuario, sem pegamento, e sempre VOL. Il, — CAP, IV. 201 sujeitos a um servigo tao aturado e penoso, quanto cheio de perigos, e sem nenhuma gloria para elles. Todas as provin- cias, ainda as mais afastadas do theatro da guerra, se acha- vam igualmente fatigadas pelos vexames, que este estado de luta civil Ihes occasionara: o tributo de sangue, dado em soldados para os corpos de linha, para os de milicias e vo- luntarios realistas, e até dado cm guerrilhas e fuchinas para ~ 0s trabalbos das linhas realistas, reunido com a promptifi- cacao de transportes, e o peso dos chamados dons volunta- rios, tinha finalmente esfriado o enthusiasmo dos mais at- dentes e leaes 4 causa de I). Miguel, contido os indifferentes n’uma calculado espectativa, e dado mais rcalce 4 pericia ¢ valor do exercito constitucional. Nestes termos, falto de con- Gianca nos seus gencraes, e movido pelos desejos de evitor as perniciosas consequencias de uma luta, que tau feio aspecto ia quotidianamente tomando para a sua causa, D. Miguel re- corréo finalmente a chamar tambem para o seu servigo um general estrangeiro de grande reputac8o, que lhe viesse co- Toar com os louros da mais assignalada victoria um exercito @ quem somente parecia falter um digno chefe para trium- phar. O marechal de Franca, Bourmont, bem conhecido na Europa desde que na batalha de Waterléo deixtra traicoei- ramente as handeiras de NapoleBo para se passar para as dos alliados, ¢ ultimamente ennobrecido pelo seu illustre feito da conquista de Argel em 1830, achando-se emigrado para pagar com a sua fidelidade ao decrepito Carlos 10.° o bastao de marechal de Franca, com que por aquelle feito o havia ennobrecido, foi o general que. como campedo da le- gitimidade franceza, 0 mesmo D. Miguel pdde com effeito chamar ao seu servigo, e por elle de dia pura dia se espe- Tava no acampamento realista como um valioso auxilio. Em quanto D. Miguel assim providenciava sobre o com- mando em chefe do seu exercito, proseguia no rumo do Sul com que sahira do Porto a expedic&o constitucional: pelo meio dia de 21 de junho havia ella reconhecido a costa da Figueira, na manba seguinte avistéra Peniche, aproximéra- se depois ao cabo da Roca para chamar sobre aquelle ponto 202 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. @ attenglio do governo de Lisboa, e o distrahir sobre o ver- dadeiro ponto do desembarque, e d’alli coutioudéra ainda no rumo doSul. No dia 23 dobrou pela noite o cabo deS. Vi- cente, e no seguinte dia foi a esquadra razando a costa do Algarve, donde alguns fortes, junto dos quaes passita, lhe fizeram alguns tiros soltos, de qué nfo fez caso. Pelas tres horas da tarde estava ella em frente da praia escolhida para desembarque, a praia da alagéa, situada entre o forte de Cacella e o monte gordo, a legoa e meia ou duas distante de Tavira. D’alli se retirou o“inimigo ao tomar terra a ex- pedigio, effeituando-se o desembarque sem o mais pequeno desastre ou contratempo. O governo de Lisboa, presidido pelo duque de Cadaval, e dominado pelo conde de Basto, 36 linha cogitado em se defender no seu posto, pela conviccto que tinha, que a expedigio do Porto s6 procuraria a vapi- tal. O Algarve achava-se por conseguinte esquecido nas combinagées militares dos que dirigiam os negocios da guer- ra, e o general daquella provincia, o visconde de Mollelos *, tao desprevenido estava igualmente de ser alli atacado, que s6 na madrugada do dia 25 mandou reconhecer a forca desembarcada: a tropa que para este fim empregara veio topar com os constitucionaes junto do pequeno rio do Al- margem. Alli guarneceram os realistas a ponte com quatro bocas de fogo, e alguma gente bisonha de Tavira, Faro, e Beja, com um destacamento de cavallaria. A resistencia nto foi grande, perdendo os mesmos realistas uma pega de ca- libre 6, e as municdes de outra de calibre 3. .Desde entao Mollelos experimentou grande deserc&o nos seus batalhdes de realistas, e retirando-se a final sobre S. Bartholomeu de Messines, déo com esta sua marcha logar. a que no dia 27 de junho entrasse o duque da Terceira triumphantemente em Faro, capital da provincia, pondo-se tambem a esquadra si- multaneamente em movimento para aquelle ponto. Apezar disto, a acquisigao de Faro, e a do arsenal, que alli se 4 Este general apenas dispunba alli de quatro balalhdes de realistas, de milicias de Lagos, de 150 cavallos de n.° 5, ¢ de oilo bacas de fogo, servides por uns 200 artilheiros de n.° 2. VOL, “LU. — CAP. IV. 203 achéra soffrivelmente provido de munigdes e petrechos, o ,Tesultado da expedicao estava ainda muito longe de mere- cer confianga: a sua forca era pequena para insurreccionar as provincias do Sul do Tejo, cujos habitantes, receiosos de tornarem a cabir debaixo do regimen da usurpagdo, nao se atreviam a abracar decididos a causa constitucional, e a fazer em favor della os sacrificios que delles se exigia, tendo por si téo pequeno apoio. Em Faro estabelecéo o duque de Palmella a séde do governo civil da provincia, e se proce- déo 4 acclamagfo da raioha, de que se lavrou auto. As operacdes militares ainda nao tinham plano fixo: na tarde do dia 28 de junho marchou uma das brigadas do duque da Terceira sobre Loulé, donde depois sahio em procura do inimigo, que a esse tempo continuava em retirada por S. Marcos da Serra para Santa Clara. Pela sua parte Napier, tendo recebido agua e mantimentos de refresco em Faro, fez seguir a esquadra para Lagos, conseguindo-se por esta forma em seis dias a occupagao de todo o Algarve. O ini~ migo, arrojado para além das serras de Monchique e Cal- . deirao, tinha abandonado todas as baterias do litoral, e o interior da provincia; as munigdes e todo o material de Faro tinham cahido em poder dos constitucionaes. Ainda assim no meio do geral enthusiasmo dos habitantes do lito- ral do Algarve, havia entre elles certa indisposigio para re- ceberem armas, e organisarem-se em corpos regulares, tanto para sua proteccao e defeza, como para o andamento e progresso da causa constitucional, cuja situagdo era n&o obstante precaria pela falta de um combate, que decidisse € assegurasse a occupagdo da provincia, como bem se pa- tenteava pelo estado de perplexidade em que o duque da Terceira se conservou em S. Bartholomeu de Messines, donde expedio ordem para se the reunir aartilheria de campanha, tomada ao inimigo, bem como a sua de montanba, e a¢ ‘reservas de polvora, que tinba deixedo em Faro. Mollelos, ainda que em retirada por S. Martinho das Amorciras até Garvao, tinha conseguido aprisionar um major e um alferes do duque da Terceira, que como exploradores haviam sido 204 HISTORIA PO CERCO DO PORTO. mandados a S. Marcos da Serra. Esta circumstancia aggravou ainda mais 03 grandes receios do duque em perseguir o ini- migo, e dominado por elles, desandou para a retaguarda, indo novamente occupar Loulé na manha do dia 4 de julho, onde de novo se entregou 4 sua perplexidade e incerteza, com todas as mostras de se eternisar a guerra, tanto quanto succedia no Porto. A opinido dos Liberaes em Lisboa com razfo devia exol- tar-se, esperancados na serie de todos estes acontecimentos. No dia 26 de junho participara o telegrapho do Sui o des- embarque de expedicao do Algarve, succedendo-lhe pouco de~ pois a noticia de se ter levantado nas immediagdes de Tho- mer uma guerrilha, que correndo sobre aquella villa, alli se arméara, com armas dos milicianos e realistas, que achéra em deposito, seguindo depois pura a Barquinha, Alpiarca, e Al- meirim. Tudo isto aterréra 0 governo de Lisboa, que no dia 9 de julho fez sahir uma forca ' pora Ald¢a-gallega, donde a fina! marchou a unir-se a Mollelos, que na sua retirada do Algarve com toda a instancia requisitéra do seu go- verno a prompta remessa dos possiveis soccorros de gente, dinheiro, e polvora. Para este mesmo fim largou tambem do Porto uma brigada, commandada pelo brigadeiro Tabor- da, que em Coimbra reunio toda a 3ua force, composta de um betalhao de infanteria n.° 8, outro de infanteria n.° £7, milicias de Aveiro, realistes de Penafiel, um esquadrao de cavallaria n.° 4, e duas bécas de fogo de calibre 3. Desde entBo 0 governo de Lisboa parecéo ter perdido o acerto, que tanto the conviuha empregar em todas as suas medidas: em ver de conservar # esquadra no Tejo, para em caso de desastre nas provincias do Sul, se cobrir e -abrigar com ella para a defeza da:capital; em logar d’esperar pelos reforcos mari- timos, e por-um official da merinha inglera, que havia arranjado em Londres para a commandar, s6 cogitou em a fazer apromptar a toda a pressa, mandando-a Targar a barra mmandante della o brigadeiro Raymundo José Pivhciro, que ins de Thomar e de Tavira, cacadores n.° §, um bata- .° 14, © um esquadrio de cavallaria n° 2, VOL, 1, — CAP, 1Y. 203 no 1.° de julho, néo obstante o miseravel estado em que se achava, quanto a material e pessoal. Ao passo que o duque da Terceira consumia apathico o tempo ou em S. Bartholo- meu de Messines, ou na villa de Loulé, o almirante Napier sahia de Lagos no dia 2 de julho: da esquadra inimiga nto tinba clle noticia alguma; mas no manha do dia 3 daquelle _ mez, achando-se a esquadra na altura do cabo de S, Vicente, os officiacs de quarto deram-lhe parte de se avistarem duas yelas, depois tres, quatro, ¢ assim successivamente até so contarem nove embarcacdes, que cram as néos D. Jodo 6.”, e Rainha, as fragatas Martim de Freitas, (ou charrua Maia e Cardoso.) e Princeza Real; as corvetas Isabel Maria, Princeza Real, e Cybelle, e os brigues Tejo, e Audaz. Na- pier navegava entdo com-amura a estibordo, com as quatro mestras e joanetes, e 0 almirante miguelisto, o chefe d'es- quadra Antonio Corrta Manoel Torres d’Aboim, seguia em gaveas, e mais em cheio para bombordo, ¢ a sotavento da esquadra constitucional. Pelas duas horas da: tarde Napier virou de berdo sobre o inimigo, que pela sua parte teve a indiserigdo de voltar tambem, deixando assim desembaracada a bahia de Lagos, sobre a qual devia alits navegar, porque deste modo ou fazia com que os constitucionaes voltossem ao porto, onde ancorados teriam de dar uma accfo, ou os obrigava antes disso a travar combate, tendo elles a des~ vantagem do vento. Pela tarde do mesmo dia 3 reuniran- se a Napier os vapores, e o brigue Conde de Villa-Flor, que os tinha ido chamar a Lagos, tomando desde entao a esqua- dra constitucional posicfo cousa de milha e meia a barle- vento da do seu inimigo, e assim 0s veio apsubar a noite, estando 0 mar demasiodamente encapelado para tentar uma abordagem, plano de ataque por que o almirante constitu- cional se decidira, posto que indiscreto e temerario pare- cesse, pelo disparatado das forcas inimigas, convencido como estava da necessidade de um desesperado esforco, para sal- var ou acclerar a perda total da causa do Porto, e a sorte da expedic30: « nfo havia meio termo, dizia aquelle almi- erante, ou ganhar tudo, ou perder tudo; uma accao parcial 206 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. «apenas podia prolongar por algumas semanas a causa da «rainha, que s6 podia salvar-se por uma victoria, ao passo «que uma derrota acabava por uma vez com a guerra ci- «vil.» Oxalé este fra o juizo e a resolucio dos generaes de D. Pedro, quando desembarcados nas praias do Mindello, viram pela sua esquerda fugir o brigadeiro José Cardoso, e. pela sua direita o general Santa-Martha, devendo diligenciar neste caso obrigar, e sobre tudo este ultimo, a aceitar uma acgBo decisiva, em vez de se conservarem em apathia 00 Porto. Durante a noite ambas_as esquadras se conservaram a tiro de fuzil uma da outra. No dia 4 o vento continuava aspero, e o mar encapelado nao permittia ainda a execucao do plano de abordagem; mas Napier conhecto bem, du- rante este tempo, que o chefe d’esquadra Aboim nao s6 hesitava, mas nem ao menos mostrava tencdes de entrar brevemente em combate, o que o tornéra a elle mais ou- sado, esperando pela occasido e tempo favoravel para a sua empreza. Veio a manba& do dia 5 de julho, serena e'com todas as apparencias de calmaria proxima, que effectivamente sobreveio pelas 9 horas da manha. Foi entao que tornando- Se 0s Vapores necessarios para rebocarem as frogatas, e ay - collocarem em posicio de ganharem facilmente a victoria sem grande derramamento de sangue, elles se recusaram faze-lo por cobardia. Pelo meio dia, estando as guarnicdes jantando, appareceram signaes de_proxima viracto: os dif- ferentes commandantes vieram entéo a bordo receber as ultimas instruccdes de Napier, que se conservava a barla- vento do seu inimigo, estando este formado em uma linha cerrada, navegando com pouco panno, apparecendo primeiro as duas néos, depois as duas fragatas, tendo as tres corvetas e os dois brigues um pouco para sotavento, mas nos inter- vallos dos navios grandes. As fragatas, Rainha e D. Pedro, foram destinadas por Napier para abordarem a néo Rainha; a D. Maria 2.* teve a seu cargo acommetter a fragata Princeza Real; e a corveta Portuense, e o brigue Conde de Villa-Flér eram contra a fragata Martim de Freitas, dei- VOL. 11. — CAP. IV. 207 xando-se vogar 4 ventura a néo D. Joao 6.°, as tres corve- tas, e 0s dois brigues. Pela uma hora da tarde comegou a calar a viragdo fresca; as guarnigdes estavam a postos, de- terminadas a baterem-se até 4 ultima extremidade. Napier e alguns dos commandantes dos diferentes navios da sua esquadra pozeram-se 6 mesa, conversando com a maior confianga na sua proxima batalha, bem longe de attenderem aos que deixariam de existir dentro- em pouco tempo, ou aos que seriam mortalmente feridos. Pelas duas horas vol- taram todos os commandantes aos seus respectivos navios : déo-se o signal do combate, metter em livha, arrear esca- leres, navegando toda a esquadra em mestras e joanetes, ¢ tremulando-lhe nos topes de todos os mastros as bandeiras constitucionaes azues € brancas, Os realistas navegavam em gaveas, 4 excepcio da Martim de Freitas, que levava largas a3 mestras ¢ joanetes: os seus navios continuavam formando uma especie de columna dobrada, constituida uma das filas della pelas duas néos de linha e as duas fragatas, e a outra pelas tres corvetas e os dois brigues, como occupando os intervallos, que entre si deixavam os primeiros navios. O vento era bom, o mar chao, nao se vendo no ceo uma s6 nuyem. Jé se distinguia a bordo da esquadra realista escor- var as pecas; mas as guarnicdes constitucionaes estavam {ranquillas e resolutas, nao desconhecendo todavia que o exito da empreza dependia todo elle do estado em ficassem depois da primeira banda. Chegaram os contendo+ res a tiro de fuzil, sem que de parte a parte se tivesse feito fogo até entao, conservando-se os realistas em linha cerrada. Rompéo finalmente a banda de uma das fragatas inimigas, instantaneamente seguida por outra de toda a esquadra, 4 excepcto da D. Joao 6.°, que s6 podia fazer mal com os seus guarda-lemes: e quando todos esperavam encontrar a0 vae-vem os mastros da fragata Rainha, nao foi de pequeno - espanto verem-lhe tremular incolume a flamula do tope, ¢ ella navegar altiva sobre as aguas de Nelson, ¢ S. Vicente, depois de dissipado o fumo, occasionado por um fogo, que fizera borbulhar o mar em volta dos navios, e Ihe dera o 208 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. aspecto das vagas de um temporal, que os acoitava: Poucos Ihe foram mortos ou feridos no convez; porém as tres pecas de préa sobre o tombadilho ficaram-the quasi limpas de guarnicao. Respondéo pela sua parte a fraguta Rainha ao fogo do inimigo, seguindo-se-lhe a fragata D. Pedro, e ao passarem estes vasos pela Martim de Freitas, qre perdéra o seu mas- taréo de velaxo, a nio Rainha mettto entdo de 16, arribando nesta occasilo os navios constitucionaes pele sua parte, para The evitarem uma banda das suas baterias. A néo D. Jodo 6.° orcou toda, procurando metter Napier entre os fogos cruzados das duas néos, sendo isto exactamente o que clle desejava, por se achar a mesma néo D. Joao 6.° muito so- taventeada para poder tomar a tempo uma vantajosa posicdo a barlavento. O proprio Napier instantaneamente mettéo o leme de 16: a fragata obedecto, e rogando quasi a pdpa da néo Rainha com o péo da giba, disparou-lhe os cachorros, ¢ mais pecas de prda, carregadas quasi até 4 boca de bala- raza e metralha. Desde entdo corréo a prolongar-se com a mesma néo, debaixo de um fogo activissimo, e estes dois navios ficaram por coriseguinte atracados, cruzando as vergas e as yélas grandes. O chefe de divisto Wilkinson, e 0 ca- pitao Carlos Napier, commandando a gente de abordagem, saltaram de cima das ancoras para,a amurada da no, e le- varam adiante de si aquella parte da guarnicio ao longo dos bailéos de bombordo '. O mesmo almirante, seguindo o im- pulso dos seus subordinados, quasi sem o presentir, achou-se fambem no castello de prda da néo, Saltou entdo mais gente para dentro do navio inimigo, e correndo a bordo delle para ré, ou passaram por meio da sua guarnicao, ou a repelliram pela escotilha grande abaixo. Os invasores assenhorearam-se finalmente da tolda, custando-Ihes esta importante conquista © grave ferimento de Wilkinson, e o do capitao Napier. O proprio almirante constitucional tinha levado sobre a cabeca uma forte pancada, dada com um pé de cabra, a que depois 1 Toda a descripgto desta famosa Latalha foi geralmente tirada da Guerta da Suecessdo em Porlugal pelo almirante Carlon Napier, isto ¢, pelo proprio official que » ganhou. 7 VOL. 1. — CAP. IV. 209 se seguio uma bda cutilada, que the foi descarregada pelo segundo commandante da néo. Desde entdo as cobertas nao foram tao disputadas, e dentro em pouco se seguio a posse tranquilla de toda a néo, cujo commandante, o bravo e va- lente Manocl Antonio Barreiros, succumbio na luta, depois de se ter batido como um tigre. Ainda em confusfio sepa- raram-se os dois mavios; mas a fragata Rainha, tendo met- tido um velaxo novo, por estar 0 outro despedacado, e cui- dando tambem em metter uma véla nova, por se achar a outra inutilisada, vio-se quasi repentinamente junto da néo D. Jodo 6.°, que para evitar combate mettto de 16, e ar- reou bandeira ', ameacada como igualmente estava pela fragata D. Pedro. Seguio-se depois a posse da Martim de Freitas, cujo commandante, Manoel Pedro de Carvatho, se defendéo por tal modo, que 0 mesmo Napier lhe ‘mandow por um seu ajudante d’ordens recommendar tia noile da ba- talha, que no dia immediato se Ihe apresentasse para lhe entregar com a sua espada o commando da nfo Rainha. A corveta Princeza Real rendéo-se, e a fragata do mesmo no- me foi corajosamente tomada pela D. Maria, que the passou pela pdpa, prolongou-se com ella, e orgou toda, dando-the algumas bandas. Assim terminou o famosa accdo naval de 5 de julho, deixando em poder dos constitucionacs duas ndos de linha, duas fragatas, e uma ccrveta, escapando-se duas outras corvelas, que se dirigiram para Lisboa, ¢ os dois brigues, um dos quaes se foi depois unir aos vencedores, e © outro foi demandar a Madeira *. Nesta desigual peleja, o triumpho de Napier foi obra da perturbacao de Barreiros, official que na occasido dos grandes perigos era inteiramente incapaz de achar recursos na sua propria capacidade e¢ imtelligencia, perdendo comple- tamente a cabeca: este defeito, bem conhecido nelle por to- dos 08 officiaes de marinha, que com elle serviram, em tio 4 £ inutil commentar um acto de semethanie fraqueza, ¢ tulo isto pra- ticado por um navio ulmirante ! % Os constitucionacs perderam 90 homens, entre mertos € feridor, ¢ on realistas de 200 a 300. vob. ey M4 210 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. alto gréo o domindra ao vér-se atracado pelo arrojado almi- rante Napier, que ndo tendo comsigo sobre a tolda mais do que as taifas delle e do castello, compostas pela maior parte dos taifeiros pertencentes & guarnigdo, mem ao menos ihe occorréo a idéa de chamar promptamente em seu auxilio, e em defeza da embarcacao, que commandava, os reforcos das baterias do conver, e da coberta, apezar de scr nestas bate- tias onde ge deviam achar, além da maruja das guarnicdes das pegas, os soldados do destacamento da néo, que das mesmas guarni¢des faziam parte. O propfio Napier confessou depois este considcravel erro do seu inimigo, dizendo que toda a sua gente corréra armada sobre as escotilhas, para impedir que viessem em soccorro dos da tolda os reforgos das citades baterias, e por conseguinte que, se os soldados da brigada, em vez de se destinarem 4s guarnicdes das pe- ¢as, como determinava a lei da sua creagdo, fossem empre- gados como tropa de infanteria na defeza da primeira co- herta dos navios de gucrra, jamais poderia conseguir tho assignalada victoria. A tomada da nao Rainha determinou pois a entrega de todos os mais navios, devida em grande parte 4 fraqueza, com que a bordo da néo D. Jodo 6.° se conduzira o commandante da esquadra miguelista. Entre tanto a famosa batalha naval de 5 de julho privou o go- verno de Lisboa dos poderosos auxilios, que até alli lhe of- fereciam as suas embarcagdes de guerra, e chamou a for- tuna para as bandeiras constitucionaes, porque em fim este Tasgo espantoso, e talvez unico, de coragem e pericia mii- tar, no 36 lhes déo o dominio dos mares, assegurando o de terra, mas até fer mais effeito na opinifio publica, do que até alli o Gizera o nome de D. Pedro, despido desta assi- gnalada victoria. Tamanho & o prestigio, que por si tem sempre a espada do vencedor, ou mais propriamente.o pres- tigio da forga, sem a qual impossivel era que em tio crua luta a causa do mesmo D.. Pedro podesse fazer proselitos, em seu favor enthusiasmar os animos! Limitadas pois as forgas realistas unicamente 4s operagdes de terra, a barra do Tejo ficou desde entao patente para qualquer golpe de VOL. 1. — CAP. 1¥. Qi mao, com que Napier a quizesse ameacar, e por conse~ guinte Lisboa ficou exposta aos ataques de um inimigo ou- sado e triumphante. Foi assim que este nobre feito militar rompto todo o equilibrio da balanga entre as forces belli- gerantes, feito tao incomparavelmente glorioso, por ser ga- nho com tal e tamanha desproporgto de forcas, que a pro~ pria verdade lhe tem dado apparencias de ficefo, receiando- ge que justamente duvide a posteridade se 0 successo passou como se escreve. Como quer que seja, certo é que os resul- tados moraes igualaram, se 6 que nao excederam, @s van- tagens maleriaes, que com elle vieram annexes, porque ao passo que os miguelistas se acobardaram, e particularmente o visconde de Mollclos, tambem os constituciunaes propor- cionalmente se affoitaram a maiores e mais decididas em- prezas em terra, e particularmente as forcas do duque da Terceira. Este general, depois de ter atravassado o Algarve, nas vistas de penetrar no Alemtejo, havia retrogradado para Loulé, sem duvida pelos receios das forcas de MoHtelos, que corriam, ou no mesmo Alemtejo o esperavam. Foi a par- ticipagio da brilhante victoria de Napier quem felizmente veio destruir todo o méo effeito moral de semelbante reti- rada, que alias se constituiria em obra de mais funeste agouro para as tropas constitucionaes, chamando com este passo, como necessariamente devia chamar, sobre o Algarve es tropas do mesmo Mollelos, a nao thes embargar esta marcha a prestigiosa acco naval do Cabo de S. Viceate. Muito péde o exemplo de um grande feito, e grande impe~ tio tem elle no animo daquelles, que ardentemente buscam deixar de si um nome glorioso! Como quer que seja, certo & que desde este momento as forcas da expedicdo do duque da Terceira, levadas de uma inspiraco feliz, nfo s6 volta- ram outra vez sobre seus passos, dirigindo-se novamente para o Alemtejo, mas até pozcram vistas sobre Lisboa, sem lhes embaracar com o longo e difficil trajecto, que ticham a percorrer desde as praias meridionaes do Algarve até & capital, e vér-se-ha dentro em pouco os portentosos effeitos de tao nobre e ousada resolugao. “ 212 INISTCRIA DO CERCO bO PoRTO. A fortuna quiz tornar duplicadamente historico o me- moravel dia 5 de julho nos fastos da nossa guerra civil, pelo cumulo de feitos e proezas militares, que nelle se pratica- ram: era assim que lodas as cousas se iam por este tempo succedendo com a mais incrivel prosperidade. A noticia do favoravel desembarque da expedigao nu Algarve chegara ao Porto uo dia 4, e durante a noite bandas de musica corre- ram a.annuncia-la por toda a cidade, que espontaneamenta se illuminou, esperancada de que o bom sucesso desta em- preza viria coroar do mais feliz resultado a beroica perti- nacia dos bravos defensores do Porto. Para um exercito tao pequeno, como o de 1). Pedro, qualquer desfalque de tropa forcosamente Ihe bavia de ser sensivel, e rouito mais uma expedigdo, como a que sahira para o Sul, que apenas Ihe deixou ficar promptos no campo uns 9 a 10:000 homens de todas as armas, para guarnecer as linhas da cidade, as da Foz, e 0 convento da Serra. Os realistas tinham feito correr entre os seus soldados, e por toda a parte dos seus acampamentos, que a expedicao constitucional seguira via- gem para os Acdres, levando comsigo a maior e melhor parte da sua tropa de linha, ficando por conseguinte o Porto e a Foz quasi desguarnecidos, e apenas defendidos pelos es- trangeiros sem disciplina, e alguns voluntarios, e paisanos armados, que mal se poderiam bater com tropas regula- res. Com estas noticias se reunia igualmente a de que o marechal Bourmont, aceitando cffectivamente 0 commando em chefe do exercito realista, se achava j4 a caminho para Portugal, trazendo comsigo uma luzida e‘numerosa comitiva de officiaes francezes de distinccdo, para com elle virem as- sociar tambem os seus nomes aos partidistas da velha mo- narchia portugueza. Os nomes valem 4s vezes tanto como as cousas, porque a espada de Bourmont, reputada no seu tempo como uma das melhores da Franca, foi tomada sem mais averiguacdo como synonimo de victoria para o exercito, que vinha commandar, 80 passo que os constitucionaes se enche- ram de cuidados, tendo por seu inimigo semelhante general. A desconfianca chegou mesmo a apossar-se de muitos dos VOL, 1. — CAP. IV. ~ 213 — moradores do Porto, e avisos se passaram alé aos negocian- tes estrangeiros, que alli ficaram, para que sahissem della, e acautelassem com a sua vide a sua fortuna, pela probabi- lidade da victoria de tao distincto general: entretanto pouco imperio tiveram estes primeiros avisos, e todos continuaram tao firmes, esperando pela sorte da lula, como os mais com- promettidos cmigradcs. O momento era com effeito dos mais critics e assustadores por que se tinha passado em todo o tempo do cérco, e neste estado de Muctuacdo dos ani~ mos, todos os miguelistas se mostraram confiados no bom exito da sua causa, e assim se prepararam para um novo & decisivo ataque, que reputavam o ultimo, pela victoria, que proximamente agouravam, cuidando vencer desta vez um inimigo sempre apoucado, em relac§o ao scu exercito, € agora tao consideravelmente diminuido. ‘A tropa do Norte, que os realistas tinhom feito passar para o Sul, em quanto cuidaram que Villa Nova seria o theatro de um novo ataque, feito pela frente e retaguarda, voltou novamente ao seu antigo acampamento, logo que o tempo lhes trouxe 0 desengano de que a expedicao consti- tucional vogava para ottra parte: esla prompta passagem de tropas de tima para outra margem do Douro tinha dado logar & crenca de que os sitiadores haviam estabelecido uma ponte perto do convento de Oliveira, por meio da qual po- diam de um pare outro momento acudir com quaesquer re- forcos ao ponto, que julgessem necessario. Taes eram as circumstencias, em que de parte a parte se achavam os contendores, quando veio o dia 5 de jutho; e ou fosse que um mero acaso désse logar a travar-se um reciproco tiro= teio entre os postos avancados de Lordello, ou fosse tendo formada da parte do conde de S, Lourenco para reconhecer © estado das forcas sitiadas, certo é que pouco tinha passado do meio dia quando os realistas, sahindo dos seus entrin- cheiramentos em duas columnas, e avancando repentinamente entre a quinta do Wanzeller ¢ a casa do Placido, ameaca~ ram com o sua marcha cortar as communicacdes do Porto com a For. Uma das columnas realistas epodcrou-se da casa a4 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. da fabrica do Antunes, a outra atacou a porcao da linha, & esquerda da mesma fabrica; mas o fogo de uma peca de campanha, collocada no angulo esquerdo da quinta do Wan- zeller, e a reserva, que se mandou sahir pelo Carvalhido em direitura 4 casa da Prelada, que occupou, bem como a Aldeia dos Francos, fez retirar os aggressores, sem espe- rancas de renovarem o ataque em frente de Lordello. O centro ea direita da linha constitucional foram ainda amea- gados pelos realistas, que a final se retiraram, sem ter feito mais do que um mero reconhecimento para examinarcm as forcas, que tinham ficado no Porto. Apezar disto, os consti- tucionaes tiveram ainda 180 homens féra de combate, in- clusos 15 officiaes, entre os quaes se comprehendéo o bri- gadeiro Jo&io Maria Amado Duvergier, que das suas feridas morréo depois, com geral sentimento de todo o exercito, pela sua bravura e intelligencia, qualidades que o constitui- ram uma das melhores acquisi¢des, que nos paizes estran- Geiros se fizera para o Exercito Libertador. Nada de notavel tinha de parte a parte occorrido em yolta do Porto até ao dia 9 de julho, quando uma procla~ magto de D. Pedro veio annunciar ao seu exercito a bri- Vhante victoria naval do cabo de S. Vicente. « Portuguezes, «thes dizia elle, os vossos trabalhos est8o acabados. O fru- «cto de tantas fadigas e sacrificios esti diante dos olbos. «Triudiphou a nossa perseverance, e & grande causa da res- «tauragdo portugneza. » Apos esta noticia veio o prazer, que assim se succedia aos agros e antigos dissabores do cérco, extasiar o regente, os seus ministros, e os bravos defensores do Porto, acrescentando eu, como testemunha de vista, que elle trasbordou de tal férma as coracdes de todos, que s6 este facto mostrou bem os cuidados que antes-delle os oppri- mia. Napier foi justamente reputado como o salvador da causa constitucional portugueza, e 0 anniversario do desem- barque do Mindello tornou-se duplicadamente fausto com a chegada de tao aprazivel e extraordinaria noticia. Pela tar- de fez D. Pedro sahir um parlamentario para o campo ini- migo, portador de uma carta para o conde de S. Lourengo, VOL. I. CAP. 1V. 215 ha qual os membros do ministerio lhe communicavam o bom resultado da expedigao do Algarve, e por fim a tomada da esquadra. A pacificagdo volunteria, a que com esta carla se procuraya chamar o partido realista, foi completamente rer Jeitada pelo general inimigo, que do seu campo firera sahir © parlamentario constitucional, despedindo-o sem Sho receber a carta, e mandando-lhe dar em resposta, «que elle nada tinha com o senhor D. Pedro, nem com os seus ministras. » © partido realista, suppondo que se verificasse a tomada da sua esquadra, de que provavelmente ainda nada sabia ao certo, linha todavia ainda muitos recursos para continuo a luta por terra; era sua ainda a capital do reino, todo elle se Ihe conservava em obediencia passiva, 4 excepcio do Porto, e a seguranca da tropa constilucional no Algarve era ephemera, ou pelo menos bsstante problematica, em quanto por si nao tivesse uma assignalada victoria. Entretanto o méo regultado da missdo do parlamentario nada diminuio no publico o regosijo, que com tanta razio motivéra a vi- ctoria naval do cabo de S. Vicente. Carlos de Ponza foi em virtude della promovido a almirante, e honrado com o titu- lo do visconde do cabo de S. Vicente: a fragata Rainha de Portugal foi mandada conservar armada, como monumento € brazao de tao assignalada victoria, devendo-se-lhe collocar na camura uma lamina de bronze, e imbutir-se-lhe outra no Seu mastro grande, para em cada uma dellas se lhe gra~ var inscriplo o respectivo decreto, e depois delle as deno- minacdes dos differentes navios, a forca da esquadra aprer sada e apresadora, e finalmente o nome do almirante, dos officiaes. e dos individuos distinctos em tao memoravel feito d’armas*, Em quanto no Porto se dava assim tamanha im- 4 Cara nos cnalou a paga deste servign pelas avulladas indemnisagdes, que pelos navios apresados tiveram de se dar aos seus aventurciros apresa- dorea, a quem necessario foi lambem satisfazer todas ns suas avulladas re- clamagdes, o que forgosamente Ihea diminuio muito o merito de tio illustre feito. Esta é talvez uma das ciusas por que o decreto acima citado nunca Pasion do papel em que se escrevéo, parecendo assim esquecerem-se 06 re- snltados de uma yicloria, scm a qual era impossivel o trivmpho da bandeira constitucional, em vista das insuperaveis difficuldades que teve sempre con- tra ai. 216 IISTORIA DO CERCO DO PORTO. portancia ao desbarate da forca naval inimiga, os miguelis- tas pareceram {ao indifferentes a elle, que o mesmo D. Pe- dro chegou a escrever a Napier, insinuando-ihe que se mos- trasse nas aguas do Porto para convencer o exereito de seu irmao d'uma derrota, em que alids se mostrava 180 incre- dulo, pedido a que o almirante ndo péde annuir por se achar envolvido em operacgdes de maior consequencia, e ter de colaborar simultaneamente com o duque da Terceira. - O prazer que os constitucionaes desfructavam com a to= mada da esquadro miguelista foi consideravelmente alenua- do com a chegada do marechal Bourmont a Villa do Conde, no dia 10 de julho, acompanhado do general Clouet, e de outros mais officiaes francezes da Vandée, circumstancia que claramente fazia vér aos do Porto, que ainda tinham contra si am exercito nao somente superior em forca, mas agora mesmo auxiliado pelos distinctos talentos, notoria reputagio, e grande experiencia militar de um bravo e distincto mu- rechal de Franca, que D. Miguel elevara ao importante lo~ gar de marechal general do seu exercito. O brilhante nome do conquistador de Argel, ¢ o luzido numero dos officiaes ve~ teranos que o acompanhava, por tal modo enthusiasméra 03 miguelistas, que todos acreditaram provavel o triumpho da reatera: a pericia deste general, e a sua grande pratica da guerra, coadjuvadas por tao boa gente, com razto fazia suppér que elle acabaria por uma vez 0 méo systema dos ataques das tropas miguelistas, cujas testas de columna, em ver de se conservarem firmes, e occuparem os espagos vazios pelos mortos e feridos, rompiam sempre em escaramucas de nenhum proveito, desunindo-se, e apoiando-se nas eminen- cias que o terreno lhes offerecia, de que resultava exporem- se assim a um fogo mais variado, e provavelmente mais mortifero pela sua duracao, do que aquelle que soffriam se viessem unidos, e“atacassem 4 baioneta afoutos e decididos. Entretanto o marechal nfo sé vinha tarde para desarreigar, com a promptidao que lhe convinha, 0s erros e os vicios, que os méos habitos tinham j4 introduzido no exercito do Seu commando, mas até chegava com fracos auspicios para VOL, 1. — CAP. IV, 217 poder (riumphar. A perda da esquadra, ainda que nao fosse sentida e pensada pelo exercito miguelista, era comtudo um golpe mortal para a sua causa, e necessariomente havia de dar logar a serias reflexdes, a quem seriamente olhasse pa- ra o perigo a que desde entao ficava exposta Lisboa, tanto pelo rigoroso bloqueio de que estava ameacada, como pela probabilidade de poder ser forcada a barra do Tejo, e até mesmo bombeada a cidade. Os cuidados da expedi¢ao do Algarve, e 0 pouco credito militar de que gosava Mollelos, augmentando o perigo que corria u capital, infundia certo presagio de ruim agouro. Bourmont déo entretanto a Clouet * 0 commando cm chefe do exercito realista em operacdes cm volta do Porto, por vér neste official muita actividade, reu- nida a grande forca de conviccdes politicas, a0 passo que o conde de S. Lourenco foi outra vez collocado em ministro da guerra. Clouet, obstinado em superar obstaculos, e prom- pto sempre na execuc&o dos planos que concebia, era com effeito um poderoso auxiliar para Bourmont, que pelo con- trario era moroso nesta ultima parte, pondo toda a circums- peccdo e prudencia em amadurecer os seus. Um luzido cs- tado maior, composto d’officiaes portuguezes, c de muitos dos recem-chegados, cercou logo 0 novo commandante em chefe do exercito realista, que julgando talvez popularisar- se, deixou crescer as barbas, seguindo o exemplo do que via no proprio infante D. Miguel. Foi ent&o que um novo e inesperado perdao, ou decreto de amnistia para os constitu- cionaes, marcou a chegada de Bourmont ao campo inimi- g0: por este acto, que no Porto se publicou logo na Chro- nica Constitucional, promettia D. Miguel estender a sua real clemencia nao 96 48 pracas de pret, mas até aos officises do exercito de seu irmao, desde a patente de alferes até 4 de coronel inclusivamente. Tardio perdao cra este, e dictado nado por humanidade e desejo de congracar partidos, mas pelo mal parado da causa miguclista: a inconstancia da fortuna principiava a ser-Ihe adversa, e cm tal estado mal podiam os constitucionses acreditar agara num governo, que 4 Bm 16 de jutho de 1833. 218 IMSTORIA DO CERCO DO PORTO. nunca Ihes merecéra {¢, ainda mesmo no estado em que os seus negocios mais arriscados se viram. E este facto uma clara prova de que as medidas de moderagio, quando vem d’um governo cruel ¢ despotico, sfo tidas d'ordioario como concessdes de fraqueza, que nos seus inimigos dio mais exasperagao e audacia. Tanto é verdade que para se ser moderado com fructo, até para isto mesmo se precisa ter forca ! Entretanto os efeitos de tal amnistia nao podiam deixar de ser nullos com semelhantes auspicios. Quando a sorte comeca a favorecer um partido, quando um grande feito d’armas prognostica o seu completo triumpho, néo é& esta por certo a melhor occasido de o chamar para o par~ tide opposto, por ser entio que nao 56 os indifferentes sahom da sua estudada apathia para lisongearem os vencedores, mas até alguns dos alheios partidistas entram a vaciller, desertando para as bandeiras oppostas; desde este momento as paixdes declinam e acalmam; muitos individuos comecam ent&o a mostrar-se no s6 trataveis, mas até officiosos para quem triumpha, ¢ levados do desejo de lhes merecerem consideracao, fazem-lhes até servigos tanto mais importantes, quanto maior era o-compromettimento em que se julgavam para com elles. D’aqui vem a convergencia de todos os es- piritos, n&o para crear obslaculos aos mesmos vencedores, mas para lhes aplanar as difficuldades, marchando tudo de concurso para lhes offerecer rendidos as mais brilhantes palmas da victoria: tal é a condicg&o da mudanga que 0 te- mor e os interesses fazem nas almas fracas e vacillantes, e tal era o estado em que os espiritos se mostravam ja por toda a parte do reino para com os defensorcs do Porto. « QO reconhecimento dos miguelistas, em 8 de julho, trour xera para o conde de Saldanha a sua promocao a tenente general, ao passo que o bom successo da expedicae do Al- garve despertou no governo a idéa de collocar perto de Lisboa um {6co de sublevacio, que nao s6 podesse servir de apoio aos constitucionaes da capital, mas até produzir uma diversao vantajosa nas forcas sitiantes. Para este fim sahio do Porto para as Berlengas uma forca de cem a duzentos VOL. 1. — CAP, IV. 219 francezes incorrigiveis, dando-se ao commandante delles, o coronel de artilheria, Joaquim Pereira Marinho, a faculdade palo sé de os fazer instruir, mas. até de os armar, & propor- ¢&0 que a sua conducta lhe fosse merecendo confianga. Des- embarcada esta gente na maior das Berlengas em 22 de julho, o mesmo coronel Marinho cuidou logo em se pér a coberto de qualquer golpe de mao, e comegou a entreter correspondencias com a costa, e particularmente com a praca de Peniche, que mais tarde veio definitivamente a occupar sem 0 emprego de um s6 tiro. Corriam entretanto algumas vozes de terror entre os defensores do Porto, cujas linhas se davam como incapazes de resistir é3 invenciveis armas do conquistador d’Argel ; femilias bouve, que foram procurar soccorro a bordo de al- guns navios estrangeiros surtos no Douro, e alé para os subditos inglezes se chegou a designar como ponto de reu- nido @ sua respectiva igreja, e as suas immediagdes, para se solvarem da confusdo de um assalto da parte de Bourmont, cujos ajudantes d’ordens e officiaes d’estado maior.se tinham visto até andar investigando com o maior escrupulo as for- tificacdes do Porto. Todavia o premeditado ataque da parte do inimigo corria com o maior segredo, e até o callado das suas baterias o tinham feito esquecer por tal modo, que.os mesmas familias, que por cautela haviam ido para bordo de alguns navios, yollaram em breve para terra, ndo se lem- brando que a traz das calmarias vem 4s vezes as mais fu- tiosas tormentas. Bourmont tinha resolvido separar o Porto. das suas communicacdes com o mar, e firme neste seu plano, manifestara-o até ao seu exercito; mas esse exercito, in- disciplinado, e desmoralisado por tantas derrotas anteriores, ao era jé para tao ardua empreza. Nos dias 23 e 24 de julho corréo entre os constitucionaes, que forcas de conside- racdo passavam da margem do Sul para a do Norte do Douro: na noite de 2% sentio-se até rodar no campo ini- migo muita artilheria, e a marcha de cavalleria para em frente do Carvalhido e Lordello manifestou com toda a pro- babilidade um ataque por aquelle lado. O mesmo Saldanha, 220 WISTORIA DO CERCO DO PORTO. e todo o quartel general imperial, prevenidos por este acon- tecimento, correram tambem naquella noite toda a extensio da linha, indo pela madrugada postar-se na bateria da Glo- ria, para melhor observarem os movimentos e as disposicdes do projectado ataque. : Amanhecia em 25 de julho o dia de S. Thiago, e Bour- mont, querendo provavelmente solemnisar o unniversario das famosas Ordenancas, que em 1830 derrubaram do throno dos Capetos o proscripto Carlos X, resolvéo preferir este dia a qualquer outro para um serio ataque 4s linhas do Porto. O reducto de Serralves, as baterias do Verdinho e da Fu- Tada, e outros mais pontos fortificados, romperam com ef- - feito-na manha daquelle dia um activissimo fogo de artilhe- ria contra o ponto do ataque: a chuva de balas, de bombas e granadas, que cahia sobre todos os caminhos, que da ci- dade conduzem para 0 sitio de Lordello e monte do Poste- leiro, evidentemente mostrou que aquelle era o ponto ver- dadeiramente atacado. Anniquiladas como se soppunham as _ ‘ fortificagdes daquelles pontos, Bourmont fez sohir das 6 para as 7 horas da manha, dos seus acampamentos entre a Ariosa e Mattozinbos, umas oito pequenas columnas, fuzendo ao todo de 11 para 12:000 homens. Uma pequena forca marchou sobre o logar dos Francos e casa da Prelada; outra de maior vulto, trazendo em cada um dos flancos da sua co- lumna do centro tres pecas de campanha, se dirigio sobre © centro e direita da quinta do Wanzeller, tendo-se previa- mente emboscado nos p.nhaes das suas proximidades dois esquadrdes de cavallaria; uma outra forca com um esqua- drao de cavallaria veio sobre Lordello, apresentando-se fi- nalmente sobre a esquerda e direita do Pasteleiro duas for- tes columnas com mais tres e:quadrées de cavallaria, e dez pecas de artilheria volante, competentemente guornecidas. Deste modo vieram os realistas a um ataque, empenhado desde o Carvalhido até 4 esquerda do Pasteleiro, e dircita do reducto do Pinhal, ji proximo da Foz. Do logar das Francos nado péde o inimigo assenhorear-se. Sobre a quinta do Wanzeller veio elle com tanto maior arrojo a passo ace~ VOL. 11. — CaP. Iv. 221 lerado, quanto mais the convinba occupar oquelle ponto. Tres columnas se aproximaram dali a tiro de fuzil, apoia- das cm duas baterias de campanbo, assestada uma em frente da dita quinta, e outra no flanco direito della. Tao perse- guidus se viram os constitucionacs, que tivcram de sahir dos seus entrinchciramentos, e a peito descoberlo it carregar 4 bayoneta um inimigo ousado, que teve de recuar, apezar da superioridade do numero. Ordenando-se os fugidos em volta da sua columna do centro, que j4 para esse fim hes ficdra de reserva, og miguelistas tornaram o scgundo assalto, a que os constitucionaes the foram pela sua parte sohir ao encontro, diligenciando por um movimento atrevido tomar- lies uma das baterias de campauba, em que apoiavam os seus ataques. Foi entdo que deixaram ox pinhacs os dois es- quadrées de cavallaria, que nelles se tinham emboscado: bella epparencia de uma carga tao mal empregada contra trincheiras e mais obras de fatiGicagao! A brigada estran- geira, formada pelo primeiro e segundo regimento de infan- ~ teria ligeira da rainha, que se tinha encarregado daquella sortida, de parte dos constitucionaes, debandou, e fugio com bastante pressa para dentro das suas respectivas fortificacdes : a cavallaria veio entdo por um terreno descoberto, que lhe favorecia a marcha, até junto das linhas, onde foi posta em confusa retirada, depois de repetir por tres vezcs o seu ata- que, sendo o ultimo o mais obstinado de todos. Contra as posigdes de Lordello, e reducto do Pastzleiro, os miguelistas nado foram menos pertinazes: no primeiro acommettimento © terreno ficou logo em poder dos aggressores; mas a posse fora-lhes disputada com todo o vigor, e até a cclebre flexa dos mortos foi por tres vezes tomada e retomada pelo ou- sado regimento de infanteria de Caseacs, protegido pelos tres esquadrdes de cavallaria, que tendo vindo ao ataque en- {re as columnas, e um pouco na retaguarda dellas, desen- voleram bastante atrevimento, conduzidos pelo general La- rochejaquelin, que carregando com denodada bravura, nao s6 leve dois cavallos mortos debaixo de si, mas até foi fe- rido por uma bala de fuzil, que Ihe atravessou um pulso. 222 WISTORIA BO CERCO DO PORTO. Entretanto © inimigo, depois de ser vantajosamente repel- lido em todos os pontos do seu ataque, tinha j4 soffrido consideraveis perdas: 0 coronel Proenca, official de muita reputac3o no exercito miguelista, tinha sido morto logo no principio da acco; 0 tenente coronel do regimento de Cas- caes, mr. Ferriet, recebera na testa ama larga ferida, feita por um estilhaco de obuz; um outro official francez, mr. Tannegui de Chatel, marchando 4 frente de um regimento de infanteria, cahira gravemente com quatro feridas. A to- dos estes desastres parece ter sobrevindo a recusa de ir o general Joao Galvéo Mexia Orinhi substituir no commando da cayallaria o general Larochejaquelin. Todo o estado maior do proprio infante D. Miguel, inclusivamente 0 marquez de Bellas, e o duque de Lafdes, fora posto és ordens de Bour- mont, que infructuosamente dispéz neste dia de um exercito de 35:000 homens, chegando até a ser envolvido n'uma nu- vem de terra, levantada por uma bomba, que rebentou perto delle. Das posigdes constitucionaes de Lordello, reducto do Pasteleiro, e obras fortificadas da quinta do Wanzeller, fo- ram por conseguinte rechacados os miguelistas, cujo fogo, comecando a afrouxar pelas dez horas da manhi, cessou pelo meio dia. Pela uma hora da tarde foi ainda ameacada @ porcdo da direita da linha constitucional, comprehendida entre a quinta da China e o Bomfim: alguns dos piquetes constitucionaes tiveram de retirar dos postos avangados, que Occupavam, e o proprio Saldanha, levado dos desejos de fa- zer recuperar os pontos abandonados, péz-se frente de uns vinte lanceiros, e com elles, e todos os seus officiaes d’es- tado maior, carregou por tal forma o inimigo, que este se vio obrigado a ir buscar a proteccio das suas columnas, col- . locando-se outra vez 08 piquetes nos pontos, que tinham abandonado. Foi nesta carga de Saldanha que foram feridos alguns officiaes do seu estado maior, acabando alli de uma ferida mortal, que recebera, o major D. Fernando Xavier . de Almeida, com muita magoa dos seus camaradas, pelas excellentes qualidades, de que era dotado. Peles duas horas da tarde toda a forca inimiga se tinha retirado, desistindo VOL. 11, — CAP. lv. 223 de uma luts, em que os constitucionaes tiveram de lamen- tar uma perda de bastante monta para as suas apoucadas circumstancias ‘. Assim acabou a accdo de 25 de julho, em que os inimigos acommetteram o Porto com todo o herois- mo.da desesperac3o: nenhum ataque fdra durante este anno {80 empenhado e terrivel como este; mas a pertinacia da defeza exigio o emprego de todos os recursos da sciencia e da coragem da parte dos aggredidos, que nos {éssos das suas triocheiras sepullaram finalmeate a gloria de Bourmont. Em quanto tao brilhante victoria se havia conseguido no Porto,-outras maiores ainda se tinham tambem alcan- ¢ado nas provincias do Sul, fazendo pender desde ent&o com decidida vantagem a balanca politica para o lado de D. Pedro, e mudar o principal theatro da guerra do Porto para os arredores de Lisboa; 'tal era o resultado da obsti- nada vontade, com que o mesmo D. Pedro conseguira cha- mar a si a fortuna, por isso que 0 grito do povo, pro- punciado em Lisboa, comegava jé a decretar-lbhe a victoria. Napier, conteguida que foi a acc&o notavel de 5 de julho, déo-se logo a toda a pressa em devidamente guarnecer os navios apresados, e em segurar do melhor modo possivel as suas respectivas guarnicdes: feito isto, navegou para Lagos, onde o duque de Palmella, e Mendizabal o foram saudar, como a um novo Nelson. Nao sendo possivel con~ servar prisioneires todas as pracas dos navios apresados, offerecéo-se-lhes a sua entrada no servico da rainba, pro- posta que todas ellas aceitaram, e alé muitos dos officiaes prestaram por esta occasiéio obediencia ao governo legitimo, e como taes se lhes confiou o commando de alguns navios da esquadra: desde entdo os constitucionaes e realistas ri- valisaram em actividade e zelo uns com os outros em repa- rar as avarias da passada batalha, pondo as differentes em- barcacdes promptas para navegarem breve. Por este tempo 1 Foi esta perda de 67 mortos, 244 foridos, e 11 prisi travindos, ou 322 homens ao todo, dos quaes 39 eram uflici do Porto avalia a perda do inimigo em 800 mortus, 70 caval Tidos, numero em que provavelmente ha bastante exageragio. 224 "—misroRIA DO cERCO nO PoRTO. © coronel das milicias de Beja, Domingos de Mello Breyner, tendo reunido a si alguns volunterios nacionaes de Villa Real de Santo Antonio, ¢ ajudado tambem por uns 50 atiradores francezes, que de Faro lhe mandéra o duque de Palmella, nao sé se apoderéra da villa de Alcoutim, mas d’alli seguio a Mertola, onde teve a noticia do levantamento de Serpa, ¢ da villa de Moura, dispondo-se por conseguinte a marchar sobre Beja, que ancivsamente esperava pelo apparecimento das tropas da rainha: esta cidade cahio effectivamente em poder de uns guerrilheiros constitucionaes no dia 9 de julho, tendo-Ihes custado a perda de 12 homens mortos, e 5 fe- ridos. Pela sua parte o duque da Terceira, tendo entrado em Lou!é no dia 4 daquelle mez, alli se conservava apathico, como ja se disse, até que no dia 7 o foi despertar a noticio da completa derrota e captura da esquadra miguelista. Em Lagos foi elle no dia 8 conferenciar com Napier, de quem recebéo um reforco de 200 homens, entre soldados da an- tiga brigada e marinhagem, que voluntariamente se alista- ram na sua divisio. Postos entdo de parte todos 0s teccios e perigos das operacdes de terra, o mesmo duque da Ter- ceira ousado sc cntregou entdo aos mais arrojados ¢ atrevidos planos da guerra, e como tal se resolvéo penetrar quanto antes no Alemtejo pela estrada de S. Marcos, e Santa Clara, fazendo para esse fim reunir em S. Bartholomeu de Messines todos os corpos da sua divis&o, 4 excepgio da forca, que elle destinava 4 occupacdo do Algarve, e bem assim todos os meios de guerra e municdes de béca, indispensaveis para transpér a serra de Monchique, e operar na provincia, a que se destinava. Combinadas assim as operacdcs de terro, Ne- pier entendéo pela sua parte fazer bloquear quanto antes a barra de Lishon, e com essas vistas sahio enlao de Lagos para a for do Tejo no dia 13 de julho, icando 0 seu pavi- Ihio a berdo da néo D. Jodo 6.°, trazendo, além desta, a néo Rainha, as fragatas D. Pedro e Prinecza Real, as cor- vetas Portuense e Princeza Real. c 0 brigue Conde de Villa Flor, sendo a maior parte destes navios guarnecidos com a mesma gente, que oilo dias antes se havia combatido, ¢ YOL. 1. — CAP. IV. 225 obrigado a render & descripgao. A confianca, que assim so depositou nos prisioneiros, ainda que arriscada, por poderem “ tentar alguma sublevacdo, ou apresenter-se ao governo de Lisboa, era filha da necessidade : deixa-los a traz era im~ possivel, pelo damno, que podiam causar & expedicio, 6 sendo da maior urgencia apparecer quanto antes em frente de Lisboa, forgoso- foi acreditar na sua fidelidade, e suppor com béa razdo que no atraicosriam oma bandeira, a favor da qual comecava a declarar-se tao manifestamente a fortuna. No mesmo dia 13 deixou o duque da Terceira S. Bar- tholomeu de Messines, chegando a Garvao no dia 15, onde fe demorou por todo o dia 16 para reunir a si a artilherin de. campanha, que vinha um dia de marcha 4 retaguarda. Para maior fortuna dos constitucionaes, o visconde de Mol- Telos j@ por este tempo lhes tinha desembaracado a estrada sobre Lisboa, movimento o mais indiscreto, que podia prae ticar, por ser do seu rigoroso dever vigiar de perlo o seu inimigo, e interpdr-se sempre entre elle e a capital do reino, prescindindo da questdo secundaria da sublevacao parcial de uma ou outra terra, cousa de muito pequena importancia, em relag&o 4 seguranga de Lisboa. Entretanto Mollelos nada sa- bia do que se passava ao Norte do Tejo, e ignorando até os soccorros, que se lhes mandavam, as operacdes do seu exer= cito em volta do Porto, e por conseguinte a chegada de Bourmont, e dos mais officiaes francezes, para tomar o commando das tropas realistas, entendéo que abandonado inteiramente a si, como se suppunha, s6 lhe cumpria segu- rar Beja, para onde marchou com effeito, nao sd por baver alli entrado uma guerrilha constitucional, mas por ter in- terceptado nas serras do Algarve uma correspondencia do Porto para o duque da Terceira, na qual se eocontrou uma carta de Bernardo de Sa Nogueira, recommendando-lhe a occupagdo de Beja, tanto pelo bom espirito dos seus habi- tantes, como pela vantagem estrategica, que de tal occupa- ¢do resultava para as suas ulteriores operacdes militares 00 Alemtejo, e estabelecimento de um poderoso féco de suble- vayao para os habitantes da provincia, e emigrados, que se vou. 11. 226 BISTORIA DO CERCO DO PORTO. conservavam pela raia da Hespanba..Ignorando a par disto #3 operacaes do duque da Terceira, 0 mesmo Mollelos, que- rendo-se-ihe anticipar 4 sua supposta entrada em Beja, desta mesma cidade se aporsou em 19 de julho, no meio das atro- cidades, que podia commetter uma divisto insubordinada, ¢ composta de muitos soldados avulsos de milicias, e realistas. Beja foi desde entao a Capua do general miguelista, que alli se entregou a uma curta, mas bem fatal inaccBo para celle até quasi ao fim do mez, ignorando sempre tanto os mo- vimentos do seu adversario, como as providencias e ordens do seu proprio governo. Por este tempo jé a guerrilha que se levantéra em Punhete, e viera a Thomar, tinha sido dispersada, porque ameacada por alguma forca de Abrantes, e pela divisio do brigadeiro Taborda, que de Coimbra se dirigira a Ourem, vio-se obrigada a pasar o Tejo, e chegou até Portalegre, onde os povos e as guerrilhas realistas, sabedores das forcas sahidas de Lisboa fs ordens de Raymundo José Pinheiro, cahiram por tal modo sobre os guerrilheiros constitucionaes, que muitos delles foram logo presos e fuzilados, escapando~ se poucos pela estrada de Marvao, até irem entrar em Hes- panha por Velenca de Alcantara, onde promptamente foram desarmados. Era entao que a indieciplina da tropa de Mol- lelos, continuando cada vez a mais, dera logar a uma séria commogao militar em Beja, que tinha originariamente por fim depér o seu mesmo general, em quem pelos seus actos suppunhem traic¢ao e cobardia; mas apparecendo difficulda- des sobre a escolha de quem o havia de substituir, viraram- se 08 amotinados contra os constitucionaes, que mataram em numero de umas vinte pessoas, além de saquearem tambem a cidade. Mais adiante iria talvez este motim, e mais fu- nesto se tornaria tambem, se as forcas de Raymundo José Pinheiro, e de Taborda, Ihes n&o viessem opportunamente por cébro. Mollelos tinha j4 soffrido uma consideravel deser~ ¢8o na sua primitiva divisio; mas com estes soccorros a sua forca fazia um total de 4 para 5:000 homens, inclusos 400 cavallos e dez bocas de fogo, ficando assim nao s6 muito VOL. 11, —CAP. IV. 227 superior ao duque da Terceira, mos até em estado de o perseguir por toda a parte, e facilmente derrota-lo no pri- meiro encontro, se o nao tivesse j4 deixado adiantar dois dias de marcha sobre Lisboa, desviando-se da estrada da capital para se recolher a Beja, com que de mais a mais se impossibilitou de poder unir-se 4s forcas, que o duque de Cadaval tinha de novo mandado para o Sul do Tejo. Foi no campo de Garvao que o duque da Terceira teve pela sua parte confirmada a noticia dos desastrosos aconte- cimentos de Beja; mas em troca disso vio-se com uma es- trada limpa de inimigos para se poder dirigir a Lisboa, precedida a sua marcha das acclamacdes dos povos a favor do governo legitimo*, @ por conseguinte em circumstancias de poder sem grande risco correr parallelamente ao mar alé 4s portas da capital, apoiado para esse fim na esquadra € no immenso prestigio e fermentac&o, que por toda a parte espalhéra a memoravel batalha naval de & de julho. Entre- tanto-o duque, duvidando das circumstancias felizes, que a fortuna the punha diante, para afoutamente marchar sobre a capital, vacillou no meio da brilhante perspectiva de po- der arvorar triumphante a bandeira bicolor nas fortalezas das margens do Tejo, e com estas vistas, ou iria em busca da divisio de Mollelos, para cum ella se bater, ou, como alguem tem affirmado, retrogradaria de novo, para se ir for- tificar em qualquer das terras da beira-mar do Algarve, es- perando pela completa manifestagdo dos povos a favor da causa. da rainha, se presentimentos de amigos, que forma- vam o seu quartel general, o nfo levassem a convocar em Messejana, em {7 de julho, um conselho militar *, em vir- tude do qual se decidio marchar immediatamente para Lis- boa, para nao deixar resfriar a effervescencia e enthusiasmo, 4 Tioha j4 sido acelamato em Villa Nova de Mil Fontes, Siver, 8. Thiago de Cocem, ¢ Alcacer do Sul, com muilo boas esperangas de poder succeder 0 mesmo em Setubal. 2% O tenente coronct José Jorge Loureiro, quartel-mestre general do duque da Terceira, e 0 capitio d'engenbeiros Luis da Silva Mouainho de Al- buquerque, foram os que levaram o mesmo duque a revnit no seu propriv quartel este consellio, visto acharem-no tio persistente ou em procurar Mol- Telos, on em so retirar para u Algarve, 156 223 HISTORIA DO CERCO DO PORTO. que se ia desenvolvendo pelas differentes terras do Alemtejo. Nao ha duvida que a marcha retrograda do duque para se ir fortificar em Faro, ou Lagos, nao s6 havia de dimiouir as tendencias dos povos a favor da causa constitucional, mas até desmoralisar d’algum modo a tropa, ao passo que mal succedido na sua tentativa sobre a capital, tinha por si a vantagem de se fortificar em Setubal. Entretanto os riscos de semelhante empreza eram ainda grandes, porque nao 6 ‘os constitucionaes iam achar na sua frente as forcas muito superiores, que ultimamente baviam sahido de Lisboa ao seu encontro, mas até deixavam pela retaguarda uma divisdo inimiga triplicadamente maior do que a sua, e devmais a mais formidavel em cavallaria, em relacio a 16 ou 18 ho- mens, que traziam mal montados n’uns pequenos cavallos, que alguns particulares Ihes tinham franqueado. Sobre tudo isto accrescia igualmente que o immenso fosso do Tejo se Ihes apresentava diante, com as suas duas margens defen- didas e guarnecidas por mdita artilheria, oppondo-lhes por conseguinte serios embaracos para poderem entrar em Lisboa, onde 12 a 15:000 soldados realistas tratavam ainda de repri- mir qualquer tentativa a favor da causa do Porto. Apezar de tudo isto no dia 18 de julho pdz-se a divis8o a caminho, e apenas os soldados perceberam que 4 direita se deixava a estrada de Aljustrel, que vae a Beja, para se tomar a d’Alva- lade, que se dirige a Lisboa, contentes e enthusiasmados rom- peram immediatamente em gritos a Almada, a Lisboa! Esta marcba, quando atrevida fosse, nao era todavia temeraria : seguindo parallelos ao mar, 03 constitucionaes tinbam por si o apoio da esquadra, o enthusiasmo dos povos, que succes- sivamente se ia desenvolvendo, a vantagem de se fortifica- rem em Setubal, se necessario Ihes fosse, o estado da inde- cisto de Mollelos, e finalmente o susto em que estava o go- verno de Lisboa, pela consideravel fermentac&o dos espiritos, que redobrou de intensidade quando um annuncio telegra~ phico de S. Thiago de Cacem participara ao duque de Ca- - daval, que uma divisdo constitacional de 6 para 6:000 ho- mens sahira do Algarve a marchas forcadas sobre Setubal. VOL. I. —— CAP. IY. 229 Nesta agitacto dos espiritos proclamou elle entao aos babi- tantes da capital, e fez a toda a presse sabir para o Sul do Tejo uma divisio movel, que devia occupar Setubal, e em todo o caso diligenciar fazer a sua juncgao com Mollelos. Naquella sua proclamag&o 0 mesmo duque de Cadaval cha- “maya 43 armas 0s feis ¢ honrados para prestarem os seus servicos d mais justa das causas, com exclusao dos cobardes ¢ traidores ; ‘Lisboa foi desde logo declarada em estado de sitio, devendo punir-se dentro em 24 horas com pena de morte todo o individuo, que por accdes ou palavras sedicio~ sas promovesse 0 desalento e a revolta. J4 proximo de Alcacer & que o duque da Terceira en- controu, no dia 21 de julho, uma pequena partida de vo- luntarios realistas, que prisioneiros uns, e dispersados outros, foram levar a Setubal o terror com a aproximac&o das tro- pas constitucionaes. No dia 22 achava-se a columna movel do inimigo em posic¢ao em frente de Setubal, disposta ao que parecia a entrar em batalha; mas tudo isto j& nao era mais do que o annuncio da total decadencia do governo mi~ guelista, cujas forcas, desproporcionedamente maiores que as dos constitucionaes, nem ja tinham valor para atacar, € © que peor era, nem até mesmo coragem para se defender. E com effeito aquella gente, fazendo apenas alguns tiros de artilheria contra os constitucionaes, déo-se logo em debandar, quando os viram marchar contra si a passo acce- lerado, e cobertos nos seus flancos por alguns atiradores. O castello de S. Filipe, e a torre de Outdo abriram esponta- neamente as portas aos vencedores, e arvoraram logo o es- tandarte constitucional; mas o duque da Terceira, atraves- sando Setubal, foi ucampar 4 quinta do Esteval, sobre a estrada de Azeitao, destacando alguma gente para a estrada de Palmella. A chegada a Lisboa dos fugitivos de Setubal déo logar o um ultimo esforco da parte do governo migue- lista, cada vez mais cuidadoso com a rapidez e audacia das marches forcadas, que os constitucionaes empregavam para chegarem 4s margens do Tejo: neste aperto fez elle sahir a manha de 23 de julho para a villa de Almada uma \ 230 HISTORIA BO CERCO DO PORTO. ° parte da guarnicao da capital, em forca de 3:000 homens d'infanteria, além de tres esquadrdcs de cavallaria, dando o commando desta divisto ao marechal de campo Joaquim Telles Jordao, que ao mesmo tempo devia reunir a si os restos dispersos da columna movel, afugentada de Setubal, e cooperar quanto podesse com a divisio de Mollelos. Nes- tas circumstancias a posicio do duque da Terceira tornou-se summamente arriscada; mas a gloria que o esperava era tambem proporcional: a sua forga, depois de deixadas no Algarve’ as precisas guarnicdes de Faro, Lagos, e Olbio, conslava apenas de 1:600 homens,-tendo ua sua frente a forca de Telles Jordao, e na sua retaguarda a de Mollelos, sendo qualquer dellas numericamente dupla ou tripla da sua. Mollelos tinha finalmente sahido de Beja, vindo no dia 24 entrar em Setubal. Neste sperto os constitucionaes, em vet de perder a coragem, tornaram-se mais animosos, enten- dendo que os extremos de valor e audacia, com os prodigios da tactica, podem ser com successo aventurados, e algumas veres tem effectivamente ganho grandes batalhas. O duque da Terceira, e 0 seu quartel mestre general, José Jorge Loureiro, nao desprezando a situacao arriscada em que se achavam, re- solveram todavia marchar contra Telles Jordao, ecahir depois sobre Mollelos, se algum movimento popular em Lisboa lhes nao franqueasse antes disso as portas da capital. Da esqua- dra nao havia -infelizmente noticia, porque victima da cho- lera-morbus, e falta de vento para poder chegar 4 foz do Tejo, s6 na manha do dia 24 péde ella mesma saber que a pequena divis&o constitucional se dirigira a marchas forcadas no dia 23 sobre as visinhangas de Almada, depois de ter entrado vicloriosamente em Setubal. Era com effeito nesta direcclo que marchava o duque da Terceira em perseguic8o das reliquias da forca, que batéra naquella villa. Tinham-se j4 atravessado as tres legoas de areal, que separam a villa de Azeitio do logar da Amora, divisando-se apenas neste ultimo ponto umas avancadas de cavallaria, que se retira- ram logo que presentiram a vanguarda constitucional. Das Colinas que dominam a baixa de Corroios se foram nova- VOL. 1. — CAP. IY. 23t metite retirando os realistas de posicho em posicfo, podendo o duque da Terceira penetrar finalmente na estrada escava- da, que por entre as alturas do Alfeite vem desembocar no valle da Piedade. Era neste valle que o general miguelista concentrara todas as suas forgas, talvez que nas vistas de lirar vantagem da sua cavallaria, deixaudo ao mesmo tempo em abandono a estrada de Almada pelo lado de S. Sebastiao. A columua constitucional desembocava apenas no valle da Piedade pela estrada do Alfeite, quando dois esquadrées de cavallaria, vindos a galope da estrada de Cacilhas, a carre- garam com todo o impeto. Todavia cagadores n.° 2 e 3 nav 56 sustentaram valentemente a sua posigao, mas alé conse- guiram por em debandada a cavallaria inimiga, que soffrendo grande perda, fui abrigar-se do fogo que the faziam por de traz dos armazens da cova da Piedade. Desde ent&o a vi- ctoria péde reputar-se ganha, porque mandadas cobrir as estradas do Pragal e Almada, seguio direito a Cacilhas o batalhfo de cacadores n.° 2, levando na sua frente os rea- listas com baioneta sobre os rins até 4s ruas da villa, depois de terem perdido duas pecas de artilheria de campanha, que enfiavam a estrada da Mutella n’um dos ramaes, que para ella vae da parte de Almada. O velente Romao José Suares, commandante de cacadores n.° 2, entrando na rua direita de Cacilhas, foi por entre os inimigos até eo caes para lhes impedir 0 emborque para Lisboa. E impossivel descrever 0 desordenado espectaculo, que no mesmo caes se observava por esta occasido: a infanteria, cavallaria, artilheria, e ba- gagens ; os generaes, officiaes, e soldados, todos n’um rodi- Iho, se viam alli concentrados, procurando precipitarem-se sobre os primeiros barcos, que a fortuna Ihes deparaya 4s Matos. Nesta confusdo foi reconhecido, e desde logo crua- mente morto na praia, o marechal de campo Joaquim Telles Jordao, que affrontosamente feito cm pedacos, pagou em justo castigo as barboridades, que como governador da torre de S. Julido da barra havia praticado contra os infelizes constitucionaes, que nella se achavam prisioneiros. Na ma- nha do dia 24 de julho rendéo-se o castello d’Almada, de- 232 HISTORIA DO CERBCO DO PORTO. pondo a sua guarnic%o as armas diante do vencedor na res~ pectiva explanada, tendo no dia anterior recusado receber a intimacdo, que da parte do daque da Terceira Ihe fora fazer um parlamentario, que para o seu campo se recolhto mor- talmente ferido. O inimigo perdto toda a forca com que viera ao ataque, calculando-se em mil os mortos e fugitivos, que durante a noite se poderam escapar para Lisboa, sendo ‘por conseguinte o numero dos vencidos quasi o dobro do dos vencedores, sem que todavia se encontrasse differenca entre uns e outros uma hora depois de acabado o fogo: a perda dos constitucionaes constou apenas em tres homens mortos, doze feridos, e tres extraviados, o que claramente demonstra a desordem, e a desmoralisacao em que estava a tropa miguelista. Os soldados, que poderam atravesser 0 Tejo, e particu- larmente o filho de Telles Jordao, acabaram de por termo 4 ansiedade e terror, de que o governo se achava possuido. Estas noticias, exageradas sempre por quem foge, para as- sim cohonestar a sua desairosa conducta, reunidas & illumi- nactio de Cacilhas, tinham levado a fermentacao da capital aos ullimos extremos. Pela meia noite reunio o duque de Cadaval um conselho militar, em que geralmente prevalecto. a idéa de se ndo poder conservar Lisboa: 1.° pela falta de confianca na tropa; 2.° pela facilidade, com que a esquadra constitucional podia entrar a barra ao abrigo das baterias da margem esquerda do Tejo; 3.° pela impossibilidade de se Ihe poder resistir, e ao mesmo tempo conter quglquer subleyacio em Lisboa. Nestes termos optou-se pela prompta evacuagdo da capital, e a pretexto de uma revista, foram reunir no Campo Grande, na madrugada do dia 24 de julho, as tropas do duque de Cadaval, em numero de 10 ou 12:000 homens de todas as armas. O governo miguelista, que tio ousado se mostrara na proclamacio, que poucos dias antes fizera publicar, e sobre tudo na barbaridade, com que no dia 23 mandéra executar noCaes doSodré um infeliz preso politico *, ndo teve agora coragem para encarar com os seus 1 Além deste havia mais tres infelizes présos politicos, que teriam « meama sorte daquelle, sea sublevagto de Lisboa os nfo vers tirar de Oratorio. VOL. 11. — CAP, IV. 233 adversarios, sem ao menos averiguar ao certo quaes fossem as forcas, de que elles dispunham. Consideravel numero de frades-e padres, quasi todos os empregados publicos, grande numero de nobres e de plebéos, ou todos os que se julga- ram compromettidos, abandonaram finalmente Lisboa, que por esta maneira deixaram exposta a qualquer golpe de mao. Ainda que verdadeiras algumas das razdes expostas no con- selho militar, convocado pelo duque de Cadaval, todavia r tirar, antes de vér qual fosse a forca dos seus inimigos, foi certamente um acto de ndo pequena cobardia: os montes, que domioam Lisboa pelo lado oriental, podiam ser fortifi- cados, e occupados pelos voluntarios realistas, confiando-se & guarda da policia a guarnicfo e deleza do castello de S. Jorge. Por este modo, o duque de Cadaval tinha sempre uma retirada segura por aquella parte de Lisboa; nada lhe podia embaragar a sua sahida do castello de S. Jorge, pela Graca, Penba de Franga, e Arroios, onde por conscguinte podia tomar a estrada de Sacavem, ou a de Loures, como mais conta the fizesse. Por outro lado nada se sabia da di- visto de Mollelos, e achando-se intacta, e servindo de ponto de reunido aos fugitivos de Setubal e Cacilhas, tambem Ihe havia de ser de grande auxilio, qualquer que fosse 0 ponto, em que ella viesse a passar o Tejo. Como quer que seja, certo é que desde ent&o por diante ninguem mais duvidou mostrar na capital do reino o can~ asso, que j4 a todos os seus moradores causava a fastidiosa continuacio de tantas lutas e guerras, de que nenhum bem havia resultado para a nagdo em geral, mas apenas para alguns partidistas do poder absoluto, que cercavam o usur- pador da-corda portugueza, ou para alguns dos que com taes portidistas se achavam identificados. Aquella espantosa de- voc&o, com que tantos milhares de individuos tinham mili- tado, ou fas fileiras dos yoluntasios realistas, ou no exercilo de primeira linha, ia ja na sua rapida decadencia, por tanta { perdida na omnipotencia das suas armas, e no prestigio da sua forca, resultado bem amargo do nenhum effeito de tantos e tao multiplicados combates, dados em volta das li- 234 HISTORIA DO CBBCO DO POKTO. has do Porto contra 7:500 bravos, a quem agora a fortuna to decididamente parecia proteger. Deste modo as espe- tangas, que n’outr’ora se pozeram no maior numero, tinham por conseguinte acabado, e a confianca no governo do infante estara de todo perdida, pelos scus repetidos desacertos nas cousas militares e civis, e nao menos pelas infructuosas per- seguicdes, feitas contra o partido liberal, perseguicdes que, pelo sem numero de descontentes, que produzira, aborreciam -até mesmo a muitos dos que tao acaloradamente as tinham promovido. Por conseguinte a inaptidao do governo migue- lista e a dos seus generaes, exuberantemente demonstrada pelas vantagens alcancadas pelos constitucionaes desde os Acdres até ao seu desembarque no Porto, (nto obstante os meios descommunaes, de que os seus contrarios dispunham), pela coragem, com que depois se defenderam durante o cérco, e ultimamente pela importancia da memoravel bata- Iba naval do cabo de S. Vicente, pela atrevida marcha. do duque daTerceira desde o Algarve até Cacilhas, e pelo seu triumpho na accao da Piedade, bavia com toda a razBo es- friado os mais enthusiastas pela causa de D. Miguel, e en- thusiasmado a todos os que propendiam para a do governe legitimo. Desde ent&o comegara-se a generalisar a crenca de que o regimen constitucional, a julgar pelos homens, que no meio de tantas difficuldades se tinham sustentado, e sa- ido dominar a fortuca, era o unico capaz de tornar feliz a nagao. Estabelecida pois a fé de que o governo representa- tivo seria na verdade o da ordem, da moralidade, e justica, € que traria comsigo a mais severa economia dos dinheiros ~ publicos, attento o consideravel estado de pobreza, a que preseatemente a vacdo estava reduzida, ninguem mais hesi- tou em abragar em Lisboa, no meio de taes conjuncturas, a causa de semelhante governo. Com effeito, mal raiava o dia 24 de julho, ja as ruas de Lisboa comecavam a encher-se de cidadaos armads, ¢ em quanto uns iam correndo a soltar das cadeias as innu~ “meraveis viclimas da fidelidade, que nellas gemiam, outros marchayam affoitos a arvorar no castello de S. Jorge, e nos VOL. 1. — CaP. IV. 235 diferentes fortes, construidos pela margem do Tejo, e em varios logares da cidade, como simbolo da causa, por que se pugnava dentro dos muros do Porto, os bandeiras azues brancas, que-d'improviso appareceram feitas. No arsenal do exercito echou o povo bastante provimento d’armas, e em mais de cinco mil presos, sahidos das cadeias, um fiel e consideravel reforco para auxiliar a causa constitucional. Para dar aos sublevados um centro de reunio, collocou-se no Terreiro do Pago’ a brigada da marinha, e o batalhio dartifices, cuidando-se desde logo na organisacao dos antigos corpos do commercio, e dos mais hatalhdes de atiradores, © e d’artilheiros nacionaes, que D. Miguel dissolvera na sua chegada a Lisboa em 1828. Até aqui fora o baixo povo quem unicamente fizera o rompimento contra o governo usurpedor ; mas apenas se soube que o duque de Cadaval, allucinado pelo terror, no sé abandonara vergonhosamente a capital, mas até retirava do Campo Grande para Loures, procurando a Cabeca de Montachique, 0 movimento revolu- cionario comegou desde ent8o a tornar-se mais geral, e a chamar a si os cidadaos de mais alta jerarchia, particular- mente depois que viram saudada pelos navios de guerra in- glezes e francezes a bandeira bicolor, i¢ada no tope do mastro grande dos sobreditos navios. Toda a Lisboa, livre da compressto do governo usurpador, rebentéra finalmente n’um vulc&o de ira popular contra a tyrannia. As galvas e os vivas resoavam pois por toda ella ao vér destruir os pa- tibulos, fugir os verdugos, acabar a ignominiosa servidao, e cahirem aos pés dos desgracados presos politicos os ferros, que até entdo lhe roxeayvam os pulsos. Grande numero de embarcacdes apinhadas de gente remavam para o pontal de ~ Cacilbas, para se anticiparem ao triumphal desembarque da pequena expedicfio do Algarve em Lisboa. O proprio duque da Terceira duvidara até entdo da sua mesma fortuna, pa- recendo-the incrivel que tivesse 4 sua disposiga0, como lhe diziam, a populacdo inteira da capital, com todos os seus vastos recursos e arsenaes: 0 apparecimento da bandeira constitucional no castello de S. Jorge, e nos mais fortes da 236 HISTONI4 DO CERCO DO PORTO. margem direita do Tejo, fez-Mhe até suspeitar alguma cilleda da parte dos seus inimigos, sendo a final desenganado desta sua incredulidade pelos officios, que recebéo da propria com- missao revolucionaris, que existia em Lisboa, e pela pre- senca de pessoas, cuja fidelidade se lhes no podia contestar. Reunida pois com a immensa multid&o de barcos, e de gente, que de toda a parte affluia ao caes de Cacilhas, a humilde expedigao do Algarve desembarcou finalmente no Terreiro do Pago, das duas para as tres horas da tarde, de- pois de tantos annos de exilio, de tantas privagdes, e soffri- mentos passados, e de tantos combates sustentados nos Agd= res, no Porto, e ultimamente ao Sul do Tejo. E mats facil imaginar do que descrever qual fosse o enthusiasmo de uma populosa cidade, que por cinco annos tinha gemido debaixo dos mais pesados acoutes do despotismo: muitos milhares de pessoas impacientes acolheram naquella praca a divisio ex- pedicionaria no meio da mais viva effusto de alegria. O du- que da Terceira por muito tempo n&o péde pizar o terreno, de que por tantos annos se achava auzente, e quasi que de Dragos para bracos foi levado até ao paco do antigo senado da camara, onde desde 0 coméro do dia todas as classes de cidadaos tinham currido a acclamar o governo legitimo, ac- clama¢o a que o mesmo duque da Terceira concorria tam- bem pela sua parte, no meio de muitos generaes, officiaes, e de immenso concurso de povo, que o acompanhava. Mui- tos motivos de vinganga existiam gravados no coragdo des habitantes da capital, ndo‘sendo por conseguinte possivel, que no meio de um governo, que se desorganisava, e d’ou- tro, que ainda o nao tinba bem substituido, deixassem de haver os resentimentos, que eram bem de receiar no meio de taes occorrencias. Para cohibir as escandalosas violencias ¢ excessos, que se praticaram, déo o duque da Terceira as ordens, que mais acertadas lhe pareceram, mandando além disto affixar uma proclamactio, em que fazia vér que o es- tandarte da rainha e da Liberdade, 4 sombra do qual os fieis & sua causa se tinham abrigado no meio das persegui- ¢des, dos exilios, e combates, n§o era emblema de guerra, VOL. 1.— CAP. IV. 237 e ainda menos de vingangas, mas sim de paz @ reconeiliagao de toda a familia portugaeza. Continuando 03 ventos escassos a esquadra constitucional 86 no dia 24 de julho péde chegar 4 foz doTejo, onde Na- pier foi com cspento, seu informado do abandono de Lisbea ‘los miguelistas, e da sua occupacdo pelas tropas do duque ta Tercera. Nao sabendo tinda do ‘abendono das torres ‘de S. Juliao, e Bugio, o almirante langou ferro fora da barra, para em breve o suspender apenas lhe constou que aquella nova circumstancia tambem havia tido logar. Fundeado no- yamente defronte de S. Julido, de que logo tomou posse, reforcando-a com alguma gente, que mandou em auxilio dos presos politicos, d’alli seguio o mesmo Napier n’um es- caler com o duque de Palmella pelo Tejo acima, deixendo & esquadra, que n&o podia navegar por falta de vento. Ainda o escaler nfo tocava 0 ponto do desembarque no ar- senal da marinha, e j& pela beirs-mar da cidade retumba- vam as estrondosas acclamagdes de um infinito povo, que victoriava og recem-chegados. Recebidos n’uma esplendida equipagem do bardo de Quintella, se foram depois hospedar no palacio do mesmo bario. Um movimento atrevido facil- mente perderia ainda os constitucionaes, se o duque de Ca- daval, em vez de proseguir na sua retirada, reunisse a si & ” divisto de Mollelos, e entrasse depois por Lisboa dentro, onde todos se achavam sem cuidar em defeza, mas entre- gues somente aos extasis do seu enthusiasmo. Na tarde do dia 25 a esquadra pdde finalmente entrar pelo Tejo acima, @ em quanto as néos fundearam defronte do arsenal, a fra- gata D. Pedro teve ordem de ir postar-se defronte d’Aldéa- gallega para evitar que as tropas de Mollelos podessem d’alli passar para o Norte, mandando-se tambem alguns brigues estacionar em diferentes pontos do rio. O resto da forca naval seguio para o Porto, nfo sé para ficar 4 disposicto de D. Pedro, mas para bloquear tambem 0s diferentes portos da costa. : Em quanto o duque de Palmella cuidava, como gover- nador civil provisorio, na nomeagdo d’empregados, e em 238 HISTORIA DO CENCO DO PORTO. proclamar aos habitantes de Lisboa, as medidas do duque da Terceira ‘para a defeza da capital consistiam apenas em ultimar o armamento dos antigos corpos do commercio, @ dos batalhées de atiradores e arlilheires nacionaes. Ninguem por conseguinte se lembrava da eminencia dos perigos, que podiam sobrevir, absortos todos na magnitude dos aconteci- mentos, que ultimamente se tinham succedido: t&o verdade € que quem se acha vivamente impressionado n‘um sentido, mal pode avaliar as circumstancias de outro inteiramente diferente. Napier era talvez o unico militar, que antevia o mal que ainda lhe podia sobrevir, e para o remediar quanto possivel, fez levantar o vapor George 4.°, apresado dentro do Tejo, e seguir até 4s alturas de Salvaterra, para vigiar © inimigo, e obstar igualmente alli 4 passagem de Mollelos para a mergem do Norte. A tropa deste general, entrada em Setubal em 24 de julho, pretendéra tirar 14 uma crua vinganca da afortunada marcha dos constitucionaes sobre Almada, procurando assim repetir as escandalosas scenas do que praticéra em Beja; mas sobrevindo-lhe a noticia da accio de Cacilhas no meio dos seus horrorosos planos, ¢ “ pouco depois a da entrada do duque da Terceira em Lishos, todas aquellas idéas cederam aos cuidados da propria con- servagdo. Desde ent&o a causa miguelista foi reputoda per- dida na opinido dos mais eordatos e entendidos dos seus partidistas, e 0 proprio chefe do estado maior de Mollelos, © tenente coronel Augusto Xavier Palmeirim, penetrado da necessidade de entrar n’alguma capitulacéo, por meio da qual os realistes podessem ainda conseguir algumas condi- gdes de vantagem, em vez de se sujeitarem 4s de desaire, que a continuacio da guerra furgosamente lhes havia de trazer comsigo, ndo duvidou aconselhar este passo ob seu general, que todavia Ihe n&o pdde tomar o parecer *, deci- dindo-se bem pelo contrario n’um conselho militar, por elle 1 Mollelos teve a indiscripgao de revelar ao seu barbeiro os planos de tenente coronel Palmeirim, donde rewultou a impossibilidude de os poder le var a effeito, divulgadus como desde entio comegaram a ser no publico, que desde logo The opp$z @ mais vita e formal reristencia. VOL. H.— CAP. IY. 239 reunido, que as suas forcas se dirigissem de Setubal para Aldéa-gallege, onde encontraram jé a fragata D. Pedro, que “alli Ihes impedia a passagem para o Norte do Tejo. Ainda assim a divisdo de Mollelos marchava j4 em tao completo estado de confusdo, que nem se estabeleciam piquetes, nem postos avancados, e um s6 regimento, que de Lisboa se ti- vesse mandado contra ella, era bastante para a derrotar sem grande derramamento de sangue. O tenente coronel Palmeirim, e 0 brigadeiroTaborda vieram fazer a sua apre- sentagio ao duque da Terceira, que os recebéo muito bem, e lhes garantio as patentes, que tinham adquirido no exer- cito de D. Miguel, na conformidade das Ynstruccdes que no Porto recebéra‘. Firme na causa da usurpacio, Mollelos seguio d’Aldéa-gallega para Salvaterra, onde tambem nao pide passar o Tejo por causa do vapor George 4.°; mas podendo atravessa-lo mais adiante para Vallada, marchou de 14 a reunir-se 4divisio do duque de Cadaval, que da Cabeca de Montachique se tinha dirigido a Obidos, Caldas da Rai- nha, Alcobaca, e Leiria, logo que perdéo as esperancas de poder melter-se em Peniche, que o seu governador Antonio Feliciano Telles de Castro Apparicio, dominado por um ter- tor panico, tinha ja abandonado, depois de intimado para se render pelo commandante da expedi¢io constitucional das Berlengas, nao obstante as positivas ordens que tinha para resistir, @ tomar todas as disposicdes convenientes para a sua defeza. Para Coimbra se dirigira pois Apparicio, e apés 1A desconfianga no trinmpho das armas de D. Miguel foi quem pro- ravelmente levou o tenente corone! Palmeirim a procurar uma capitulagio vantajosa em quanto julgava poder alcanga-la, pois mais terde teria de ficar micito & inteira descfipgto do vencedor. Este seu proceder, reunido com m sua apresentacto ao duque da Terceira, foi quem natyralmente Ibe acarreton entre os seus a reputegio de traidor, com que o tem denegrido alguns escri- * ptos do tempo. Entrelanto 0 chefe do estado maior de D, Pedro, 0 proprio general Saldana, positiramente affirmou, quand tido noticia, nem saber que o mesmo Palm duas bandeiras politicas, que se gulerteavam ; necer taes impulagdes necessario era tambem, que deste ollcial dissessci mesme que Saldanha tanto o duque da Terceira, como os ajudantes, quar- teis mezires generaes, que serviram com D. Pedro, e at¢ mesmo os membror da junta revolucionaria, que por este tempo havia em Lirboa por parte do partido constitucional, . 240 HISTORIA DO CERCO BO PORTO. elle o duque de Cadaval com a divisto de Mollelos, fieando assim por algum tempo limpas de tropas miguelistas, a ex- ceptuar-se unicamente a praca d’Elvas, as provincias do Algarve, Alemtejo, e Estremadura. Poucas horas se haviam passado depois que em 25 de julho o vencedor d’Argel depozera aos pés do Exercito Li- bertador os louros, que Ihe cingiam a frente, quando D. Pe- dro recebéo a extraordinaria noticia da occupac&o de Lisboa pelas tropas do duque da Terceira. Aos habitantes do Porto, @ ao mesmo Exercito Libertador annunciou elle logo a sua prompta partida para a capital, deixando ao conde de Sal- danha o vmmand das tropas que se achavam no Porto, e de todas as mais, que alli se podessem ir reunindo. Eram dez horas da noite de 26 de julho quando 0 mesmo D. Pe- dro, com mais sequito militar que cortezao, se dirigio para a For, acompanhado de todos os ministros d’estado, dos seus ajudantes de campo, e mais pessoas de familia, onde se _ embarcou para Lisboa a bordo do vapor Guilherme 4.° De balde procurou a commisséo municipal do Porto, n’uma pe- quena allocucio que dirigio ao regente, demorar-lhe por mais algum tempo a sua sahida para Lisboa: « Augusto se- ,enhor, lhe dizia ella, ainda tudo nao esté concluido, em « quanto se acha sitiada a cidade do Porto, a qual por seus «longos e incalculaveis sacrificios para a consolidacio da « grande causa da rainha, e da Carta, supplica, e espera de « V. M. I. a continue ainda e bonrar por alguns dias com «a sua presenca, e lhe permitta, emremuneracto de tantos «e t&o longos sacrificios; a honra e prazer de feliciter pes- «soalmente a V. M. I. pelo triumpho final da grande causa «em que V. M. I. ¢ a cidade se tém t&o heroicamente «empenhado. » A esta supplica respondéo D. Pedro, que bem desejava permanccer por mais tempo entre os habitantes da leal cidade; mas que o amor que |hes tinba, e sobre tado a nobre causa, que t8o gloriosamente haviam defendido, o obrigavam a acudir a toda a parte onde as circumstancias © chamassem: «contem os illustres portuenses, accrescentou «elle, que no momento do perigo me achar&o com elles, ¢ VOL. 11, — CAP. IV. 241 «que em breve voltarci a gozar do prazer, que deve cau- «sar-Ibes o inteiro restabelecimento da tranquillidade da « patria. » Com esta despedida ficaram os habitantes do Porto entregues ainda a todo o vigor do sitio, que até entdo sup- portavam, e que pelo mesmo modo continuou, pois o exer- cito realista parecia conservar-se impassivel no meio dos grandes acontecimentos, que successivamente se iam pas- sando. Pela uma bora da tarde de 28 de julho entrou a barra do Tejo o vapor Guilherme 4.°, igando o pavilhao real, fir~ mado por 21 tiros, a que tambem salvaram as fortalezas de S. Julido da barra, e do Bugio, rompendo as suas guar- nigdes em vivas d’enthusiasmo ao augusto chefe da casa de Braganca. A presenca do pavilhtio igado, e as salvas das fortalezas da barra, espalhando por toda a Lisboa a noticia da chegada do regente, chamaram immediatamente ao Tejo grande numero d'embarcagées, carregadas de gente de am- bos os sexos, distinguindo-se as senhoras pela clegancia ¢ esmero das suas vistosas galas azues e brancas. Este im- menso concurso de botes no Tejo, e o da gente apinhada por toda a parte donde se avistava o rio, formou uma das mais bellas vistas de que a capital tem gozado. Todos os possiveis signacs de regosijo publico se manifestaram por esta occasiao: os fogos de artificio, as salvas das baterias e navios de guerra, os inumeraveis lengos e bandeiras, que se agilavam no ar, no meio de um immenso concurso de povo, de tal modo impressionaram o mesmo D, Pedro, que as lagrimas Ihe escaparam pelos olhos fora ao presenciar t&o vivo e interessante ~quadro. O almirante Parker, com- mandante das forcas navaes inglezas surtas no Tejo, acom- panhado dos officiaes superiores pertencentes 4s mesmas forcas, ¢ lord William Russell, foram os primeiros a cum- primentar D. Pedro, que os recebto com toda a polidez e urbanidade ; mas o almirante Napier foi o que mais pom- posa teve a sua recepcao, vindo o mesmo D. Pedro, acom- panhado de todos os ministros d'estado e do seu estado maior, toma-lo em bragos ao portalé, e conduzi-lo pela mio You. 1. 1 252 HISTORIA DO CERCO BO PORTO. alé ao tombadilho, onde the prodigalisou as mais lisongeiras expressdes, € the attribuio a honra de ter collocado a sua augusta filha no throno dos seus maiorcs. Pelas duas horas e meia da tarde chegaram os duques de Palmella e Terceira, que D. Pedro veio tambem receber ao portalé, e a quem igualmente abracou, e déo os mais vivos agradecimentos pelos seus importantes servicos, fineza que os duques agra- deceram, confessando a parte principal, que elle linha to- mado em taes feitos. De bordo do vapor se dirigio D. Pedro a bordo da néo D. Jodo 6.” para visitar o almirante, ¢ Ihe agradecer, e com elle a todas as guarnicdes da esquadra, o seu nobre e arrojado feito d’armas de 6 de julho, confes- sando novamente, -que a rainha de Portugal devia o seu throno aos importantes servicos, que a esquadra the acabava de prestar. Pelas tres horas da tarde desembarcou no arse- nal da marinha, sendo lo extraordinario 0 concurso do povo, e tal o enthusiasmo de que estava possuido, que o regente julgon de todo lerminada a lute, e chegou até a arremessar para longe de si a sua cspada, entendendo que della n&o tirnaria mais a precisar. D. Pedro nto podia deixar de en- trar em Lisbea no meio da geral expectacao, filha do reno- me, qre lhe grangedra o seu valor e coragem na defeza do Porto. Tedos 4 porfia Ihe tributaram as mais excessivas pro- yas de graticdo. A commissio muni¢ipol, que poucos dias antes se installira, quando o veio cumprimentar, represen- tou-lhe @ ansiedade, que o povo tinha de o vér, e a essa conta teve elle de passer por alguma das principaes ruas da ~ cidade, cujas casas e janeilas se lhe apresentaram ornadas de vistosas bandeiras azues e brancas, de ricos tapetes e colchns, entrondo finalmente pelas cinco horas da tarde no patacio da Ajuda,. onde um. concurso de pessoas da maior distincc3o, e das mais allas jerarchias do estado, civis e ec- clesiasticas, the apresentaram os seus respeitos, com os seus protestos de fidelidade 4 rainha e€ & Carta Constitucional. Correndo aquelle palacio n'um lancar d‘olhos, o imperador dirigio-se depois & capella real, para assistir ao Te Deum, officiado por um principal, por se nfo aceitarem para isso ¥OL, 1. — CAP. Iv. 253 os servicos do patriarcho, D. frei Patricio, que tao cclebro se tornéra pelas suas pastoraes contra o governo do Porto. Concluido este acto, voltou para Lisboa, estabelecendo a sua residencia no palacio da Bemposta, onde despachou com os seus ministros, e recebéo muitas pessoas, que lhe foram apresentadas. Na manha de 29 de julho foi visitar o jazigo dos reis da casa de Bragonca, e depois de ouvida a missa, que mandéra cclebrar pelo eterno repouso de seus pais, veio junto do tumulo de D. Joto 6.°, onde, commovido pelos agros desgostos, e dura ingratidao, que este infeliz monarcha experimentira nos ullimos annos da sua vida, dos membros mais chegados da sua propria familia, pregou o seguinte r6- tulo == U'm filho le assassinou, outro filho te vingard. — 29 de julho de 1833.— D. Pedro. No dia immediato mu- dou elle a sua residencia para o palacio das Necessidades, E para mostrar @ franqueza, com que tratava os seus pro- prios subditos, desdenhoso da cortezd etiqueta dos seus an- tigos maiores, ndo sé teve a delicadeza de ir em pessoa pa- gar algumas visitas, que se Ihe tinham feito, mas até man- dou declarar', que veria com satisfagto prescindirem do incommodo de se apearem, como prova de respeito, as pes~ sons, que, indo a cavallo, o encontrassem no seu transito pelas ruas da cidade, ou por quaesquer outros sitios. Ainda D. Pedro se achava no Porto, quando 0 ministro dos negocios estrangeiros, e interino da marinha, marquez de Loulé, foi encarregado de ir levar a0 conhecimento da rainha, ento residente na cdrte de Paris, a noticia das vi- ctories alcancadas sobre os miguelistas, e sobre tudo a feliz entrada das tropas constitucionaes em Lisboa. Desde entao fui o expediente dos negocios estrangeiros confiado interina- mente ao ministro do reino, Candido José Xavier, e o da marinhs ao ministro da guerra, Agostinho José Freire, con- tinuando José da Silva Corvalho pela sua parte nos reparti- Ges da fazenda ¢ justica: tal era o ministerio, com que D. Pedro entréra na capital. Alguns decretos dos que podiam @tangear ao governo alguma popularidade se publicaram no- 1 Portaria do ministerio do reino de 11 de agcsto. 166

You might also like