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Os Pescadores

de Raul Brandão

1923

À memória de meu avô, morto no mar

ÍNDICE

Foz do Douro
De Caminha à Póvoa
Pequenas notas
A pesca da sardinha
A ria de Aveiro
Palheiros de Mira
Mulheres
Pequenas notas
A morte do arrais
Alguns tipos
As Berlengas
Nazaré
Lisboa, Setúbal, Sesimbra e Caparica
Olhão
A pesca do atum
Sagres
Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio
de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis
linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro,
juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de
esboços afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são
melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade
aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno
a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco
prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber dis-
tintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a
para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci...

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FOZ DO DOURO

A CANTAREIRA

Abril - 1920

Foz é para mim a Corguinha, o Castelo e A0 Monte com o rio da Vila a atravessá-
lo, e a Rua da Cerca até ao Farol. O que está para lá não existe... Só me interessa a vila
de pescadores e marítimos que cresceu naturalmente como um ser, adaptando-se pouco
e pouco à vida do mar largo. E ainda essa Foz se reduz cada vez mais na minha alma a
um cantinho – a meia dúzia de casas e de tipos que conheci em pequeno, e que retenho
na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me
entranho na morte. O mundo que não existe é o meu verdadeiro mundo.
Esta vila adormecida estava a cem léguas do Porto e da vida. Ali moravam alguns
pescadores e marítimos, o António Luís, a Poveira, as senhoras Ferreiras, a D. Ana da
Botica e as Capazorias. E, na Foz e na pensativa Leça, uma gente desaparecida com os
navios de vela, os embarcadiços que iam ao Brasil em longas viagens de três meses. As
casas, limpas como o convés de um navio, espreitavam para o mar, umas por cima das
outras. Todas tinham um grande óculo de engonços, para ver o iate ou a barca que
partia, ou para procurar ansiosamente, lá no fundo, o navio que trazia a bordo o marido
ou o filho ausente, e um mastro no quintal para lhes acenar pela derradeira vez. Meu avô
materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida esperou-o desde os vinte anos
até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos
com que foi para o túmulo. Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo,
apertavam-se os corações no peito, e à luz da candeia rezavam horas esquecidas «pelos
que andam sobre as águas do mar».
Conheço ainda, tão bem como ontem, todos os cantos da casa de minha avó: as
escadas com um cabo de navio a servir de corrimão, a sala da frente com dois painéis
escuros nas paredes, Jesus crucificado e S. João Baptista, e o estrado onde ela e a tia
Iria, todo o dia sentadas, trabalhavam nas almofadas de bilros. A renda de bilros é uma
indústria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido – as da
Foz, as de Leça e as de Vila do Conde – que passavam a vida à espera dos homens,
enquanto as mãos ágeis iam tecendo ternura e espuma do mar... Nesta sala abriam-se
duas portas, uma para os quartos interiores, e outra para o corredor onde os rapazes dor-
miam num armário com beliches.
Ao lado da casa, que subia em socalcos pelo monte, subia também uma escada de
pedra em patamares até lá acima. Do quintal, mais alto que os telhados, via-se o mundo.
Era dali, saltando o muro, que eu partia para excursões maravilhosas através do
pinheiral do Lage...
Costumes muito simples, muito outros. Uma pescada custava seis vinténs, e minha
avó gemia da carestia da vida, falando com saudade «do tempo do arroz de quinze».
Tinham-se calado as marteladas nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, onde os calafates,
os ferreiros e os carpinteiros de machado, erguiam outrora, entre clarões de forja e
cheiro a pinho descascado, as carcaças dos palha-botes, das barcas e dos iates, – mas eu
ainda conheci alguns tipos curiosos de capitães aposentados, no americano que se
inaugurara e que levava a gente ao Porto numa hora, alumiado à noite por uma luzinha
de petróleo, e com reforço de mulas em Massarelos. Nesses carros andava sempre a
mesma meia dúzia de pessoas para baixo e para cima, e o serviço era dirigido com

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ferocidade por um major de pêra pintada com esmero, que mantinha a disciplina numa
gaiola do Ouro. Ora, entre as pessoas que faziam comigo a travessia, quando a Aninhas
do Jeremias me levava pela mão ao colégio, nunca mais esquecerei o capitão Bernardes,
um do Carvalho que chegou a almirante, o tio Bento, o irascível capitão Sena, de quem
se contava com terror que fora apanhado no mar alto por uma trovoada – as faíscas
como chuva – levando os porões carregados de pólvora, o alegre capitão Serrabulho,
casado com uma mulher fantasmática homem prodigioso, com uma grande barriga
sacudida de risadas: – Acaba-se aqui o mundo com uma ceia de peixe! – e que fez andar
num corrupio até à morte a Foz do Douro e a Baía, e entre todos eles, principalmente, o
capitão Celestino, que tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo,
cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja. Falava
pouco. Sorria sempre numa satisfação interior, completa, perfeita, com uma cara de
páscoas rosada e inocente, enquadrada pela barba de passa-piolho toda branca. A sua
vida anterior fora misteriosa e feroz. De uma vez com sacos de cal despejados no porão
sufocara uma revolta de pretos, que ia buscar à costa de África para vender no Brasil.
Outras coisas piores se diziam do capitão Celestino... Mas o que eu sei com exactidão a
seu respeito é que para alporques de cravos não havia outro no mundo. Todo o dia um
fio de água escorrendo por condutos invisíveis de que só ele sabia o segredo, caia
pingue-que-pingue nos alegretes caiados de branco; todo o dia o velho corsário, com
mãos delicadas de mulher, tratava embevecido as flores cultivadas como filhas. E
acabou assim a vida mondando e podando, sem uma dúvida na consciência tranquila...

Maio - 1921

Sonolência doirada com dois ou três acontecimentos: as catraias que chegam da


pesca, um grande paquete que entra majestosamente a barra, os batéis que despejam na
praia os montões de sardinha. Vêm os dias de névoa, quando o sino da igreja tange
chamando os homens perdidos na cerração, o tempo do sável no rio, a pesca da lampreia
com um fogaréu no bico do cabedelo, e, em Dezembro, a safra da sardinha. O senhor
piloto-mor passeia no cais com as mãos atrás das costas ralhando aos velhos da Pensão,
e três marítimos conversam acolá naquele banco de pedra, ao pé da torre dos pilotos,
onde já meu avô se sentava.
Um dia lança-se a nossa catraia ao mar. Os calafates, com estopa embreada,
tomam-lhe as juntas de pinheiro por pintar. Alguns homens dão-lhe uma mão de piche,
e um desenha-lhe nas tábuas do costado: Senhora dos Navegantes. Chega da Póvoa o
Manuel Serrão, homem de poucas falas e calças de lona branca, e talha-lhe a vela
estendida na areia. Corta-se o mastro no pinheiral do Lage. O senhor abade – toca o sino
– asperge-a de água benta, e a companha, com os barretes na mão e fatos de ver a Deus,
espera o último latim para a lançar sobre roletes ensebados pela lingueta abaixo. São
quinze homens como torres com o arrais e o moço. É o Jeremias, alto, de barbas de
sargaço, o Bilé e o Mandum, o Joaquim Sota, o meu compadre Matias, o José das
Facadas, o Mouco e o Bexiga, queimados pelo ar do largo, aquele velho de cachimbo
nos dentes, que de tanto remar ficou curvado para sempre, o Manuel Arrais, grisalho e
calado, e o moço o Nel, de olhos inocentes de bicho, que vai pela primeira vez ao mar.
– Agora!
As mulheres da fonte deixam os cântaros e deitam a correr, e a companha mete o
ombro ao costado do barco e – oupa! – retesando os músculos, empurra a Senhora dos
Navegantes, que desliza nas pedras e entra no rio. Dois homens saltam dentro e levam-
na para as amarras.

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Estes factos insignificantes impressionaram-me para sempre a retina e a alma.
Muito tempo perdi-os no tropel da vida, impõem-se-me hoje com um relevo
extraordinário. Vejo outra vez tudo; as fisionomias, as coisas, a cor e a luz. Vejo os
barcos encalhados com as letras mal feitas, escritas a piche no costado, Vai com Deus,
Senhora da Ajuda, Deus te guie, as redes nos varais e os pescadores de agulha na mão a
remendá-las, as catraias e os batéis nas linguetas. Vejo as mulheres sentadas nos
degraus, a Maria da Viela, as Papeiras e as Bexigas. Manhã de não sei quando, manhã
que não existe e vou desenterrá-la tal qual, azul e névoa, névoa e mar... Alarido nos
tanques: chegam os batéis da sardinha. Em Sobreiras as mulheres arrastam os quartos
do sável, metidas na água até à cinta... Quem quer ganhar um quinhão?... Além é o
cabedelo e o mar desfeito em pó azul, e a Outra Banda inteiramente verde. Conheço
aquele grande pinheiro manso sobre a casa gótica desde que me conheço, os areais e o
largo rio, onde dois ou três barcos da Afurada pescam a tainha. O homem atira a rede, e
a mulher, num gesto rítmico, bate com o bicheiro na água para assustar os peixes, que se
vão lançar na malha.
São nadas que farão sorrir os outros. São efectivamente nadas... E no entanto reco-
nheço que essa foi a melhor parte da minha existência, minuto único de saudade em que
a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma. É a própria vida com
um encanto que não torna, é o abrir dos olhos para uma manhã deliciosa, quando se
salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho. Tudo é novo e
esplêndido. Embriaga o ar que se respira e o primeiro sonho que sonhamos. É novo e
cheio de surpresas o Verão, quando os grandes barcos rabelos, a vela latina cheia de
vento e o homem em ceroulas no alto da caranguejola, carregados de achas que cheiram
a bravio, descem devagar as águas; é novo o Inverno quando a grande toalha líquida das
cheias brilha e o sol reluz com mais gosto, ou quando aquela voz rude engrossa, começa
a pregar e a lufada não cessa de bater nas vidraças. – Está alguém fora da barra? –E as
vigas do travejamento rangem como as quilhas dos navios, e a noite trágica, em que
suponho ouvir gritos, nunca mais acaba.

A voz cresce... Ouço-a agora perto, ouço-a melhor. O que foi eco quase extinto,
aumenta num clamor cada vez mais alto, chamando de novo por mim...

Junho - 1921

É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida
extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tábuas; o
cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo mar, que
me levou alguns dos meus, constante preocupação desta gente, e que de quando em
quando os mata à minha vista. As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim,
estendendo-me outra vez as mãos... E é sonhando também que me recordo de certas
coisas sem importância: do jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder
abrir, de uma expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas
que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que às
vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra...
Os meus mortos estão cada vez mais vivos.

É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são
guiados por mãos desaparecidas e a minha convivência é com fantasmas. Este cheiro a
alcatrão vou levá-lo nas narinas para a cova; esta paisagem – mar, rio e céu – entranhou-

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se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento. Ressuscito as horas que
perdi debruçado no velho muro e sinto o grão da pedra onde punha as mãos quando
contemplava a engenhoca do meu vizinho António Luís, que com escorros de água, dois
arames e um bocado de cortiça, fazia manobrar uma azenha, o moleiro e o competente
burro com os sacos de farinha, de uma maneira mais absorvente que todas as mágicas a
que assisti mais tarde nos teatros de Londres. Ressuscito as primeiras impressões.
A Foz está viva! Tenho-a diante de mim, a Foz de outrora, a Foz que já não existe,
a Foz dos mortos, com o movimento, os tipos e a paisagem. Lá em cima o Monte tinge-
se de sol, cá em baixo o rio tinge-se de azul. A Cantareira, num cantinho, adormece – a
grande fonte de granito doirado, a casa do António Luís, a nossa velha casa com os
degraus de pedra, os varais das redes até à Corguinha lajeada de grossos burgos – e ao
largo o farol. O mar embala o cabedelo. Uma luz como não há outra e que estremece
com o movimento e os reflexos da água, um ar como não há outro e que ainda hoje
respiro como a própria vida! Silêncio... A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de
ano, crestada pelo ar da barra, camada de sol, camada de salitre...
O que revivo mais profundamente? Revivo a expressão de uns olhos húmidos que
me seguiam sempre, e compreendo que toda esta cor e este oiro que desapareceram e
teimam em reluzir, correspondem a um momento único da vida em que se descobre o
mundo que vai morrer e que se fixa por fim em saudade e ternura. É o que tenho mais
pena de deixar quando sinto que me levam não sei para onde e cada vez para mais
longe. Agita-se então em sonhos o mundo que não existe, e os mortos adquirem uma
expressão que é a da minha própria alma. Se isto é ternura, a ternura é o que há de
melhor no mundo; se é saudade, a morte é o que há de melhor na vida.
A própria paisagem só depois que a perdi é que a entendi bem, talvez porque a
amo mais. Diante de mim têm desfilado as maiores e as mais belas, mas há uma
humilde que faz parte integrante do meu ser.

A vida passa e um momento da vida não passa mais – transforma-se. E a


aproximação da morte reveste-o de outra cor. Por isso agora vejo tudo cada vez mais
nítido... Vejo os buracos nos muros e os reflexos ao lume de água que duram um
momento e se renovam sempre. É o sol que lhes dá vida e os ilumina. São instantâneos.
Movem-se, somem-se e dão lugar a outros. São agitados e doirados. Uma aparência, um
jogo de luz, como as existências efémeras que passam e o sonho que não deixa vestígios
e só um instante se desenha à superfície da vida...

Tudo dura o que duram os reflexos agitados. Só este rio imenso segue o seu curso
inalterável e incessante para aquele mar profundo.

IDA AO MAR

5 de Setembro

Se fecho os olhos sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite
húmida e cerrada. Não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e
ouço-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá
ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde
irrompe de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e só esta voz enche
o mundo... São três horas. O moço anda de porta em porta batendo com um seixo. E vai
chamando na cerração: – Ó sê Manuel, cá pra baixo pró mar! – E mais afastado torna

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outra vez a sair do escuro o apelo prolongado, como se fosse o mar que os chamasse um
a um: – Ó sê José... cá pra baixo pró mar! – O arrais leva-me pela mão até à lingueta
viscosa, e salto dentro da catraia. Rumor. Vultos. Alguns homens ajeitam-se nos bancos,
outros fincam os remos nas pedras para afastarem o barco.
Mais perto, sempre mais perto, o bafo salgado... Uma lufada, uma onda, – um ah
monstruoso – o clamor negro e espesso – e saímos a barra. Chego-me para o arrais, que
não larga da mão a cana do leme, imóvel e atento. Mete-me medo o negrume que não
tem limites de escuridão e de vida e de que me separa a espessura de uma tábua. A maré
vaza. O arrais manda:
– Iça a vela!
Os homens saltam nos bancos e o pano bate no escuro.
– Ó iça! ó iça!...
A escota range no moitão e a grande vela triangular sobe, debate-se, enche-se de
vento. A catraia mete a borda. Uma hesitação na marcha e logo nos entranhamos na
agitação infinita, na noite infinita. A luz da lanterna remexem sombras indecisas. São os
homens que se deitam nos bancos ou no fundo do cavername entre os baldes, os
batedores, e o grande cabo do mar de oitenta braças, que serve para largar o ancorote
quando a barra se fecha à entrada. Só o arrais continua agarrado ao leme, de olhos fixos
na agulha de marear. Chego-me mais para ele... Água negra, respiração negra. Um
frémito de vida, uma humidade que se cola à boca e às mãos, e a escuridão, mas a
escuridão como um ser imenso que não distingo e de que sinto o contacto – um fôlego
cego e vivo que remexe lá ao longe, cheio de mistério, de u – u – u desordenado e que
desaba em montanhas e salpicos amargos. Vem até mim. Rodeia-me. Quase lhe vejo as
mãos enormes. Escuto o negrume cheio de rumores, de vozes, de sombras movediças,
que se debruçam para nós como um che... che... mais alto, mais baixo, que não cessa.
Um grito parece vir de muito longe, da vida monstruosa e profunda em que me
entranho. Mas já me não mete medo o mar. O lampião ilumina a cara do arrais, rude e
grave, serena. E a meu lado a água escorrega no costado, chape-que-chape, sempre com
o mesmo ruído monótono que adormece e embala.

É da terra que vem a luz. Um livor indeciso e depois um chuveiro.


– A chuva sangra o vento – diz o sota baixinho.
Para acolá a nódoa anda à tona da água como um olhar sem expressão: esparralha-
se no céu. Mas para o largo a noite imensa que nos traga redobra de espessura: o
negrume aumenta. Só no nascente a claridade se dilui em neblinas, em farrapos e névoas
esparsas que flutuam. Sobem, deixam-se cair em véus moles sobre as águas. Escondem
o mar. Durante um momento um fio azul estremece à superfície, e logo a cortina
vaporosa se mistura à exalação das águas e cerra-se de todo. Esperem... Uma vaga, uma
ondulação verde, outra ainda... Mais névoa... luz... um grande farrapo desgrenhado... O
estertor não cessa, mas sente-se que a névoa se adelgaça pouco e pouco, enquanto o
negrume se concentra e recua mais para longe e o ar adquire uma transparência azulada.
Tenho diante de mim só matéria imponderável, cheia de frescura e de vida, donde vai
sair a nova criação. O mar não se vê ainda, mas a voz vem das profundas cada vez mais
alta, e adivinham-se na espessura da neblina, entre velas despedaçadas que se debatem
nos ares, colunas de fantasmas que fogem na cerração dispersa. Só um, maior, teima,
quer fixar-se, debate-se com a luz e desaparece enfim entre clamores no horizonte
ilimitado. Uma paragem sufocada – luz a jorros – e o mar em ondulações verdes, cada
vez mais transparentes e com reflexos metálicos.
Vejo agora o barco adornado com o vento, a vela metida nos rizes e os homens
estendidos nos bancos. A água diante de mim ondula como um véu diáfano, só frescura

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e transparência, só poeira verde que desmaia toda arrepiada... Fios delicados de algas
bóiam ao sabor da onda e ao meu lado corre um veio mais escuro e profundo, quase
negro, onde um bando de toninhas persegue, logo de manhã, a manta da sardinha. Os
grandes dorsos azulados irrompem das águas, afundam-se e tornam a aparecer e a
reluzir ao longe, todos molhados, num resto de névoa a dissolver-se... Não há cor como
esta verde, que é hálito puro ao mesmo tempo; nem vida como esta vida, que surge
intacta diante dos meus olhos deslumbrados. Reluz a esteira do sol, e o primeiro voo das
gaivotas corta o céu.
Um homem da companha, de pé à proa, procura a bóia das redes com a mão sobre
os olhos. O sota, debruçado na amurada, deita a sonda.
– Quarenta braças, é o mar do peixe.
– As bóias!... – exclama outro.
– Arreia! – é a voz do arrais.
Solta-se a escota e a verga cai sobre os bancos. Os homens remam. Estamos à
vista da caça, que no Verão se deixa ficar no mar de um dia para o outro. Prepara-se a
polé e um grupo à proa tira as bóias e depois os cadoiros.
– A ver a fortuna que Deus nos dá.
– Ala! ala!
As redes alastram o fundo e dois homens e o moço, de batedor em punho, deitam a
água fora. – Olhem esses cabos! – Atirem para cá o bicheiro. – Enrodilham-se no escuro
dos fios coisas viscosas, debatem-se as pescadas e os ruivos. A todo o momento as
atitudes, os gestos e os grupos se modificam. Cresce o alarido: – Agora! agora! – Só o
velho de cachimbo nos dentes golpeia, inalterável, os peixes. – Ala! ala! – Eh rapazes!
oupa! – Pela borda fora, de navalha em punho, a companha marca os peixes no cachaço
e no lombo, e atira-os ainda vivos para a caverna. Cada pescador tem a sua marca: salé
Λ ao atravessar do rabo; salé e risco Λ|; pé de galinha Λ; galha, risco cortado na patola
do rabo; duas galhas, dois riscos no mesmo sítio; um lombo, o mesmo risco no rabo, da
banda do lombo; dois lombos, dois riscos; do lado, um risco e dois riscos; um cachaço,
um risco no cachaço; dois cachaços, dois riscos; uma cruz no cachaço; um papo, um
risco no papo; dois papos, dois riscos; cruz ao papo e meio rabo. As cortiças das redes
têm também os seus sinais, para o dono as distinguir: signo salimão; grelhas X grelhas e
cruz; grelhas e um risco; grelhas e dois riscos; lampião ∆ e outros.1
Saltam no fundo as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capatões, e
uma toninha reluzente que os homens matam com os bicheiros. São ruivos de dorso
vermelho e doirado e grande cabeçorra cartilaginosa, um peixe-rei e cações
acinzentados. E algas, algas emaranhadas como cabelos verdes, nos peixes-sapos, na
tremelga cor de vinho e na espalmada raia, que abre a boca sufocada; nos peixes-lixas
cheios de piques e nas carapaças de caranguejos desajeitados, que correm com os
ferrões abertos no ar. E os homens, encharcados e de perna nua, continuam a meter as
redes a escorrer para dentro do barco. O fundo da catraia escorrega cheio de água, e
daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. É uma mescla de
dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metálicos
das savelhas, de ventres esbranquiçados dos linguados que se voltam e mostram uma
pele quase humana, de viscosidades e de prata movediça. E as redes continuam a subir,
e o peixe preso pelas guelras a debater-se enquanto os homens de navalha em punho o
golpeiam. Alguns de braços arregaçados e mãos viscosas lavam-se no mar. Outros jun-
tam-se ao moço com batedores deitando a água fora, e à proa separam os solhões, os

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Devido a dificuldades do foro informático, os símbolos apresentados não correspondem
exactamente ao original.

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rodovalhos e o peixe chato do fundo, que vem envolvido em areia.
– Está a caça dentro.
– Quanto?
– Pra aí dois centos.
É a pescada; o outro peixe não se conta.
Vamos voltar à bolina para aproveitar o vento. Outra vez a vela, e o ruído do mar
manso que me embala.
Atrás de nós fica uma larga estrada de prata. Na poalha de oiro que cai do céu,
descubro um risco indeciso: é a terra. Primeiro, nuvem distante. Um momento e acen-
tuam-se os traços deslavados da areia. Mais cor agora... É a terra, a princípio
desvanecida e roxa e depois verde nos eternos pinheirais. Um areal doirado, um ponto
branco que estremece – o Senhor da Pedra. O vento enche a vela e, pouco e pouco, todo
o panorama transparente sai do mar a escorrer tinta. No fundo ergue-se a costa com
manchas escuras dos pinheiros, que não se distinguem ainda. Faísca envolta em névoa a
brancura das casas, e toda a larga paisagem renasce diante de mim com cores fracas de
aguarela. A terra voluptuosa – cabedelo de oiro, montes pálidos, que saem da água
como seios – entreabre-se para nos acolher. Eis os gigantescos braços de Leixões, tão
leves que a luz os trespassa, a penedia afiada de Carreiros, onde o mar escachoa, e o
pontilhão coberto de espuma. Ao sul Lavadores, o areal de Espinho, bruma afastada e
cor de cinza. Cai a tarde, vamos entrar a barra. Quase toco de um lado no velho castelo
roído de salitre e do outro no bico do cabedelo, onde as gaivotas apanham o último sol,
com os pés metidos na água. Vem a vaga e alastra-se, vai a vaga e a espuma referve na
areia molhada, de um oca mais escuro.
As mulheres correm pelo cais:
– Quantas dúzias? quantas dúzias?
Mas os homens não respondem. De pé, nos bancos, com os barretes na mão,
entoam o Bendito. Escurece. É o momento em que a luz desmaia, em que a cor é
transparência e a natureza se esvai entontecida. As tintas são pó de tinta, os montes são
fantasmas, e o rio um grande lago azul. Já sei: o mundo é azul... Fios de oiro perdidos
na Outra Banda estremecem e vão desaparecer. Nas lanchas arribadas alarido de
poveiros. O grande pano sem vento cai sobre os bancos e é o último impulso que nos
traz, no jorro da enchente, que entra pela barra cheio de espumas. O rio não tem
consistência – voltou-se o céu, e nós vogamos numa poeira roxa que a todo o momento
se transforma. Agora é lilás o mundo, é violeta, é um sonho que se some pouco e pouco
e que a noite vai tragar.
O peixe é atirado aos montões para as pedras, e as mulheres da lingueta, os
homens de dentro do barco, cada um segura pela ponta as suas redes, lavando-as no rio.

Olho... A Outra Banda, violeta, desapareceu na noite. O rio azul, depois diáfano e
cor de cinza, desfez-se em violeta. No céu violeta, um resto de poalha vai sumir-se na
bruma, onde só a jóia do farolim cintila. Os tons violetas afogaram tudo e a paisagem
desfalece. O mundo não existe – o mundo é a luz.

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DE CAMINHA À PÓVOA

A COSTA

10 de Agosto - 1921

Esta nossa terra portuguesa vai pela costa Li fora sempre de braços abertos para o
mar, estreitando-o amorosamente contra si. Começa em Caminha até ao forte de Âncora
– de Âncora ao extremo do monte da Gelfa, e dai ao farol de Montedor, em três largas
reentrâncias, que têm como pano de fundo a cadeia azulada dos montes, de onde emerge
um ou outro cone transparente... Todas as povoações são viradas para o mar. O sol doira
uma janela, uma eira, um espigueiro, o campo de milho alimentado a sargaço que tem
os pés na água. E o biombo cor de lousa desenrola-se sempre ao lado do comboio...

12 de Agosto

Caminha esta manhã é um sonho doirado que – tenho medo – se vai esvair na
atmosfera. O rio azul, o grande monte fronteiriço, a água, o céu, não têm existência real.
Sobre o esplêndido panorama diáfano e azul, sobre o cone imenso e compacto de Santa
Tecla, sobre a povoação de Campozandos, sobre os pinheirais verdes e os campos
verdes, sobre a água que não bole, passou agora mesmo um pincel molhado em tinta
acabada de fazer. A vila de ruas lajeadas e a igreja de pedra roída pelo ar salgado, com a
Galiza em frente e o fio branco de espuma lá para a barra, parece adormecida e
encantada. Deviam-na deixar morrer intacta, sem lhe deitarem as muralhas abaixo,
envolta no doirado que a traz entontecida.
Arranco-me a custo à contemplação e vou à Rua dos Pescadores, que têm quase
todos fugido para Manaus e para Santos. São casinhas muito limpas com um postigo
aberto na porta. Para a vida do mar largo restam duas lanchas, uma delas quase
abandonada. A gente que aí ficou emprega-se no trapiche da Galiza ou na pesca de água
doce. A pescada falta: o mar dá canejas (cações), sardas e as sarapintadas melcas. Num
dia largam a caça, no outro vão buscá-la. Existem ainda alguns barcos de faneca, e os
que empregam no rio – meias-saveiras, de proa alta, e popa cortada – os pescadores do
sável, do salmão e da tainha, que acode ao lume de água em cardumes e faísca como
prata no azul. A tainha e o robalo apanham-se ao anzol; com os quartos, que se colhem
para dentro do barco, e com os algerifes, que se arrastam para terra, pesca-se o sável e o
salmão. Cuido que esta vila foi sempre mais importante como povoação de marinheiros
que de pescadores. Lá está na igreja o altar do Senhor dos Mareantes, que o atesta com
os ingénuos votos – barcas, palhabotes, navios, iates, Milagre que o Senhor dos
Mareantes fez a Fulano, etc.
Agora Caminha adormecida vai morrer. Não tem movimento. Não passa ninguém
nas ruas. As casas estão desertas. Só num recanto da praia alguns homens afadigados
constroem a toda a pressa um navio para levar o resto dos habitantes para o mar. Cheira
a breu e a pinheiro novo. Os carpinteiros de machado descascam o último mastro. Mar-
telam-se as cavilhas. É embarcar! embarcar!...

13 de Agosto

10
Daqui até à Póvoa de Varzim a povoação mais importante de pescadores é a
Lagarteira (Âncora), na segunda reentrância da costa. Deito-me a pé pela estrada,
através do lindo pinheiral do Estado, que, de cismático, me lembra António Nobre, e
fico perdido de sonho no Moledo. Em 13 de Agosto de manhã há uma ligeira névoa, um
nada, um bafo. São nove horas. O azul entontece. Perco a linha da paisagem, o verde-
escuro do pinheiral que vai até ao mar, e tudo isto se me afigura uma larga concha azul,
formada pelo mar azul e pelo céu azul, com uma borda de areal onde alguns velhos
moinhos em fila batem as asas para meu encanto. O forte da Senhora da Ínsua fica num
extremo, com o monte de Santa Tecla, que saiu agora do mar a escorrer, e no outro
extremo da curva, onde a amplidão do azul é infinita, a penedia a desfazer-se em
espuma... Não posso. Por mais que queira não posso arredar-me daqui, com a cabeça
estonteada. Fico. E só ao fim da tarde é que consigo chegar a Âncora, com dois jactos
de azul metidos pelos olhos dentro. Logo hoje, até muito tarde, não se apaga do céu um
doirado de iluminura, que se prolonga até noite velha e morre com aflição...

14 de Agosto

Perto de Âncora fica a povoação de Gontinhães, de pescadores e de pedreiros, os


pescadores ao pé do mar, os outros lá em cima no Calvário, unidos pelo caminho da
Lagarteira, torto e lajeado. É uma aldeia pobre e humilde, pobre e doirada. Do escadório
descobre-se o panorama, a amplidão do vale, o morro compacto que entra pelo mar e o
fio manso do rio... Aqui o sonho não é azul, o sonho é verde. É ao mesmo tempo
esquecido e verde, doirado e verde. Também a vida é baixinha: são as mulheres que
lavram e as vacas que puxam os carros. Os homens foram por esse mundo rachar o
lajedo e afeiçoar a pedra. À direita, encostado ao forte de Lippe, que forma o outro lado
da bacia, com o portinho e o varadouro, ficam as casas dos pescadores. Mais um
momento... A custo me arranco deste sonho verde, primeiro escuro nos montes, depois
pacífico no vale, e que tão bem se liga com a humildade da terra e o azul do mar
infinito... Falem mais baixo; em cada paisagem há sempre um deus escondido...
Desço, atravesso a aldeia, dou com um castanheiro que, não podendo crescer em
altura, estendeu os braços cobrindo todo o adro. Fico a contemplá-lo. Quando o
deitarem a terra acaba-se a poesia deste sítio tão lindo para envelhecer. Tocam o sino
para a novena. Ouço um momento os passos dos vivos e dos mortos... Em todas as
aldeias que conheço, e que deixo com saudades, o que idealiza o monte bruto e espesso,
a vida rude e o sítio agreste, é sempre a igreja, a torre e a cruz.
A parte dos pescadores no areal difere completamente nos tipos, nos costumes e
nas casas, naturalmente noutros tempos barracas de madeira construídas sobre estacas.
Há quatrocentos pescadores pouco mais ou menos, e cento e trinta e dois barcos varados
na praia, todos pintados de vermelho. São masseiras, de fundo chato, tripuladas por dois
homens, volanteiras ou lanchas de pescada por doze homens, e barcos de sardinha, que
levam cinco ou seis peças de sessenta braças cada uma, e quatro homens. As redes têm
estes nomes: peças as da sardinha, volantes as da pescada. Chama-se galricho a uma
espécie de nassa com que se apanha a faneca; rastão ao camaroeiro patelo à rede que
colhe o caranguejo ou mexoalho; e rasco à da lagosta. As redes da sardinha são do
mestre, e as da pescada dos pescadores. Os quinhoes dividem-se conforme o peixe.
No Agosto começa a faina do patelo, assim se chama ao mexoalho ou pilado, que
se deita vivo à terra para estrume. Junta-se no mar uma esquadra de barcos, que vêm da
Póvoa, de Viana e de Caminha; junta-se na praia uma fiada de carros de todas as

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aldeias, próximas ou longínquas, que o transportam para o interior das terras. O areal
está alastrado de patelo que remexe. Vende-se a lanço ou a cesto, que leva cada um dois
alqueires, e custa três tostões. E por toda a costa neste tempo vai a mesma agitação na
apanha do sargaço.
À reentrância que forma a bacia de Ancora e que termina pelo monte da Gelfa
com outro forte de Lippe arruinado, segue-se a que vai até à saliência do Montedor, com
o farol que se conjuga com o de Vigo e o de Leixões. O mar escachoa em toda a vasta
praia eriçada de rochedos onde incessantemente homens e mulheres apanham, secam,
dobram em mantas, carregam nos carros, a dorso de jericos, ou simplesmente à cabeça,
o sargaço e as algas, que, com o patelo, são o alimento e a fartura destas terras. As
mulheres, de gadanho e ancinhos, de saia ensacada e perna a mostra, apanham as algas
na flor das ondas ou no fundo das poças quando a maré vaza; rapam-na das pedras
esverdeadas; estendem-na no areal a secar ou despejam-na nos carros enquanto os bois
pastam as ervas rasteiras e amargas que crescem à beira-mar, salpicadas de espuma.
Mas é de Montedor que melhor se abrange este quadro cheio de movimento e de
luz, e ao mesmo tempo o panorama, azul para o norte até à Galiza, verde para o sul até
Viana. Montedor é uma povoaçãozinha criada ao ar do largo com eiras de palmo e seis
espigas amarelas a secar nas eiras. A paisagem imensa a cada hora muda de cor, e o mar
infinito acompanha ao longe esta sinfonia maravilhosa. Se eu fosse pintor dava isto com
três brochas cheias de tinta – uma pincelada, maior, para o mar azul que não tem fim,
até à linha doirada do areal – outra para o mar verde e raso dos milharais, na larga
planície que vai de Montedor até Viana, – outra enfim verde-escura para o biombo
recortado que cinge esta faixa desde Caminha à foz do Lima. Por fim dois ou três toques
para os montes ensaboados, muito ao longe, e um outro, lilás para um ponto que
tremeluz e é talvez Esposende, ou talvez não exista... Fim de tarde. É a hora em que
anda errática não sei que alma extasiada, e os montes se tornam transparentes como
nuvens. Até aquele morro espesso empalidece e desmaia... Mistura-se pó verde lá longe
na água, e um vulcão de fogo entre nuvens torna o horizonte apoteótico.

31 de Agosto

Deixo esta manhã Viana e os incaracterísticos pescadores da Ribeira e sigo pelo


pinhal de Darque, Anha, S. Romão de Neiva, para Esposende, com o rio à esquerda, por
terras vermelhas, donde irrompem alguns tufos de pinheiros majestosos como templos.
Ao longe a serra de Arga e as torres de S. Silvestre... Ficam-me na retina uma igreja
branca, a de Darque, recortada no céu, e a verde solidão dos pinheirais, que associo
sempre à ideia do mar largo. Pela estrada incaracterística acompanho carradas de
sargaço e de patelo, até que chego a Belinho, onde o grande poeta exilado bate as portas
na cara do mar que detesta – depois de atravessar um fio de água, com o morro selvático
do Castelo de Neiva em frente. De Belinho para S. Bartolomeu já me envolve a poalha
da tarde e depois uma luz violeta nas Marinhas. Tenho de um lado os montes escuros e
do outro o mar verde com o resplendor do céu em cima. À beira da estrada, branca de
poeira, movem-se ainda – trabalham noite e dia – alguns grupos de moinhos. E esta
engenhoca seduz-me: anima a paisagem e tem alguma coisa de navio e de brinquedo de
criança.
Faz-se tarde. No fundo mais negro as casas, mais pálidas, embranquecem: só o
milho fica loiro e o céu fica doirado. Logo adiante é o areal africano da feia Esposende,
terra da beira-mar, de onde não consigo ver o mar, terra de tristes pescadores. As redes
de arrasto deram cabo do peixe matando a criação. Só resta uma catraia para a pescada,

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alguns batéis para a raia, com redes de malha muito larga, e diferentes barquinhos para a
pesca do rio, que dá o sável, a tainha e o robalo na vazante, e a solha que se fisga com a
petada nos fundos de areia mais escura.

3 de Setembro

Doutro lado do Cávado é Fão, onde surpreendo de passagem uma linda alameda
de árvores, e logo a seguir a estrada que se deita a caminho entre campos para a Póvoa
de Varzim. Nestas terras rasteiras sente-se sempre a atmosfera marítima. O milho é
anainho e as árvores agacham-se para suportar o vento. Além, pelo areal, fica a Apúlia;
mais longe, através dos eternos pinheirais, a Aguçadoura, por fim Avelomar. Em todo o
longo percurso da estrada só encontro poveiras que acarretam sardinha. A Póvoa
fornece e alimenta todas estas povoações. Descalças, de saia arregaçada, correm num
passo miudinho, ajoujadas sob o peso... Já me aproximo outra vez do mar. Sinto-o,
vejo-o. Um rasgão no panorama e lá está o azul vivo, o azul esplêndido. Respiro-o.
Atravessando Avelomar, estou na Póvoa de Varzim.
Manhã. Redemoinho de névoa lá no largo; vão chegar as lanchas e os batéis. Uns
atrás dos outros à bolina já os distingo muito ao longe. No areal todo de oiro secam
redes encascadas, e entre os batéis varados formam-se grupos de mulheres que os
esperam. Outras correm. Puxam pelos cabos das lanchas como homens ou carregam a
caça que sai do cavername a escorrer. Dois, três barcos já na praia... Uma companha
encosta os ombros ao costado de uma lancha e – oupa! – empurram-na para cima. Mais
batéis: é a força da sardinha despejada no areal. Mulheres acodem, o movimento
aumenta e os gritos, os gestos, as atitudes imprevistas. Com os dedos metidos nas
guelras algumas arrastam os cações sarapintados, as raias espalmadas, os congros
ferozes, com a cabeça aberta pelo machado para não morderem a mão que os apanha.
Um monte de raias, peles escuras e viscosas misturadas com areia, outro de peixes-
sapos de goela voraz, só boca e dentes, e ainda outro de sardas mosqueadas. – Treze
vinténs! catorze vinténs! – o leilão. A berraria redobra. Neste grupo confundem-se as
vozes. Cheira a mar, a peixe e a fartum, e as mulheres curvam-se sobre a pesca e
regateiam-na, enquanto em baixo os barcos despejam mais peixe vivo, toninhas, gorazes
e a sardinha que começa a alastrar de prata todo o vasto areal. Duas mulheres, de perna
nua e saia arregaçada até ao joelho, engancharam um croque na boca de um peixe-cão e
arrastam-no a custo para cima. Mais peixe – o fundo do mar misterioso revelado, de
mistura com a areia, e algas, gritos e alarido. Uma lancha mete o mastro. Dois moços
carregam um cabo, enfiado num pau atravessado nos ombros. Redemoinhos negros de
mulherio se deslocam. – Três tostões! seis tostões! – Reparo nos tipos: são feias e
espessas, de pernas como trancas, todas vestidas de escuro; velhas com uma saia pelas
costas cheirando a fartum de sardinha, e metendo dinheiro nos bolsos misturado com
areia; arrostalhadas no chão, separando o peixe com as unhas gordurosas; homens de
camisola e calça, secos e tão entranhados do salitre como os pranchões das lanchas de
madeira por pintar. Acolá dentro dos batéis os pescadores sentaram-se nos bancos e
cada um tem um pequeno ao colo: entregaram-lhos as mães enquanto vendem. Já outros
barcos se preparam metendo as redes, e a grita e a agitação aumenta, o alarido aumenta.
É a sardinha que continua a despejar-se pela praia e que se vende a lotas de um a dois
milheiros, cada vez mais disputada. Levam-na em canastras, carregam-na nos carros,
compram-na as peixeiras já prontas a partir e a apregoá-la. Há a gorda e enorme que
faísca como prata, e que é logo ali disposta, cabeça para um lado e rabo para o outro,
camada de sal e camada de sardinha nos cestos canastreiros; há a mais moída e pequena,

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que se vende aos montões para a gente pobre, e a despedaçada e calcada que, com as
tripas e as cabeças, se aproveita para estrume. Cheira que tresanda. E mais gritos, maior
balbúrdia... – Seis tostões! um quartinho! – Estripam-na, lavam-na em água do mar,
dividem-na em grande, média e miúda. Mulheres a escorrer salmoura carregam-na à
cabeça e correm para a fábrica com os filhos nus agarrados às saias...
O largo quadro de cor quase uniforme é húmido e salino, oca na areia molhada, es-
curo nos vestidos e figuras, esverdeado no rolo das ondas que espumam e o enchem de
um pó ténue lá para o fundo. Mas todo o interesse vem do movimento e da expressão,
da pele dos peixes que reluz, dos tipos que não cessam de agitar-se no amplo varadouro
em ocasiões de pescaria.
Mais batéis vão largar e outros chegam e amainam as velas no mar cada vez mais
azul, de onde brota toda esta vida surpreendida e arrastada pela areia...

20 de Setembro

Só tendo a morte quase certa é que o poveiro não vai ao mar. Aqui o homem é
acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se
de salitre. Desde que se mete à terra, o poveiro modifica-se: perde em agilidade e
equilíbrio, hesita, balouça-se, não sabe onde há-de pôr os pés.
Conheço esses homenzarrões broncos e espessos, de cara rapada ou suíças, barrete
na cabeça e calça branca de lá, desde que me conheço. Iam dormir à Foz dentro das
lanchas e todas as tardes o moço passava à minha porta com o barril de água à cabeça.
Dormiam no rio cobertos com a vela, e primeiro que pregassem olho era um falatório
que se ouvia em toda a vila. Minha mãe, quando as criadas falavam alto na cozinha,
repreendia-as sempre nestes termos: – Então isto aqui é alguma lancha de poveiros?
O poveiro não usa faca, mas é terrível e certeiro com pedras na mão. Ou porque
lhe cortassem a caça, estragando-lhe as redes, ou porque andassem de rixa velha, havia
às vezes no alto mar verdadeiros combates entre poveiros e sanjoaneiros. Os barcos
avançavam uns para os outros à força de remo e a pedrada fervia. Os da Póvoa, que são,
creio eu, os únicos pescadores que usam pedras em lugar de chumbeiras, levavam
sempre a melhor. Às vezes chegavam à abordagem, de remos no ar, numa algazarra
feroz, e havia feridos e até mortos.
O poveiro ignora tudo fora da sua profissão, mas essa conhece-a como nenhum
outro pescador. Sabe onde está o banco da sardinha pelo voo do mascato, que lá do alto
cai a prumo sobre o cardume; quando ela anda terrenha, isto é, perto da costa, e torneira
ou à flor das águas. Sabe a palmos o mar da Cartola que dá a pescada, o da Ferralhuda,
que dá a raia, o da Gata, que dá raia e cação, o Bianco, o Lameirão, etc. Acima de tudo
está Deus, e para eles o Senhor do Mar é que dá a fome e a fartura.
Na Póvoa há o homem livre e o homem empregado, isto é, o que traz redes de
outra pessoa. O homem livre leva para a pescada três cartéis, que fazem uma rede; o
homem empregado leva cinco cartéis; o mestre oito a dez, sendo três para o barco, três
para ele, uma rede para a lancha e outra de ferrar a bóia. A lancha leva também uma
rede da Senhora, a rede de mais a mais, a rede de beber e outras. No batel de sardinha o
pescador leva duas redes.
Quando o Inverno é grande, a miséria obriga-o a internar-se, em bandos, de
barrete na mão, pedindo pelas armas do Purgatório. – Quem é? – o poveirinho, o
probinho do pescador. – É que em todas as terras à beira-mar o homem acumula,
lavrador e pescador ao mesmo tempo. O poveiro não, tem de seu o areal e o mar. E esse
mesmo lho disputam. Foi sempre um eterno explorado pelo fisco, pelos regatões, pelos

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homens de negócio – e por último tiraram-lhe o areal, que era a única coisa em que ele
fazia finca-pé para os seus varais, para as suas velas, para os seus costumes. No mar,
com a rede de arrasto, mataram a criação. Vi eu muitas vezes os vapores deitarem fora
sacos de peixe por criar, que a rede de malha miúda rapava nos fundos. Conseguiu-se
assim destruir uma comunidade com carácter e vida própria. O poveiro era um tipo com
individualidade, como o soldado e o lavrador são tipos criados à custa de acumulações
seculares. Estragámo-lo como estragámos as nossas vilas, as nossas aldeias, os nossos
costumes, para os substituirmos pela fealdade e pelo incaracterístico horror. Todas as
povoações de pescadores que conheço estão arruinadas. Façamos as contas: os de
Valbom mortos, os de Esposende mortos; mortos os da Foz; os de Mira com quatro
companhas em vez de quinze, e os da Póvoa, que perderam todos os seus costumes,
arruinados e fugindo para o Brasil e para a África. E por toda a costa portuguesa a pesca
rareia. Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-
mar, para enriquecer meia dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa – é ofício de
pescadores; explorar o mar é outra coisa – é ofício de industriais.
Como vivem estes homens? Agrupam-se no extremo sul da povoação. Roupas a
secar, interiores que são pocilgas, casebres com uma porta e uma janela, e alguns só
com uma porta e um postigo aberto na porta. Trapos, velhas redes, raias escaladas ao sol
enfiadas num pau. Ao lado apodrecem barcos e estende-se o sargaço. As mulheres
escorrem salmoura e por toda a parte há restos de sardinha e filharada. A vida pulula, a
vida pródiga e incessante. Dentro dos casebres uma salinha com uma dependência, a
camarata, onde dorme o casal, e o falso, para guardar o que ele tem de mais precioso, as
redes. A caixa, alguns bancos. Debaixo da cama o berço dos filhos e panais velhos. A
cozinha mete medo com caldeira de cozer a casca, o forno e os potes de ferro. De noite
tudo isto é alumiado pela luz da graxa de peixe, que enfuma as paredes e cheira que
tresanda.
Eis como vivem estes homens. Como morrem dizia-o, muito melhor do que eu, o
velho cemitério da Póvoa, que já não existe. Ia-se passando de túmulo em túmulo e lia-
se sempre: – António Libó, morto no mar; Francisco Perneta, morto no mar; José
Mouco, morto no mar... De onde a onde havia uma redoma de vidro com alguns ossos
brancos e mirrados que tinham dado à costa. E depois, seguiam-se os letreiros – sempre!
sempre! – Domingos Reigoiça, morto no mar; Joaquim Monco, morto no mar... Todos
eles vivem no mar – e morrem no mar.

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PEQUENAS NOTAS

PORES DO SOL

Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia
cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo
extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as
nuvens tomam todo o horizonte mm um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o
crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta.
Tardes violetas, oeste ar tão carregado de salitre que toma a boca pegajosa e amarga, e o
mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
U m poente desgrenhado, mm nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra.
Ventania. Estratos monstruosos correm do forte. Sobre o mar fica um laivo esquecido
que bóia nas águas – e não quer morrer...

Há na areia uns charcos onde se reflecte o universo – o céu, a luz, o poente. Não
bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar
inteiramente verde, que a noite vai empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida
e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida.

Em todo o dia, o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos
de poeira e sol misturados, água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas.
Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar
esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária.

Agora este, teatral, com largas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar
pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro que não sei descrever, feito com muito
pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu
efémero e a montanha roxa ao fundo prestes a desvanecer-se...

Agora é prata, daqui a pouco é oiro, e quando o Sol desaparecer de todo, ainda o
horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro desvanecido e pó de água que ascende
do mar. Um pouco de névoa e dois jactos projectados no céu – verde e oiro, oiro e
verde.

Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes
manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de
fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de
fogo e explode, iluminando o espaço e a água cor de chumbo.

Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre
o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e
tornam a reluzir. O Sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e
a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que
começa a meus pés, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. Ó meu amor, não
acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa
estrada fora direitos ao céu!

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O NEVOEIRO

Sol e azul e depois névoa. Às vezes começa em Agosto, outras em Setembro.


Uma barra ao longe anuncia-a, uma barra que cresce em fumarada sobre a terra, ou que
se dispersa correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado. Há outras névoas
no Verão que se descerram lentamente como cortinas, ficando o panorama límpido
como uma aguarela acabada de pintar. Outras têm léguas de extensão e levam dias a
passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando o nevoeiro parece dissolver-se, para
logo voltar mais denso e compacto. Às vezes vê-se entre a neblina um ponto da costa
cheio de luz, um rasgão no mar, uma única pedra iluminada entre o céu infinito e o mar
infinito.

Tenho visto também umas névoas esbranquiçadas que ficam lá para muito fundo
embebendo-se de luz. Névoa, um pouco de sol e brancura, tudo emborralhado. A onda
vem de longe, irrompe da névoa, e só se vêem os grandes rolos brancos revolvidos de
espuma muito ao perto quando se despedaçam.

Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinário. Aparecem primeiro uns flocos no


céu, e a luz tomou-se logo mais azul, pegando azul à pele, molhando de azul as mãos
estendidas. Depois a névoa, que no Verão dura segundos, doirou e subiu ao ar, tornando
o horizonte mais ilimitado e fantasmagórico...

As névoas anunciam o Inverno. Começam a vir os nevoeiros compactos, que se


metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. Há-os que têm léguas de espessura e
levam dias a passar, coortes desordenadas de fantasmas enchendo todo o horizonte. O
sino tange. Não se vê palmo diante do nariz. Lá fora os barcos, como cegos, só se guiam
pelo som. 0 mar é um misterioso fantasma que os envolve. Cerração cada vez mais mole
e espessa... Só a voz se ouve, e o lamento parece vir de mais longe e de mais fundo. Às
vezes adelgaça-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira crescem do mar
sobre a terra. É o Inverno que vem aí. A voz imensa tem já plangências de dor – desabar
infinito de lágrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre, coortes sobre coortes
que saem das profundas e avançam, deslizam sobre as águas sem ruído, enchendo o céu
de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se seguem em
tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de quando em
quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na névoa espessa que leva
dias a passar.

REDES

Na Foz são os pescadores que fazem as redes, sentados no areal, com a primeira
malha metida no dedo grande do pé, na mão direita a agulha com o fio e na mão
esquerda o muro. As melhores redes eram as de ticum e o melhor ticum o que se vendia
em Lordelo.
As redes são muito variadas. Há as redes da pescada; as robaleiras para o robalo
na restinga e fora da barra; os quartos para o sável; e para a solha que vive na areia e cor
da areia, uma rede especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando
vem do mar, é lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. Há

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também diferentes linhas e espinéis, para a faneca, para o robalo, que gosta das águas
remexidas e dos sítios onde rebenta a onda, para a enguia, que é tão voraz que nem
precisa de anzol, apanha-se com engodo, e até para o congro, no mar alto, tendo-se o
cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes, são terríveis, e
mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras.
Barcos, houve na Foz catorze catraias (já não há nenhuma), batéis para a sardinha,
que levavam quatro homens e seis peças, botes para a faneca e gamelas para o serviço
do rio. Tenho por estas quatro tábuas com o fundo chato uma especial predilecção. Foi
nelas que aprendi a gingar, o que se faz só com um remo e certo movimento de pulso, e
foi nelas também que aprendi a nadar à força, porque se voltam na ressaca com uma
extrema facilidade.
Quanto a quinhões, era assim: vendido o peixe, metade do dinheiro que a mulher
do pescador ganhava com a canastra tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze
partes para os homens, uma para o moço e duas para a embarcação. Assim, até os que
por sorte não apanhavam peixe tinham um quinhão garantido do mealheiro comum.
Ficava ainda uma pequena parte nas mãos do arrais para o tempo de Inverno, quando se
não podia ir ao mar.

PÁRAMOS

Estava na carreira de tiro em Esmoriz. Não via o mar, mas sentia-o no peito
dilatado. Perto de mim, uma moita de pinheiros novos; e as agulhas escorriam molhadas
de fresco. Uma nora, um choupo. Ao longe, as barracas de madeira agrupadas –
Páramos. Uma gaivota pairando sobre um charco... Para o outro lado, campos lavradios
com milho rasteiro que sabe a ar salgado, casas de lavradores perdidas entre sebes, de
telhados muito baixos onde secam abóboras amarelas.
Aqui, o pescador vive em barracas de madeira que têm o aspecto de povoação
lacustres. Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das
terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as
pesadas juntas de bois levadas à soga pelas moças. O lavrador associa-se ao homem do
mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede
que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à água. É um espectáculo
extraordinário ...
Isto está de todo apagado nos meus apontamentos, mas ainda hoje, depois de
tantos anos, tenho a impressão da paisagem de areal e pinheiros, do hálito azul matutino
molhando a vegetação e da claridade hesitando em pousar e o sol em aquecer.
Há manhãs à beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais
nada. Um pouco de tinta e frescura. A própria luz molhada estremece. O doirado tem
muita água e desbota. Uma gota de azul basta para o mar e o céu. E a manhã,
trespassada e a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvaneça como
fantasmas de manhã.

NO CABEDELO

O Cabedelo para mim era o deserto cheio de prestígio e de aventuras... Era no


Cabedelo que tomávamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre nós
a vaga num rodilhão de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da
onda, ser atirado numa sufocação sobre a areia, correr de novo para o mar, direito à

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vaga que se encapela lá no fundo, formando concha, outra vez aturdido e impregnado de
uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um côncavo quentinho de areia que nos
sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente naquele lençol doirado – é uma das
coisas boas da terra. E outro prazer simples e extraordinário E ir descalço pelo grande
areal fora com os pés na água. A onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de
espuma. Calca-se esse mosto branco e salgado, que gela e vivifica, e caminha-se sempre
ao lado dos sucessivos rolos que se despedaçam na areia. Ao longe o mar chapeado de
placas movediças... A onda vem, cresce e, antes de se despedaçar em espuma, o sol
veste-a de uma armadura de aço a reluzir. Há-as de um esverdeado de alga morta, há-as
que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e há-as que recuam e se enovelam
noutras ondas prestes a desabar. Mas há umas, esplêndidas, que vi em Mira, ao pôr do
Sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda forma-se e corre por aquela
magnífica estrada que vem do sol até à praia, ganha primeiro reflexos doirados na crista
e depois, quando se estira pelo areal molhado, fica cor do vinho nos lagares.
Outras vezes percorríamos o Cabedelo a pé como exploradores. Há lá canaviais,
poças de água azul e polida, rochas luzidias por onde escorregávamos, peixes nascidos
que procuram o refúgio das pedras e a água aquecida para se acabarem de criar,
caranguejos nas fisgas e, na vazante da maré, grandes lagos que navegávamos ao acaso,
deixando o barco ir à toa e encalhar no areal...
O Cabedelo produz, além das canas, uma espécie de cardo, plantas rasteiras e
humildes de folha dura, que dão uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os
chapotos que nascem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em
escama pela haste acima. Estes vastos areais, revestidos às vezes de cabelos de oiro que
seguram as dunas, estão todo o ano a concentrar-se para em Agosto sair daquela secura
e do amargo do sal, um lírio branco que os perfuma, dura algumas horas e logo
desaparece.

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A PESCA DA SARDINHA

Foz do Douro, Dezembro - 1900

Manhã. O traço do Cabedelo separa o azul do rio do pó verde do mar. O hálito


salgado que respiro renova todas as tintas, e a Outra Banda, como um biombo verde,
emerge no fundo do quadro. Azul – mais azul ainda... Vejo, agora que a viração do
norte arrasta para o largo os últimos farrapos de neblina, os barcos da sardinha que há
mais de um mês largam todas as noites para a pesca. A safra da sardinha começa no mês
dos Santos e acaba na Senhora da Guia. O batel, três homens e outras tantas redes. São
às centenas, é uma frota que distingo pelas velas para lá do areal, e que, no azul
desmaiado e na névoa a dissolver-se, parecem suspensos no ar. Todas as tardes entram a
barra uns atrás dos outros, em fila, para despejarem nas linguetas viscosas o peixe
miúdo que salta aos montões nos cavernames. Duas, três horas... É o momento em que
as mulheres saem das tocas: as Bexigas, a Papeira, a Maria da Viela, que passam a vida
pelas estradas com a canastra à cabeça e o pé descalço; as matosinheiras, as de Afurada,
quase sempre de luto, porque o mar lhes leva os homens e os filhos. Conheço-as todas
de pequeno. De Aveiro a Viana, do interior das terras, das aldeias solitárias do Douro,
entre paredões temerosos e compactos (lá em cima reluz uma estrelinha) dos sítios
perdidos de Trás-os-Montes, desce também neste tempo para a costa o formigueiro
humano que vem atrás do apresigo para o Inverno, do negócio que os tenta, e da fartura
que o mar prodigaliza. Não há terriola de seis cavadores submersa pelos montes, onde a
sardinha não chegue − viva da costa. É nesta época que reaparecem os bandos de
homens magros e tisnados, as mulheres descalças com a saia pela cabeça, para
disputarem a quem mais dá os lotes de sardinha dispersos no areal. Carregam-na os
almocreves nos burros canastreiros e os do Douro nos barcos rabelos de grande vela
latina, com o arrais de pé sobre a gaiola de pinho descascada; os vareiros às costas, com
a vara atravessada no ombro e um cesto em cada ponta, os regatões que a acamam em
gigos ou a salgam no fundo das barricas, as sanjoaneiras e as vareiras que de perna à
mostra e a canastra à cabeça correm pela estrada ribeirinha, a caminho do Porto: – De
Espinho viva! – E até os famintos esperam os dias em que ela é tanta que se dá a quem a
leva, fazendo-se o quinhão dos pobres. Os grupos discutem na lingueta, as mulheres
apregoam, e chegam mais batéis que despejam nas pedras os montes viscosos de prata.
– Quem dá mais? quem dá mais?
São seis horas. Reparem: desmaia a tinta azul e oiro da Outra Banda. O pó verde
do mar sobe outra vez em neblina. Ouve-se o chapinhar das redes que se lavam e o gras-
nido das gaivotas assustadas. As mulheres gritam. Sobem os lanços. Duas engalfinham-
se. Os almocreves caminham à frente dos burros inalteráveis. As vareiras carregam à
pressa as últimas canastras. Já um fio trémulo de lua vem reluzir na água, e depois, nos
peixes por vender. Bóiam ainda restos de sol esquecidos na lividez do rio, quando um
fogaréu se acende e aviva as primeiras sombras, num clarão que seria um achado para
um pintor de género...

Baleal, Setembro - 1920

Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu. Um hálito


fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundas – de toda

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essa constante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada. Sai dos farrapos da
névoa, dos laivos onde bóiam espumas, dos redemoinhos lívidos de cólera. A esta hora
o dia está de chumbo. No horizonte a claridade debate-se para irromper, e só ilumina
uma parte do mar em fusão. Não se vê ainda a costa. A névoa flutua em farrapos, e de
repente, lá do fundo uma espessa fumarada cresce sobre a terra. Só muito longe uma
nódoa azul esparralhada flutua à superfície das águas... Os barcos formam circulo para
além da baía, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se pre-
param para erguer a armação da sardinha – uma grande rede com um saco – o copo. A
sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescado-
res com a xalavara para dentro dos barcos. É uma onda de prata que sai da tinta azul.
Cheira a algas e a mar vivo. Impregna-me e trespassa-me. Deixa-me sal nos beiços.
Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os
últimos fantasmas e o panorama surge como uma aparição do fundo do mar.
Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe, violeta e vermelha, mais longe
roxa e diáfana, mais longe ainda perdida na bruma. Aqui e ali uma aldeia ao sol – o
Ferrel, Casais de Martim Mendes, a Atouguia da Baleia, e no espinhaço dos montes a
linha azul dos pinheiros. No fundo Peniche e a formidável cenografia do Carvoeiro, que
entra pelo mar dentro; à direita as Berlengas, que pelo recorte e pela cor parecem duas
nuvens pousadas no mar; à esquerda as terras cortadas a pique. Uma grande rocha no
mar, o Baleal, ligada à terra por um fio de areia, com uma baía ao norte e outra ao sul.
Distingo-lhe as pedras cor de giz, outras avermelhadas, outras roídas e estranhas, que as
vagas salpicam de espuma... Tudo isto feito de pó, e sempre duas tintas predominando,
a do mar azul e a do céu azul, uma esverdeada como uma solução de sulfato, a outra
infinita e etérea.
– Ala! ala!
Do fundo do mar continua a sair a sardinha, da onda cobalto a prata reluzente. Os
homens gritam. É a gente morena de Peniche ou do Ferrel que acumula, e que,
terminada a vindima, e recolhido o mosto nas cubas, vai, com as mãos ainda tintas do
cacho, apanhar a sardinha, que salta ao lume de água, a sarda e a moreia, ou com o
bicheiro fisgar os polvos, que se escondem nas pedras.
– Ala! ala!
Isto dura horas, dura o dia. No regresso já o sol desaparece atrás de Santa
Catarina, e a luz confunde-se com a luz do luar que tremeluz na esteira mágica do barco.
Cintila e some-se o farol das Berlengas, e mais longe reluz o do cabo, que é fixo. O mar
exala uma luz própria e tem outra cor. O mar é azul ou verde? Perto de mim tem todas
as tonalidades do verde, verdes-escuros quase negros, verdes de podridões, esverdeados
com restos de algas, espumas e babugens, e ao longe empalidece e sonha, desfeito em
poalha quase etérea. Há tons violetas esparsos, e tudo para mim se confunde, sonho e
realidade, quando a voz plangente se transforma em voz clamorosa: ao aproximar-nos
da costa o grande coro de lamentos sobe cada vez mais alto...

Apenas arrematada em Peniche, os almocreves levam a sardinha pela estrada, que


atravessa os campos areentos, os salgados, a Atouguia da Baleia, a Serra d’El-Rei até
Óbidos e S. Mamede. Nesta época é um vaivém incessante de cargas: o pavimento
arruinado cheira a salmoura. Sai pela via férrea.
Cada vez se inventam mais aperfeiçoados modos de a destruir, redes, aparelhos,
armações. Nem sequer a desviam do seu caminho. Às vezes os pescadores hesitam em
lançar a caça diante do banco formidável que, como o destino, nenhuma força modifica
ou altera. A manta obstinada e cega leva e destrói-lhes as redes, e segue o seu roteiro,
para, depois de desovar na costa, voltar ao largo quase intacta, apesar de todas as

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devastações.
O cardume, que foi força e vida misteriosa, que formou um só corpo e passou obe-
decendo não sei a que instinto ou a que inteligência superior, cai sobre Lisboa – como
vem de Setúbal, do Algarve e das praias ignoradas de toda a costa lusitana, das grandes
armações e dos pequenos barcos. É espalhada pelo país. Comem-na assada na brasa os
trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedaço seco de
broa. De Inverno é seca, mas pelo S. João pinga no pão. No norte o lavrador espera-a
para o jantar: é o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e
salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da
desova, sem cabeça e escruchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos da
salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. Há
quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no
lume a gordura que rechina. Há-os que só saboreiam a de lombo gordo e preto, e os que
acham muito melhor a miúda, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo,
afirmando com uma convicção respeitável que a mulher e a sardinha quer-se da
pequenina...

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A RIA DE AVEIRO

A PAISAGEM

21 de Julho de 1920

A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até
Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o
mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de
comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada.
De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar;
do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e aju-
da-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica
estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água da rega. Abre canais e valas.
Semeia o milho na ria. Povoa a terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes, obriga
a areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água, conquistando-a,
como na Gafanha, onde alastra pela ria. Aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga
e o escasso, – detritos de pequenos peixes. Exploram a ria os mercantéis, que fazem o
tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes marítimos, os rendeiros das praias
que lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os
moliceiros, que apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que são os
únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes usam a solheira, a
rede de salto, a murgeira e a branqueira.
O homem nestes sítios é quase anfíbio: a água é-lhe essencial à vida e a população
filha da ria e condenada a desaparecer com ela. Se a ria adoece, a população adoece.
Segundo Pinho Leal, em 1550, Aveiro tinha doze mil habitantes e armava 150 navios. A
barra entulha-se, a terra decai. Em 1575, com a barra outra vez entupida, os campos
tornam-se estéreis e a cidade despovoa-se. A alma desta terra é na realidade a sua água.
A ria, como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e produz. Todos os limos, todos
os detritos vêm carreados na vazante até à planície onde repousam. Isto é água e
estrume, terra vegetal que se transforma em leite e pão. Palpa-se a camada de terra
gordurosa sobre a areia. E além de fecundar e engordar, a ria dá-lhes a humidade
durante todo o ano, e com a brisa do mar refresca durante o Estio as plantas e os seres.
Uma atmosfera de humidade constante envolve a paisagem como um hálito.
Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro país esta região seria um
lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio
de água lhes chega e os encanta. É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se
aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos. É-o para os que se
apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que só se arriscam num palmo de
água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um
saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se
banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a
fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir no
céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica
um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que
querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de
todas as coisas. Eu por mim adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é este talvez o
ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria o ar tem nervos. A luz

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hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres, e até às
coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A luz aqui
estremece antes de pousar...

8 horas da manhã

A não. Um charco. Tomo um barco moliceiro. A chuva em poeira cai sobre os


campos verdes da Gafanha. A paisagem molhada escorre água e a ria lisa como um
espelho reflecte o céu baço. Mulheres vestidas de escuro, com grandes molhos de erva à
cabeça, saem dos agueiros como rãs, e uma cachopa atravessa a ria com as saias pelas
coxas, a pingar. Os longes esfumados perdem-se na bruma. A bem dizer, não chove: o
céu derrete-se. Silêncio. As terras baixas, atravessadas de regos e de valas onde a água
repousa e apodrece, embebem-se ainda mais desta água peneirada que não cessa de cair.
Ria cinzenta, céu cinzento, campos alagadiços e uma luz molhada que atravessa as
nuvens pegajosas e envolve os seres e as coisas no mesmo tom casto e uniforme. As
tintas desvanecem-se. Silêncio húmido neste paraíso da erva, coberta de um PÓ fino que
goteja. Largamos. Canais, poças, agua imóvel. Passo ao cabeço da Capela, passo ao
Forte Velho – antiga barra. A água escorregadia fecha-se logo sob o barco- Olho para os
fundos, mas no fundo emborralhado só distingo até Arnelas névoas sobrepostas, de
onde irrompe um único fio indistinto – a Vagueira. Ao pé de mim, ao pé da chapa
polida da água um moinho bate as asas e passa... Logo um canal estreito entre terras
estacadas para não esboroarem, a Carreira. Outro charco mais largo, cor de estanho, e
sempre o mesmo lodo cultivado, o mesmo tom baço, a mesma cinza caindo pingue-que-
pingue sobre a larga paisagem empapada e cheia de humidade: é o lago da Labrega,
quieto e solitário, num céu que se derrete em água morna. Um peixe faísca e toda a
superfície se arrepia para voltar à imobilidade. Um cabeço com ervas emerge à flor das
águas. Às vezes o barco faz marola, encosta à terra, pega-se no fundo, e os homens de
perna nua empurram-no à vara. Na antiga barra encalha, e para o levarmos temos de nos
meter todos à água. Vagueira, – dois riscos esbranquiçados muito ao longe – os faróis.
A ria alarga.
Com a manhã, que se adianta, as gotas de chuva embebem-se de outra luz
esbranquiçada. Ganham os tons baços transparência e uma claridade difusa bóia no céu.
Baba-se. A amplidão da água reflecte já outras tintas. A neblina a todo o momento
desmaia e a vasta planície vaporizada ilumina-se de uma luz cor de pérola que hesita em
pousar; os verdes são mais claros, as árvores suspensas no ar e as casas construídas na
água. Além à esquerda mostram-me os palheiros da Costa Nova – mas tudo ainda
adormecido na terra, no silêncio e na água. Uma tainha salta...
Depois desta série de canais e de charcos estagnados e polidos, na planície
baixinha feita com lodo extraído da ria, e com areais do outro lado, onde os sarraus e os
borrelhos piam, sob um céu empastado e baixo – encontro-me diante de uma amplidão
indefinida, onde a terra e a ria se confundem. É um sonho que se dissolve? Onde acaba
a água e começa a terra? Aquelas velas vêm da barra ou do mistério?... Ao pé de mim
dois homens arrastam uma chincha num barco estranho. Há-os com o costado por
pintar, há-os todos negros, com o grande pescoço esguio de cisne, no momento em que
volta a cabeça para trás, e com um toque de vermelho no leme... É gente da Murtosa que
habita esta bateira. De dia, em geral, dormem, à noite pescam. A ria dá enguia, pimpão,
tainha, solha e robalito. Levam ali dentro uma panela para a caldeirada, um cesto com
batatas, uma esteira para dormir no toldo que armam a proa, e um saco de malha metido
na água, para a enguia e a tainha se conservarem vivas. Mais distante um velho e um

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rapaz armaram um saltadoiro, com a manhosa estendida ao lume de água e segura com
espeques. Por largo lançam outra rede, o cerco, e o rapaz bate com uma vara no costado
do barco. O peixe assusta-se, foge, depara com a sombra, forma o salto, faísca como um
pingo de estanho, e cai dentro do curral, onde logo se emalha.
Coloquem estas figuras num fundo discreto, numa luz delicada, num ambiente
indefinido... Aqui o drama é o da humidade... As névoas têm na ria uma vida
extraordinária: cada gota possui uma alma distinta e irisa-se como uma bola de sabão.
De forma que não só as figuras se harmonizam com os fundos, mas a todo o momento e
à minha vista a paisagem húmida se transforma e muda de aspecto: afasta-se, prolonga-
se, não tem fim nem realidade. Ao longe árvores violetas nascem na água, o horizonte
ainda cinzento teima em fixar-se, mas espumas azuis já estremecem junto a reflexos
verdes. Bois pastam na água, um barco navega no interior das terras... A ria é mágica e
possui uma luz própria que a veste. Vem acolá uma vela vermelha que é uma nota
inédita neste sonho diluído em água... É este o momento em que começa a aparecer o
azul e que convém anotar. Dissolvem-se as névoas, mas deixam o ar carregado de
humidade, deixam a luz reflectindo-se em milhares de gotas invisíveis, deixam a
atmosfera impregnada de frescura e de vida. Esta passagem para o azul faz-se
lentamente até o azul dominar de todo. Atenuam-se as neblinas e ficam ainda farrapos
suspensos, derretidos nos agueiros, agarrados à terra e embrulhados nas ervas. Um
grande lanço de água vem até mim em pequenas ondulações azuis e por camadas
sucessivas, como estas manchas que os pintores acumulam nos quadros com a ajuda da
espátula. Junto ao barco a água reflecte um azul vivo e fresco como nunca vi. Longe
azul desmaiado, perto azul como tinta. Vejo diante de mim a amplidão azul, num
assombro. E todo este azul se põe a estremecer nos milhões de gotas extáticas de que se
compõe a atmosfera e que se impregnam agora e ao mesmo tempo da mesma cor...
Azul, azul, azul...

24 de Julho

Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão
de estrada, e fora de toda a realidade. Afigura-se-me que vivo num país estranho –
amplidão, água e sonho. Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da
Torreira... Que me importa! Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz,
esqueci o passado e esqueci o presente. A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de
enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a
marsola para lhe dar mais gosto. £ dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre,
sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento
do outro. É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água,
dos sítios escondidos e ignorados. É assistir à transformação das águas e navegar à vela
ao pé das casas e no interior das casas.
Distingo um fundo muito roxo – o recorte dos montes. Aqui a ria, mais larga,
aumenta ainda e divide-se, de um lado até Ovar, do outro até Salreu. É além, é além...
Casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas
do mundo. Mesmo à beira de água e reflectida na água, a Murtosa, aureolada de oiro:
algumas casas brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes em contraste e um
canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme estrambótico atravessado por
um pau. Aconchego e sol. A fantástica esquadrilha desdobra-se na água que estremece,
menos em certos veios que ficam lisos de propósito para reflectirem os mastros num
sarrabiobisco até ao fundo.

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Este lindo barco serve para tudo. Vai à pesca e carrega o sal e o moliço pelas
terras dentro. É o meio ideal de transporte entre estas terras ribeirinhas. Substitui os
animais de carga, as diligências nas feiras e é o encanto da ria. Tem não sei quê de ave e
de composição de teatro. Anima a paisagem. Às vezes usa uma vela latina, às vezes
duas, a segunda colocada à proa e mais pequena. Navega à vela pelo interior das terras,
e estou em dizer que é capaz de escorregar por cima das ervas. Por último chega a servir
de casa: tem um cubículo onde se dorme perfeitamente agasalhado. Não conheço outro
mais artístico, mais leve, mais adequado às funções que exerce e à paisagem que o
circunda. Esta manhã a ria está cheia deles que a cruzam em todos os sentidos, rapando-
lhe infatigavelmente o fundo tapetado de cabelos verdes. Amontoam-nos, metem-nos na
terra ou secam-nos no areal para o Inverno. Todo o horizonte está cheio de velas. Saem
da cinza e da noite, saem do sol e dos buracos alagadiços, do lodo e das nuvens. Um
rapaz ao leme e dois homens em cada barco, com os grandes ancinhos seguros nas
tamancas, vão rapando sempre, arrancando sempre à ria os seus cabelos finos, que só
resistem enquanto verdes. Tira-se o ancinho cheio de fios a escorrer e mete-se o moliço
na caverna. E o barco segue, levando à proa uma padiola com degraus para o
descarregar e ao lado uma prancha que lhe serve de segundo leme. Mal tocam na água...
Ao longe outros e outros ainda rapam, fazendo circuitos leves de andorinha. Rapam as
mulheres da lavoura, rapam os homens de perna nua metidos na água até à cinta, e acolá
anda um bando de cachopinhas a rapar, sempre a rapar, com as saias ensacadas...

4 horas da tarde

É neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se imaterializa e atinge a


perfeição suprema. S. Jacinto das Areias, pintado de vermelho e envernizado de novo,
revê-se no espelho límpido das águas. Adiante há um pinheiral na duna, pequenino e já
misterioso. À direita, em diferentes gradações de roxo, o vasto acampamento das salinas
estende-se muito ao longe até à serra. Azul, azul vivo, azul que a luz trespassa e
estremece, azul que não tem limites. Também a terra se prolonga e o amplo panorama
se torna irreal. Aqui a matéria não existe. As terras alagadas têm tanta transparência
como a ria. Distingo árvores, mas as árvores são traços de cor diluída e nascem na água;
adiante riscos de uma paliçada ou um pedaço de areia desvanecida... O que há é azul a
jorros, uma vasta amplidão indistinta como num sonho, cheia de ar húmido e envolvida
em luz carinhosa. As coisas são tão leves, que a luz as atravessa... Vogamos. Seis horas,
sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das coisas,
que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos aspectos de sonho
translúcido à medida que a luz esmorece e o barco se desloca. Às oito horas estamos de
novo perto da barra e o jorro que vem do mar parece lava fundida. O poente avermelha
as areias e acende na água um rasto de estrelas. Ardem as janelas da Praia Nova e
navego numa solução de sulfato com reflexos sanguíneos. Lá no fundo incendeiam-se
os borrões violetas das nuvens. Outra vez a amplidão se modifica. A todos os instantes
estremece e muda de cor, e a fantasmagoria aumenta com os espectros que saem da terra
e dos boeiros. São neblinas em farrapos que ascendem dos fundos. A humidade
alapardada entra de novo em cena e engendra nova vida. Reparo no céu... Como num
quadro inverosímil de Turner as névoas esgarçadas embebem-se em reflexos vermelhos
– cores delicadas de nácar, interiores de conchas, tons róseos bebidos pelas gotas de
humidade. A ria é uma grande poça onde Lady Macbeth lava sem cessar as mãos há
séculos, mas é no céu que se representa a verdadeira tragédia: os tons violetas da agonia
carregam-se e condensam-se; as nuvens ensopam-se de tinta mais escura e um grande

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véu lilás interpõe-se pouco e pouco entre mim e a paisagem. Todas as cambiantes vão
reflectir-se nas águas onde bóia ainda o doirado do poente. Sinto que a tinta que envolve
a paisagem morre a muito custo, e que toda esta humidade se quer fartar de luz,
transformando-se como numa mágica em explosões e cores desgrenhadas pelos ares e
em cenários irreais na terra cheia de mistério, até que um único risco de oiro ao cimo de
água, oscila, serpenteia e acaba por desaparecer num último arabesco...

Já noite regresso num barco de cagaréus que vão à festa de S. Tomé, em Mira.
Regresso deslumbrado. Tenho a alma a escorrer tintas estranhas. Estendo-me à popa,
farto de ilusões, farto de luz e entorpecido – entre um rancho de raparigas que cantam, e
que de quando em quando erguem a saia, saltam à água desembaraçadas, de perna nua à
mostra, e puxam o barco à sirga i105 sequeiros...

OS SÍTIOS IGNORADOS

5 de Julho

Mas o que tem para mim um grande encanto são os sítios ignorados da ria, onde a
água cismática encharca, embebida no céu e reflectindo meia dúzia de ervas e dois
barcos encalhados. Água esquecida ou pedaço do céu translúcido?... Acolá um borrão
azul empoçado diante de uma trincheira verde. E este azul entranha-se na terra baixa e
empapada, infiltra-se no subsolo, reaparece em fios e charcos. É inesperado e
imprevisto. Não se sabe onde vai ter. Estou na terra ou na água? é um lago ou um rego?
Uma vela navega entre campos verdes. É um saleiro. Ao longe na vasta planície
retalhada, correndo a par de um biombo de pinheiros, outro barco desliza sobre a erva
tenra dos arrozais.

...Outro canal. Carros de bois. A planície imensa cortada, riscada, atravessada por
fios de água que convergem para um canal mais largo. Há charcos verdes atufados de
nenúfares em flor, gordos e espalmados ao lume de água, com um botão branco a abrir.
Alguns tufos de árvores rasteiras desdobram-se na água negra e profunda. Mais poças e,
no Inverno e nos dias baços e parados, os ramos finos das árvores desenhando-se fio a
fio, à pena, na água adormecida. No ar adormecido e na água que não existe, porque
tudo parece atmosfera.
São terras impregnadas de água em baixo e envolvidas carinhosamente pela
atmosfera marítima. Um rasgão e avisto os montes de sal espalhados pelo campo farto.
Nos milharais andam grupos de cachopas enterradas até ao joelho e os arrozais
deslavados atiram para o céu as hastes com os pés metidos na água.

Um grande trecho liquido empoçado. Lodo emaranhado de valas e de regos.


Silencio e luz. Fios de terra encaixilhando a vasta superfície dividida em rectângulos,
com renques de árvores baixinhas torturadas pela poda. Silêncio húmido. Água imóvel.
O que eu queria dar só o podem fazer os pintores – os tons molhados, os reflexos
verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfície polida, e, por fim, ao
cair da tarde, a agonia dolorosa da luz. No céu não é a mesma coisa, no céu perde-se
tudo num momento... Nestas poças os dourados entranham-se misturados à podridão
dos verdes e levam muito tempo a esvair, agarrados à água numa aflição. Só aqui se
compreende bem o que a luz lhe custa morrer...

27
Isto, a bem dizer, é um charco. Tenho-os à minha porta que reflectem o céu e se
cobrem de limo verde, onde na Primavera se passa exactamente o mesmo drama da cor.
Apodrecem. Criam reflexos metálicos, verdes de rã, e resplendores ao pôr do sol. Não
duram nada... A questão é de tamanho. Tudo aqui ganha com a amplidão e é a luz o
grande pintor. É ela que nos ilude na atmosfera carregada de vapores invisíveis, que
transformam a terra entremeada de pedaços de vidro, de mil espelhos vivos que a
reflectem. Reparem... Acolá um homem à proa do barco esguio lança a fisga, a petarda,
espetando no fundo areento a solha ou a enguia escondida na lama. É nada. Mas na
figura escura, no gesto sóbrio não há uma linha que corrigir. A água polida estremece
um instante. As linhas reflectidas quebram-se e enrugam-se, para logo voltarem à
limpidez e à imobilidade – enquanto a figura elegante guarda ainda um momento a
atitude e o gesto. É um nada – é um quadro onde a luz tem o papel principal.

8 de Julho

Ao lado do areal onde se finca a povoação de Mira, há um resto da ria de Aveiro,


que teve aqui noutros tempos uma saída para o mar e que se chama ainda hoje a
Barrinha. É uma gota de água pensativa a cinquenta passos do mar. Canaviais e areias...
Mas a lagoazinha bebe a luz do céu e parece ainda mais melancólica e pacífica ao lado
do grande oceano atormentado. Não sei se faz versos –sei que sonha e que a certas horas
fica estonteada a contemplar-se. Ao pé do mar, ninguém a ouve, mas talvez seja essa a
poesia superior; talvez a poesia íntima e ignorada seja a mais bela e a única que Deus
escuta.
Alimentam a Barrinha dois veios de água doce da Fervença, que fazem moer
alguns moinhos primitivos. Quatro tábuas e o esguicho que sai de troncos de árvores
cavados, tão velhos que se babam pelas fendas. Em volta, areia alagadiça que o
pescador de Mira transforma em campos, à força de mexoalho e de sardinha. Todos
trazem a sua terra aforada, e nesta época do ano as mulheres vem da lavoura para casa
guiando à vara o barquinho carregado de milho. Às vezes a embarcação leve e escura
mete a borda na água azul e polida, cheia de abóboras amarelas, e uma passa por mim,
onde ouço um choro que não cessa. Levanto a cabeça para ver. O vulto esbelto da
mulher empurra o barco com a vara, de pé, à popa, num movimento compassado e fácil,
e, num berço à proa, uma criança embrulhada nos panos chora pedindo de mamar.
É aqui que se pescam as melhores tainhas, luzidias, negras, de cabeça chata, de
uma maneira original e que é talvez a maneira primitiva, anterior à linha, ao anzol e à
rede. O barqueiro lança uma esteira ao lume de água e vai guiando devagarinho o barco.
De repente, o peixe, ao deparar com a sombra, assustado, salta, cai na esteira e debate-se
até que o homem lhe deita a mão. Mais um momento... A tainha, atrás do pasto, procura
a libelinha que voa ao lume de água – faísca ao sol, cai na esteira. Outro peixe para
dentro do barco. Apanham-se também na Barrinha magníficas enguias, que o Luís
Milheirão, o grande homem da terra, transforma em saborosas caldeiradas.

1 de Agosto

Este velho braço, que liga a ria à Barrinha de Mira através da planície
humedecida, poça aqui, poça acolá, adelgaçando-se até chegar ao fio, ou alargando-se
até se transformar num charco, acaba enfim por desaguar no Anão. A planície coberta
de erva rasteira que as mulheres constantemente rapam para a curtirem nos estrumes,

28
tem um grande encanto de amplidão deserta. As rãs escorregadias saltam sob os pés, e
as noites, cheias de estrelas, parecem maiores e mais profundas. Meto-me num barco.
Deixo-o deslizar ao sabor da água, de mansinho, entre canaviais que irrompem do tapete
gordo de chapotas, de um lado doiradas pelo sol, do outro mais verdes ao sopé das
canas. Encolho os braços para poder passar. Silêncio. Um fio de céu em cima, um fio de
água em baixo, correndo sobre a areia que reluz. Ao longe, à superfície, grandes
manchas de sol movediças. Às vezes um canalzinho ao lado para a rega, cheio de folhas
espalmadas sobrepostas, camada sobre camada, e um nada de humidade que empoçou.
Um passadiço de madeira, duas tábuas atiradas de lado a lado, destas coisas rústicas,
que, pela simplicidade primitiva, têm o encanto dum quadrinho. Às vezes um pedaço
mais sombrio, quando as canas são maiores e mais espessas: água verde por baixo e um
céu de folhas esguias. Às vezes um espaço aberto onde o sol bate em cheio. De um lado
e de outro o areal cultivado. A cinquenta passos o mar. E aqui ao pé de mim, à tona de
água, mil reflexos – luz bebida – luz esquecida – luz parada. E o barco desliza sempre
ao sabor da água. Se a vida corresse sempre assim, para o mar eterno, neste sítio igno-
rado onde nem canta uma ave!...

5 horas da tarde

Agora o barco encalhou e a água está dourada até onde a vista alcança. Deixo-me
ficar, olhando para o fundo da areia. A meu lado há um verde que nenhuma paleta pode
dar, um verde vivo, um verde trespassado da luz que se coa pelos canaviais e todo se
arrepia à superfície do veio, ao mexer das quatro tábuas do barco, para enfim parar
absorto no silêncio. Bóia aqui nestas águas uma alma entontecida, humilde e tímida, tão
ténue que pode desaparecer num sopro de um momento para o outro. Existe, mas não
sabe bem que existe. É quase nada. Um fio de oiro, silêncio, um reflexo de luz... Andem
devagarinho com o barco – não vamos nós assustá-la.

29
PALHEIROS DE MIRA

A PESCA

Julho de 1922

Em todo o vasto areal que se estende de Espinho ao cabo Mondego, a pesca é de


arrasto e a grande abundância de sardinha, grande, média e pequena ou, por outra,
vareirinha, como lhe chamam no interior das terras. O areal e o mar ensinam e exigem a
pesca colectiva – um grande barco, uma grande rede e uma forte companha. A saída é
perigosa, e de um momento para o outro, a onda cresce e o barco não pode abicar. Daí
as enormes embarcações, as redes, as cordas e os bois para as puxar. Para o sul, até
Pedrogos, em Lavos, em Buarcos, a pesca é também costeira e de arrasto. Depois, o
pescador muda de barco e de processos.
Durante a safra, que dura oito meses, de Abril ao Natal, leva-se o peixe em cargas
pelas estradas da região, a dorso de cavalgadura – a sardinha que sabe a lombo de burro
dizem que é a melhor – ou em pequenos carros de bois que o carreiro guia pela fala,
sem se servir da aguilhada: – Vamos lá... Então...
Eixe... – E o boizinho paciente lá retoma o trilho à voz conhecida e amiga que o
guia e encaminha. Sai para a Bairrada, para a Anadia, para os hotéis do Buçaco e para as
terras longínquas. A todo o momento se encontra um macho, com dois ceirões em
perfeito equilíbrio, e ao lado o homem tisnado e seco, ou a mulher de chapéu redondo e
xaile, correndo pelo areal e pela estrada, com a saia ensacada até ao joelho.

15 de Julho

De Cantanhede a Mira são quatro horas de caminho. Pinheiros, sempre pinheiros,


e um cantar desabalado de cigarras como nunca ouvi na minha vida. Depois, num carro
de bois, a travessia do areal, sob a reverberação do sol, e por fim Mira, terra de
pescadores, palheiros de madeira estacados na ondulação da duna, que sobe como uma
vaga até ao alto. De um lado uma poça, do outro, lá no fundo, o mar levantando a areia
com o bater compassado e eterno. Atravesso o charco por um pontilhão. Subo uma rua.
Escurece. Palheiros, tábuas podres, estábulos de cavalgaduras e armazéns de salga.
Mulheres, crianças, porcos. Subo sempre entre barracas velhas, algumas com os pés
metidos na água; outras, lá em cima, derreadas e cambadas, defendendo-se da areia que
as subverte com paliçadas de pinheiro. Sombras, confusão de ruelas fedorentas e
escuras, falatório nas tabernas. Restos de peixe por toda a parte e de ceirões velhos que
apodrecem, entre a vida que pulula e ao ar do mar que vem do largo e tudo varre e
purifica. Com a noite a confusão redobra: a terra parece maior e mais escura. Continuo a
subir e lá no alto descubro enfim o mar, mais palheiros esparsos no esplêndido areal e
alguns barcos estranhos e arcaicos, que erguem até ao céu as proas e as popas
desmedidas.
Tudo isto foi um areal e um charco. O charco secou, reduzido à Barrinha; o areal,
que vem do norte até onde a vista alcança, estaca no traço lilás do cabo Mondego. Só
três cores dominam na amplidão do mar e na extensão da areia – o azul, o verde e o oca.
É muito grande e muito simples.

30
Manhã. Primeira ida ao mar das quatro e quarenta e cinco minutos. Um
serouqueiro do sul que envolveu de bruma a noite acaba de desaparecer. Mas da névoa
ficou névoa misturando-se ao azul e à frescura que dilata os pulmões e inebria. Um
rapaz, no alto da duna, sopra o búzio com as bochechas cheias, chamando a companha
para a pesca. O barco está pronto. Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o
puxar, homens nus metidos na água e agarrados às cordas, e a onda que salpica e os
alaga. Entra para dentro a companha. Refervem as ondas que o sacodem lá no alto... Os
fortes rapagões agarram-se aos quatro remos, a proa alvora... É este o momento
angustioso, enquanto se não safam da cova do mar.
– Eh arrais, carago, a maré é agora! – diz o João Custódio, revezeiro.
O arrais segura a corda, que é o único leme deste barco. Tudo consiste em saber
«ferrar a volta na ré» para o livrar do vagalhão – tudo consiste em destreza e pulso, se-
não o barco sacudido enche-se de água e vira. Dois homens, os caladores, ajudam-no a
soltar o extenso cabo enrolado à popa, que nunca mais larga da mão. Num instante se
livra da onda que quebra, mas a manobra é complicada. O barco tem quatro remos nos
quatro bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da ré e o do castelo
da ré. A cada um destes pesadíssimos remos se agarram quatro homens de pé nas
estorveiras, que ficam nos intervalos dos bancos, seis sentados e ainda outros, os
camboeiros, puxando os cambões – todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo.
O revezeiro, que ordena a saída para o mar, manda também em cada remo. Na parte
mais delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga, ajudados pelos
segundos.
O barco vai largando o grosso cabo com nós, que se chamam balizas, até ao
momento em que o arrais sente o peixe mais à terra, a aguagem, pela mudança da cor,
ou distingue o alcatraz que nas águas lúzias cai a pique sobre a manta da sardinha.
Outras vezes é a fervença ou gorgolhido que lhe indica onde está o peixe – pequenas
bolhas de ar que ascendem à superfície – ou mesmo a ardentia com que os grandes
bancos de sardinha iluminam o mar. Então o arrais de pé dá o sinal dizendo: – Em nome
do Santíssimo Sacramento, saco ao mar! – Toda a companha se descobre. Larga-se a
cuada de malha mais miúda, a manga, peça mais grossa, e por fim o cabo, que se
desenrola até à terra.
Voltam e o momento dramático repete-se. O barco vem no alto da ressaca. –
Larga! larga! – Os homens remam cantando. Inunda-os um jorro mais impetuoso.
Agora, é o arrais que na pancada do mar traz a corda na mão guiando o barco. Um
vagalhão de espuma vai despedaçá-lo e arrasta-o num último impulso pelo areal acima.
Dois rapazes, metidos na água, enfiam logo nas argolas do costado duas ganchorras de
ferro. Salpicos. Alarido. A companha salta em terra, jungem-se os bois às cordas, lança-
se o estrado de varais pela areia; sobre os varais, roletes; e puxado pelos bois e pelos
homens o barco enorme sobe, de proa voltada ao mar, e pronto para nova arremetida.

O espraiado imenso... A areia de oiro sem fim, desmaiada pouco e pouco e envolta
no fundo em pó das ondas – o mar infinito, verde-escuro, verde-claro, rolos sobre rolos,
e por fim, num côncavo junto ao cabo, desfazendo-se em espuma e brancura. Ao norte
névoa leitosa e viva, que sobe ao ar como um grande clarão branco. Água sem limites –
céu sem limites – areia sem limites – e a voz imensa, o lamento eterno, dia e noite, mais
baixo, mais alto, mas que nunca cessa de pregar...

Tenho diante de mim o fulvo areal, a agitação do mar até onde a vista alcança e a
agitação humana num quadro mais restrito. São quatro companhas e cada companha
tem noventa e seis partes, entre homens que vão ao mar, homens da terra e mulherio

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para os cestos. Junta-se mais gente que acode à venda, regatões e almocreves, mulheres
de saia arregaçada, chapéu e xaile, com as xalavaras e os baldes à cabeça. E este
movimento repete-se e redobra, à medida que os barcos entram e saem, porque fazem
três e quatro lanços cada dia. Aumenta a labuta com o lavar das redes no mar, com a sua
condução pelo areal, suspensas em bambinelas, às costas de cinquenta raparigas, em
cordão e aos pares, com um carro de bois à frente que traz o saco encharcado. E sempre,
num vaivém, sobem e descem a rampa de areia as juntas de bois, seis por corda, que vão
puxando os intermináveis cabos durante quatro longas horas, até o saco chegar a terra.
Gritos. Homens passam a correr, conduzindo cordas atravessadas num espeque.
São três horas da tarde. No mar grandes chapadas de prata na esteira do sol, que
no areal reverbera e ofusca. Julho. Nortada rija enchendo a boca de areia e de salpicos
de espuma amarga. Doirado e verde. O quadro é tão largo que se perdem as minúcias:
concentro-me neste pedaço de areia de uns poucos de quilómetros afogado em luz e
agitado de vida, no azul do céu e na onda que enconcha e estoira, repercutindo-se em
som e espalhando-se em pó esverdeado. Reverberação de sol, poeira de água luminosa
que vibra e estremece. Alarido de mulheres que saem aos cardumes dos palheiros. Içam-
se os pendões, chamando mais gente para o peixe. Grupos, cordões humanos, gente das
aldeias que acode à catraia. Um barco sai no alto da onda, outro regressa. – É agora! é
agora! – E os bois ajoelham sob o peso. Outros, mais longe, vagarosamente vão
puxando sempre a grande rede para a terra, agarrados às balizas pelas cordas. Sobem ao
alto do areal, tornam ao fundo, descem ao mar, entram no mar... Um rapaz agita o
barrete, e outro, ao longe, responde ao sinal regulando o andamento dos bois: – Arriba!
Arriba!
No alto o azul, no fundo o mar que desmaia e se dissolve em oiro no horizonte. A
brasa do sol ao mergulhar vai fazer explosão. Não há uma nuvem no céu; temos hoje o
raio verde com certeza. No areal os eternos rolos brancos espraiam-se e sucedem-se da
Costa Nova ao cabo Mondego. Já se vêem ao lume de água as primeiras bóias da rede,
os arinques, e a faina não cessa pela areia fora. Grupos enovelam-se. Muito longe, os
bois puxam outras redes. Uma junta foge e aumenta a confusão. Lá em cima, no dorso
do monte doirado, os carpinteiros de machado remendam dois esqueletos de barcaças...
Vêem-se agora as pandas: juntam-se os cabos e a boca da rede cada vez se aperta mais.
A vida atinge o auge. – Arriba! Arriba! –Todos deitam as mãos às cordas. Corre o
mulherio. Rapazes quase nus metem-se à espuma e agarram a rede. Os bois,
espicaçados, parecem compreender que o momento é decisivo: – Eixe! Eixe! – E lá em
cima retesam os músculos no último esforço. Depois largam o cabo, correm ao fundo,
entram na água, que esguicha, guiados pelas cachopas de aguilhada no ar e salpicados
de espuma. Aí vêm os outros: desligam-nos e tornam logo arriba. Mais depressa! Mais
depressa sempre! A onda enconcha, com um friso refervendo-lhe na crista a desabar – e
bois, cachopas. homens quase nus, agarram o saco, inundados de espuma que os
envolve. O último esforço... Dois rapazes saltam na água e apertam a boca do saco com
uma corda para o peixe não fugir. – Eh! Eh! – Mais gritos. O mar, cada vez mais
impetuoso, rebenta sobre o areal, rolo atrás de rolo, e os homens e os bois saem a correr
do vagalhão de espuma... Foi diante de um quadro assim que Ferdinand Denis
exclamou, assombrado:
– Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!...
As mulheres e os almocreves excitados deitam mão à rede e o saco sai da água, a
rasto pela areia entre laivos verdes que escorrem...
Já o sol desapareceu e não vi o raio verde. Só reparei nas atitudes para um escultor
fixar, nos movimentos admiráveis de presteza e vida, nas grandes linhas gerais. A cuada
está em seco, escorrendo babas de um verde náufrago. Iça-se um pendão num mastro –

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cortiça, farrapo ou cesto, e as mulheres acodem lá de cima à chamada, de gigo à cabeça.
Um último berro ecoa: – é o saco que vem cheio... – Viva! Viva! – Uma mulher
desdentada grita ao pé de mim: – Viva o homem e morra o peixe! – E dois velhotes
desatam a dançar.

O movimento mais apaixonado da pesca é sempre o alar das redes, que em Mira se
faz na areia – largo quadro para pintores que dessem em pochade o movimento, a cor e
a luz.
O grande saco negro estremece de vida, cheio de estalidos. Rodeiam-no as
mulheres com os cabazes no chão. Um homem de navalha em punho abre-o a todo o
comprimento e aquela prata remexe e ferve: carapau e lavadinha, mais escura, debatem-
se misturados, com reflexos de oiro e fogo nas escamas. Saltam-lhe em cima homens de
tanga e tiram-no para fora com o redenho. Separam o mexoalho e coisas gelatinosas
(medusas) de um azul-da-prússia carregado e de um verde suspeito e transparente.
Aparta-se o peixe da renda, o linguado, a tainha, e a raveta; o negrão, parecido com a
tainha, mas que se distingue por uma pinta doirada na cabeça, e porque dá só um salto
fora da água quando a tainha chega a sete; a faneca, de um verde transparente; a
esplêndida corvina, de um azul metálico na cabeça e com reflexos de oiro pelo lombo; a
listrada sarda; a azevia, mais chata e mais larga que o linguado; a lacraia, pequeno
peixe, com dois espinhos acerados, um na guelra, outro no dorso, que enervam e
adormecem a mão e o braço que se picam; os chocos e as lulas, fios verdes
emaranhados saindo de dentro de um saco e com dois olhos embaciados e fixos de fan-
tasmas. E as mulheres despejam nos gigos os montões de sardinha ou de chicharro
grande, que se chama charréu, e é de um tom baço de prata antiga. O rapazio, ágil, por
entre as filas de mulheres, mete a mão e rouba dois carapaus, uma chavelha, seis sar-
dinhas – o que pode.
Faz-se a praça. Os gigos estão em linha.
– Trinta mil réis! Quarenta mil réis! – Outro barco abica ao longe. Vai repetir-se o
quadro. Mulheres lavam os gigos. Grande algazarra lá no fundo. Foi um saco que
rebentou ao chegar à terra. O peixe foge e todos acodem à catraia. Homens, mulheres,
velhos e cachopos saltam ao mar e empurram-se, caem na água, gritam, barafustam. O
peixe é de quem mais apanha. Com as xalavaras ou à unha, metem os braços na água,
num coro de gritos e de risos, quando a onda vem, desaba e os inunda entre a apupada,
deixando-os encharcados e felizes...
Anoitece. Volto-me e quase grito de aflição. A lua cheia e enorme, toda branca,
surge sobre o areal avermelhado, e já no mar começa a desenrolar-se o grande mistério
da noite...

Lá no fundo ficou numa poça de água represada, onde a luz se demora. Para além
– e sempre! sempre! – a grande toalha de espuma, espraiando-se e sumindo-se na areia
molhada mais escura, onde os fios de luar vão reluzindo. Névoa – quase nada. O grande
areal indeciso desmaia. Ao sul o cabo escurece... Amplidão embaciada, frescura e mar,
onde apetece a gente mergulhar, entranhar-se, morrer e dissolver-se...

O BARCO

Vai cair a tarde. O azul desmaia sobre o areal doirado. Mais pó esbranquiçado lá
ao fundo para o norte – névoa ou luz que nasce, não sei bem; para o sul o morro
transparente que entra pelo mar... Três grandes barcos decorativos estão num grupo, de

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proa à água, que a toda a hora esmorece. Somem-se as casas denegridas, a agitação e os
homens; só o barco se me afigura cada vez maior, sobre a vaga imensa do areal, sob o
resplendor imaculado do sol, enchendo o céu e a terra com as suas grandes linhas
decorativas. À primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, só
cenário e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a
sustentá-lo, impróprio para o mar e para a terra – obra de lavradores que resolveram um
dia ir à sardinha. Os quatro remos pesadíssimos, com uma parte mais grossa e reforçada,
que se chama cágado, são coevos do alfange, e estes bicos aguçados, que tão bem ficam
no areal e no céu, não têm solidez nenhuma. Na realidade um barco destes, que parece
inútil, é um produto de engenho secular. Como não há porto nem abrigo e a embarcação
tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentação para
sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência
e saltar-lhe no dorso: – por isso ergueu a proa. E como a dança das ondas se sucede
durante alguns minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao
de cima: – e a popa fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do
espaço que vai de vaga a vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas
extremidades.
Estas grandes embarcações constroem-se na Lagoa, onde só carpinteiros especiais
lhes sabem dar o estaleiro necessário, e vêm em carros de bois puxados por doze juntas
até à Banha. São levantadas à proa, castelo da proa, e aguçadas até à ponta, bica; e
levantadas à ré com a sua bica na extremidade. No castelo da proa têm duas mãozinhas
salientes para as ligar à terra por uma corda chamada rangedeira, não as deixando
descair quando o vento as impele e elas esguelham, e quatro escalamões de ferro onde
entram os buracos dos quatro grandes remos.
Hoje só há em Mira quatro companhas, com os seguintes arrais: Manuel Maria
Patrão, Manuel Fé, Manuel Mirão e Gabriel Janeiro; mas já houve onze, comandadas
por José Patrão, Manuel Cera, Arraizinho, Tito Marrete, etc., todos mortos.

OS PESCADORES

Tudo aqui é pobre e humilde mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e
fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é
sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o
mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham os pescadores
não fazem mais nada – deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as
redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas
famílias numerosas melhorou muito desde que a Câmara lhes aforou terrenos no areal
para cultivo. São as mulheres também que, depois da sardinha disputada a lanço, a
levam à cabeça para a casa da salga, grandes barracões de madeira com manjedouras
encostadas às paredes para as bestas e um depósito de sal branco de Aveiro. É ali que o
almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em
água ensossa. Só em Mira há vinte desses barracões, onde, quando é muita, ou não tem
comprador, a metem em lagares de madeira e em domas, ficando de salmoura até chegar
o Inverno – quando o homem esfaimado a estende num pedaço de pão sabendo-lhe a
mais...
Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para
pescadores ou para um velho filósofo como eu. É construída sobre espeques na areia,
com tábuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida:
cheiram que consolam, quando novas, a resina, a árvore descascada e a monte; ressoam

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como um velho búzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo,
e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura
extraordinária, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão dois tijolos
para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal até Maio não há pesca: vão
cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos.
Além da jorna, que regula de quatro mil réis a dois mil e quinhentos por dia, todos têm
o seu quinhão nos dias de fartura – alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Fe-
lizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonados pelo Estado, que os rouba, co-
brando-lhes de fisco uma exorbitância, quatrocentos contos o ano passado e quase o
dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que
os instrua, um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens,
sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nas coisas
eternas (a capelinha de madeira está fechada) – esta gente é tão fundamentalmente boa
que há cinquenta anos para cá, não consta de um roubo, de um crime ou de um delito.
Pode-se dormir com a porta aberta. Eu nunca fechei a minha.
Quando chegam a velhos e não podem trabalhar, como não há um simulacro de
cooperativa, e a lei do seguro os não abrange, lá se socorrem uns aos outros como
podem. A miséria é quase desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos
e de cerca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer – é um mundo. A
vida aqui não é uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quase todos os dias
ouço as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de água. E
também não é uma exploração – esta vida pobre e humilde, sob a abóbada do céu, no
grande areal deserto, com Deus e o mar.

Até aos últimos anos ninguém enriqueceu em Mira com a pesca. A pesca é como o
jogo, uma questão de sorte, e as despesas muito grandes com os barcos, os armazéns e
as companhas. Já disse que cada companha emprega noventa e seis partes e doze juntas
de bois, que ganham cada uma catorze mil réis por dia. A companha despende por ano
cento e cinquenta contos e até há pouco só constava de um proprietário que tivesse
lucrado com o negócio, o Figueiredo, que passa por forreta. Os outros empobreceram e
ainda hoje se fala no Carradas, grande lavrador, que se meteu a proprietário e acabou a
pedir. Mas agora, com os preços excessivos do peixe, tudo mudou de figura. Já o ano
passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil réis. Que
fará este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? Há lanços de cinco contos, e já se
diz que alguns se sentam em libras sobre os buracos que abrem na areia para as
esconder. As casas de salga fazem também um grande negócio. Enriquece o almocreve,
o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca
acaba e o mar é deles...

Donde veio esta gente para o areal? É a mesma raça prolífica da beira-mar, que
nos enobrece e que eu conheço da Murada até
Leiria, os homens graves e serenos diante do perigo, e as mulheres trabalhadeiras,
sempre de chapelinho redondo e xaile. Levantam-se de chapéu, trabalham de chapéu,
deitam-se de chapéu e cuido que dormem com ele na cabeça. Nunca deixam a beira-
mar, como se a respiração do mar lhes fosse indispensável à vida e foram-se estendendo
sempre pela costa até ao Algarve, onde fundaram uma colónia em Olhão.
Estes, de Mira, vieram das proximidades, de Mira vila, de Porto-Mor, etc. Ainda
há memória de só existirem aqui meia dúzia de palheiros – o do tio Soldado, o do tio
Domingos Rabita e poucos mais. Na época da pesca acode gente do Seixo, Cabeça e

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outras povoações dos arredores.

Além dos barcos grandes, usa-se em Mira a robaleira e a manhosa, todos do


mesmo feitio mas mais pequenos. A robaleira leva rede de arrasto e doze homens de
companha, e a manhosa, seis homens e rede de emalhe, com três panos, os exteriores,
albitanos, um de cada lado do pano de dentro. A robaleira vai também ligada à terra por
um cabo, mas a manhosa não leva cabo. É para a tainha. Cerca-se e bate-se.

Há cinquenta anos que não lembra que morresse aqui ninguém de desastre no mar.
Às vezes a onda vira o barco, envolve os homens e deixa-os sem sentidos. Quando os
tiram por mortos, para fora do mar, metem-nos no sal como as sardinhas, «para lhes
apertar os ossos». É grande remédio, dizem. Ano passado, houve um que, depois de
estar no sal quarenta e oito horas, ainda tornou a si...

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MULHERES

Foz do Douro. Esta velha, crestada pela desgraça e pelo tempo, com sulcos de ve-
lhice e de lágrimas na cara, é que os impele para o mar. E o mar tem-lhos levado todos.
Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida. Mas quando o Inverno chega e a
fome aperta, é ela que os injuria:
– Má raios partam o mar! Então quereis morrer à fome e os mininos?
Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento, bebendo as
lágrimas e o cuspo do mar, e contendo o coração em farrapos, com as mãos negras
apertadas sobre a tábua rasa do peito.
– Quem lhe falta, tiazinha?
– O meu filho, o meu neto. Já o maldito me levou o pai, leva-me agora os filhos!
Andou toda a vida de luto. Viu-os despedaçados nas pedras, e deitou toda a
ternura que tinha para deitar. Mas incita-os, pragueja, empurra-os, para que não haja
fome em casa.
Só o mar dá o sustento e a morte. Há mais de um mês que dura o Inverno.
– Má raios partam o mar!
E corre com as redes à cabeça, a cesta no braço, e os soluços represados na
garganta, levando o neto atrás de si a rasto para o barco.
– Tenho chorado tantas lágrimas como aquele mar salgado!...

Ao escurecer, na Cantareira, passam da fonte as raparigas, com o cântaro à cabeça


e as mãos na cinta. É a hora do namoro. Param a conversar com os rapazes, que as
esperam nos varais. Em Mira é à clara luz do sol: elas sentadas, eles deitados de bruços,
atiram-se de quando em quando punhados de areia. Em Matosinhos, os pares vão de
mãos dadas pelo areal fora, enquanto a velha cautelosa espreita à porta e ralha:
– Olha lá se perdes a cortiça da marca, rapariga!
– Não há-de ter dúvida... – E sorri, envergonhada.
– Vai com ele para a praia e depois põe-te a barregar: Ó tio, á tio, deite para cá o
batei.

Há muitos traços que só descortino em sonho: uma velha com a boca desdentada
sempre a rir-se para mim quando eu passava. Esqueci a figura, e a fisionomia varreu-se-
me de todo – mas a boca, só com um dente a escorrer ternura, levo-a comigo para a
cova Outros pequenos quadros me recordam. Na.. das. Ranchos de raparigas que andam
lia maré à gravalha, de perna fina, curvadas e puxando para si restos de lenha. Os tipos
mais grosseiros das moças ruivas e sardentas molhadas, trespassadas de sol e de salitre,
que correm as estradas de Matosinhos, como as de calcanhar rachado que pisam os
caminhos de Esposende e as ruas de Gontinhães, cheirando a peixe, a alga e a sargaço,
com a canastra à cabeça e a perna nua à mostra. E entre todas elas, uma de pele doirada,
com una pique a maresia, que dava um instantâneo: esvoaçavam-lhe os cabelos loiros, e
o riso aflorava-lhe à boca sem querer, como se toda ela fosse riso: – Viva da Costa!
A sanjoaneira calca todo o dia a estrada ribeirinha, a vender peixe ou a fazer
carretos. Às vezes trazem os pequenos ao colo. A Papeira é mãe e avó de homens
louros, grandes como torres, dispersos pelo Brasil e pelo mar, e ainda ganha para comer
com a canastra. A Joaquina das Coxas não sei dela... A sanjoaneira traz a casa lavada, e
melhor do que lavada, trá-la asseada. É o hábito antigo, do navio. É esperta. Governa o
homem e dirige o negócio. Vende, apregoa e remenda. Não se deixa dominar pela

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desgraça. Conserva as redes lavadas e encasca-as. Trabalham tanto e mais que os
pescadores. Conheci muitas que, ficando com os filhos por criar, aguentaram a família
numerosa, vendendo peixe nas estradas.
Sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente. Ali
defronte são os tanques, onde vinte, trinta mulheres de saias arregaçadas lavam a roupa
suja. Gritos, rixas, alarido. Um momento de silêncio e ouve-se o bater compassado da
maré que vai, vem e lhes molha as pernas nuas. Pegada à minha casa fica a do Moutinho
– viela escura, trapos, peixe e dez famílias numerosas. E do outro lado a fonte de
granito, para onde passam as raparigas com as mãos na cinta e o cântaro de barro
equilibrado à cabeça sobre a rodilha.
Sei tudo. A vida vem para a rua a cada passo. Gritos de mulheres,
descomposturas... E depois de se atirarem os podres à cara umas das outras, acabam por
se engalfinhar pelos cabelos, enquanto o rapazio forma roda e as açula. Separam-nas. E
desgrenhadas, excitadas, é o momento em que dizem os últimos palavrões... – Saibam
todos... – Sejam muito boas testemunhas... – Acodem as do tanque e as da fonte. A vida
é ali exposta. Mais gritos. Enrodilham-se atirando os braços ao ar. Ninguém se entende
já. Vai haver mortes, com certeza – e cada uma parte para seu lado, com os filhos
agarrados às saias. Daí a bocado começam a passar as amigas, para casa duma e doutra,
com a caneca de café debaixo do avental...
Outra vez rebuliço – agora é na fonte. Balbúrdia. Algumas são desbocadas, e
aquela, no auge da fúria, curva-se e bate palmadas em certo sítio, sobre as saias –
quando não faz pior e o mostra... Então o barulho ensurdece.
– Bateste no meu filho, grande porca! – Arrolada! – diz a outra. Arrolada é a pior
de todas as injúrias... Dois cântaros partidos nas cabeças. A água inunda-as e refresca-
as. E tudo volta ao silêncio. Só se ouve cantar nos tanques e o bater compassado da
onda no cais. Aí tornam a passar as raparigas, com o cântaro à cabeça, a mão na cinta, e
um fio húmido a escorrer-lhes pela cara, apesar da cortiça que usam à superfície da
água, para não se espalhar o líquido...

A Murada fica da outra banda do Douro, casas apinhadas em duas ou três ruas
cheirando mal. Tripas de peixe pelo chão e uma vida que formiga nas tabernas, nos
buracos e nas crianças que se enrodilham nas pernas de quem passa. O tipo é o de
Ílhavo, de Ovar ou da Murtosa, não sei bem, que fundou uma colónia neste recanto do
Douro. O homem percorre incessantemente o rio ou o mar rapando-o, até ao fundo, do
mexoalho com que se adubam as terras, da solha nas areias, da faneca ou da sardinha na
boca da barra, e do sável quando ele vem à desova. As mulheres, altas, airosas e
trigueiras, trabalham como mouras. Tenho-as visto lançar as redes e remar naqueles
lindos barcos feitos com duas cascas de tábua, bateiras ou saveiras, com que os homens
atravessam a terrível barra do Douro, morrendo muitas vezes, volteados pelas ondas,
quando regressam com a borda metida na água. Mulheres que têm filhos às ninhadas e
que nem por isso deixam de correr as ruas da cidade, com a canastra à cabeça e o pé
descalço, o pregão na boca, e o mais novo ao colo ou deitado no fundo do cesto com um
resto das sardinhas à mistura. Andam léguas, são infatigáveis e já as vi lançar sozinhas
as redes do sável, puxá-las para a terra e dividir o quinhão.

A de Mira, feia mas esbelta, tem um ar grave e senhoril quase sempre. Lava as
redes, puxa os cabos, carrega os gigos, cozinha no lar enfumado com dois tijolos no
chão, e faz a lavoura – «o prazo». Em resumo, a mulher trabalha mais do que o homem
– trabalha o dobro do homem. Não sai de Mira, não vende o peixe, mas anda empregada
na companha, por conta do proprietário, ou salga, por conta do almocreve. No interior

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de tábuas possui um cântaro, dois potes, alguns farrapos nas paredes e uma enxerga
sobre os bancos. Vejo-as aos grupos, à espera que saia a rede ou à roda de um fogaréu
onde assam as batatas. Vejo-as, num carreiro de formigas, subindo e descendo o areal,
altas e direitas, do hábito de carregar o gigo à cabeça, ou à volta do saco, haste bem
lançada para o céu, sempre vestidas de escuro e o lindo chapelinho sobre o lenço. A
Florinda Rabita senta-se ao pé de mim e conta-me a sua vida de desgraça. Traz um
pequeno ao colo com o olhar inexprimível das crianças que sofrem, e mais dois se
chegam para ela. Sem espalhafatos, com uma dor contida e um ar modesto, fala do
homem morto e de três filhos para sustentar com alguns tostões por dia. Deita sangue
pela boca e todo o dia, empregada na companha, percorre o areal, para baixo e para
cima. Aguenta-se como pode. É um tipo dorido, destes que vivem e morrem com
dignidade, sem ninguém lhes ouvir uma queixa. De quando em quando vem-me à ideia
esta figura de doente, com os três filhos agarrados às saias, a carregar até ao fim, até
cuspir o último farrapo de pulmão.

Quando passei na Gafanha, vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre


metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí
treze ou catorze anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. – Outra tinha ficado
a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios
redondinhos – sobre aquilo, como diz a tia Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa...
A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores
conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo
areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris,
vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil
há muitos anos ( − É o rei dos homes!... –), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os
todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. A força que a sustenta é admirável,
profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-
se à vida – lavrou os campos. Vieram mais aflições e outras mortes.
– Então de que lhe morreram os filhos?
– Sei lá, a morte não se quer culpada. Era preciso sustentar a família. Pegou nos
bois e no carrinho e começou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais:
antigamente no Anão também havia companhas, e quando faltava um pescador a ti Ana
agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco.
– Nem do diabo tenho medo. Só tenho medo aos cães loucos. – A extensa planície
que atravessa, duas, três vezes por dia, é um deserto. A ti Ana vai e vem de noite,
sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o
moliço, novos netos para criar – e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida
é uma grande lição de energia.

A mulher da Murtosa, dizem os entendidos, não se confunde com a de Ílhavo e de


Ovar: é baixa e atarracada, e a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia
de predicados domésticos e morais. As de Ílhavo passam por as mais lindas, pelo sorriso
que encanta, pelo olhar, e pela magia que exalam. Que o agradeçam à ria. Todas as
mulheres da beira marinha são postas em destaque pela luz carinhosa que as envolve e
protege. Criam-se nesta esplêndida paisagem de água e cor, ao mesmo tempo pacífica e
delicada. No meu entender, a luz é o grande agente da beleza. A ria tem uma luz como
nunca vi em parte nenhuma. É doirada e viva, sem ser forte. É feita de água azul
trespassada de sol. Nem mesmo em pleno Verão senti que fosse dura. Abre como um
sorriso – morre quase sempre enternecida. É sã sem chegar à saúde exuberante. É sã e
delicada. Envolve os seres e as coisas do mesmo tom carinhoso e meigo. As mulheres

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desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um
sorriso de ternura. São como certas flores, criadas num momento feliz, que atingem a
perfeição. O que aqui fica bem é o vestido escuro e a limpidez de sentimentos. Esta luz
inteligente sabe muito bem que a arte é o encanto da vida e a mulher a suprema criação
da arte.

A poveira, a bem dizer, é um homem. Feia e rude, pernas como trancas. Já se tem
atirado para dentro das lanchas, obrigando os homens a arrostar com o temporal. Ou
eles, ou elas. São mães extremosas, e grandes parideiras de filhos para o mar. Quando
lhes chega o tempo, metem-se na cama, com um casaco ou uma calça dos homens pelos
ombros, esperando a hora com paciência. Só têm o cuidado de que a luz da graxa fique
acesa todo o dia e toda a noite no casebre, para que o minino tenha alminha.
O seu noivado dura pouco – o que dura sempre é a amarga vida trabalhosa. Dantes
o moço, em vésperas de casório, atava o lenço da noiva, como bandeira, à proa do
barco. Duas lanchas, as enviadas, iam apanhar-lhe o peixe para a boda. E elas fiavam
durante meses o ticum para as redes do casal...
Eternas sacrificadas, tiram-no à boca para aparelhar o cesto dos homens: vendem,
carregam as redes, lavam-nas, sem um fio enxuto no corpo, metem o ombro aos barcos
para os deitar ao mar. Acabada a pesca, todo o trabalho cabe à mulher, que fabrica a
graxa, que trata dos filhos, que faz redes, as lava e as conserta, e que vai vender por
esses caminhos fora.

E ainda o pior para todas estas mulheres não é serem bestas de carga, dias atrás de
dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas.
Quase sempre de uma beleza delicada, a mulher da beira-mar, com excepção da do
Algarve, que é «a prenda da casa», logo que casa carrega com quase todo o peso do lar,
cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevidência. Imprevidente é o homem, que gasta
na taberna tudo o que ganha. O lavrador é avaro: tira o pão da arca a medo, como quem
sabe o que ele lhe custa de esforços persistentes – o pescador, num dia de fartura, enche
a casa de pão. E o mar inesgotável não lhe foge... Mas ela não. Ela, remenda, poupa e
vai arrancá-lo à taberna. Conheço-lhes desde pequeno os extremos de dedicação e de
força diante da desgraça. Esta pobre mulher – terra virgem de ternura – merecia um
lugar à parte na nossa terra, pela sua abnegação, pela sua energia, e até pela distinção de
sentimentos. Em Mira o lar é sagrado. É-o em todas as povoações da costa portuguesa
que ficam longe dos centros corruptores.
Mas o trabalho pesado não é ainda o pior –o pior é o sobressalto constante da sua
vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o Inverno temeroso e a noite que não tem fim.
Fechada no casebre, à roda do lar, ela, o homem e a moça, com o filho no berço (ao lado
na corte os bois fartos esmoem) – sente-se tranquila: sabe que na arca puída há meio
carro de pão, o suor do seu rosto, e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o
tecto de colmo e o nevão cair lá fora. Ardemos raizeiros no lume e as traves de castanho
são eternas, O buraco tem alicerces de granito até ao fundo do globo. Quanto ao
pescador, esse há-de ir ao mar, único campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os
pequenos pedem-lhe pão e ele não tem outro ofício. O tempo está mau e dias atrás de
dias passam. – Sempre vou... – Ela sente o coração oprimido, mas cala-se. Sabe
perfeitamente pelas outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir
muito longe da minha casa!... Por fim diz: – Pois vai... – As redes, a cesta e ele
embarca. Fica sozinha na noite que não tem fim. Fica com ela um bando de pequenos, e
com o coração aos saltos põe o ouvido à escuta... A onda brame no cabedelo com um
eco prolongado. – Não tem dúvida, é o mar que chama o leste. – Mas agora, a voz é ou-

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tra, mais funda, o vento mudou para o sul e a barra cerra-se. – Irão arribar a Leixões?...
– Que tempo no mar alto, na noite trágica, e só negrume em roda! Nas mãos de Deus!
nas mãos de Deus!
Cabe-lhes sempre o pior quinhão da negra vida. Trabalham o dobro dos homens e
vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais.

Conheço na Foz esta mulher a quem chamam a Rata, corcovada, com uma saia
pelos ombros, a apanhar peixe roído que lhe atiram por esmola – um cação, uma raia ou
uns punhados de sardinha em dias de fartura. Velha, dura e negra, cheirando a peixe
entranhado nos farrapos e a sal de sardinha, vive na Corguinha, entre pedaços de rede e
de tábuas que o mar atira à costa. Passa o Inverno na ressaca a apanhar o moliço com as
mãos. Não tem ninguém. Não fala nem pede. É a Rata, que corre as linguetas mal
chegam as catraias e os batéis. Uma vez perguntei a um velho meu amigo, que está
sempre de cachimbo na boca, quem ela era.
– Não sei, é a Rata.
Morou muito tempo em Sobreiras – e era a Rata das Sobreiras. Depois mudou
para a Corguinha, onde vive num buraco que empesta a graxa de peixe e a raias
escaladas. Passam-se às vezes semanas que ninguém vê essa figura descarnada, suja,
com a saia de remendos pelos ombros. Mas chega o Inverno, e nos dias de perigo a Rata
é a primeira a aparecer. No céu lívido, espumas que o temporal atira à costa. O
camaroeiro içado. Nos penedos, os grandes rolos coléricos despedaçam-se em ribombos
que ecoam, erguendo até ao céu esguichos de água com laivos amarelos dos fundos. A
voz é temerosa. Os homens estão em perigo. Aparecem as mulheres desesperadas. Já se
sabe que vai morrer alguém.
Não se suporta o vento acolá no farolim, ou nos penedos da praia. Só a Rata está
de pé, no meio do temporal, e ignora o clamor; não dá pela água que a açoita, nem ouve
os gritos das mulheres. Parece uma estátua sob o céu de chumbo. Todas as outras
rezam. Um momento de ansiedade. Corre-se ao salva-vidas. Vida ou morte? Todas
ajoelham com os braços atirados para o céu – e a Rata continua impassível como o
destino; seus olhos fixos não se despegam daquele espectáculo tremendo. Nem um
estremeção, nem um gesto.
– O estupor da velha!... – murmurei.
E então aquele homem calado, de cachimbo na boca, disse-me baixinho, ao ou-
vido:
– O mar levou-lhos todos...

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PEQUENAS NOTAS

PEIXES

A raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira), menos em
Maio, porque «raia em Maio, tumba à porta», e a faneca com três fff – fresca, fria e
frita. Cada peixe tem a sua época: «a solha, no tempo do milho, come-a com o teu
amigo», a sardinha antes da desova e o próprio caranguejo só lá para Agosto é que,
assado na casca, atinge a perfeição. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o
lume: tem um sabor único a mar, e até a reluzente savelha e o horrível cação, lavados e
amanhados na maré, se tornam toleráveis. Quanto ao linguado, ao goraz, à corvina, à
gordíssima sarda, à pescada e à saborosa sardinha, para não falar dos peixes hoje quase
desaparecidos, do rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume
quem os não trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz, sobre uma
cama de algas e de limos. São então esplêndidos assados, fritos, de caldeirada, com um
fio de azeite, ou preparados pelo próprio pescador sobre umas brasas.
Quando a maré vaza, os pescadores procuram a serrada para iscar os espinéis, e a
praia fica a descoberto: as poças de água são jóias cheias de reflexos entre o lodo, e cada
penedo com a sua cabeleira escura de sargaço – verde húmido e translúcido – é um ser
vivo. Em todas as poças faíscam as enguias que se metem nos aloques, o caranguejo
traiçoeiro e voraz, que espera a presa na sua clausura de pedra, as mantas de pequenos
peixes por criar, reluzindo quando, num movimento brusco, mostram ao mesmo tempo
o ventre esbranquiçado, e um bicho mole como a lesma que se arrasta pelo limo. Há
fragas enormes, roídas, veneráveis, cobertas de lapas aderentes, de mexilhões aos
cachos que, sentindo gente, fecham logo a casa, e onde o azul empoça em buracos que
reflectem o universo: cabem lá dentro o céu, a luz e as estrelas.

A toninha, que anda sempre atrás do banco da sardinha, afigura-se-me o ser mais
feliz do mar. Tem a mesa sempre posta – e inesgotável. Folgam como um bando à solta
de rapazes. Dão-me sempre uma impressão de liberdade e de vida deliciosa... Saltam,
vê-se-lhes o dorso reluzente, mergulham e irrompem, com o costado azul a escorrer,
quando menos se espera, lá ao fundo... Às vezes vêm pela barra dentro, na onda e na
espuma, no jorro impetuoso, quando o mar, como um seio que cresce com volúpia e se
dilata, se mete pela terra. Setembro – marés vivas.
– As toninhas! – Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um à proa
leva o arpão, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o
mar.
Entre estes bichos e outros que conheço, pavorosos, há um salto enorme de
pesadelo.
Vi as tremelgas nos fundos espessos e lívidos entre os grandes penedos do Baleal,
onde as águas têm a cor horrível das morgues. Pior que podridão – e lá para o fundo um
remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de
pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que
palpitam, dum verde indistinto e eléctrico. São as tremelgas, que vêm aos milhares à
superfície, não sei como nem para quê, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o
contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrâneos
esverdeados onde a luz não penetra – e fujo! fujo!...

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LUZ E COR

O mar às vezes parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul
transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera.
De manhã desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é
extraordinário, quando a névoa espessa pouco e pouco se adelgaça, e surge atrás da
última cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes
bóiam na água, esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com
restos de onda que se desfaz e redemoinha até ao longe. E ainda outros azulados, com a
cor das podridões. Tudo isto graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há
momentos em que me julgo metido dentro duma esmeralda, e, depois, numa jóia
esplêndida, dum azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando
exala-se como um perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é
simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem uma alma delicada e
extática.

AVES

Ao fim da tarde, sento-me no paredão do farolim. O mar calmo, a Outra Banda


verde, a costa perdida em bruma violeta e o cabedelo entre o rio azul e o mar azul. Atrás
de mim acende-se o farol, e na areia um bando de gaivotas aninhadas grasna baixinho.
A felicidade é aquilo. Mergulham, patinham na água e levantam voo de repente,
embebendo-se no azul para caírem a prumo sobre as
mantas de petinga. As mais novas, as grazinas, nadam numa poça, outras
desfolham-se em revoadas sobre a onda e outras andam à tripa na restinga. Tenho visto
muitos ninhos, mas nunca encontrei pedras nem ninhos de gaivota...
Ei-las outra vez que se juntam num grasnido insolente, com os pés metidos no
azul... Um bando de maçaricos-reais voa ao lume de água. Do mar cresce o pó verde. A
capelinha do Senhor da Pedra, lá ao longe, ainda reluz. Mas os ninhos... Só mais tarde,
muito tarde, é que descobri que as gaivotas, os borrelhos e o alguivão, fazem ninho nos
areais despovoados, chocando num buraco os ovos pintalgados. Fazem-nos também, e
principalmente, nas Berlengas. Aquilo é delas e do céu. É um espectáculo enternecedor
vê-las de pé sobre uma pedra e à roda os pequenos grotescos a nadar. Por um hábito
secular, têm como inviolável esse asilo. Quase não fogem ao homem, e ninguém devia
ter o direito de lhes tocar nessa época de ternura.
Uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos, Madame Russell Sage,
comprou na Luisiana a rocha de March Island para lugar de nidificação das aves
perseguidas. É um refúgio no mundo. Daqui saúdo Madame Russell, ou a sua sombra,
se já não existe. Se eu fosse rico, comprava também ao Estado as Berlengas para as aves
marinhas fazerem os seus ninhos, livres da ferocidade humana, que não tem limites, e
que até lá as vai procurar para lhes destruir a criação.
Entre todas estas aves, há porém umas, que vi no Baleal, que me interessaram ex-
traordinariamente. São as galhetas, que começam a passar em Setembro. Ao escurecer
ouvia entre o barulho da ressaca vozes baixinhas e agourentas de bruxedo. Eram as
galhetas, que andam sempre aos bandos e pousam nas pedras, ao rés de água, para
dormir. Como senhoras vizinhas, antes de fecharem o olho, conversam de pouso para
pouso. Rumor mais alto, mais baixo... Uma risada.
– Que é? Que é? – ouve-se distintamente.

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– Quem é? – E logo outra: – Matou-a! Matou-a! – Uma risada sarcástica e depois
um coro: – Olá! Olá! – É noite – calou-se tudo, menos o mar, que fala sempre.

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A MORTE DO ARRAIS

FOZ DO DOURO

Dezembro - 1893

Chegam os dias de Inverno, e aquela voz colérica, que ouço desde pequeno,
engrossa e mete medo. É um rebramir que acaba sempre na mesma nota profunda – u-u-
u – que entra pela terra e pelas almas dentro. Andam enrodilhados no ar farrapos de
nuvens e espuma, que o vento cospe para o alto. Céu desordenado e negro como as
águas. Os barcos da Foz, da Murada e da Póvoa vêm arribados e procuram recolher-se a
toda a pressa. Dominando a ventania, o bramido do mar ecoa cada vez mais alto: é outra
voz imensa e trágica, clamorosa e trágica... A barra cerrou-se de todo em novelos sobre
novelos de espuma esverdeada. Lá fora, para além da arrebentação, vinte, trinta barcos
esperam uma acalmia para entrar. Grandes nuvens desgrenhadas pela lufada dispersam-
se nos ares. A voz da tempestade e no céu a lividez da morte... Escurece mais: no
horizonte fundo remexem cóleras indistintas, e quando a vaga se levanta, vêem-se os do
mexoalho nos saveiros – quatro tábuas –algumas lanchas da Póvoa e as catraias da Foz
esperando o momento decisivo. Durante alguns segundos aquela cólera aplaca-se: fica
então um corredor estreito onde o mar não quebra, que é preciso atravessar a toda a
pressa, à força de remo, num curto espaço de tempo, entre a vida e a morte. Tenho-os
visto hesitar e desaparecer enovelados a cem passos de distância. O piloto-mor está no
cais e o salva-vidas a postos. Pelas estradas acode o mulherio, com a saia pela cabeça, a
correr, gemendo e chorando, cheias de angústia e de lágrimas. Algumas são muito
velhas e trotam desengonçadas com gritos de desespero:
– Ai o meu rico filho, que o não torno a ver!...
E a voz sobe, a voz redobra e aumenta, vagalhão sobre vagalhão que se despedaça
nas pedras, domina o vento e os gritos, e varre em catadupas cerradas o farolim, o
cabedelo e o cais, coorte atrás de coorte monstruosa, alagando tudo de espuma, numa
fúria que chega às nuvens.
– Ai Jesus! Ai Jesus!
Mais gritos, mais mulheres de todos estes sítios, com a boca torcida pela dor,
salpicadas de espuma e amolgadas como trapos, com os pequenos agarrados às saias.
– Diz-me o coração que o não torno a ver.
– Não desespere, tiazinha. Talvez arribem a Leixões...
Vida de sobressalto, o coração retalhado, correndo sempre a costa, primeiro pelos
homens, mais tarde pelos filhos e depois, pobres destroços sem serventia, pelos netos,
mal podendo já com a carcaça, e vendo-os desaparecer um a um naquele mar profundo.
O piloto-mor mandou içar o camaroeiro, e, com a bandeira na mão, vai dar o sinal
aos pobres seres, só angústia, perdidos na bruma, na cólera, na luz esfarrapada e
lúgubre. O salva-vidas está a postos – mas quem se atreve?... Duns aos outros não
medeiam talvez quinhentos metros – a morte. O cais está cheio de gente, todo o cais
grita de dor. Estão aqui as mulheres, as mães, as velhas com a garganta sufocada, e que
perguntam, numa ânsia:
– Viram-nos? Viram-nos?
– A lancha onde anda o seu homem não está na barra.
– Oh Jesus!
– Talvez não tivesse chegado ainda, talvez esteja já em Leixões.

45
E um velho pescador explica: – Está aí a companha do Jacintro. Vem lá ao fundo
outra com a vela rasgada. Esperem... esperem.
– E os da ti Ana?
– Por ora não se sabe deles.
– O meu rico home! O meu rico home!
Reparo num grupo petrificado. Fixo uma mulher alta, ossuda, com cara de cavalo,
toda vestida de escuro, que geme baixinho a meu lado. A roupa encharcada pega-se-lhe
ao corpo, as mãos magras e tisnadas, de unhas roídas pelo trabalho, fincam-se-lhe no
peito para conter os soluços que lho estalam.
Geme sempre, e os olhos tem-nos presos ao longe no negro torvelinho de mar e
céu que se confundem. É das poucas que não gritam, é das poucas, talvez, que
compreendem... Mas não cessa de gemer, – não pode abafar de todo aquele rangido que
lhe vem de dentro, e que é talvez o próprio coração esmigalhado pela desgraça... Mais
adiante estão aquelas mulheres atarracadas e grosseiras da Póvoa, de saias pela cabeça e
que exteriorizam a dor com espalhafato. Três homens, de sueste na cabeça e fisionomia
grave, perscrutam e procuram adivinhar o momento em que o mar acalma, farto de
violências. Na barra, para cá do cabedelo, o salva-vidas dança. Mais gritos. Um bando
de mulheres chega à última hora, vindas de mais longe, com as mesmas lágrimas e os
mesmos olhos de pasmo. Detenho-me em frente de outro grupo, com os pequenos
agarrados às saias... Só aquela, acolá, é que não chora – como quem sabe que as
lágrimas são inúteis, ou porque não tem mais lágrimas para deitar. Continua a gemer
baixinho, na última trituração da dor.
– Senhor dos Navegantes, acudi-lhes! Meu rico Senhor!...
Mas o mar e o céu exigem tragédia. Alguns homens arriscaram-se a ir para o
farolim e espreitam para longe.
Longe é uma barafunda turva, um esvurmar de cóleras, um redemoinho onde só se
distinguem alguns mastros oscilando, e quando a vaga cresce, os barcos sacudidos no
alto da vaga. Rolos formidáveis desabam sobre o penedo do Cão e galgam o cais co-
brindo-o de água a referver. Depois as águas recuam verde-escuro, em placas movediças
que deslizam sobre tons lívidos, babugens e riscos amarelados de areia que veio à tona.
Acolá ao fundo uma claridade turva, uma nódoa imóvel, talvez o sítio do sol; em
baixo um movimento confuso de águas com pedaços de nuvens arrancadas ao céu
fúnebre. Por fim, um largo espaço onde uma luz difusa incide e onde se passa uma
tragédia maior. Não é a tempestade, é a ameaça; não é a desordem, é o pavor suspenso.
Na barra as ondas avançam cada vez mais altas e mais cerradas, primeiro com uma
crista lívida de espuma e depois a desabar em catadupas de água, em esguichos de água,
em massas que se embatem revolvendo-se, enquanto outras se preparam lá para o largo.
Varrem a costa, despedaçam-se nas pedras. Carreiros é um torvelinho esbranquiçado; no
cabedelo, em Lavadores, até onde a vista alcança, o mesmo desabar infinito – toda a
costa alastrada de espumas. E a voz imensa deste marulhar de água agitada sobe cada
vez mais alto e enche todo o espaço dum clamor que mete medo – u-u-u...

É agora! É agora! O piloto-mor dá o sinal com a bandeira. Do seu olhar, do seu


saber, da sua experiência, depende a vida daqueles homens. É agora! Os barcos,
levantados no alto da onda ou arrastados para os abismos cavados entre vaga e vaga,
avistaram-no lá de longe. Alguns mais atrevidos remam. No cais toda a gente sufocou
numa rodilha de dor assombrada. As mulheres caem de joelhos.
– Pedi por eles, Senhor Jesus Cristo!
– O meu home! O meu rico home!
E as da Póvoa arrastam os joelhos nas pedras, gritando:

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– Ó coração de Maria, pidi ao Senhor por eles! Chagas abiertas, Coração ferido,
sangue derramado de Nosso Senhor Jesus Cristo, ponde-vos entre eles e o perigo!
Uma bate punhadas no peito, outra rasga a cara com as unhas:
– Perdão para o meu filho nessas águas màrditas!
Aquela horrível suspensão dura dois minutos, três minutos. Alguns barcos passam;
outros hesitam retardados e apanha-os a vaga, que os sacode e despedaça entre cóleras e
espumas. No cais um grito – um grito inútil. Má raios partam o mar!
Lá vem agora a nossa catraia. Conheço-a e quase distingo um a um os homens
curvados sobre os remos. São dezasseis vidas, contando com o moço, são dezasseis
corações diante da morte, a dois passos das mulheres que lhes estendem os braços. À
volta as ondas redemoinham. Sufocados, curvam-se e endireitam-se, mãos nos remos,
pés nos bancos, num último esforço desesperado, fazendo parte do barco, corpo e tábua
tudo ligado e unido numa só peça. Alguns remos partem.
De pé, à popa, meio nu, agarrado ao leme, o arrais injuria-os para lhes dar ânimo:
– Ah malandros! Ah ladrões! Ah filhos duma grande..., remem! Remem! Força
agora!...
E a mão convulsa não larga o leme. Logo atrás do barco a vaga é monstruosa a
desabar sobre eles – sempre maior! sempre mais perto!...
– Remem! remem! – berram de terra.
E os gritos no cais confundem-se num grito, e o rebramido ecoa nas almas. Um se-
gundo, dois segundos, e estão salvos... Mas a onda quebra. Desaba em catadupas e outra
enrodilha-os logo. O clamor das mulheres confunde-se com o eco da tempestade e é
disperso pela lufada. O salva-vidas apanha um, outro acolá agarrado a um remo... O mo-
ço! O moço!... O vento cresce, do mar mais escuro avança o negro torvelinho...
– Já não entra mais nenhum. Vão arribar a Leixões.
E as mulheres lá correm outra vez pela estrada fora, as saias pela cabeça,
encharcadas de água, com o mesmo anh! anh!... de aflição, gemendo, chorando,
implorando. Algumas velhas têm o olhar fixo do espanto e as mãos enclavinhadas sobre
o coração que já não pode mais. E rangem anh... ahn... Trôpegas, descalças, sob o
aguaceiro que desaba, tão amolgadas pela vida que parecem farrapos molhados de
lágrimas e cuspidos de espuma. E lá seguem... – Talvez entrem em Leixões – ... E lá
seguem tendo caminhado léguas, rezando, suplicando, chorando, ou, pior, emudecidas
pela dor, a tábua do peito apertada, a boca entreaberta e os olhos fixos no mar... – Ai
Jesus! Ai Jesus!...

O arrais é encontrado ao outro dia morto no cabedelo. O mar partiu o barco pela
quilha, enterrando na areia a carcaça intacta da ré, e torceu-lhe o braço como quem torce
uma corda. Mas nem o mar nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mãos
crispadas.

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ALGUNS TIPOS

Conheci muitos pescadores na Foz. Conheci o Bilé e o Mandum, que findou a vida
a passar inglesas para Lavadores. Conheci os Condes, dois irmãos secos, denegridos,
ambos mortos no mar; os Jeremias, um que acabou embarcadiço e o outro piloto da
barra; o Joaquim Banheiro, ruivo e alto, com desenhos nos braços que eram o meu
envelo – uma âncora e um coração atravessado por uma seta; o manhoso Tarrafa, de fala
retardada e voz pastosa e lúbrica, que convidava as moças para irem com ele à praia
«alar um espinhel»; o João Mouco, que com uma linha e engodo pescava comigo
enguias na lingueta da Cantareira, entre o alarido das mulheres e o salpico das ondas na
enchente... Lembro-me dos que moravam na tortuosa Corguinha, lajeada de grossos
seixos, e que corriam com um ruído estrondoso de socos quando largavam os barcos dos
pilotos. Vejo-os nos seus sítios, ouço-os falar, aos vivos e aos mortos, no minuto em que
se fixaram na minha memória como uma série de instantâneos, uns apagados, outros tão
nítidos que lhes distingo a cor do pêlo. Acolá à porta do armazém da Pensão está
sentado um velho a desfazer cabos para estopa com os dedos grossos e hesitantes. O
Teca, que correu todos os mares da África e do Brasil, conserta a rede no varal.
Ninguém como ele sabe onde dá peixe. Cheira-lhe. Na revessa do cabedelo apanha o
pimpão e a faneca e com a chincha o peixe miúdo nos charcos da vazante. Todos os dias
sai no caíque para largar os espinéis, ou vai na robaleira para a boca da barra. O Teca,
apesar de velho como a serpe, não tem idade determinada: conserva o cabelo cor de
estopa sem uma branca, e os dentes todos. E com esta é a quarta vez que casa.
– Ó sr. José, então agora... e com uma rapariga?!
E ele, sem se alterar:
– Eu cá, menino, é até à morte mulheres e espinéis.
Lembro-me do Manuel Calafate todo o dia a meter estopa nos interstícios das
tábuas, e dos carpinteiros de machado a remendar os barcos dos pilotos à sombra das
três primeiras árvores do Passeio Alegre.

O homem da Maria da Viela viveu e morreu piteireiro. Nunca falava: sorria


sempre, com o olho pisqueiro, o ar satisfeito, o cachimbo de barro metido na goela.
Quanto ganhou, quanto estafou na taberna. Ela barafustava e não sei se lhe batia. Ia-o
buscar à loja e levava-o aos empurrões para casa, ralhando todo o caminho – e ele,
calado, inalterável, a cuspinhar, numa satisfação interior e perfeita. Todas as noites saía
a barra sozinho, dentro do caíque, a remo ou a vela, e a cair de bêbado. Voltou sempre –
mar manso, mar ruim – e nunca deixou de trazer peixe para beber. Um dia, com medo a
um desastre, não o deixaram mais ir ao mar.
Arranjou outro oficio: passava para a Outra Banda as mulheres que vêm ao Porto
com as canastras, e que depois, no regresso, embarcam na lingueta de Lordelo. A
passagem nesse tempo custava trinta réis, o que evidentemente não lhe chegava para
beber à sua medida. Puxou pela imaginação – e abriu no fundo do barco um furo que
tapava com uma rolha.
– Embarquem, meninas! Embarquem! –dizia o rapaz que o ajudava, chamando a
freguesia. Embarcavam as mulheres aos ranchos e depois de tudo arrumado, toca a re-
mar. Meio do rio – Alto! – dizia ele ao rapaz. E o rapaz parava. E ele baixava-se e tirava
a rolha. E o esguicho repentino de água enchia de terror o mulherio, que se punha em pé
aos gritos.
– Não se mexam! Agora quem quiser chegar à Outra Banda tem de dar mais um

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pataco!
Creio que foram estas as palavras que pronunciou mais vezes durante a sua vida.
Por fim, naturalmente, o caíque do José da Viela foi olhado com desconfiança e terror –
embora o rapaz, em quem ele batia com uma corda, se esfalfasse a gritar no cais!
– Embarquem, meninas! Embarquem! que temos maré de feição!
Foi então que se decidiu a morrer de desgosto, bêbado como sempre, a cuspinhar
para o lado e de cachimbo na mão. E só depois é que a Maria da Viela respirou e botou
cordões de ouro com o ganho da canastra.

O sr. piloto-mor só abre a boca para ralhar. De quando em quando aquele vozeirão
tremendo ecoa na Cantareira e cala-se tudo. Toda a gente tem medo desse homem seco
e tisnado, autoritário e duro, de grandes barbas brancas revoltas. Ninguém se atreve a
dirigir-lhe a palavra e todos os pescadores, quando ele passa como uma rajada, tiram os
barretes da cabeça.
Noutro dia estiveram alguns barcos em perigo.
– O salva-vidas!...
E o salva-vidas lá desceu pelo guindaste até ao rio, mas não apareceu ninguém
para o tripular.
– Então ninguém vai?... – perguntou o piloto-mor.
Mas os homens em grupo, encolhidos, não responderam.
– Então vocês têm alma para os deixarem morrer ali à nossa vista?
Um mais atrevido disse, por fim:
– Quem lá for, lá fica. O salva-vidas não se aguenta com este mar.
E o vozeirão a sair das barbas brancas:
– Pois então vou eu, com os diabos! Vou eu e fico lá. E vou sozinho se ninguém
quiser ir comigo.
Saltou dentro do barco – e com ele uma dúzia de homens.

A Maria da Sé ficou viúva, com dois filhos que faziam grande diferença de idade.
Um andava na catraia do Manuel Jacinto, mas ao mais pequeno não o deixava ela ir ao
mar.
– Não, tu não vais...
Todos os pequenos da Cantareira se juntam nas poças, com barquinhos de cortiça.
Arranjam uma vela com um farrapo, fazem um leme dum pedaço de casca, e
arregaçados, descalços, aprendem a manobrar os barcos com entusiasmo.
– Orça! Orça!
– Ceia agora...
– Olha o meu como bolina!
Se a Maria da Sé o surpreendia com os outros, deitava-lhe as calças abaixo e batia-
lhe como uma desalmada.
– Custaste-me muito a criar. Hás-de perder o sestro.
Mas ele não perdia o sestro. O mar atraía-o irresistivelmente. Um dia lançou-se a
nova catraia ao mar e o irmão interveio:
– Deixe ir o pequeno comigo. Vai ganhando...
– Não vai, já to disse.
Ambos pediam, um falando, o outro agarrado à mão do irmão, com medo à mãe, e
não tirando dela os olhos ansiosos.
– Não sei para que vossemecê o está a criar... Vai como moço, ganha um quarto, e
nós precisamos, bem o sabe...
– Não!

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– Eu sei o que vossemecê pensa. Tolices. Lá por o pai ter morrido na barra não se
segue... E eu? Então vossemecê tem-lhe mais amor do que à mim?
– Tu és um homem.
– Deixe-o ir comigo. Na minha salvação, que lho trago. Eu respondo por ele.
E o pequeno, de olhos muito abertos, numa ânsia de ir ao mar, como o pai, como
os irmãos, como os homens:
– Mãe, deixe-me ir.
Foi. Foi muitas vezes, até que lá ficou com a catraia na barra. Oito dias, contados
um a um, andou aquela figura vestida de escuro, a correr a costa, a espreitar os areais e
os penedos, com os olhos fixos, à espera que o mar lhos restituísse. O mar acaba sempre
por vomitar os mortos. Mais dia menos dia os arrolados vêm à tona e depois à praia.
Apareceram no cabedelo, unidos um ao outro. O mais velho erguia nos braços o
mais pequeno, procurando salvá-lo. Fui vê-los. Os caranguejos tinham-lhes roído os
olhos e as bocas. Metiam medo – mas havia naquele grupo de horror uma ternura tão
profunda e indestrutível que nem a morte conseguira separá-los... Ainda tenho diante de
mim o moço agarrado aos braços rígidos do irmão, que o levantava para o alto, sempre
para o alto, num derradeiro e desesperado esforço.
Um dia inteiro, cobertos com o lençol branco que o vento sacudia, estiveram arro-
lados no areal, e ao lado deles, de joelhos e curvada, falando-lhes baixinho, aquele vulto
escuro, que no auge do desespero não tinha uma lágrima para deitar.

Dentre os muitos poveiros que vinham à Foz, à taberna ou à fonte, houve um, o
José Libó, que se me afeiçoou. Um dia dei-lhe uma navalha velha e ficou meu amigo
para a vida e para a morte.
Era um colosso. Dois olhinhos sumidos na cabeçorra, mãos enormes, braços como
trancas e um corpo maciço e quadrado, a que ele, desajeitado, não sabia o que fazer. Na
taberna enfumada da Cantareira era eu quem lhe escrevia as cartas para a namorada.
– Ponha lá, senhor Arriulo...
Ponha lá o quê?... Não dizia mais palavra. Só olhava para mim suando de aflição.
Mas era tanta a ternura nos seus olhos, que se estabelecia entre nós dois uma espécie de
comunicação magnética... Tenho perdido tudo. Deixei passar por mim as melhores
coisas da vida quase sem dar por elas. Também perdi, com indiferença, a cópia dessas
extraordinárias cartas de amor de um poveiro a uma poveira. Ele trazia na cesta, com o
pão e o conduto, o papel bordado para a carta e sentava-se na minha frente, com a
cabeça vermelha de ruivo apertada entre as mãos como cepos. E olhava-me numa
imensa aflição:
– Ponha lá, senhor Arriulo – à espera que eu encontrasse as palavras mágicas com
que havia de enternecer o coração da Josefa Perneta.
– Queres que diga mais alguma coisa, José?
Ele, fascinado, acenava com a cabeça que sim.
– Mais alguma coisa... Ponha lá, senhor Arriulo.
Isto estabeleceu entre nós, que pouco tínhamos que comunicar, porque o José só
sabia a meia dúzia de palavras necessárias à sua profissão e à sua vida muito simples,
uma amizade que só acabou quando o poveiro partiu para Moçâmedes, já casado.
Bateram um dia à porta da viela: era ele que vinha despedir-se – e que tomava todo o
espaço das ombreiras, com um saco de conchas, um bicheiro novo e duas pescadas
enormes. As pescadas comi-as, deitei fora as conchas, e o bicheiro conservo-o a um
canto do meu quarto, à espera de ver que destino Deus lhe reserva...

Conheci muitos destes homens, sanjoaneiros, poveiros, da Murada, e até os

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valboeiros da Póvoa, que na Foz se chama de Cima, hoje desaparecidos, – lavradores da
margem do
Douro que desciam rio abaixo nas lanchas de madeira por pintar, grosseiros e
tartamudos, acudindo ao cheiro da pescada em certas épocas do ano, com as suas redes,
os seus tipos de trogloditas e uma vozearia infernal que durava até a noite velha nos
barcos fundeados na revessa do Relógio...
Assisti muitas vezes às conversas dos pescadores quando me deitava ao lado deles
na Cantareira. Falavam do mar, das redes, dos quinhões. Silêncio... Alguns dormiam ao
sol. Depois falavam todos ao mesmo tempo, sem se entenderem – até que o arrais, que
desfazia no côncavo da mão o charuto de picar, dizia a última palavra sobre a questão.
São preguiçosos. Enquanto a taberna fia, ninguém arranca o manteigueiro ao
falatório e à loja. As mulheres vão-nos buscar:
– Então estes diabos não vão ao mar?
O que distinguia o antigo pescador era o conhecimento das pedras da barra – da
Laje, da Eira, da Pedra do Cão, do hábito dos peixes, das redes e do mar das quarenta
braças, e um instinto especial que adquiriam à força de hábito – e que se parecia com o
faro. Fora disto eram crianças. Um vozeirão que metia medo e qualquer pessoa os
prendia e cativava. O velho Patarra de Mira, porque um amigo meu lhe falou com
bondade pagando-lhe um copo de vinho, todos os dias, às escondidas, lhe atirava peixe
pelas janelas dentro. Quando partiu, todos os pescadores o acompanharam pelo areal
fora, até que ele lhes disse: – Agora vão-se embora. – Então abraçaram-no desatando a
chorar.
Mas os velhos, com as cabeças brancas, esses então são crianças perfeitas. Os da
Pensão, na Foz, eram homens de poucas falas, que só abriam a boca para
cumprimentarem o sr. piloto-mor. Quando entrava algum navio e a barra estava
perigosa, ouvia-se gritar:
– Os homens da Pensão!
E eles lá iam, balouçando-se, de barba de passa-piolho, compenetrados da sua
importância e saber. Rudes, grosseiros, crestados pelo mar, embreados como velhas
tábuas de teca – e olhos azuis e inocentes de criança –olhos de leite... Os vagares
passavam-nos a abrir, na cortiça ou no pinho mole de Flandres, barcas, iates, lugres com
todos os apetrechos, todas as cordas, todas as velas talhadas a preceito, e lindos nomes
escritos no costado: A Boa Nova, a Mariquinhas, a 2ª Esperança.

De todas estas figuras ficou-me uma figura para sempre: um tipo sem nome, maior
que a realidade, de músculos como cordas. Sua missão no mundo é remar. De trilhar o
remo ficou curvo, e tem as palmas tão encortiçadas que nelas afia a navalha como numa
pedra de amolar. O mar denegriu-o e engrandeceu-o. Não sabe exprimir-se e mal nos
conseguimos entender. Mas não me mete medo como outras figuras trágicas da vida:
olha para mim – e só lhe leio nos olhos ingenuidade e ternura...

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AS BERLENGAS

Agosto - 1919

Óbidos visto da estrada é o cenário dum presépio, com as muralhas recortadas e


moinhos de vento a trabalhar na encosta. Só lhe faltam alguns pastores, com gaitas de
foles, descendo o monte... Pequena vila adormecida e quase intacta. Nunca passo por
uma destas terrinhas que não me fique pena de lá não morar algum tempo, no silêncio
recolhido, deixando a minha vida presa aos vivos e aos mortos. Isto tem um ar tão
afastado do mundo! Não se ouve rumor. Um sino tange ao longe... Se há aqui interesses,
estão submersos. A vila foi agora mesmo desenterrada com as suas igrejas, e a ruazinha
principal onde não mora ninguém – tudo cercado de muralhas de pedra escura, que
aproveitaram as ondulações do terreno, até se fecharem lá em baixo na porta principal
com azulejos, e que parecem ter crescido tão naturalmente do morro como as árvores...
Alguns minutos e sigo pela estrada triste até à Serra d’El-Rei. O chão produz milho
amarelo, baixinho, e a areia um vinho branco que tem fama. São três horas de caminho
até este sítio onde viveu D. Pedro, o Cruel. Do seu drama restam paredes desmanteladas
e uma fonte que continua a correr e a apagar a sede de quem passa. Curvei-me, bebi
também, e, transposto o pinheiral, dei com o amplo panorama de terra e mar: a costa, à
esquerda o cabo Carvoeiro, em frente a rocha do Baleal e ao fundo as Berlengas
delicadamente pousadas na água...

Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municí-
pios – por toda a parte transformaram as terras cheias de carácter em terras incaracte-
rísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degrada-
ram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à
espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interes-
santes: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que
é um esplêndido cenário para o último acto da Tosca, e um ponto de vista admirável
para o sul – grande traço indistinto a roxo, com um ou outro casal, uma ou outra aldeia
dispersa e sem nome. Mas Peniche é sobretudo horrível para mim porque é o tipo da
pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera
o Fialho do Algarve. Só me ficou uma impressão grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora
e entrei por acaso num rés-do-chão, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez
anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas
mulherezinhas, sentadas no chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a
cabeça e puseram-se a rir para mim... Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho
do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e
dos biquitos abertos cor-de-rosa...

Daqui ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para
as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismático... A Senhora dos Remédios
é escavada na rocha subterrânea, junto a fragas enormes que mal se sustentam de pé e
que os vagalhões assaltam formidavelmente. Que voz lá no fundo, e que esplendor de
luz nesta mole negra e cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspecto
estranho de torres medievais, com água esverdeada a escavá-las e a roê-las nos antros e
cavernas, que ficam a cinquenta metros de profundidade e que repercutem ecos,
ameaças, uivos e lamentos de desespero, súplicas dramáticas! É o Castelo do Diabo... E

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no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando por
mim. Atraem-me e fascinam-me.

Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa
duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros – mas esta rocha é
uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul,
e presa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer. Deste
ancoradouro, com uma baía ao sul formada pelo Carvoeiro, e com outro côncavo ao
norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu.
Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no
meio do mar dramático. Voga-se em toda a luz do céu e em toda a cor do mar. Dum
lado o areal em circo e aquele grande morro estendido pelo mar dentro; do outro, e até
onde a vista alcança, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as
chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando
e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois
transparente até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade
nublosa. E tudo isto muda de cor e se transforma segundo as horas que passam. Há
momentos em que é doirado, de manhã ou à hora do poente. Há outros em que me sinto
abismado em azul e atascado em azul. O movimento das ondas esmorece e acalma. À
volta só luz e cor. A costa some-se. Uma apoteose de ouro e verde lá no fundo. Do
horizonte à praia corre e cintila a esplêndida estrada do sol. E agora – reparem!
reparem! – o mar é verde e o céu perdeu a cor...
A acção das águas é incessante nestas velhas pedras carcomidas, onde meia dúzia
de casas de pescadores se agarraram como lapas. A ressaca infiltra-se nos buracos,
gasta-as e desgasta-as, até as reduzir a cárie, a penedos com baba, a ossadas
pulverulentas, à petrificação da própria vaga quase a desabar. Há-as cor de giz, cortadas
em fatias, dispostas umas sobre as outras, há-as amareladas como caveiras e formando
praiazinhas enconchadas, de areia muito fina, onde até o mar se esquece e espraia
adormecido.
Não vi árvores. Nasceu aqui uma figueira por acaso, que, não podendo crescer,
alargou a roda e tem um metro de altura. A única vegetação é a das ervas, a quem um
pouco de terra basta para viver. São inúteis. São vidas humildes que a tudo se sujeitam e
chegam a cumprir o seu destino à custa de sofrimento. Do meio da ilhota sai uma fraga
mais saliente com a capelinha de Santo Estêvão no alto e a praia dos batéis no fundo. Lá
para diante outra rocha destacada, a ilha das Pombas, todo o dia salpicada de espuma.
Tudo isto perdido no azul ou assaltado pelas ondas coléricas. Os vagalhões
avançam e despedaçam-se de encontro às pedras, que vomitam espuma e ficam a babar-
se pelos buracos puídos. E outra – lá vem outra –incessantemente para o assalto!
Algumas enormes varrem o extremo norte do Baleal numa cólera tremenda. As noites
são profundas, admiráveis e cintilantes de pedraria – grandes como Deus.
Pesca quase não há. A pesca mudou para Peniche. O último batel chamava-se
Santo Estêvão, tinha duas velas e levava redes de pescada e redes de lagosta. De cada
rede era distribuído um quinhão para o homem, outro para o patrão e um quarto para a
companha. Mas vêm aqui pescadores de fora. Um dia encontrei com alvoroço uma
saveira encalhada no areal.
– Vocês donde são?
– Somos da Amurtosa.
Estes homens morenos e ágeis, da Murtosa, da Torreira e da Murada, tenho-os en-
contrado com as suas saveiras em toda a costa norte até Lisboa. Encontrei-os em Peni-
che, na Caparica e em Sesimbra, onde lhes chamam ilhos, nos esbeltos barcos escuros,

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pescando a lagosta com os roscos; encontrei-os na Foz do Douro apanhando o
mexoalho; ao arrasto do sável nos rios, e fisgando a solha ou a lampreia, que se apanha
à noite com um candeio e um garfo atado num pau. A sua casa é o barco. Metem-se em
todas as anfractuosidades da costa. Quando pressentem o temporal vão acolher-se a
Peniche ou àFigueira. Andam sempre em famílias de três e quatro barcos. Acampam na
areia, e com o mastro atravessado, uma panela e a lenha apanhada no mar e que
desfazem em cavacos com a machadinha, traste indispensável em cada barco, acendem
a fogueira como ciganos. Mas se o mar está manso e a noite é de luar, não vêm à terra.
Largam a fateixa ou a poita e acendem o lume a bordo para a saborosa caldeirada.
Sempre que via brilhar os fogaréus invejava profundamente aquela vida simples diante
de Deus e do mar. Ao fim da pesca, que dura meses, e quando se anuncia o Inverno,
recolhem à pressa às suas terras como aves emigradoras. Se o vento é de feição, em
doze horas põem-se em Aveiro. Se é contrário, quando a vaga cresce e as gaivotas se
metem grasnando pela terra dentro, arribam aqui e ali e levam dias a chegar a casa, onde
passam com as mulheres e os filhos a época das rudes invernias.

Passo três dias deitado numa pedra a namorar o recorte delicado das Berlengas.
Atraem-me como em pequeno as ilhas misteriosas e desertas dos meus sonhos. Por fim
meto-me num barco, e depois de três horas a remos vejo-as mudar de cor e encher o
horizonte. Distingo as minúcias na Berlenga grande, em Santa Catarina e Farilhões, e
ponho o pé em terra com assombro. É um monte espesso com um castelo na base, as-
sente numa pedra destacada e ligado à terra por uma ponte em aqueduto.

Mas o monte solitário sai todo vermelho da água verde e grossa como um vidro e
o castelo é o último refúgio dum pirata que surpreende mulheres na costa para as violar
na ilha... Este granito está coberto de líquenes ferrugentos, que ao pôr do sol escorrem
sangue, e à cor da rocha compacta contrapõe-se a da fortaleza de tijolo, carcomida e
doirada, que data de 1676, e que se revê na água translúcida. Nunca vi água assim: é
uma lente esverdeada, que desvenda fundos mágicos.
Subo um carreirinho a pique. Sento-me no planalto, e olho. Olho, não é bem –
trespasso-me. Trespasso-me de cor, de luz, de amplidão. O que aqui existe e domina e o
azul do céu e o azul do mar. Bebo-o. Vaguei-o uns dias ao vento falando só. Viver aqui
é viver em pleno céu. É ser nuvem e mar, é ser azul. A vida sobre esta base de granito
não tem corpo. A grande rocha está suspensa no vácuo – porque o mar é pó verde muito
ténue e a costa pó roxo a diluir-se. Do alto vê-se o cabo Carvoeiro, e mais para o sul, a
praia da Consolação, a Ericeira e a praia de João Salgado, e, para o norte, o Baleal, a
Foz do Arelho, S. Martinho do Porto, e, até onde a vista chega, a ocidental praia
lusitana. Mas isto num sonho fundido em azul, para lá do mar com veios espelhados,
desde o pedestal desta rocha imensa, onde vegeta o perrexil e o cardo, até ao infinito.
Do outro lado, para além dos recortes afiados dos Farilhões, das Estelas e de outras
pedras escumantes, fica o mar eterno.
São extraordinárias as manhãs, com uma ponta de névoa em que o mar se
dissolve, e os fins de tarde, oiro e verde, a que se sobrepõe o violeta com aquela voz
magnética sempre a chamar-nos lá em baixo, já escuro, do fundo das águas – e o morro
vermelho a emergir do oceano...

Não me canso, extasiado. Vou por outro carreiro, pelas escadas de palmo abertas
na pedra. Dou com as ruínas dum convento. Nos restos arruinados da capela copio
diferentes datas: fr. Lobato, 1622; outra: 1606; um coração com duas letras enlaçadas L
e R – 1615. Fico a cismar... No fundo avisto uma praia solitária, um côncavo do

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tamanho da mão, onde nunca entrou o sol. Fria e pálida, entre grandes rochas negras e
cenográficas que emergem do mar e se recortam no azul, transe-me como um sítio
misterioso que o homem visse pela primeira vez. Olho-a com medo. Não me atrevo a
devassá-la... É isto mesmo... As ilhas desertas são habitadas. Tenho a sensação estranha
de um contacto gelado: desconfio que anda por aqui uma alma virginal e pura e ao
mesmo tempo cruel...

Desço às cavernas misteriosas de que é furado o ilhéu. Há-as cheias de fetos e um


fio de água escorrendo: todo o morro se concentra e espreme para deitar aquelas gotas
frígidas. Outra: um entalhe nos paredões de granito, e a onda leva o barco pelo corredor
estreito sobre algas com grandes pinceladas de branco nos cabelos. São enormes. São
velhíssimas. Sinto que nos adivinham e estendem os grandes braços esguios,
procurando enlear-nos. Olho para baixo... Todo aquele verde, camada sob camada,
remexe até às profundas como cobras agitadas pelo mesmo desejo. Esperam... Esperam
a presa. Quase não há água. Água do mar, só a que se mete entre interstício e interstício
de folha. O que há é uma vida escorregadia e verde, um sonho monstruoso, numa luz
glauca e movediça, um verde líquido, com transparências doiradas à superfície e que se
vai carregando lá para baixo até ao verde-negro, ao verde-desespero, que no fundo dos
fundos espera, cego e imóvel, a presa para a devorar. Anos atrás de anos passam na
meia obscuridade da caverna, choque-choque... É um ruído de passos ou a água nas
pedras? Choque – apagado, mole, longínquo... Os filamentos verdes enrodilham-se,
flutuam ao lume de água, ou repousam como braços inertes. Toquem-lhes e logo a
mesma ânsia eléctrica os sacode e se transmite até à escuridão concentrada que se
alvoroça... Os remos pegam-se a esta carne movediça e sob as tábuas sinto o contacto da
vegetaçao que nos pressente. Cair aqui é ser apanhado por braços piores que os do
polvo, que nos sugam, é ser estreitado e submergido em camadas escorregadias e
tenazes ao mesmo tempo, envolto em milhares de cabelos ávidos, e descer entranhado
num pesadelo verde e mole. Não há a que deitar as mãos. É a viscosidade, a vida
obscura, inconsciente e verde, que, com a força e a tenacidade da inércia, acabam por
nos afogar num poço sempre mais fundo; cada vez mais fundo, cada vez mais escorre-
gadio e mais fundo... Mal se vê: uma espuma e um fio azul estremecendo ao cimo da
babugem. O corredor aperta-se e o barco desliza num túnel. Mais escuro – e as algas à
espera da presa... Esperam anos. Meto a mão, retiro-a logo com medo das peles
gelatinosas e frias. Nos penedos negros, chapadas mais escuras com estrias vermelhas e
buracos que se afundam lá para dentro, para a espessura incógnita. Na penumbra, a luz
que vem de fora reflecte em ondas nas muralhas o movimento incessante das águas.
Claridade ao longe, mais luz, e desemboco numa esmeralda engastada em vermelho,
numa praia de areia intacta e fina, entre paredões temerosos cor de ferrugem. Em cima a
nesga do céu. Dum lado o poço entreabre-se e vê-se o mar num rasgão para lá das
rochas que lhe defendem a entrada. Um fio de areia dourada... Ilumina-o uma luz fria de
fjord, uma luz morta de paisagem lunar – uma luz que é silêncio ao mesmo tempo.
Serena. Serena e indiferente como este espírito que habita a ilha, belo, feminino,
solitário e perverso – e que deve ter aqui o seu antro... Água imóvel e silêncio transido.
Na areia onde ninguém desembarca descubro uma pegada intacta, o molde delicado de
um pé de mulher.
Volto, subo ao planalto e espero a noite debruçado sobre a praia misteriosa. A
sombra corta o abismo em diagonal, deixando um paredão iluminado; mas, como a lua
avança, a escuridão desloca-se e abranjo um pedaço indeciso do fundo. Luar, farrapos
suspensos da muralha a pique, nichos com saliências onde a luz escorre tecendo fios
como uma aranha nas paredes duma catedral desmantelada. Uma ave remexe no ninho e

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torna o silêncio mais pesado e maior. Lá em baixo fios estremecem no alto da
ondulação. Reluzem, apagam-se e o recanto da sombra redobra de espessura, cosido
com a parede como um malfeitor. Desenham-se arabescos fantásticos no abismo, que
assume proporções extraordinárias de profundidade e de mistério: lá em baixo, com a
assistência dos monstros nos nichos – que olham e calam –passa-se qualquer coisa que
pertence antes ao sonho. Um pedaço de luar, de repente, coalha na sombra; todos os fios
brilham ao mesmo tempo como a baba dum caracol à luz primeira da manhã; figuras
ténues, que vão desfazer-se num sopro, saem enlaçadas do escuro, numa ronda
silenciosa – que se some no negrume e reaparece outra vez. Estou de muito alto e a luz é
muito fraca... Mas já não tenho dúvidas: são as nereidas, filhas da incestuosa Dóris, no
seu último domíno...

25 de Agosto

Mesmo junto à ilhota armam os pescadores a valenciana, porque este é um dos


pontos mais piscosos da costa. Ainda hoje a sardinha, que salta ao lume da água, acode
em bandos compactos. Pesca-se o pargo mais saboroso de Portugal e a dourada com
riscos na cabeça, de oiro cor de fogo da louça Talavera, o atum, a muge, o godilhão e a
lagosta, que se apanha em covos. Fisgam-se nas misteriosas cavernas polvos
velhíssimos como os de Vítor Hugo, que vivem em buracos onde só chega uma luz
amortecida e verde, atenuada pelas algas desconformes. Aqui têm também as aves
marítimas o seu ninho predilecto – os airós, as galhetas e as gaivotas, que passam num
grasnido quase humano e que criam os filhos nos paredões a pique, onde só se chega
arriscando a vida. Neste fim de Agosto passam para o sul bandos de patos formados em
ângulo agudo, com o guia no vértice; pombos cinzentos que voltam de terra com os
papos cheios de sementes; maçaricos-reais que piam ao pousar no areal, levantando voo
para piar mais longe; e o cisne negro que nos dias de temporal dança ao desafio na crista
das vagas, furando-as como bom mergulhador.

Se houvesse justiça no planeta, eu já tinha sido nomeado governador deste castelo,


onde vivem três veteranos que de velhos criaram musgo – ou pelo menos faroleiro.
Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser
felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum
barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa! ... Atrevo-
me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de
costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.
– Hem?...
– Hum!...
Rosna e não diz palavra que se entenda.
– Olá!
Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não
existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:
– Que beleza, han?!...
Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de
frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de
cólera:
– Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?!
– E ri-se. – O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno
não me deixa chegar à porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar

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desesperado, o vento desesperado... Eu não sou um faroleiro – sou um náufrago. Que
beleza hem?...
Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar
ecoa, ameaçando submergir esta ilha do diabo!
Julguei-me autorizado a interrompê-lo:
– Mas no Verão é esplêndido...
– Nem olho. Só me resta uma esperança – fugir. Se não me mudam, endoideço. O
amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...
E atirando os braços para o ar:
– Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca!
Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma
abóbora... Os coelhos devoram tudo. É uma praga!
– Dê-lhes tiros.
– Tiros?! – E ri-se com dois dentes e desprezo. – Quando quero um coelho, ato um
anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe,
ato um anzol a uma linha e deito a linha à água... Mas o que eu quero é fugir! Fugir!
Fugir para muito longe, para onde não oiça o mar, para onde não veja o mar!
Roncou... Percebi que repetia com escárnio: – Que beleza, han! ... – E voltando-se,
outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais –
de costas viradas para o mar...

Olho pela derradeira vez. É para sempre que quero fixar a imagem, a última, a
definitiva, a essencial, do morro vermelho a emergir do mar imóvel, cheio de pedras
espumantes – a da Velha, a da Estela, a Pedra Redonda, a Pedra de Todo-o-Peixe, o
Guilhão... Duas manchas bastam-me para toda a vida, uma etérea, a outra sangrenta,
com um castelo queimado e requeimado como um velho cachimbo ao pé do vidro
grosso da água. Duas manchas e um pormenor: o fio de areia onde ficou impresso um
pé delicado de mulher...
Regresso num fim de tarde toda de oiro, num mar todo verde. São outras três
horas a remo. Deito-me no fundo enxuto do barco e absorvo-me na luz que se
transforma. É roxa agora. Desvanece-se mais. Estou encerrado numa grande jóia
translúcida e viva–viva!– que pouco e pouco muda de cor. Violeta, toda violeta, e vai
desmaiando como quem morre devagarinho com saudade...

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NAZARÉ

O HOMEM

Junho - 1923

Para aquém de Mira pesca-se sempre da mesma maneira e com idênticos apare-
lhos, na Tocha, na Costinha, em Quiaios e em Buarcos, onde há uma rede curiosa para o
robalo e sargo – a majoeira que flutua na crista da vaga –; pesca-se na Figueira, em
Pedrógão e em muitas terrinhas perdidas pela beira-mar, como no areal perto da linda
Coimbrã, que me deixou preso ao seu pacifico encanto e às suas casinhas térreas
alpendradas. É uma terra de mulheres. São elas que a habitam e que cultivam a areia
movediça, enquanto os homens, todos serradores, trabalham em Lisboa no ofício. Mas a
Nazaré é a terra mais importante de pescadores nesta parte da costa portuguesa.

Do Valado à Nazaré são seis quilómetros, quase sempre através do monótono


pinheiral de El-Rei. É um majestoso templo que não acaba e onde a solidão se torna
palpável entre os troncos cerrados e sob as copas espessas. Por fim o caminho desce,
passando a Pedreneira, e avista-se lá em baixo a branca Nazaré e o mar apertado num
vasto semicírculo de montes verdes, que mergulham no azul os alicerces. Ao norte o
panorama acaba de repente num paredão temeroso, que entra direito pelas águas e
entaipa o céu. É um morro avermelhado e riscado, com vegetação pegajosa de urzes e
de cardos e um penedo destacado na ponta – o bico do Guilhim. Lá em cima as paredes
brancas duma aldeia árabe entre sebes de cactos hostis – o Sítio. Pedaços de rochas
salientes ameaçam desabar a toda a hora...

7 horas

Ao pôr do sol, e com a névoa da baixa-mar, que é o hálito puro das águas, este
paredão compacto não direi que oscila – seria um exagero – mas empalidece e desmaia,
desfeito em pó cinzento e dourado... Desço à praia – ao fio de areia enconchado, cheio
de mulheres que carregam peixe ou que o despejam ainda vivo nas grandes xalavaras,
por entre barcos agrupados. Três juntas de bois correm sem cessar de batei para batei
que abica, entrando na água e puxando-os para cima. Mais longe as netas arrastam sacos
de carapau e de sardinha, e no mar que tremeluz em escamas sobrepostas, balouçam-se
junto ao morro, à tona de água, as grandes bóias das armações à valenciana que os pes-
cadores levantam de manhã e ao pôr do sol. Esparsos, mais barcos, chatas e lanchas de
galeões, alguns com lindos nomes: Formosa Ana, Luz do Sol, Senhora da Memória,
Mar da Vida. Até lá ao fundo pelo areal todo o dia e toda a noite se arrastam artes.
Abicam os batéis das caçadas, que levam oito, nove, dez espinéis por cada homem, e
este movimento aumenta pelo dia fora. Na capitania estão matriculados trinta batelinhos
para a pesca da lagosta com cobos, quarenta chatas com redes de caranguejo, quarenta e
cinco aparelhos de arrasto, doze cercos, que só trabalham no Verão, porque muita desta
gente vai de Inverno à pesca do bacalhau, seis armações valencianas, duas redondas e
três traineiras a remo. um extermínio. Há ocasiões em que dia e noite se grita, leiloa e
salga. Em números redondos, a pesca rendeu o ano passado dois mil contos de réis. Se
há peixe, a labuta aumenta e trabalha-se até de madrugada. Só uma noite destas o

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chicharro deu cinquenta contos. Está tudo preparado para a matança. Homens de vigia
no mar em pequenos barcos, quando pressentem o cardume, dão sinal a outros postados
no Sítio para que acudam os cercos.
Vejo-os conduzindo as redes do arraial ou das cabanas para o barco; remendando-
as ou secando-as estendidas no chão ou sobre as recoveiras. Vejo-os carregando dois a
dois, num pau atravessado de ombro para ombro, os lavadeiros, gigo que leva cabaz e
meio, fortes, denegridos, vestidos de escuro, camisola de lá e calça segura pela faixa
preta enrolada seis vezes à volta da cinta, e na cabeça o barrete de carapinha com uma
borla feita de duas ou três meadas de lá – o Joaquim Chita, o Carlos Petinga, o Cara Má,
o Manuel Panelão, o Joaquim da Poupada, o Ernesto Caneco, o Rebola, o Vale Nove, o
Vila Mona, o Bexigas, o Mixórdias, o Chicharro, o Ganso, o Esgaio, o Peixe-Posta, o
Beca, o Veca e o Meca, o Pirão, o António Petinga, o Pescadinha, o Sá Pau, o António
Rato Azeitona e outros. Ingénuos e supersticiosos. Um crime é raro. Não há polícia. –
Nós guardemos respeito uns aos outros. – Têm um medo às bruxas que se pelam.
Quando a Leonor com a fralda da camisa azanga o barco, já se sabe, não há peixe:
correm então à Marinha consultar outra bruxa, ou trazem o padre à noite para lhes
benzer o barco e as redes à luz de archotes.
Vai longe o tempo em que a mulher ia casar de capa, lenço de seda e um casaco
chamado roupinha, e ele ao lado de calção, meia de seda e chapéu alto. Estão pobres.
Bebem tudo quanto ganham e deitam-se na areia. Se o primeiro lanço da neta não dá
peixe, desanimam logo. – Não há sardinha... – Se uma companha deixa ficar a rede no
mar horas, não se ralam. – Vocês hoje não pescam? – Guardemos-lhe respeito. – Houve
neta que para fazer um lanço aguardava sete dias e os outros esperavam todos a vez. As
mulheres só levantam cabeça depois de eles morrerem. Aqui há anos, num naufrágio,
perderam-se no mar alguns pescadores da Nazaré. Fez-se uma subscrição que deu para
as viúvas viverem algum tempo. E as outras com inveja lá diziam:
– Foi pena o meu não ter morrido também...

Os barcos das caçadas largam de noite com uma pequena tripulação para o mar da
cana do noroeste, que dá o goraz, para o da cana rica, que dá a pescada e o goraz, para o
dos algarvios, que dá safio e cherne, e para o do lageto, que dá peixe-espada. Os homens
vão em ceroulas e levam o tabaco, os lumes e a navalha no barrete, que lhes serve de
algibeira. Exclamam ao entrar na maresia: – Louvado seja o Santíssimo Sacramento! –
Nos batéis mais pequenos cada homem leva oito, nove, dez espinéis; e nos maiores,
com dezanove homens de companha, o arrais, quinze camaradas e três moços, cada um
pesca com sete linhas de aparelho, lançadas em círculo por uma lanchinha que vai no
batel. O barco é quase sempre de um pescador e de dois ou mais sócios, e o produto da
venda distribuído em tantos quinhões quantos os tripulantes. Os espinéis ganham dois
quinhões e o barco outros dois.
Este que entrou agora, e cujos homens me rodeiam, vem alastrado de raias, de
cações e de gorazes. Pescadas poucas e um anequim acinzentado com uma grande
barbatana no dorso. O mar da Nazaré, muito rico, dá cherne, pargo, moreia, tamboril,
abrótea, peixe-rei, peixe-anjo, serrajão, cachucho, xaputa, orega, toninhas, sardas,
corvinas, peixe-agulha, peixe-galo, lagostas, lavagantes, santolas, e nas pedras perceves,
mexilhões e lapas. Mas os pescadores queixam-se:
– Isto dá para viver mal...
Fito-os. É o mesmo tipo que conheço de Aveiro, de Caparica e de Sesimbra. O
patrão Joaquim Lobo, de grandes barbas brancas, afirma que esta gente veio de Ílhavo.
Alguns lembram-se de ouvir a mesma coisa aos velhos, e teimam: – Somos de Ílhavo...
Viemos de Ílhavo... – Também tenho a ideia de que foram os cagaréus que povoaram os

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melhores e mais piscosos pontos da costa. Ontem como hoje, vinham por aí abaixo, aos
dois e três barquinhos juntos, até ao Algarve. Aparecia-lhes toda a costa incógnita, os
penedos nascidos no meio do mar, os fios de areia reluzindo e as baías entranhadas nos
paredões. A aventura iam ter às águas do peixe. E eu sinto como eles a primeira
impressão dum panorama nunca visto e duma frescura que ninguém respirou.
Descobriram os sítios a que a sardinha se encosta, os fundões que dão a pescada e o
cherne, e os melhores abrigos para refúgio do mau tempo. Sabiam a costa a palmos.
Voltavam um dia com a mulher, os filhos, a rede e a panela da caldeirada. Fixavam-se
no areal, construíam os palheiros, cobrindo-os com rama, e fundavam uma nova
povoação.
O peixe era tanto como no princípio do mundo. Ai estou outra vez a ver e sentir a
frescura matutina, o princípio do dia desfeito em poeira azul, a sardinha faiscando na
água, o panorama novo e o mundo inexplorado...

A CHATA E A NETA

Vou pela praia fora... A chata, com a proa em bico e a popa cortada, só meio barco
– a chata barriguda e forte, de grossos tabuões, deve ser a embarcação primitiva desta
terra, como o aparelho de arrasto a que chamam neta é um engenho muito velho e que
veio de mão em mão, empregado por gerações atrás de gerações, já desaparecidas, de
pescadores. A primeira coisa que acode ao homem esfaimado que vê o peixe em
cardumes formidáveis reluzir e saltar ao lume da água, é atirar-lhe um grande saco e
puxá-lo para a terra por duas cordas atadas às pontas... A neta tem um saco, duas
mangas e duas cordas. Dividem-na aqui em três peças –saco, boca e mãos; a boca com
quatro muros, o saco com cinco, que vão alargando de malha até à boca, e as mãos com
a arcanela, o cassarete, o regalo e o pano delgado. Às cortiças chamam-lhe panas, às
chumbeiras rebiças, e à costura por onde se abre o saco, linhol.
Andam sete na praia na faina do arrasto, e hoje vai dar peixe com certeza, porque
quando a água está agitada sobre os parcéis e se põe negra, há chicharro e sardinha em
abundância. Cordões humanos puxam às cordas: deitam-nas às costas sobre os ombros,
e de esguelha, com o braço esquerdo estendido e a mão direita agarrada à corda junto ao
pescoço, vão alando devagar o saco. Já se vêem os odres de pé no mar. Acode então
mais gente – rapazes, mulheres, homens de calça arregaçada, para ganhar um quinhão.
– Arriba! Arriba!
– Venha arriba, com o Corpo de Deus!
– Venha arriba, rapaziada!
Os odres aproximam-se e os cordões cruzam-se para apertar a rede, alando-a
lentamente, caídos para a frente e enterrando-se na areia.
Anda aqui um velho com a cara enrugada e a boca entreaberta. A vida encheu-o de
dedadas de um relevo extraordinário – amargura, resignação, dor e humildade: é um
tipo este homem que não pode e há-de ir até ao fim curvado e exausto. Anda aqui um
rapaz que mal chega à corda, e uma mulher com os braços estendidos e o filho ao colo,
seguro pelo xaile traçado sobre o peito. E o pequeno de mama já sente na carne da mãe
o esforço e a rudeza da vida trágica.
– Arriba desta banda agora!
– Do norte! Do norte!
Lá em cima, um a um, largam a corda e tornam a baixo a correr. O velho resfolga
e a criança de colo desata a chorar.
– Vá lá a ver, gente! Vá lá a ver, por Deus, homes!

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Ao longe puxam-se outras netas. São seis ou sete que trabalham por dia. Mais para
o fundo os montes todos roxos saem do mar esverdeado. Ao norte o paredão parece
maior e mais escuro... Gritos. Palmas. Viu-se o saco boiar, sinal de que vem cheio. –
Arriba! Arriba! Força!
Dois, três homens entram no mar, deitam-lhe as mãos num grande arranco e a
onda inunda-os dos pés à cabeça.
– Arriba, gente!
– Ah, rapazes!
E aí vem o saco pela areia acima por entre gritos e o derradeiro esforço das
mulheres, dos homens, do pequeno que mal chega à corda, já entregue às mãos rudes
que o hão-de afeiçoar, da rapariga com o filho seguro pelo xaile, e do velho desdentado,
que já não pode mais e que enterra os pés na areia – três figuras para um grupo de
trabalho, todas três dobradas a arrastar a mesma cruz da vida.
É noite, mas toda a noite se pesca. O peixe, trinta xalavaras, vai ser leiloado e
vendido... Não tiro os olhos do quadro e vejo atrás destas figuras outras figuras e outras
gerações. Foi sempre assim. Os mortos entregaram aos vivos este fardo para carregar.
Era assim, com a nobre arte da xávega, que os nossos pais tiravam o ventre de misérias.
– Venha arriba, com o Corpo de Deus, homes!

Já se não distinguem os montes. Ficaram só aqueles fantasmas roxos e o paredão a


pique que se recorta mais negro e mais compacto na última poalha esvaída do sol.

A MULHER

Toda a noite ouço chamar de porta em porta.


– Ó sr. António, são duas horas. Vamos lá ver abaixo, com Deus. Está marzinho.
Adormeço. Levanto-me. Mas por mais cedo que me levante, já a praia está
animada e viva. Fixo as mulheres arrostalhadas pelo chão, sentadas em grupos, ou
voltando para casa com o dedo indicador metido na boca das raias escaladas e já prontas
para a ceia. São a vida desta terra. Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando
peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre palha o cação, o polvo, o carapau,
para a seca; sentadas às portas discutindo ou praguejando umas com as outras no leilão:
– Mar te alimpe! – Mar te afervente! – Algumas são já velhas e deformadas pela vida,
mas conservam um clarão de energia no olhar. – Onde vai? – Vou ao estendar buscar
peixe. – Baixas quase todas, de ancas largas e peitos sólidos. Grosseiras e fortes. Língua
de um poder expressivo inigualável, colorida e pitoresca, quando se zangam, quando
vão buscar os homens à taberna, quando falam ao mesmo tempo e gesticulam, ou a
chorar quando contam a sua vida de bestas de carga. Duas descompõem-se, uma em
frente da outra, com as mãos na cinta: – Olha cá, Mar’ da Luz! – Que queres tu, Mar’
Santana? – O que quero eu? Quero saber em que contos me foste meter coa Lianor na
borda-d’água. – Eu! só se estás pardinal! (bêbada) – Estou sim, vem cá tomar o bafo.
Pensas que sou comati que vinhas noutro dia areada pelo caminho de fora (a estrada). –
Como sabes que o teu home só vai ao mar quando ele está de rojo (calmo), por isso é
que falas dessa maneira. – Então o meu home não é tanto com’ó teu?... – Descompõem-
se e engalfinham-se... um momento, um momento único de balbúrdia, cheio de
exclamações e de gestos imprevistos e duma vida de instinto que vem de repente à tona.
As outras formam roda. Vestem todas da mesma maneira, todas de preto. – Lenço de
pontas caídas; por cima o cabeção da capa de lá, que lhes chega um pouco abaixo dos

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quadris e as resguarda do frio e da salmoura; e sobre a capa um chapéu de feltro grosso
com as abas altas reviradas e uma grande borla de seda ao lado.
Isto numa mulher alta e airosa é um dos mais lindos e discretos vestuários que
conheço. A capa emoldura-lhe a fisionomia; do chapéu, se é loira, saem-lhe as mechas
douradas que tão bem ficam no preto. Não há nada que corrigir nas linhas da capa, que
encobre e realça as formas, e o tom escuro não dá nas vistas e harmoniza-se com todos
os tipos e todos os ambientes, aumentando a distinção da figura e acabando por a pôr
em destaque sem exageros, chamando naturalmente para ela todas as atenções, sem que
as reclame.
São elas que alimentam toda esta região de Leiria a Santarém, e que levam ao
lavrador, ao paleco, como lhe chamam, e ao jornaleiro enfastiado de pão seco o
mantimento, o presigo saboroso. Com azeitonas, uma caneca de carrascão negro e
espesso como tinta, e três sardinhas, já a vida toma outro aspecto para o homem
calcinado e farto de remover a terra. São elas que toda a noite, quando se pesca toda a
noite, separam o peixe, o amanham, o secam no tendal e o levam para os armazéns de
salga. E pela manhã põem-no a caminho para as Caídas (20 km) ou para Alcobaça (12
km) com o peso de duas ou três arrobas à cabeça. Infatigáveis. Em tempos chegavam a
ir a Santarém, acompanhando o burro com a carga e trotando ao lado da alimária.
Apregoam pelos casais dispersos e deitam a um canto os maiores e mais espertos
negociantes desta terra. A noite dormem – se não há peixe na praia. Se há, partem outra
vez com a canastra à cabeça e um pedaço de pão no bolso para o caminho. E o tempo
ainda lhes sobra para cuidar dos filhos e para trazer a casa limpa e esteirada. Nenhum
pescador vive como o da Nazaré: pode-se comer no chão.
A velha que tenho diante de mim é o tipo que esta vida foi transformando,
amolgando, rugas por onde têm caído as lágrimas, mãos deformadas e negras, que
ganham o pão de cada dia, cheiro a salmoura, e uma beleza extraordinária, a beleza da
verdade e da vida trágica, dos que cumprem a existência e só caem esfarrapados e
exaustos:
– O estipor da vida que eu levo, sempre molhada até aos ossos! até ficar
encarangada como estive sete meses! Juro pela rosa divina (o sol) que é verdade o que
digo! Por causa destes homes! pelos sete filhos que criei aos meus peitos, dia e noite
naquela estrada! Às vezes a minha vontade era deitar-me no chão e nunca mais me
erguer. Se há inferno! se depois do que eu tenho chorado inda há inferno!... Assim Deus
me livre daquele leão sagrado (o mar), ou eu seja como a Antónia da Joana (cega) se
não falo verdade... Morrer? diz vossemecê que é melhor morrer? Não! viver pelos netos,
pelos homes, e trabalhar até ao fim dos meus dias!

Tive sempre a ideia que quem manda em todo o país é a mulher. Na lavoura, às
vezes o bruto bate-lhe, mas é ela que o guia e lhe dá os mais atilados conselhos. E é ela
em toda a parte que nos salva, parindo filhos sobre filhos para a emigração, para a
desgraça e para a dor. Creio que só assim parindo e gemendo, tecendo e lavrando, mas
principalmente parindo, é que se equilibra a nossa balança comercial, o que nos tem
permitido viver como nação independente. Valem mais que o homem, sacrificam-se
mais que o homem – mas aqui o seu trabalho é tão palpável que toda a gente afirma que
a mulher da Nazaré é a alma desta terra. Os pescadores obedecem-lhes – a bem ou a
mal, dizem... Não é, como em toda a parte, insinuando-se, que a fêmea, mais fina que o
homem porque cria, o governa nesta terra. Aqui impõe-se, aqui existe a verdadeira e
autêntica casa do Varunca – e sólida, apesar de edificada sobre areia... Da praia para
cima só elas põem e dispõem. Eles, saindo do barco, metem-se na taberna e bebem.
Sóbrios na comida, gastam quase tudo que ganham a beber: a percentagem e a rodada

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ou o giro. Só entregam em casa intacto o salário. Se as mulheres lhes batem, como
corre, na verdade acho bem feito. – Eles merecem-no...

O SÍTIO

Antes de me ir embora vou lá acima ao Sítio. uma aldeia branca e deserta, com o
templo, a capela e o penedo onde se deu o milagre. Do alto deste grande morro
descobre-se de aeroplano um largo panorama – o mar infinito, a ampla baía formada
pelos montes, a branca Nazaré ao pé da areia, a toalha líquida do riozinho que se espraia
e detém ao chegar à costa, e do lado da terra os eternos pinheirais, donde emerge o cone
mais agudo de S. Bento, com a ermida e a guarida do vigia. Percorro as ruas e a praça.
O silêncio duma povoação abandonada. Só encontro o padre, duas mulheres e uma
criança. Os homens foram todos (mais de trezentos) para a longínqua pesca do
bacalhau, que dura de Maio até Dezembro. Durante essa longa ausência a mulher não
muda de roupa nem de vestido e nunca mais se deita na cama onde dormia com o
homem, que lhe leva a enxerga para bordo: fica no chão com os filhos sobre esteiras.

Regresso na véspera de Santo António. Todo o campo está iluminado e o céu


cheio de estrelas. Não há casal onde não arda uma fogueira, e parece que são as cintilas
do lume cá de baixo que se agarram e reluzem no escuro lá de cima.

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LISBOA, SETUBAL,
SESIMBRA E CAPARICA

Agosto - 1922

Para o sul da Nazaré pesca-se na Foz do Arelho, onde os homens ergueram


palácios em frente do mar, o que me parece fora de todo o propósito: diante do mar só
uma construção transitória, uma barraca, é que fica bem; e junto à Foz, na lagoa de
Óbidos, jóia azul encastoada em terras barrentas, onde se apanham magníficas tainhas.
Pesca-se em S. Martinho, uma gota de água entre montes avermelhados, e lá no fundo,
no gargalo da entrada, um fio branco de espuma. Pesca-se no Seixal, na Atalaia, em
Ribamar, em Santa Cruz, no Assento, na Ericeira e em Cascais. Em toda a costa há
buracos, angras, refúgios em que a onda se espraia, fios de areia que parecem de oiro,
águas adormecidas entre pedras recortadas, anfractuosidades, terra portuguesa que vem
desde o monte da Gelfa estendendo os braços para o mar, e que aqui em Lisboa o aperta
mais contra si. Estreita-o em Setúbal, e depois em Sines, e por fim em todo o Algarve,
nas bacias de S. Vicente e de Sagres, no espaçoso Lagos, nas rochas decorativas, em
que as despedidas se prolongam com saudade. E o mar, que é quase sempre revolto e
verde no norte, vai pouco e pouco mudando de cor... Conhece-se logo, passado o cabo,
na Figueira; depois em Peniche; quando entra por Lisboa com majestade e beleza; e nas
praias do Algarve, em que chega ao cobalto grosso como tinta. Mas onde ele atinge a
perfeição é em Setúbal. Em Setúbal é imaterial. Sonha ao pé da estrada que vai a Outão,
e reflecte na água cismática a sombra avermelhada dos montes, a grande curva
voluptuosa com a Arrábida por pano de fundo. Ali sente-se que a água anda presa à
baiazinha, a Outão e à serra. Contemplam-se e não se podem deixar. O mar não tem
consistência: não é o verde do norte, não e o caldo azul do Algarve – é poeira e luz. Para
os lados do Sado a baía é ilimitada... Um clarão. E há uma época do ano em que a serra
se veste de roxo, e então é que é vê-la desdobrada nesta água que é sonho e adorme-
cimento ao mesmo tempo.
Alguns homens fisgam a lula, metidos na água até à cintura. Vapores carregam
infatigavelmente barcos de sardinha. São montanhas que todos os dias se extraem do
mar. A matança é enorme e constante. Pesca-se em Lisboa, em Sesimbra, na costa da
Arrábida, em Sines, Galé, Porto Covo, etc. Só no distrito de Lisboa há doze portos de
pesca marítima e dentro e fora da grande baía de Lisboa trabalham os seguintes barcos:
dezoito cercos, vinte e oito vapores de arrasto, sessenta e seis barcos com setecentos e
sessenta e três aparelhos de anzol; cento e oitenta barcos com mil cento e noventa
redes–arrastões, botirões, banqueiras, camaroeiros, chinchas, chinchorros, corvineiras,
covos, sabugagens, savaros, solheiras, tresmalhos e rascos.
Vão e vêm os galeões a vapor, as canoas, os saveiros grandes com doze tripulantes
e que levam uma tarrafa para pescar a sardinha fora da barra, os botes e chatas, os
barcos que acompanham os galeões e que se chamam buques, os saveiros pequenos com
dois pescadores, que levam cinco savaras para peixe miúdo, nove sabugens, nove
tresmalhos e nove branqueiras; cinco barcos com quatrocentos e onze aparelhos que
pescam fora da baía.
Só os vapores fizeram, em 1922, vinte mil contos, números redondos, em peixe
graúdo, e os cercos cinco a seis mil contos de réis em sardinha. Em Setúbal partem
todos os dias os barcos para o mar. O movimento redobra. Setúbal e Olhão são os dois
grandes portos de pesca. Sardinha – sardinha – sardinha... Esta península da Outra

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Banda, limitada por duas baías, devia ser um paraíso, pelo seu excepcional clima e pela
sua luz admirável, e bastante, só ela, para, terra e mar, alimentar duas ou três vezes a
população de Lisboa, se terra e mar fossem convenientemente cultivados. Mas nós só
temos um sistema bem organizado – o da destruição...

CAPARICA

Janeiro-1923

Da horrível Trafaria à Caparica gastam-se dezoito minutos num carrinho pela


estrada através do pinheiral plantado há pouco. Os pinheiros são mansos, anainhos e
inocentes: – os pinheiros novos são como bichos novos e têm o mesmo encanto. Ao
lado esquerdo desdobra-se o grande morro vermelho a esboroar, e ao outro lado o
terreno extenso e plano rasgado de valas encharcadas. De repente uma curva, algumas
casotas cobertas de colmo – Caparica. Primitivamente isto foi um grupo de barracas que
os pescadores aqui ergueram neste esplêndido sítio de pesca, à boca da barra, a dois
passos do grande consumidor. Têm um ar ainda mais humilde que os palheiros de Mira
ou Costa Nova. Quatro tábuas e um tecto de colmo negro com remendos deitados cada
ano: alguns reluzem e conservam ainda as espigas debulhadas do painço. No imenso
areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, próprio para a
arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu.
Trabalham seis companhas em catorze barcos. Já trabalharam oito. Cada barco
emprega vinte e um homens, contando dez que ficam em terra. Usam quatro remos: um
grande de cada lado e dois pequenos, servindo os maiores para aguentar o barco quando
as águas puxam e se vai ao mar a risco. A cada remo grande agarram-se três homens e
dois aos mais pequenos. O espadilheiro guia o barco com outro remo – a espadilha.
Quando há muito peixe fazem-se três lanços cada dia, e trabalha-se todo o ano se o mar
deixa. A rede é a de arrasto para a terra. O barco sai ao mar deixando um cabo nas mãos
dos dez homens que ficam no areal, e vai-o largando pouco e pouco – cinquenta e tantas
cordas de dezoito braças cada uma. Quando o arrais acha que se deve largar a rede, diz:
– Em nome da Senhora da Conceição, rede ao mar! – E larga-se o calão, em seguida o
alar, depois o saco, e por fim o outro alar e o calão, trazendo-se a corda para a terra.
Abica, salta a tripulação e com os homens de terra arrastam a rede. Apanha-se sardinha,
carapau, e às vezes, em lanços de sorte, e quando menos se espera, a corvina, alguma
raia, pargo e linguado.
Uma grande extensão de areal, só areia e mar, barcos como crescentes encalhados
e alguns pescadores remendando as redes. Nem um penedo. Areia e céu, mar e céu.
Dum lado o formidável paredão vermelho, a pique, desmaiando pouco e pouco, até
entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. Do outro o mar azul metendo-se,
num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto
é esplêndido é acolá do alto do convento dos Capuchos. Assombro de luz e cor.
Amplidão. As casotas da Caparica aos pés, o mar ilimitado em frente, ao fundo e à
direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no
primeiro plano esparsas num verde-amarelado... E luz? E o prodígio da luz?... A gente
está tão afeita à luz que não repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este
azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as águas verdes
desmaiadas e sobre as terras amarelas e vermelhas até ao cabo Espichel... Mas fecho os
olhos – abro os olhos... Imensa vida azul – jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul
estremece e vem até mim em constante vibração. Quem sai da obscuridade para a luz é

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que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia...

SESIMBRA

Fevereiro - 1923

Da lazarenta Cacilhas à piscosa Sesimbra são seis léguas por uma estrada
atravessada de barrancos, que o tráfego do peixe arruinou. Grupos de pinheiros mansos,
ramilhetes de oliveira, e de quando em quando, por um rasgão imprevisto, o esplêndido
estuário do Tejo e ao longe Lisboa na moldura de terras a pique cor de barro. Dia de sol
– primeiras flores nas árvores. Até próximo de Sesimbra a estrada segue por terras
uniformes cor de giz. De quando em quando o panorama alarga-se e vê-se até ao mar.
Reluz num fundo a chapa de aço da Lagoa. Mais para além um grande areal indistinto.
A certa altura, porém, começa a aparecer a esquerda o dorso formidável da Arrábida e
algumas casinhas juntas com lindos nomes rústicos – Quintinha, Santana, Cotovia.
Estamos perto. A carripana vai descendo para Sesimbra pela estrada em torcicolos, entre
dois montes que se abrem, um com moinhos velhos afadigados lá no alto, outro com o
castelo em ruínas como um queixal cariado. A vila em baixo fica aconchegada no
regaço dos montes que a amparam e desce-lhes até aos pés – até ao grande areal exposto
ao sul, que a ponta do forte Cavalo limita à direita, e o morro do Aguincho, acabando
em focinho desmedido e brutal, limita à esquerda. A esta hora, seis da tarde, um está
reduzido a sombra espessa, e o outro escorre ainda o vermelho do último sol. Um
grande forte de Lippe, raso com o mar, ao meio da praia cheia de barcos encalhados e
de rebuliço humano. Casas pobres, casas lacustres, armazéns, redes a secar nos varais.
Anoitece, mas a vida não cessa. O peixe das caçadas é arrematado à noite, quando os
barcos regressam da pesca. Pelo areal fora, em quatro ou cinco fiadas paralelas, cada
caçada expõe o seu peixe, que reluz ao luar com um tom de prata antiga – gorazes a um
lado, e pescada, chernes a outro, todos em quatro, cinco filas alinhadas, e o grupo de
regatões à roda a disputá-los ao clarão dos archotes.

Usam-se em Sesimbra dois sistemas de pesca, a armação à valenciana, que dá a


sardinha e o chicharro, e a pesca do anzol, que dá a pescada, o goraz, o pargo, o
cachucho, etc., além de outras de menor importância, como a sacada, a arte de arrasto
para bordo e a arte de arrasto para terra. A lula pesca-se com alfinetes, a lagosta com
covos e o polvo com cacos velhos.
A armação emprega quatro barcos e quarenta homens, pouco mais ou menos, e a
barca de caçada dezoito a vinte pessoas e perto de trezentas talas com anzóis. O pro-
prietário da armação dá ao pescador dez tostões diários, e vinte por cento sobre o
produto da venda, incluindo o arrais e a rodada de cinco homens que conduzem o peixe
à lota, a quem é distribuído mais quinze por cento. Do peixe têm todos dois caixotes
para a alimentação. Na arte de arrasto, a quarta parte da venda é para o proprietário e o
resto para a companha, que paga o imposto à alfândega, o sebo, os archotes, o azeite, e,
sendo o lanço grande, a renda da loja.
São mais de quinhentas as embarcações varadas no areal – barcas, botes e aialas, e
além destas o batel com uma trave saliente na proa, o gavete, que serve para levantar a
testa da armação.
O pescador de Sesimbra, que vai às vezes muito longe, não conhece a agulha de
marear. Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra. Lá fora, quando vêem
o cabo ao nível de água, dizem que estão no mar do cabo raso, e, quando o farol

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desaparece, estão no mar do cabo feito. Conhecem a costa a palmo: o mar novo, que dá
o peixe-espada, o mar da regueira, que dá a pescada, o mar da cornaca, que dá o goraz e
o cachucho, e o do rapapoitas, que dá os grandes pargos, conhecidos por pargos de
morro.
Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, os outros ganham-lhe o pão:
recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam-lhe a viúva e os filhos, entregando-
lhe o ganho que ele tinha em vida. Dão ao hospital e ao asilo uma parte do pescado.
Toda a gente tem direito a ir ao mar – toda a gente tem direito à vida. Vai quem aparece,
desde que seja marítimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta homens e leva vinte
amanhã... O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela companha. A pesca do
anzol é uma espécie de cooperativa, e a barca quase sempre dos pescadores.

Seis horas da manhã. Noite de luar claro e frio. Desço a rua ainda tonto de sono.
Ao longe o moço chama: – Ó tio Julião, vamos embora... pra-a loja!... – Muitos homens
dormem na barraca onde se guardam os apetrechos das artes. Entro. Uma luzinha
fumega. Redes, remos, cabos, pedaços de velas, e sombras, tudo misturado. Remexem
vultos no escuro. Sobre a tarimba mal distingo farrapos de homens deitados.
– Vá lá! Vá lá!... – diz o arrais.
Erguem-se, juntam-se e o grande barco começa a deslizar nos panais. Salto dentro
e encolho-me ao pé do moço, na caverna. É noite, noite de lua redonda e gelada. Os ho-
mens remam em cadência e o panorama vai saindo do escuro à medida que o barco se
afasta, todo em sombras empastadas e enormes, cortadas a pique, que se destacam
pouco e pouco umas das outras em fantasmas de penedos, em morros salientes com
buracos metidos lá dentro... Ao cimo da água, dum azul quase negro, escorre o luar em
tremulina. São mil fios de luz que estremecem ao mesmo tempo...

Sete horas. Lua ainda muito alta aspergindo a terra de pó branco. O barco abriga-
se do noroeste junto à costa, ao pé dum grande penedo donde se levanta uma revoada de
corvos assustados. Ao nascente, sob a estrela de alva, distingue-se uma nódoa rosa. O
moço vai dizendo o nome de todas as pedras e explica:
– Aqui estamos abrigados da lapeirada do vento...
Noto que a luz já não é a mesma. Não é a claridade do dia, é ainda o luar. Mas o
pó branco sensibilizou-se e estremece.
– Vamos lá! Vamos lá às artes!
Os homens remam numa cantilena monótona: – Rema! Rema! Ceia agora!... –
Ergo-me e vejo o mar coberto de embarcações iluminadas pelo fogaréu dos archotes.
São as artes, que esperam o nascer do sol para o lanço; são as armações que começam a
alar a rede: – Rema! Rema!... – Avermelha e alastra a mancha do nascente...

Momento único. Momento em que o branco desmaia e em que a luz do luar e a luz
do sol se entranham e misturam. O grande manto branco escorre sobre as águas e já o
nascente lhe ilumina a esteira mágica, que estremece toda. Olho para o céu: no céu, azul
às enxurradas, lavando-o do luar. Aumenta e alastra a claridade. A lua teima, caem
jorros brancos que não cessam, mas o nascente, num triunfo, enche tudo de luz. Os
grandes morros emergem da tinta azul como colossos ensanguentados. Mais fragas além
– toda a costa recortada. Cabos enormes e maciços, e ao longe o Pombeiro entrando de
rompante pela água dentro. Panorama a vermelho. O sol escorre sobre as palhetas do
grande manto branco, que vibram como se fossem levantar voo. E todo esse luar
magnético e branco, ao mesmo tempo que estremece e reluz, doira. Doira um instante e
morre...

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É quase dia. Sobre o nascente duas nuvenzinhas como véus. Já distingo as
silhuetas dos homens alando as artes contra a luz. Dois barcos puxam a rede e juntam-se
à medida que se aproximam do saco.
– Leva arriba! Leva arriba!
– Agora! Agora!
O saco está à borda. Vêem-se as bolhas cobrindo a superfície da água: o
gorgolhido. A sardinha não tarda a vir com a cabeça ao de cima. C o que se chama
coutejar. Já os homens começam a tirá-la para dentro dos barcos com as xalavaras.
– É pouca...
– É uma teca – diz o moço, designando a pequena porção de peixe.
Sete e meia. É dia claro. Ao pé de mim mergulham dois patos pequenos de dorso
escuro e peito branco, dois macorrilhões, e um roaz salta fora da rede. Os primeiros
raios de sol batem em cheio em Sesimbra apinhada à beira-mar.
– Vamos agora ao calhau.
É a armação valenciana, de que se vêem as grandes bóias de cortiça ao lume de
água – construção complicada que se compõe de corpo, rabeira e legítima. O corpo
compreende a câmara, o bucho e o copo, trapézios mais ou menos regulares, fechados
por redes verticais que vão da superfície até ao fundo. A rabeira vem da terra até à boca
da armação, de maneira que a sardinha, encontrando-a, caminha até à boca do copo,
onde se mete.
Quando chego, já os homens, de avental de oleado, puxam o copo para a borda
dos barcos, apertando pouco e pouco o cerco.
– Ou! Ou!
– Leva arriba! Leva arriba!
O movimento dos braços acentua-se. Curvam-se, agarram a rede, erguem-na até si.
O barco, cheio de água, adorna.
– Ou! Ou! Vai! Vai!...
Estamos quase à testa do copo e a rede metida no meio dos barcos. A sardinha
salta. Mergulham as grandes xalavaras encabadas num pau dentro do saco, tirando-as
cheias de vida.
– Venha de lá uma caldeirada!
Vamos regressar. A vaga estoira na areia.
O mar está corso. – À terra! À terra! À espia! – grita a companha. Aproximamo-
nos. Agarram-se a um cabo fixo no mar e vão-no puxando a si: o barco corre direito à
maresia. É o momento dramático: a onda apanha-o, impele-o, salpica-nos de espuma e
atira-nos pela areia acima...

SARDINHA! SARDINHA!

O que se arranca ao mar só em sardinha é prodigioso. Todas as manhãs os vapores


correm as armações valencianas e trazem os barcos carregados para a fábrica. Todas as
noites infatigavelmente o cerco americano apanha sardinha; todo o dia infatigavelmente
a arte da xávega no Algarve, as netas e outros aparelhos por essa costa fora, puxam a
rede para a terra. Pescam nas nossas águas os galeões espanhóis, os navios ingleses e
franceses; e as criminosas traineiras, depois de exterminarem o peixe na costa da Galiza
e na baía de Vigo, onde ele entrava em inesgotáveis cardumes, espalhando-se pelos
braços da ria, matam-no a dinamite e a carboneto, de Peniche até Leixões e mais para o
norte ainda. De dia, de noite, rapam-na os pescadores do fundo do mar. Juntam-se os

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poveiros, os matosinheiros, os cagaréus, os do norte e os do sul, os algarvios, os dos
grandes aparelhos aperfeiçoados e os dos aparelhos primitivos, e todos os dias alastram
os areais de peixe vivo, que se vende fresco, salgado, em latas e barricas, que se
consome no país ou se exporta para o estrangeiro. Em alguns pontos, como em Olhão,
por exemplo, a sardinha é um jogo apaixonado. Enriquece e arruina, compra-se a prazo,
e vende-se às vezes mais barato do que custa, quando o fabricante se vê obrigado a
lançá-la ao mercado. Nenhum peixe dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo.
Ocupa o terceiro lugar na escala da alimentação e está muitos furos acima do bacalhau,
o fiel amigo.
É aos montes que a sardinha é apanhada por essa costa para enriquecer meia dúzia
de felizes. Daqui a meio século não há uma escama nas nossas águas fertilíssimas. O
planalto que se estende até algumas milhas da costa, e que foi revolvido pelos vapores
de arrasto, matando a criação e reduzindo à pobreza os pescadores primitivos, é agora
explorado pela indústria por todos os processos e feitios. Sardinha – sardinha –
sardinha...
Carregada em barcos, a dorso de cavalgadura ou nos carros alentejanos de toldo e
grandes rodas, acarretam-na para a fábrica. Levam-na os rapazes e as mulheres em
gigos e redes para casa. Furtam-na os homens da companha que têm uma larga parte
nesta matança. Só um mestre dum barco do Fialho ganhou em 1922, em percentagem,
afora o ordenado e o quinhão, quinze contos de réis. É o peixe que dá mais dinheiro. Por
isso a destruição é enorme e sem folga, dura o ano todo, antes da desova e depois da
desova, à rede, a tiro, sem cessar e sem tréguas –uns barcos em terra, outros no mar, uns
pescando-a e outros conduzindo-a, com a borda metida na água. Cheira a sardinha.
Como os antigos pescadores já não chegam para esta matança, chama-se em
auxílio a gente da terra – no Algarve o montanheiro, no norte o lavrador. Multiplicam-se
as fábricas, procuram-se novos meios de destruição. O azeite corre como um rio: é
preciso importá-lo, que não chega. O sal aumentou de preço, porque só este greiro
branco permite que o peixe não se estrague. Ao sair do barco, até o peixe que se destina
à conserva é logo salpicado. Organizam-se companhias a toda a pressa, e de norte a sul
a exploração redobra. É uma febre. São montanhas de prata que o mar produz – tão
grandes e tão inesgotáveis que ainda hoje do alto da Arrábida sucede ver-se todo o mar
reluzir com o cardume.
Tenho a impressão de que o mar é compacto, só sardinha – sardinha – e sardinha.
Estou farto 2.

2
Todos os pescadores de norte a sul se queixam de que o peixe falha. Queixam-se de Caminha a
Aveiro, queixam-se os da Nazaré, os de Sesimbra e os de Olhão, que emigram para a América. Porquê?
Porque, já o disse, nós só temos um sistema bem organizado – o da destruição. Primeiro os vapores de
arrasto revolveram o planalto matando a criação e destruindo os pastos. Vieram logo a seguir as
criminosas traineiras, que matam a dinamite, e por último os barcos estrangeiros, que empregam agora o
carboneto. Se juntarmos a isto a falta de método e de fiscalização efectiva, os excessos cometidos por
todos e as leis e os regulamentos que não se cumprem, é fácil de ver porque falta o peixe, e de prever
também que dentro de cinquenta anos não haverá uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas.
Fartem-se enquanto é tempo.
Que havia a fazer?
– Proteger eficazmente o planalto, que em geral tem uma profundidade pequena e poucas milhas
de largura, e o fundão, a beirinha, como lhe chamam os pescadores.
– Regulamentos severos e executados a rigor.
– Proibir ás traineiras e aos cercos a pesca da sardinha durante a desova. Hão-de ser obrigados a
fazê-lo dentro em breve.
– Vapores de arrasto poucos, ainda que hoje são menos nocivos, porque vão pescar para muito
longe. Júlio de Vilhena chegou à conclusão, no seu relatório, de que não se deviam permitir mais de
quatro vapores em Lisboa e três no Porto. E estes em vista das necessidades de peixe fino criadas pelas

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OLHÃO

Agosto - 1922

Tenho de atravessar o Alentejo isolado concentrado, para chegar ao Algarve. É


uma província farta, mas a aparência esquelética, a árvore triste a que arrancam a pele
em vida, o monte solitário, meteram-me sempre medo. É a terra do ódio. Tudo em que a
gente põe a vista é duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir – mas o sorriso fica
em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns
com os outros para fugirem à solidão do deserto... No Baixo Alentejo, porém, os
sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o céu esbranquiçado, as lascas de pedra que relu-
zem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma
grande fumarada levanta-se no fundo do deserto.
Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário,
que goza em Lisboa, e que lhe deixa de quando em quando uma rolha para desbravar.
Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo a atroz realidade. Fica só e o ódio, sob a
abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à
morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio:
com o ódio enche o deserto e enche a própria vida...

De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto – por baixo chapadas de


cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas
geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os
terraços um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair
da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É
uma terra levantina que descubro; só lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e
cheiro: branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como
um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a
cemitério. O fruto que chega a este estado está a dois dedos do apodrecimento, e é
talvez por isso que a ideia do sepulcro me não larga nas noites brancas e pálidas em que
me julgo perdido num vasto campo funerário...
O céu aproxima-se de mim. Da soteia chego às estrelas com a mão. A aragem do
mar é tépida e o cheiro persiste... Voluptuosidade e morte... Tenho a sensação criminosa
de apertar nos braços uma mulher que se entrega, no momento em que entreabre a boca,
sucumbida – num vasto campo-santo, onde os espectros imóveis e brancos, de sudário,

populações das duas cidades, que só os vapores podiam fornecer com anuodãncia. Esta questão vem de
longe e foi sempre complicada. Quando veio a República, esperou-se uma solução... e que se viu? viu-se
os exploradores republicanos continuarem a obra dos exploradores monárquicos. O peixe em Lisboa e
Porto é caro, porque está nas mãos de companhias poderosas, que o vendem pelo preço que entendem. Se
a destruição era inevitável, ao menos devia-se baratear um alimento necessário a ricos e pobres. Resolvia
a questão lucidamente o Dr. Carlos Fuzeta, entregando o monopólio da pesca a vapor aos Municípios de
Lisboa e Porto.
– Aperfeiçoamentos técnicos: barcos, aparelhos, estações de pesca, cais, abrigos, etc., mas com
cuidado, porque o país é pobre e os resultados seriam escassos. Agora fala-se para aí muito em escolas de
pesca, que serviriam apenas para anichar mais algumas dúzias de vadios políticos. A grande escola de
pesca é o mar. Alguma coisa se conseguiria porém com exemplos, trabalho e meia dúzia de pessoas
dedicadas. Mas pouco –porque afinal estou convencido de que os pescadores sabem mais com os olhos
fechados de que os técnicos com eles abertos.

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olham e esperam... O fruto vai completar o seu destino. Cheira que tresanda.

Há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia só do


mar. Todos se conheciam. Os que não eram marítimos, eram filhos ou netos de
marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que
iam à cavala a Larache. A pesca costeira, a das caçadas, fazia-se com groseiras, grandes
espinéis, para o cachucho, o goraz, o safio, a carocha, o ruivo, a abrótea e a pescada; e
com a arte da xávega, em calões e botes, puxando a tripulação o aparelho para terra
enquanto o arrais, numa pequena lancha, a calima, vigiava o lanço e dirigia a manobra.
Havia muito peixe e a vida era extraordinária. Toda a noite o chamador batia de porta
em porta com um cacete:
– Arriba com Deus, mano João!
Nesta arte ia ao mar quem queria – os pequenos, os humildes e os fracos – todos
de varino e por baixo nus.
– Levas a barça? – perguntava o arrais.
Era o essencial. Dizia-se de um homem pobríssimo: – Aquilo é um homem sem
barça nem lasca.
O dinheiro arrecadava-o o dono num monte com uma esteira por cima, e distri-
buía-o enfiando o braço por um buraco e tirando um punhado de cobre ao acaso:
– Toma lá!
Fazia as contas que entendia e os pobres diziam:
– O que ele tem enricado à custa daquela esteira!...
E as mães às filhas:
– Ó filha, Deus queira que não olhes para home que ande na arte!...
A pesca do alto fazia-se em caíques cobertos, de vinte e cinco a trinta toneladas,
com duas velas triangulares. Este barco voava. Ia a Setúbal, a Lisboa, às Berlengas, ao
Porto, e só voltava a casa no S. João, no Natal e nas festas grandes do ano. As mulheres
esperavam pelos maridos com alvoroço – dando outra mão de cal nas casas.
Tripulavam-no vinte e cinco homens e dois cães, que ganhavam tanto como os homens.
E mereciam-no. Era uma raça de bichos peludos, atentos um a cada bordo e ao lado dos
pescadores. Fugia o peixe ao alar da linha, saltava o cão no mar e ia agarrá-lo ao meio
da água, trazendo-o na boca para bordo. O caíque pescava e vendia pela costa fora. Às
vezes sucedia-lhes estarem em Lisboa, abrigados do temporal, longe da terra em dias de
festa, no da procissão do Senhor dos Passos, por exemplo – a que o marítimo nunca
falta vestindo o melhor fato e pondo a cartola na cabeça: – Compadre, vamos nós à
procissão? – Ventania rija, vagalhão de meter medo na barra... – Por cima da água ou
por baixo da água, vamos sempre. – E iam. Marítimos extraordinários, não usaram
nunca agulha de marear: sabiam onde estavam pelo cheiro.
Outro barco, o do navego, comprava géneros em Almeria e Gibraltar, palma na
Barberia (Marrocos), ou ia a S. Martinho buscar o pêro que tem fama, levando do
Algarve o figo, a alfarroba e o peixe seco para vender. Mas o grande negócio de Olhão
foi sempre o contrabando. Não é contrabandista quem quer: é preciso inteligência e
astúcia, arrojo, o alerta dum chefe selvagem e a imaginação dum poeta. Conheço um
contrabandista famoso, o senhor Mendinho, que ainda hoje faz na sua goleta a carreira
de Gibraltar. Tem setenta e dois anos, um grande engenho, e promete levar a Alcácer
Quibir todos os poetas portugueses. Agora que criou os filhos, repousa duma vida cheia
de peripécias, num sítio romântico entre figueiras, e começa a escrever as suas
memórias. É um mestre reputado. Duma vez um grande temporal assolou a costa
algarvia: naufrágios, gritos, mulheres cercando o telégrafo dia e noite, toda a povoação
em alvoroço. – Que é de fulano? – Não se sabe! Não se sabe!... –Pouco e pouco foram

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aparecendo derreados, hoje um, amanhã outro – só do senhor Mendinho não havia
notícias. – Isso morreu... – Passaram-se dois dias, mais três dias negros. – Morreu, com
certeza. – Mas uma tarde correu o grito em Olhão: – O barco do Mendinho está na
barra!... – Era a goleta, efectivamente – mas em que estado! Os mastros partidos, uma
amurada deitada abaixo e as velas em farrapos. Desceu tudo à praia. Meteram-se em
barcos e trouxeram-no para a terra abraçado, festejado, aclamado. Quem em semelhante
ocasião, depois de tantos perigos corridos, se lembraria de visitar a goleta? Até a
guarda-fiscal chorava. – O Mendinho! O Mendinho!... Que milagre! – Ora o mestre
Mendinho imaginara aquele espectaculoso cenário refugiado num abrigo de Marrocos:
mandara quebrar os mastros, deitar as amuradas abaixo, rasgar as velas – e trazia o
porão atulhado de rico contrabando que descarregou nas barbas do fisco compungido.
Também, diga-se a verdade: toda a gente em Olhão, ricos e pobres, protegia os
contrabandistas e entrava no negócio. Nunca em terra se apreendeu uma peça de
fazenda. Passava-se de soteia para soteia – para o que basta estender os braços – e
corria, se fosse preciso, a vila toda, porque nessas ocasiões até inimigos rancorosos se
julgavam no dever de esconder o contrabando, e todas as casas tinham uma guardadeira
ou falso entre duas paredes.
Em resumo: este homem é um homem à parte no Algarve. Se veio de Ílhavo,
como dizem, não sei, mas é o único homem arrojado desta costa.
D. Carlos estimava-os e eles ainda hoje se lembram do rei a quem falavam, não
com a subserviência dos políticos, mas de igual para igual, como a um pescador de
maior categoria. Às vezes D. Carlos encontrava-os no mar alto. – Então que tal a pesca?
– Nada. – Também, vocês estão aqui, e ali em baixo, a três milhas, o peixe anda aos
cardumes. – Mas com este vento, como é que a gente há-de lá ir? – Botem os cabos!... –
E, voltando atrás, levava-os a reboque do iate até ao sítio da abundância.
O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de
igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos
perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença
de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza, forçam-nos a contar consigo e com a
companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim.
Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os
corrompe. E como o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos,
imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não compreendem, e ignoram a
vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixem-
lhe a eles o barco e as redes, e tomem conta do resto. Reparei que em todas as casas
havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande
ternura pelas aves. Na Foz também era assim. Quando os via passar para o Monte com a
chamariz, o alçapão e o ramo, lembrava-me sempre de um velho marítimo colérico e um
pouco funambulesco da vasta galeria de Dickens. Voz de tempestade e rajadas
desabridas. Passeava por toda a parte uma grande irritação e acompanhava-o por toda a
parte um canário domesticado, que não lhe tinha medo nenhum, porque sabia
perfeitamente que sob aquele aspecto de ferocidade se escondia uma alma feminina. O
rude pescador de Olhão, que passa a existência no mar, também tem necessidade de
uma ave e não pode viver sem a sua companhia...
Em todo o Algarve a mulher é a prenda da casa. Trá-la muito bem tratada, muito
bem fechada, restos da vida moura. A de Olhão, trigueira, de olhos negros e um lindo
sorriso reservado, passa por a mais bela da província, pela vivacidade, e pela fartura do
cabelo. Já em S. Brás de Alportel, ali perto, as cabeças têm reflexos doirados e os peitos
são desenvolvidos. Sentadas nas esteiras sobre os calcanhares, nas casas forradas de
junco ou de palma, fabricam as alcofas, a golpelha em que se transporta a alfarroba e o

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figo, e as alcofinhas mais pequenas, chamadas alcoviteiras. Ainda há pouco tempo todas
usavam cloques e bioco. O capote, muito amplo e atirado com elegância sobre a cabeça,
tornava-as impenetráveis.
É um trajo misterioso e atraente. Quando saem, de negro, envoltas nos biocos,
parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo
no rebuço, tem outro realce... Desaparecem e deixam-nos cismáticos. Ao longe, no
lajedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calçado – e já o fantasma se esvaiu,
deixando-nos uma impressão de mistério e sonho. É uma mulher esplêndida que vai
para uma aventura de amor? De quem são aqueles olhos que ferem lume?... Fitou-nos,
sumiu-se, e ainda – perdida para sempre a figura – ainda o som chama por nós baixinho,
muito ao longe – cloque...
Antes de casar a mulher enfeita-se muito. Depois não. – Já enganei quem tinha a
enganar... – dizem. Mesmo se continua a enfeitar-se, murmuram dela: – É alvanaira. – É
ela quem dirige a casa e quem incute ânimo ao homem timorato. De noite, quando ele
tem medo às bruxas, acompanha-o ao barco. Nas ocasiões graves, se é preciso falar,
quem fala é ela. Sozinha põe e dispõe. Quando o homem vai ao médico, precede-o. Ele
cala-se, ela explica. – Ele que tem? – Ela responde: –Olhe, queixa-se disto e daquilo...
Todos estes costumes vão desaparecer. Na população, maior que a de Faro, os
naturais estão em minoria e vão sendo pouco e pouco expulsos da sua própria terra. Já o
povo canta:

Adeus, ó terra de O/hão,


Cercada de morraçais,
És a mãe dos forasteiros,
Madrasta dos naturais.

Sigo por um novelo de ruas pelos dois bairros típicos, o da Barreta e o da banda do
Levante. A boca negra dum arco e outra rua tortuosa onde a luz não penetra. Algumas
têm nomes que as pintam: a Rua dos Abraços, a Rua dos Sete Cotovelos. Vive-se ao ar
livre, come-se ao ar livre, dorme-se ao ar livre. A rua, fedorenta e animada, pertence aos
pobres. Abancam no meio das vielas. Mulheres curvam-se sobre as sertãs frigindo
peixe. O azeite respinga e fede. Risos. Reparo nas atitudes, no suor e na cor
avermelhada das mulheres debruçadas sobre as brasas, na familiaridade, no à-vontade, e
naquele velho sátiro que avança para mim, com a caneca de vinho na mão a trasbordar.
À roda, encostados às paredes, os remos, os cabazes e as redes; ao lado o cano de esgoto
que passa à mostra pelo meio da rua num escorro fétido.
Mas, se a rua é suja, a casa é limpa. A habitação primitiva é um cubo com uma
porta e uma janela. Em cima a soteia, para onde se sobe por degraus de tijolos, e muitas
vezes sobre a soteia o mirante. Entro num e noutro destes buracos com as telhas
assentes em canas. Todos eles reluzem de cal. Dois compartimentos: a chaminé, que é o
nome da cozinha, e a casa de fora. Uma esteira no chão, uma cama com uma colcha de
seda que só serve nos dias de festa, uma cómoda e um bancal de renda. A um canto um
pote e o indispensável pincel. Caia-se tudo. Caia-se o lar e os degraus. Caia-se sempre.
É um delírio de branco. Subo à soteia – a melhor parte da casa. O homem de Olhão tem
por ela uma paixão entranhada. Se um vizinho a ergue, ele nunca fica atrás – levanta-a
logo mais alto. É que a soteia é o seu encanto: sítio esplêndido para respirar, eira para a
alfarroba e o figo, e quarto para dormir no Verão sob um pedaço de vela.

É no cais, ao pé da praia, a que chamam baixa-mar, é no cais fedorento, entre os


homens que andam na faina, os estaleiros abandonados e as caixas de sardinha para

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embarque, que eu assisto todos os dias ao espectáculo da chegada dos barcos e que vejo
os peixes, as redes e o leilão. Para lá da água empoçada ficam os areais, a ilha da
Armona, a do Levante, a ilha da Culatra e o farol de Santa Maria. Perto de mim as velas
dos barcos reflectem-se em manchas coloridas no azul retinto e ondulado. Desde o
calão, tipo mais antigo, grego ou fenício, até ao caíque, estão aqui representados a
chalupa, o iate de pequena cabotagem, o bote, as lanchas de vela latina e as de
Albufeira, com uma grande cabeleira na proa e dois olhos pintados no costado. Ao lado
do cais ficam os armazéns da salga, donde outrora saia a sardinha em barris para Orão e
Marselha, a pescada descabeçada para a Espanha e os almocreves com cargas para o
Alentejo. Entro. No escuro pios metidos no chão, preparos para a salga do biqueirão, do
charro (chicharro) e da sardinha, e ao lado a caldeira para extrair o óleo do peixe de
couro – azeite de quelme – cuja pele, chamada de lixa, se aproveita para vários usos
conforme as qualidades – lixa de lê, a pailona e os barrosos, fêmeas dos quelmes. Em
Agosto, quando a sardinha abunda, prensam-se em cascos, ou mulheres, enfiando-a aos
quarteirões em varetas, dispõem-na em costais para embarque. É no cais que se vende o
peixe em lotas, quando chegam as pequenas canoas das caçadas, com sessenta aparelhos
de oitenta braças iscados a sardinha e as canoas maiores de duas velas, tripuladas por
dez a dezoito homens, que vão pescar até S. Vicente com o espinel, cabo da grossura
dum dedo, chamado manoio, com perto de dois mil anzóis. E é aqui também, na
agitação da baixa-mar, que eu anoto os nomes das diferentes redes e dos diferentes
peixes: a murjona, o tapa-esteiros, que apanha o peixe no rio à maneira que a água vai
vazando, a toneira para os chocos e as lulas, a redinha e o tresmalho, e outras
engenhocas do subtil pescador, que chega a agarrar o langueirão com um botão de
ceroula e alguns alfinetes e o polvo com velhos alcatruzes de nora. Tudo vem ter ao cais
– peixes esplêndidos de uma abundância e de uma variedade extraordinária –do rio o
linguado, o pregado, o peixe-rei, o xarroco, os capitães, os alcabrozes, os robalos, etc.,
uns pescados à fisga, como a liça, a safata, o robalo, outros ao anzol e ao candeio; e do
mar, despejados nas linguetas, montes de cações, de galhudos, que têm um pique no
cerro, de monstruosas raias, de donzelas, de albufares pardacentos e enormes e de feios
dentulhos. Atiram do fundo do barco para as pedras a abrótea, bandos de vermelhos e
lindos cantarilhos, que parecem peixes de aquário, xaputas dum negro prateado com o
rabo aberto como as pontas da cauda da andorinha, esguias tintureiras, corvinas e cestos
de polvos enrodilhados.
É uma magnificência. Paro com assombro diante do monstruoso tamboril, só boca,
com uma boca maior que um açafate, e que usa para atrair a presa duas linhas na cabeça
com uma isca na extremidade. Já cheiro a peixe e a salmoura e não me canso. Outra
canoa chega. Venham assistir à lota! O pregoeiro no meio do grupo parte sempre –
costume que começa em Sesimbra – de uma quantia alta para ir descendo até encontrar
comprador. E também – já se fica sabendo – quando fala por exemplo em oitenta e seis
mil réis, são três mil réis a menos.
– Todos estes peixes juntos 86 mil réis. –E rapidamente: – 85, 84, 83...
– Três peixes cada um por 5 mil réis... 4900... 4800...
– Chut! – diz um dos do grupo. É o sinal de que está arrematado.
Mas a abundância e a riqueza, a fartura, é a sardinha. Foi inesgotável, foi
compacta, tanta que noites inteiras e seguidas ninguém em Olhão podia dormir. E dizia-
se: – Houve hoje grande matação de peixe. – Há aqui duas qualidades: a do sueste, que
vem em Abril e arranca aos cardumes da costa de Marrocos; e o peixe do sudoeste,
maior, mais gordo e menos saboroso, isto sem contar com a sardinha de passagem, que
aparece em Janeiro quando desova. – Já lá anda perdida... – dizem os pescadores. –
Morde-lhe a ova.

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– Morde talvez, talvez a sardinha arraste a barriga na areia para tornar a pele mais
fina, facilitando a saída da ova, porque chega nessa época até três braças de altura. Na
Páscoa também é certa. Vai correndo por esse mar o cardume da sardinha, e os barcos,
as toninhas, os homens e os peixes vorazes, uns na cauda, outros na cabeça daquele
formidável rolo prateado, cevam-se de dia e de noite, pescando sempre, apanhando
sempre, destruindo sempre, sem o extinguirem.
É do cais que larga a sacada com que os pescadores há uns anos procuram
desforrar-se dos grandes industriais da pesca. A sardinha é atraída com engodo e
fogachos e a rede puxada do fundo para cima. E ao fim da tarde é daqui também que
partem os vapores do cerco com as redes – quarenta cabos de rede, com uma parte
central, a copejada. Chamam-se calões os cabos extremos desta rede tão fina que parece
a que as mulheres usam para segurar o cabelo.
A sardinha vem à terra todas as tardes e retira pela manhã. Se há luar, desaparece.
Os vapores navegam com as luzes apagadas no silêncio entorpecido destas noites de
Verão, em que as estrelas se reflectem na água como faúlhas de lume e a Via Láctea
desdobrada ilumina ao mesmo tempo o céu e o mar duma vaga brancura. Um ou outro
fantasma de vapor passa por nós e some-se. O mestre Fagadulha, concentrado, espera...
A bordo não se respira, e dir-se-ia que os outros barcos andam também na ponta dos
pés. Silêncio e estrelas, cada vez mais estrelas. E sempre este movimento que sinto
debaixo dos pés e este negrume que me envolve em círculos concêntricos, à medida que
o barco se desloca, sob o céu que se aproxima e que sinto arfar. Toda a tripulação está
atenta, desde os criados, os proeiros, até ao pedreiro e ao mestre, que são as pessoas
importantes de bordo. O mestre não é apenas um observador – é um bruxo. Para largar a
rede é preciso saber não só onde está o peixe – e o mestre adivinha o cardume – mas
calcular de antemão a qualidade e a quantidade de sardinha que se vai tirar no lanço
porque não vale a pena fazer a manobra por uma pequena porção.
– Quantos barcos, mestre?
E ele responde logo:
– Dois, quatro, cinco...
Há em Olhão alguns mestres extraordinários: o mestre Manuel Gomes, José
Coelho, o José Farroba, etc., que afinaram a observação e os nervos até ao golpe de
vista preciso e exacto, à intuição rápida e infalível. Mestre Fadagulha é um velho
curvado e seco, que conhece o mar como as suas mãos. Tem já um filho para o
substituir, mas diz: – É bom, mas as sardinhas ainda o não conhecem como a mim. – Se
o mestre sabe onde está o peixe, o pedreiro sabe onde estão as pedras. Com uma rede
tão cara e tão fina, uma pedra inesperada é a ruína. A rede há-de ser lançada em sítio
limpo.
– Posso largar aqui? – pergunta-lhe sempre o mestre antes do lanço.
Ele tem a sonda, mas pedreiro que se preze raro a usa. Muitos nem saem do porão:
olham o céu pela escotilha e a posição das estrelas: – Largue... – Ou dizem: – Mais ao
norte... – É certo que o mar de Olhão até às sete braças é limpo, das sete às catorze sujo,
e depois outra vez sem pedras. Mas há a contar com os calhaus isolados, que só quem
foi criado na costa desde pequeno, como os pedreiros, e a conhece a palmos, tendo
pescado toda a vida à linha, sabe onde ficam.
Noite cada vez mais escura, silêncio cada vez maior. Fervilham as estrelas no céu,
isoladas ou aos grupos, com buracos de escuridão profunda no alto que fazem sobressair
as jóias mais puras. Uma coisa indistinta bóia ali à superfície, que não sei se é
fosforescência, se reflexo da Via Láctea... Escuro – mais escuro, e depois outra vez
ascendendo do mar uma claridade vaga como um bafo que se dissolve. E sempre este ar
salgado, esta exalação das águas que me deitam a respiração à cara. Começo a perceber

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no mestre, curvado e calado ao pé de mim, uma grande excitação. Fala baixo:
– Cá está a brancura! Cá está a brancura da sardinha!... Bate lá!...
A seu lado um homem bate com um malho numa tábua, e este ruído faz
estremecer e reluzir o cardume na profundidade das águas. O barco roda. O silêncio
aumenta. Aqui, acolá, no negrume, ouve-se o mesmo bater compassado a bordo de
outros vapores que deslizam na noite como sombras.
– Bate lá!
E não despega os olhos do mar em busca da ardentia. São dez horas. O mestre
imobilizou-se, petrificado... Entre ele e o banco do peixe estabelece-se uma
comunicação magnética: durante alguns momentos é um adivinho, sob uma excitação
nervosa extraordinária.
– Bate lá!... Bate lá!... Isto deve andar por perto.
Pressente-a. Vai-lhe já no rasto. E começa a falar sozinho – mais alto – mais baixo
–ao acaso:
– Ela está aqui... ela não está longe. Não, não e esta... Isto é, quando muito, um
barco... Bate lá! Bate lá!...
O bruxo interroga a noite, o silêncio e o mar. A excitação aumenta:
– Mais ao norte! – berra –, mais ao norte, estas são pequenas! Proa ao norte! Bate
lá... Aqui é que elas estão! Pois não deviam de estar! São elas...
– Quantos barcos, mestre Fadagulha?
Mas nesses momentos não gosta que o interrompam e responde com modo brusco:
– Quatro barcos, senhor; devem ser quatro barcos. Cá estão elas, eu não o dizia!
Cá estão elas! – E num grito de triunfo: – Rede ao mar! Venha a chata!
A rede é lançada ao mar e fixa pela chata. Toda a excitação do mestre desapareceu
de repente. Toma o leme e brada ao maquinista:
– Toda a força à máquina!
Trata-se agora de envolver rapidamente o cardume da sardinha e ouve-se o
vozeirão no escuro, repetir:
– Toda a força! Toda a força!
E o vapor desliza, fechando o círculo. Aqui e ali, lá para o fundo, sob o rodilhão
das estrelas, repete-se a mesma manobra; aqui e ali, mais perto, mais longe e apagado,
ouve-se o bater compassado dos malhos que fazem vibrar e reluzir os cardumes no
fundo da água e os mesmos gritos de comando: – Mais ao norte! Mais ao sul! Larga a
chata! – De novo interrogo o mestre:
– Quantos barcos?
– Quatro barcos, senhor, devem ser quatro barcos – responde com a maior sereni-
dade.
Ele não só pressentiu a sardinha: soube também se era grande ou pequena e
quantos barcos, mais xalavara, menos xalavara, estavam dentro da rede. A manobra
executa-se rapidamente e a companha trata de apanhar o peixe, puxando as chumbadas e
colhendo-as do fundo até se unirem no ponto onde o círculo se fechou. Resta meter o
peixe para dentro das cavernas: são efectivamente quatro barcos de peixe.
Pela manhã, à luz da madrugada, na frescura que se exala da primeira claridade e
do hálito do mar misturados, faz-se o lanço da sorte. É o último e ao acaso, mas sempre
para o lado donde se conta que venha a sardinha. O mestre descobre-se e com ele toda a
companha e diz, com solenidade:
– Em nome de Deus e do altar, esta rede ao mar!
Antigamente o produto da pesca dividia-se em partes iguais por todos os homens
das canoas, incluindo o arrais, e o Senhor dos Passos não era esquecido nos lucros,
ganhando também o seu quinhão. Com os aparelhos de pesca mais complicados, tira-se

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do monte comum um certo número de partes para o barco, que representa uma
personalidade, e outras para o aparelho, para a companha, para o Compromisso
Marítimo e para a gente nova no serviço que vai a merecer. A parte do mestre chama-se
a parte do corpo e a parte do governo. No cerco americano ou nas artes valencianas, os
homens têm um salário mínimo de oito tostões por dia e uma percentagem sobre a
pesca, que no cerco vai até quinze por cento. Além disto, distribuem-se duas xalavaras
para cada três homens, peixe do rancho, que lhes dá para comer e para vender. E
sobretudo há a furtança, que é uma instituição. Ninguém o ignora. Eles próprios o
dizem. Sabem-no os patrões: o peixe é tanto e dá tanto dinheiro que fecham os olhos. A
tarrafia, isto é, o logro, é corrente e de todos os dias. A furtança é geral. Roubam os
homens, que escondem o peixe nos cestos, nos cantos do barco, onde podem. Roubam
as mulheres e os rapazes. E até gente de certa categoria o furtava nas ruas. Era talvez
por isso que o Tarraço, homem do campo, avarento, dizia: – Esta gente do mar nasce
roubando e morre pedindo.

Tarde. Olho pela última vez a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de
oiro em cima e deixo com saudade esta luz e esta terra embruxada.
...Teria aqui uma casa numa das vielas fedorentas mais escusas. Para o exterior um
muro sem uma janela, um muro velho, com um postigo mais velho ainda para entrar.
Aberta a porta, seria um deslumbramento: no pátio caiado, só luz e folhas gordas, da
variedade dos cactos que dão flor vermelha, humedecidas de água sempre a escorrer.
Teria duas escravas para me servirem frutos translúcidos acabados de apanhar. Teria um
barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos, satisfazendo assim
os meus velhos instintos de pirata. E de noite, a este luar que tem não sei o quê de
mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na soteia sob as
estrelas, grandes como fogachos.
Era viver num meio adormecimento, seduzido pela luz, fora de todos os interesses
e realidades, em Portugal e no Sonho...

77
A PESCA DO ATUM

TAVIRA

Agosto - 1922

Muros muito brancos, de porta e janela, alguns com gelosias, que é a velha e a
melhor maneira de manter as casas sempre frescas. A rexa deixa passar o ar e conserva
a meia luz: dá intimidade aos interiores. Nas ruas não passa ninguém. Casas apalaçadas,
tumulares. Telhados mouriscos, pontiagudos, de quatro águas, muito caiados, e as
chaminés do sul, que lembram reduções de minaretes. Há-as rendilhadas; há-as com
filigranas e flores. Outras mais pobres e mais simples, mas sempre aspirando para o céu
de Alá. Entre elas e a Geralda a diferença é apenas de tamanho. Brancas, esguias,
delicadas, com um pouco de imaginação povoa-se Tavira de torres onde o árabe faz a
oração da manhã e da tarde. São recordação e saudade. A alma do moiro está viva.
Subjugada, persiste e sonha. Aspira. Perseguida, obstina-se. E para viver faz-se
pequenina e contenta-se em deitar fumo...
Tavira é uma terra fechada, concentrada, de gente rica que arrecada o dinheiro do
figo, da amêndoa e da alfarroba. Cada fruto destas árvores é um pingo de oiro. Que
saudades eu tenho nesta terra neurasténica, da fedorenta Olhão! De Olhão, até o mau
cheiro me cheira agora bem... E como compreendo a mudança de fisionomia dos
homens e das coisas... Tavira é uma terra de montanheiros, Olhão é uma terra de
pescadores. O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. No
mar não há marcos...
Todo o Algarve é um pomar cultivado com esmero. A gente do Alentejo, quando
vê um bocado de terra bem tratada, diz: – É um pedacinho do Algarve. – Mas não se
lembra que o Algarve está retalhado, pulverizado, três pés de oliveira, dois pés de
amendoeira, e as almas rancorosas divididas como a terra. Um palmo de campo faz uma
diferença extraordinária e um marco disputa-se a tiro entre irmãos. Regime de salário
deficiente, um orçamento estreito, tornaram o homem preocupado e subtil. De raça é
moiro, de condição eterno explorado. Foi ele que inventou ir ao advogado pedir-lhe
«um conselho às avessas», figurando a posição do adversário. Depois do que, com o
chapéu na mão, que faz girar lentamente entre os dedos pelas abas, conclui: – Então está
bem... – Como está bem?! – É que eu não sou eu, sou o outro... – Dá aos velhos rábulas
as melhores lições de mariolice jurídica.
Nos areais, pela costa fora, há várias armações de atum – Medo das Cascas,
Abóbora, Barril, Livramento, etc. É um facto sabido que do cabo de Santa Maria para
nascente a abundância é de atum, e do cabo para o poente, de sardinha. Tavira é um dos
grandes centros da pesca de atum, se se pode chamar pesca à maneira como se apanha
este peixe. Para o atum basta saber matar.
Ninguém conhece nada do atum, que se pesca ao acaso e às cegas. Sabe-se que
todos os anos desova no Mediterrâneo, porque vai para lá em Maio e Junho, gordo – do
direito, e volta de lá magro, em Julho e Agosto – do revés. É bicho dos grandes fundos,
que procura talvez as águas pouco agitadas do fundão que começa em Cádis e se
prolonga até ao México. Faz sempre o percurso em cardumes, levando adiante do bando
os mais pequenos da família. Supõe-se que o Gulf Stream exerce grande influência nos
seus hábitos, empurrando-o para a costa em procura de águas mais quietas e mais frias.
É tão tímido que se deixa apanhar, podendo despedaçar com facilidade as redes: mal

78
encontra meia dúzia de fios – a rabeira ou o quartel de fora, segue-os com o focinho até
ao buraco, por onde entra no quadro da armação. O seu maior inimigo é o homem, que o
devora, em concorrência com o roaz, incansável em persegui-lo também, com a
bandeira da barbatana fora da água. Está, dizem, condenado a desaparecer muito breve,
a não ser talvez nas armações de revés de Tavira, porque a directriz que traz do estreito
de Gibraltar o leva naturalmente a enfiar-se nessas redes.
A armação, engenho muito antigo, cujo nome, almadrava, cheira a árabe, é consti-
tuída pelo corpo – dividido em três compartimentos, câmara, bucho e copo – pela
rabeira, que se estende até a terra, para que o atum não passe, e pelo quartel de fora,
destinado ao mesmo fim, e estendido para o mar, em ângulo obtuso com a rabeira.
A armação tem às vezes a forma dum grande T, na temporada do direito, com duas
bocas para a entrada do peixe servindo uma delas para a recuada da bacia de Monte
Gordo. Para o atum de revés suprime-se parte da armação, ficando reduzida a um
ângulo mais ou menos obtuso. A rede, de malha muito larga, mais apertada no copo, é
tecida de corda da grossura do dedo mindinho. Nas bocas, que deixam entrar o atum
mas não o deixam sair, está o segredo da armação.
Nesta época o atum vem do estreito nas águas claras e com o levante. Mas as
águas têm estado negras e vermelhas com fosforescências nocturnas, e o atum
desapareceu. O copejo vou vê-lo a Sagres, à armação da ponta da Baleeira.

PONTA DA BALEEIRA

20 de Agosto

O arraial, ao fundo duma concha de pedra, é uma fiada de casotas muito brancas,
com dois ou três grandes armazéns esparsos. Ali vivem durante o tempo da pesca, que
vai de Maio até vinte e cinco de Agosto, a companha, o mestre que manda no mar, dois
preguiceiros, dois interinos, e o escrivão do atum, velho autoritário e seco que
representa o dono. Um arraial emprega perto de cem homens, que, acabando a época do
atum, vão trabalhar nas armações de sardinha. Têm dez por cento sobre o ganho, uma
pequena jorna de 1200, e um atum de comedoria por cada cinquenta que apanham. É
um tempo certo de fadiga e proveito. E não só o homem sabe em que época passa esta
rica presa: sabe-o também o roaz, que a vem esperar ao cabo de S. Vicente...
Hoje a água está límpida e a baiazinha, fechada por dois grandes penedos no meio
do mar, acorda com tintas tão vivas que apetece pintá-la. O giro do mar içou o pendão
para chamar os homens. Larga a canoa do mandador com o escrivão, que procede à
entrega dos peixes, e com ele vão os barcos da andaina. Aproveitemos o dia: em vindo a
aguagem do levante, boa para Tavira, já esta armação não apanha mais peixe.
Névoa – pouca. Uma névoa que nunca vi e que empoeira de azul o mar azul,
fundindo-se com a névoa do alto. Os calões e as lanchas prolongam-se com a armação a
duas milhas da costa. Na minha frente ergue-se a penedia a pique, o morro da Atalaia
com chapadas de negro e de vermelho. O que vale a este torresmo é a luz e o azul que se
pega como tinta... Estou em frente de duas baías, a da Baleeira e a da Atalaia. Dum lado
e do outro penedos compactos onde a água se infiltra largando-os a custo. Uma rocha
destacada parece um castelo em ruínas, com espumas esbranquiçadas aderentes à base.
Para além prolonga-se o deslumbramento de Lagos até à ponta do Altar, confundida ao
longe na tinta carregada das águas, destas águas gordurosas que penetram nos buracos
das rochas e alastram nos fios de areia, apegando-se a todas as pedras da costa. A névoa
desfez-se e a ponta de Sagres é um colosso duro e negro. A este panorama falta-lhe

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talvez encanto. Está ali – está ali para sempre a duas ou três tintas cruas, azul, vermelho
e negro. É decorativo – mas decorativo como um cenário. As meias-tintas é escusado
procurá-las. Nunca lhe chega a hora melancólica em que a paisagem do norte
empalidece e desmaia como quem vai morrer. É imenso – vermelho e negro; é duro –
vermelho e negro.
Os barcos rodeiam as redes. Vai-se meter o atum no copo, vai-se coar, operação
delicada, porque basta uma toninha, cabeça de rato, ter-se metido no quadro, para o
atum, que é muito tímido saltar fora. A barca fechou a porta. Seis calões em roda puxam
as bóias do saco sobre a borda. Primeiro colhem a rede de malha mais larga, e depois a
outra, conduzindo pouco e pouco, e a medo, o peixe para o copo. É o momento... Uns
homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e outros,
armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar para o
chegarem aos barcos. Agita-se a água... Vêem-se os grandes dorsos reluzentes e os
rabos que chapinham. Noventa negralhões meios nus, de calças arregaçadas e camisolas
azuis, estão prontos a matar. Gritam: – Agora! – Espetam o peixe. Para não caírem à
água, deitam a mão esquerda à corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgam-
nos pela cabeça. O peixe resiste e quer fugir: sentindo-se preso, ergue-se, apoiado na
cauda, e é esse movimento de recuo que ajuda o homem a metê-lo para dentro da
caverna, largando logo da mão o bicheiro, que lhe fica suspenso do pulso pela alça.
Baixa-se o homem, ergue-se logo... Os barcos estão cheios de peles luzidias e de
manchas gordurosas de sangue. São bichos enormes e escorregadios, de grossa pele
azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo. A gritaria aumenta – Eh!
Eh!... – uma mixórdia que me cansa. Só vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a
cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e
morrem, e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto
um grito, um grito de triunfo, o grito da matança que explode numa alegria feroz, a
alegria primitiva: – Eh! Eh!... – num quadro imutável, todo vermelho e negro. Agora a
vida atinge o auge. Alguns pescadores saltam para dentro do copo com água pela cinta,
e um, que é arrastado e cai, monta num atum, como um velho deus marinho, e escancara
a boca de riso... Cheira a açougue. A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca
os barcos. Misturam-se as cores e as peles escorregadias. Saem alguns atuarros mais
pequenos, peixe-agulha e o pachorrento peixe-vaca, que acompanha sempre o bando. A
carnificina enfarta e enjoa. Há laivos de sangue na costa, há nódoas de sangue na tinta
azul do mar. Acode a cavala à babugem desta enorme sangueira.
Imensa tela a tons violentos, com uma agitação frenética no primeiro plano: só
pinceladas grossas que não admitem minúcias, tinta atirada num gesto nervoso e a
intervenção do próprio dedo para dar o movimento frenético, enquanto a tela fresca
escorre, poderiam exprimir a ebulição da vida sob este sol claro que rebrilha e ofusca.
E o grito – sobretudo o grito – que se vai atenuando, mas que ainda ecoa, como
último sinal de triunfo de quem acabou a violência e está farto de matar: – Eh! Eh!... –
no panorama inteiramente vermelho e negro, porque até o mar é agora uma nódoa
gordurosa e sangrenta...
Terminado o copejo, o peixe vai para Vila Real para ser arrematado às lotas. Entra
em seguida nas fábricas. Do atum aproveita-se tudo. O melhor para os delicados, em
latas mergulhadas em azeite de Castelo Branco – a parte do lombo e da barriga; a carne
escura comem-na com pão negro os trabalhadores do Alentejo, e o bucho, as tripas e as
orelhas têm amadores apaixonados. Ficam só as cartilagens e os restos, que depois de
cozidos em grandes caldeiras se secam para guano.
Este peixe, que às vezes pesa dez e quinze arrobas, é afinal o porco do mar, e isto
de se apanhar de uma vez, como já tem sucedido, uma vara de dois mil porcos não é

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brincadeira nenhuma, – tanto mais que um atum vale hoje quinhentos mil réis, o antigo
preço de uma quinta com casa apalaçada... Mas o grito de carnificina não me sai dos
ouvidos, e vejo sempre no panorama imutável a mesma nódoa sangrenta...

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SAGRES

Agosto - 1922

Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que


desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das estações
têm um sabor a fruto maduro e exótico – Almancil-Nexe, Diogal, Marchil... De quando
em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre oliveiras
pulverulentas e fantasmas esbranquiçados de árvores, sentada no burrico, de guarda-sol
aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro vermelho. Grupos de figueiras
anainhas estendem os braços pelo chão até ao mar, deixando cair na água os ramos
vergados de fruto, que só amadurece com as branduras. Uma ou outra casinha reluzindo
de caiada: ao lado, e sempre, a nora de alcatruzes e um burrinho a movê-la entre as
leves amendoeiras em fila, as oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada
de vagens negras pendentes. A mesa de Deus está posta. Estradas orladas de cactos
imóveis como bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbório entre árvores
esguias. Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz
vivíssima.
Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha
com O Fausto, e talvez como ele em recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um
homem com dois cabazes apregoa na rua: é um tipo seco e tisnado de mouro, de
camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrás outro burro
com bilhas de água fresca. É extraordinário o que este pobre jerico inocente e peludo, de
olhos límpidos, trabalha no Algarve. É ele que leva a fruta ao mercado e tira a água das
noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas solheirentas, adornado com
cordões vermelhos, quase uma família a dorso. Vai às Caídas buscar as grandes bilhas
vermelhas que transpiram, mata a sede da gente e a sede da terra – e não sei se embala
os berços... Produz muito e contenta-se com pouco.
Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois
grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul – tudo
pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas
águas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê ao longe...
Duas impressões se fixam no meu espírito para sempre: a noite extraordinária, a
luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz para se ser feliz. É ela que encanta o
Algarve. É ela que produz os figos orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a
estalar de sumo, e destilando um líquido perfumado, e o figo preto de enxaire que se
mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita. É ela a criadora destas agonias doiradas que
vão esmorecendo e passando por todos os tons até morrer a muito custo. E as noites
mágicas e caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do norte, em que
se distingue a brancura voluptuosa das casas e se vêem as estrelas enormes reluzindo
através das amendoeiras.

Lagos, o deslumbramento da baia, e sigo logo de carrinha pela estrada branca,


entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na
cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras chega-se com a mão. Há algumas
que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam novas raízes e tornam a puxar outra
figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme. Há-as muito
velhas, retorcidas, com os ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da Luz, e logo, de

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Almadena para diante, a terra muda de aspecto. Estranho o Algarve. Deixa de ser
risonho e torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me...
É a via sacra que começa. O monte desolado enegrece. Até as casas são escuras. A
terra dá calhaus roídos, e de Budens para lá, a desolação redobra. Nem uma figueira,
nem uma amendoeira. Pedras cor de lousa, resteva e rosmano. E a esta uniformidade
sucedem na estrada deserta as ondulações de Vila do Bispo com alguns moinhos
abandonados. Cinza, vegetação pegajosa, cujas folhas rebrilham como vidrilhos – a
folha do rosmano, que desta secura extrai a humidade das lágrimas. Mais alguns passos
e, ao cair fúnebre da tarde, isto atinge a opressão. Não pelo que é. É nada. É o vago
acinzentado. Nem tojo, nem pedras. Uma terra indefinida e plana como um pensamento
doloroso que se obstina e não consegue fixar-se. Bandos de gralhas levantam voo no
deserto...

O promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar – a


ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos
parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o
abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique,
e no Inverno as vagas varrem-no de lado a lado.
Sagres é o cabo do mundo. Levo os pés magoados de caminhar sobre pedregulhos
azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o pre-
sente é uma coisa fora da realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada,
com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; vasto ossário abandonado onde as pedras
são caveiras, as ervas cardos negros e os tojos só espinhos e algumas folhas de zinco. O
mar – é verdade, esquecia-o – mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado a
gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar, terra
reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado.
Grande sítio para ser devorado por uma ideia! Isto devia chamar-se Sagres ou a
ideia fixa... Só agora entrevejo o vulto do Infante. Cerca-o e aperta-o a solidão de ferro.
Pedra e mar – torna-se de pedra. Está só no mundo e contrariado por todos. Obstina-se
durante doze anos! Contra o clamor geral. – Perdição! Perdição! – agoura toda a gente,
e Ele não ouve os gritos da plebe ou a murmuração das pessoas «de mais qualidade»
(Barros). Aqui não se ouve nada... Nem um sinal de assentimento encontra. Não
importa. Só e o sonho, na gigantesca penedia que com dois dedos inexoráveis aponta o
caminho marítimo para as índias pela direcção da ponta de Sagres, e a descoberta do
Brasil pela direcção da ponta de S. Vicente. Lágrimas, orfandades, mortes... Mas o
homem de pedra está diante deste infinito amargo e só vê o sonho que o devora. Rodeia-
o a imensidão. Os mais príncipes contentam-se «com a terra que ora temos, a qual Deus
deu por termo e habitação dos homens». Este Príncipe não. Este Príncipe pertence a
outra raça e a outra categoria de homens. Não lhe basta um grande sonho – há-de por
força realizá-lo e «levar os Portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos de mar,
de fome e de sede». Não é egoísmo, mas só vive para O pensamento que se apoderou de
todo o seu ser. Um pensamento e o ermo. E este é óptimo para forjar uma alma à luz do
céu ou do inferno. Os dias neste sítio magnético pesam como chumbo. Uma pobre
mulher do povo dizia-me ontem: – Isto aqui é tão nu e tão só que a gente ou se agarra a
um trabalho e não o larga, ou morre.
É a realidade que nos mata. Este panorama é na verdade trágico. Não cessa dia e
noite o lamento eterno da ventania e das águas. E os cabos, que são de ferro e escorrem
sangue, obstinam-se em apontar o seu destino de dor a esta terra de pescadores.

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Obra digitalizada e revista por Ernestina de Sousa Coelho. Actualizou-se a grafia.

© Projecto Vercial, 2002

http://www.ipn.pt/literatura

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