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Filosofia da Ciência

Espírita – IV - O
Espiritismo
Matheus Artioli Firmino

Kardec, o Galileu da Religião


No século XIX, como foi discutido no estudo anterior (Outubro), havia
um movimento cultural bem definido. A Filosofia estabelecera-se
como o ramo da reflexão humana, buscando as conseqüências dos
fenômenos e, por análises sucessivas, remontar às causas. A Ciência
tinha surgido inicialmente com Galileu ao propor um método de
observações, repetições e, acima de tudo, interpretação matemática
dos fenômenos. Mais tarde, muitos pensadores, "cientifizaram"
diversas áreas do conhecimento, tornando-as de interpretação
quantitativa. O Positivismo, uma corrente filosófica do século XIX,
mostrara-se como uma "crença" de que todos os problemas humanos
(sociais e morais) podem ser resolvidos apenas pela ciência e que as
religiões, ainda grosseiramente não-racionais, deveria abandonar sua
função consoladora para as ciências.

Os positivistas, porém, em sua maioria, eram bastante orgulhosos


para mudar radicalmente seu padrão de idéias (paradigmas). Mas
algo, no século XIX, abalou todos pilares conceituais da Ciência. Em
1848, enquanto a Europa estava em guerras nacionalistas internas,
os Estados Unidos da América estavam em euforia. Nesse ano, foi
descoberto ouro na Califórnia, acentuando o movimento migratório
de pessoas de diversas áreas para o Oeste, além da imigração de
estrangeiros. A família metodista Fox, John D. Fox (pai), Margareth
(mãe), descolando-se do Canadá, mudara-se para a cidade de
Hydisville, em busca de prosperidade. Ficaram em uma casa
conhecidamente "mal-assombrada" pelos moradores locais. Pancadas
e ruídos nos móveis, movimentos espontâneos de objetos,
arremessos, tremores e trepidações eram freqüentes pela casa.
Então, em 1848, as filhas do casal citado, as irmãs Margareth e
Catherine, "desafiaram" a causa da perturbação, travando um diálogo
codificado pelas pancadas. O inteligência identificando-se concordou
em reproduzir suas pancadas em público. Mais tarde, toda a
sociedade pensante nos Estados Unidos estavam investigando o
fenômeno.
Alguns europeus interessados, mesmo sem presenciar o fenômeno,
negaram a explicação oriunda da América de que as almas dos
mortos eram a causa dos movimentos inteligentes espontâneos.
Tentaram reproduzir o "espetáculo" da América com sucesso.
Irradiando da França e da Alemanha, o estranho fato das "mesas
girantes" ou "dança das mesas" tornou-se uma "febre" nos salões da
Europa. Entreteve, por algum tempo, a curiosidade dos frívolos, até
estes descobrirem outra moda. Contudo, as demonstrações
desafiavam profundamente os positivistas. Como um corpo pesado
poderia mover-se de tal forma, sem sequer alguém tocá-lo? Como
soar batidas de dentro do móvel quando não há suspeita de fraude
alguma? Como conceber pancadas combinando-se e produzindo
respostas inteligentes, estranhas, desconhecidas e contraditória às
idéias dos pesquisadores? Como aceitar que um corpo sólido
atravessa outro? Como acreditar em aparições tangíveis de pessoas
mortas formadas por "concentrações" de uma substância fluídica
secretada de determinadas pessoas? E, o que mais confundia a
negação dos positivistas, era a reprodução desses fenômenos
diversos em diferentes lares e instituições, de diferentes países, de
diferentes continentes, sob a sombra do Positivismo e da Ciência do
século XIX racionalista.

Muitas explicações superficiais semi-racionais foram formuladas para


negar a imortalidade da alma e a comunicação dos mortos, mas
todas elas falharam e desapareceram devido a contradições
intrínsecas e por não explicarem todos os fatos (ver O Livro dos
Médiuns, item 36 e seguintes). Mesmo assim, até hoje, em pleno
século XXI, materialistas, orgulhosos, pseudo-sábios "homens da
ciência", amedrontados diante da inegável imortalidade da alma,
reforçam que a comunicação com desencarnados, tão comum em
todos os tempos, seria um fato maravilhoso e sobrenatural, por
afastarem-se das leis naturais. Dessa forma, estamos ansiosos para
que nos contem quais são elas, já que nós, pelo menos, não
conhecemos todas as leis do Universo. Pelo contrário, houve um
pensador no século XIX, no meio da explosão fenomênica exposta,
disposto a estudá-la racionalmente, cientificamente (interpretações
matemáticas), sem idéias pré-concebidas.

O professor pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869),


natural da França, Lyon e de formação acadêmica em Yverdun, Suíça,
com o célebre professor Pestalozzi, discípulo de Jean Jacques
Rousseau, fazia parte da comunidade pensante de Paris, participando
ativamente de diversos institutos científicos, notadamente da
Academia Real d’Arras. Tendo conhecimento do fenômeno, longe de
ser um entusiasta dessas manifestações e absorvido por outras
preocupações, esteve a ponto de as abandonar, o que talvez tivesse
feito se não fossem as solicitações dos Srs. Carlotti, René Taillandier,
membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthèse, Sardou, pai
e filho, e Diddier, editor. Entretanto, o convite do Sr. Pâtier, seu
amigo sério e objetivo, levou-o a conhecer, em 1855, as mesas
responderem inteligentemente a perguntas formuladas na casa da
Sra. Plainemaison, às terças-feiras, à noite. Anota o professor:

"Foi aí, pela primeira vez, que testemunhei o fenômeno das mesas
girantes, que saltavam e corriam, e isso em condições tais que a
dúvida não era possível.

"Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica


em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. Minhas idéias estavam
longe de se haver modificado, mas naquilo havia um fato que devia
ter uma causa. Entrevi, sob essas aparentes futilidades e a espécie
de divertimento que com esses fenômenos se fazia, alguma coisa de
sério e como que a revelação de uma nova lei, que a mim mesmo
prometi aprofundar.(...)"

Uma das primeiras observações e conclusões do emérito


enciclopedista prof. Rivail foi a necessidade da presença de
determinadas pessoas ("sensitivos") para facilitarem e intensificarem
qualquer dos tipos de manifestações. Quanto à causa dos fenômenos:

"Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método
da experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava
atentamente, comparava, deduzia as conseqüências; dos efeitos
procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento
lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão
quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão.(...)

"Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão


controvertido do passado e do futuro, a solução do que havia
procurado toda a minha vida; era, em uma palavra, uma completa
revolução nas idéias e nas crenças; preciso, portanto, se fazia agir
com circunspeção e não levianamente, ser positivista e não idealista,
para me não deixar arrastar pelas ilusões."

E, desse modo, rejeitou a hipótese causal puramente material e


espontânea, a hipótese dos gases invisíveis. "Todo efeito inteligente
tem uma causa inteligente". Pelas observações ficou claro a presença
viva de inteligências invisíveis (algumas vezes bem visíveis)
independentes (Espíritos). Os materiais e métodos eram inicialmente
baseados nas pancadas das mesas. A seguir, adaptou-se um lápis em
uma mesa em miniatura para facilitar a escrita. Trocaram-se as
mesinhas por cestinhas, pranchetas e, mais tarde, notou-se que
esses instrumentos eram apenas apêndices dos sensitivos e estes
poderiam escrever mecanicamente com a própria mão, servindo de
instrumento dos desencarnados.
Aplicando os métodos científicos tradicionais postulados por Galileu
(vistos no estudo anterior), o Prof. Rivail "cientifizou" mais um ramo
do conhecimento humano, até agora de domínio religioso. Os
sensitivos, agora denominadas médiuns (intermediários), longe de
serem pessoas predestinadas, endemoniadas, santificadas ou
privilegiadas, são pessoas absolutamente normais. A interpretação
quantitativa do problema é elegantemente simples: a mediunidade é
uma faculdade humana orgânica, neurofisiológica, que possibilita a
percepção de Espíritos (desencarnados). Todos temos essa faculdade
conhecida de todos os tempos, mas ela varia quantitativamente na
população humana por fatores genéticos, ambientais e culturais, de
modo que somos todos mais ou menos médiuns, variando apenas em
graus, e não em qualidade. Apenas pelo costume, chamam-se
médiuns aqueles que expressam a faculdade por manifestações nas
quais a comunicação dos Espíritos é mais claramente perceptível. A
mediunidade, como objeto de estudos dessa nova Ciência, serviu de
base para o Espiritismo, neologismo criado pelo Prof. Rivail para "A
ciência que estuda a natureza, a origem e o destino dos Espíritos,
bem como as suas relações com a matéria" (ver O que é o
Espiritismo?). Reflete o pedagogo:

"Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os


Espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a
soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber era
limitado ao grau do seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha
senão o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade, reconhecida
desde o começo, evitou-me o grave escolho de crer na sua
infalibilidade e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a
opinião de um só ou de alguns."

E essa é a diferença fundamental entre as religiões tradicionais e essa


nova Ciência. Se recordarmos o processo histórico-cultural da
formação das religiões, todas elas dependeram da comunicações com
os mortos (estudo de Julho). Porém, usava-se o método da
submissão à revelação dos Espíritos e os médiuns eram considerados
enviados dos deuses para a salvação da humanidade ou, se a
mensagem dos Espíritos desagradava o poder terreno, os médiuns
eram massacrados por serem enviados dos demônios. O positivista
Prof. Rivail, como se vê, tem outra opinião, adotando uma postura
absolutamente natural: "Eu, pois, agi com os Espíritos como teria
feito com os homens: eles foram, para mim, desde o menor até o
mais elevado, meios de colher informações e não reveladores
predestinados."

De fato, para a formulação dos ensaios, das leis e teorias da Ciência


Espírita presente em O Livro dos Médiuns, houve uma equipe de
cientistas composta de encarnados e desencarnados pesquisadores,
chefiados pelo Prof. Rivail. Um desencarnado, denominando-se sr. Z.,
informa-lhe que o conhecia o conhecia em outra encanação, nas
Gálias, época quando o professor chamava-se Allan Kardec. Muitos
outros Espíritos ajudavam ativamente Kardec, dentre eles, São Luís.

As primeiras hipóteses para explicar como os desencarnados podem


fazer as mesas dançarem foram exemplos expressivos dessa parceria
científica. Kardec e colaboradores encarnados sugeriram que os
desencarnados agissem mecanicamente sobre a matéria. Já que o
corpo fluídico perispírito é semi-material e pode tornar-se tangível, é
razoável pensar que eles próprios empurrassem as mesas com as
mãos. Porém, qual seria, então, o papel dos médiuns? Os
desencarnados apresentaram uma teoria completamente diferente,
muito mais simples e explicativa (ver O Livro dos Médiuns, item 72 e
seguintes), aceita por Kardec por ser mais racional. No entanto,
houve vários casos em que comentários de desencarnados "de
renome" foram rejeitados. O Espírito Lázaro, muito conhecido no
Espiritismo por sua explicação sobre a sublimação dos instintos,
sensações e sentimentos em Amor, escreveu comunicações
contestáveis (ver Revista Espírita, 1862) a respeito do mesmo
assunto.

E essa parceria desdobrou-se numa nova Ciência. Porém, era


impossível conceber a novidade apenas pela ciência material mais
grosseira. Uma vez que esses estudos criaram um método controlado
de conversar com desencarnados, foi aberto um novo campo para
reflexões profundamente filosóficas, com o potencial de responder
perguntas fundamentais da criatura humana. Relata o codificador:

"Só o fato da comunicação com os Espíritos, o que quer que eles


pudessem dizer, provava a existência de um mundo invisível
ambiente; era já um ponto capital, um imenso campo franqueado às
nossas explorações, a chave de uma multidão de fenômenos
inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era conhecer
o estado desse mundo e seus costumes, se assim nos podemos
exprimir. Cedo, observei que cada Espírito, em razão de sua posição
pessoal e de seus conhecimentos, desvendava-me uma fase desse
mundo, exatamente como se chega a conhecer o estado de um país
interrogando os habitantes de todas as classes e condições, podendo
cada qual nos ensinar alguma coisa e nenhum deles podendo,
individualmente, ensinar-nos tudo. Cumpre ao observador formar o
conjunto, com o auxílio dos documentos recolhidos de diferentes
lados, colecionados, coordenados e confrontados entre si."

Essas reflexões reunidas tornaram-se um corpo de doutrina filosófica


baseada em princípios fundamentais da agora chamada Filosofia
Espírita:
1. Existência de Deus: por deduções óbvias e axiomáticas,
conclui-se a existência de uma causa primária de todas as
coisas, com atributos infinitos em perfeição;
2. Imortalidade da alma: o novo método, como se disse, leva a
esse corolário; filosoficamente, um Criador perfeito não
governaria sobre carnes perecíveis;
3. Comunicabilidade dos Espíritos: é o próprio método de base;
refletindo, Deus oferece essa oportunidade às criaturas com ou
sem invólucro carnal;
4. Pluralidade das existências: além de haver evidências
científicas, a reencarnação é conseqüência da Justiça infinita do
Criador;
5. Pluralidade dos mundos habitados: também cientificamente
indicado e é explicação única para a evolução do Espírito
imortal e utilidade dos astros.

Inevitavelmente, como se poderia esperar, essas análises filosóficas


conduziram o pensamento a posturas éticas da conduta humana. A
dedução mais óbvia é a mudança de hábitos que tinham um
embasamento racional dos materialistas. Diante da imortalidade e do
entendimento melhor do Criador, formou-se uma atitude de religar a
criatura ao Criador, justamente pela mudança ética e íntima do
comportamento. A "Religião Espírita" como se caracteriza nesse
momento, é o resultado, portanto, da transformação moral, porém
interior, em busca da consciência universal de criatura imortal. Na
prática, isso significa o reconhecimento da possibilidade de
abandonar os rituais exteriores há muito ensinados, a concretização
de uma fé racional "que enfrenta face a face a razão em todos os
momentos da humanidade", e, no desenvolvimento intelecto-moral
da criatura, a síntese de todas os deveres humanos na prática da
Caridade. Não é curioso, desse modo, que a esmagadora maioria de
todos os Espíritos comunicantes de todos os tempos, os do século
XIX, do século XX, de hoje e de sempre, identificam-se como
embaixadores de Cristo entre os homens. Perante esse horizonte
agora candidamente percebido, nunca ficou tão claro a moral e os
ensinos de Jesus e seu Evangelho como roteiro ideal na estrada do
progresso espiritual.

O Espiritismo é, assim, resultado da ruptura da pedra sepulcral


espalhando a Verdade pura. Articula-se como uma Religião racional
eminentemente libertadora e consoladora com a proposta de
restabelecer os ensinamentos do Cristo em bases fortes de uma nova
ciência rigorosa e de uma doutrina filosófica amplamente
esclarecedora das dúvidas e angústias humanas. Essa integração
abrange qualquer cultura humana por desvendar a nossa origem,
destino e natureza, bem como nossa relação com a matéria.
Referências bibliográficas:
• Kardec, Allan (1999) A Gênese, 19a Edição. LAKE. Cap. I, III e
XI.
• Kardec, Allan (1999) O Livro dos Médiuns, 21a Edição. LAKE.
• Kardec, Allan (1862) Revista Espírita.
• Sausse, Henri. Biografia de Allan Kardec

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