Este documento discute o conceito de desfiliação de acordo com Robert Castel e sua relação com a violência na contemporaneidade. A desfiliação ocorre quando há precarização do trabalho, fragilidade das redes sociais e ruptura da inscrição social de um indivíduo. Isso produz vulnerabilidade e pode levar à violência como alternativa quando o pertencimento social é negado. O documento analisa como a desfiliação se relaciona com a precarização do trabalho e das redes sociais e como pode contribuir para a compreensão da violência.
Este documento discute o conceito de desfiliação de acordo com Robert Castel e sua relação com a violência na contemporaneidade. A desfiliação ocorre quando há precarização do trabalho, fragilidade das redes sociais e ruptura da inscrição social de um indivíduo. Isso produz vulnerabilidade e pode levar à violência como alternativa quando o pertencimento social é negado. O documento analisa como a desfiliação se relaciona com a precarização do trabalho e das redes sociais e como pode contribuir para a compreensão da violência.
Este documento discute o conceito de desfiliação de acordo com Robert Castel e sua relação com a violência na contemporaneidade. A desfiliação ocorre quando há precarização do trabalho, fragilidade das redes sociais e ruptura da inscrição social de um indivíduo. Isso produz vulnerabilidade e pode levar à violência como alternativa quando o pertencimento social é negado. O documento analisa como a desfiliação se relaciona com a precarização do trabalho e das redes sociais e como pode contribuir para a compreensão da violência.
Autora: Tallita Soares Lopes Fenato, aluna do Programa de Ps-Graduao em
Psicologia Social (Mestrado) da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC- SP) e professora colaboradora do Departamento de Psicologia Social e Institucional na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Endereo eletrnico: tallitasl@yahoo.com.br
Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar e analisar o conceito de desfiliao, de Robert Castel, a fim de contribuir para a compreenso da violncia na contemporaneidade. Para Castel (2000), parte das situaes configuradas como excluso resulta de vulnerabilidades decorrentes das transformaes operadas no mundo do trabalho, principalmente da crise da sociedade salarial. De acordo com ele, o que produz a vulnerabilidade no um estado de faltas, seja de alimentao, moradia, sade, educao mas sim o efeito de dois vetores: 1. o eixo da integrao ou no integrao pelo trabalho; 2. e o eixo da insero ou no insero em uma sociabilidade scio-familiar. Enquanto no eixo do trabalho pode existir integrao, precarizao e excluso, no eixo relacional podem haver diferentes inseres, que giram entre dois extremos: a inscrio slida em uma rede de sociabilidade e o isolamento social total. O entrecruzamento entre os dois eixos produz recortes e zonas diferentes do espao social, de acordo com o grau de coeso assegurado. Assim, so formadas quatro zonas: 1. Zona de integrao: goza-se de um trabalho permanente e pode-se mobilizar suportes relacionais slidos; 2. Zona de vulnerabilidade: h precariedade nas relaes de trabalho e fragilidade nas relaes sociais; 3. Zona de desfiliao: ausncia de trabalho e isolamento social; 4. Zona de assistncia: incapacidade de trabalho e forte insero social. As quatro zonas compreendem quatro modalidades de existncia social, segundo uma relao que vai da autonomia dependncia, ou da estabilidade turbulncia mxima. Nesta perspectiva, a vulnerabilidade produzida pela precariedade do trabalho somada fragilidade do vnculo social. Porm, a desfiliao seria a vulnerabilidade j atenuada, a ausncia de trabalho e o isolamento social. Desse modo, a desfiliao manifesta-se como uma ruptura em relao s normas de reproduo social hegemnicas, que controlam a inscrio social. Segundo Castel, o espao de existncia social que mais cresce o da desfiliao, que est relacionada s mudanas nas relaes de trabalho, nas redes de sociabilidade primria e na forma como emergem rupturas em relao ao status social no qual cada indivduo deve estar inscrito. A seguir, esses trs aspectos sero desenvolvidos. Nos anos 1980, a precarizao do trabalho e a perda de garantias trabalhistas provocaram uma vulnerabilidade de massa, pois muitas pessoas ficaram privadas da proteo e do reconhecimento moral, ambos garantidos pelo trabalho assalariado. Com a conquista dos direitos trabalhistas e a consolidao do Estado de providncia, havia um certo otimismo nos anos 1960/70. A vulnerabilidade parecia controlada, pois havia uma zona de integrao forte, sendo que a zona de desfiliao era marginal. Hoje, porm, a zona de vulnerabilidade est em expanso e alimenta continuamente a zona de desfiliao (CASTEL, 1994). No lugar da proteo assegurada pelo trabalho, restou o discurso liberal do empreendedorismo. Porm, o ideal de governamentalidade liberal tem uma face sombria: a individualidade negativa dos que se encontram sem vnculos e sem suportes, privados de qualquer proteo e de qualquer reconhecimento. No Brasil as dimenses do trabalho e da proteo social esto estreitamente articuladas, isto porque a maioria efetiva dos direitos sociais vincula-se condio de ser trabalhador (CARRETEIRO, 1999). Quanto mais as pessoas esto inseridas no trabalho, mais se inscrevem nos eixos de proteo social. No que concerne s redes de sociabilidade primria, suas mudanas so mais complexas para serem evidenciadas. A famlia pode ser entendida como uma rede no especializada que participa da sociabilidade primria, isto , cria laos entre os membros de seu grupo, que geram sentimentos de pertencimento e interdependncia. Neste territrio, as subjetividades so reproduzidas, a partir das injunes da tradio e do costume. As relaes familiares, por exemplo, veiculam papis sociais que permitem a transmisso da cultura e a reproduo da existncia social. Alm da funo de fornecer uma proteo aproximada, a famlia tem uma dimenso cultural, que , ao mesmo tempo, uma maneira de habitar um espao e de partilhar dos valores comuns sobre a base de uma unidade de condio (CASTEL, 1994, p. 42). Sobre a famlia, h diversos ndices objetivos que autorizam levantar a hiptese de uma transformao em sua estrutura, levando a um empobrecimento desta instituio enquanto vetor fundamental da insero relacional. A quebra da sociabilidade primria resulta da insuficincia do territrio familiar e social rede de proximidade para reproduzir a existncia e garantir a proteo de algum membro. A precariedade econmica traz a privao, enquanto que da fragilidade relacional resulta o isolamento social. Em terceiro lugar, a desfiliao tambm pode acontecer quando h uma negao das normas que estabelecem o status ou a posio social que cada indivduo deve ocupar para participar das trocas sociais. Um exemplo pode se verificar na lenda cltica de Tristo e Isolda, do sculo XIV. So tidos como desfiliados por vivenciarem uma experincia de desengajamento social, que se descola de regulaes por meio das quais a vida social se conduz. A desfiliao denota a no-inscrio nas regras da filiao e da reproduo bem como nas relaes sociais convencionadas e hegemnicas, que pode se dar pela negao dos indivduos ou pela falta de oportunidade deste acesso. Fora das regras de inscrio social, os autores no tm nada a reproduzir. Assim, quando o pertencimento social negado ou abandonado, a violncia pode se constituir enquanto uma alternativa de vida. Minayo (1994) concebe a violncia como um caminho possvel em contraposio tolerncia, ao reconhecimento e ao dilogo. Ela evidencia-se no aniquilamento, excluso ou abuso do outro, seja ele um indivduo, um grupo ou uma comunidade. Assim, a violncia no envolve apenas o uso de fora fsica, mas tambm a negao de direitos sociais. Abramovay et al (2002) concordam que a violncia manifesta a vulnerabilidade social, ou seja, um desequilbrio entre a disponibilidade de recursos materiais e simblicos e o acesso s oportunidades sociais, econmicas, culturais oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade. Dessa forma, o estudo do processo de desfiliao nos trs eixos apontados (precarizao do trabalho, precarizao da sociabilidade e negao do status social) pode evidenciar contextos em que a violncia emerge. Para o enfrentamento da violncia, ento, preciso, alm de controlar a zona de vulnerabilidade, reparar a zona de desfiliao, com medidas concretas de insero social. Segundo Domnech e iguez (2002), a forma como interpretamos a violncia afetada pelos recursos discursivos que esto disponveis socialmente. Tais recursos no esto margem das relaes de dominao que atravessam a constituio social. Por isso, o interesse neste trabalho em produzir um discurso que relacione desfiliao violncia, de modo a contribuir tanto para a comunidade cientfica da Psicologia Social como para a comunidade em geral, de modo a configurar novos critrios de entendimento e anlise deste fenmeno social.
Eixo temtico: 2 - tica, violncias e direitos humanos
Trabalho completo
Desfiliao, Sociabilidade e Violncia Tallita Soares Lopes Fenato
Apresentao
Este trabalho tem como objetivo apresentar e analisar o conceito de desfiliao, de Robert Castel, a fim de contribuir para a compreenso da violncia na contemporaneidade. O problema : Quais podem ser algumas interfaces entre o processo de desfiliao entendido enquanto espao de existncia social onde h precarizao do trabalho, precarizao do vnculo familiar e cultural e ruptura da inscrio social e a violncia, entendida como um caminho contraposto ao dilogo na resoluo de conflitos? Uma idia que norteia o trabalho a de que h uma relao explcita entre violncia e vulnerabilidade. A desfiliao um agravamento da situao de vulnerabilidade; ento, sua anlise pode contribuir para a compreenso da violncia.
Vulnerabilidade e Desfiliao
De acordo com Castel, o que produz a vulnerabilidade no um estado de faltas, seja de alimentao, moradia, sade, educao mas sim o efeito de dois vetores: 1. o eixo da integrao ou no integrao pelo trabalho; 2. e o eixo da insero ou no insero em uma sociabilidade scio-familiar. Enquanto no eixo do trabalho pode existir integrao, precarizao e excluso, no eixo relacional podem haver diferentes inseres, que giram entre dois extremos: a inscrio slida em uma rede de sociabilidade e o isolamento social total. O entrecruzamento entre os dois eixos produz recortes e zonas diferentes do espao social, de acordo com o grau de coeso assegurado. Assim, so formadas quatro zonas: 1. Zona de integrao: goza-se de um trabalho permanente e pode-se mobilizar suportes relacionais slidos; 2. Zona de vulnerabilidade: h precariedade nas relaes de trabalho e fragilidade nas relaes sociais; 3. Zona de desfiliao: ausncia de trabalho e isolamento social; 4. Zona de assistncia: incapacidade de trabalho e forte insero social. As quatro zonas compreendem quatro modalidades de existncia social, segundo uma relao que vai da autonomia dependncia, ou da estabilidade turbulncia mxima. Nesta perspectiva, a vulnerabilidade produzida pela precariedade do trabalho somada fragilidade do vnculo social. Porm, a desfiliao seria a vulnerabilidade j acentuada, a ausncia de trabalho e o isolamento social. Desse modo, a desfiliao manifesta-se como uma ruptura em relao s normas de reproduo social hegemnicas, que controlam a inscrio social. Segundo Castel, o espao de existncia social que mais cresce o da desfiliao. Desse modo, convm que a Psicologia Social comprometa-se com o estudo desse tema, que est relacionado s mudanas nas relaes de trabalho, nas redes de sociabilidade primria e na forma como emergem rupturas em relao ao status social no qual cada indivduo deve estar inscrito. A seguir, esses trs aspectos sero desenvolvidos para que se possa apresentar o problema de pesquisa, que envolve a relao desfiliao-violncia.
Precarizao do Trabalho
Para Castel (1998a), um dos pontos centrais para fazer uma histria do presente a queda da sociedade salarial. De acordo com ele, a precarizao do trabalho e a perda de garantias trabalhistas provocaram uma vulnerabilidade de massa, pois muitas pessoas ficaram privadas da proteo e do reconhecimento moral, ambos garantidos pelo trabalho assalariado. A precarizao em geral e a escassez desta forma de trabalho produziram uma transformao na questo social, potencializando a produo dos desfiliados, isto , estrangeiros, vagabundos, incapacitados, que ficam em uma zona de assistncia, seja do Estado ou de outras organizaes. Com a conquista dos direitos trabalhistas proveniente da organizao coletiva dos trabalhadores e a consolidao do Estado de providncia, havia um certo otimismo nos anos 1960/70. A zona de vulnerabilidade parecia controlada, pois havia uma zona de integrao forte, sendo que a zona de desfiliao era marginal. Hoje, porm, a zona de integrao se fratura, a zona de vulnerabilidade est em expanso e alimenta continuamente a zona de desfiliao (CASTEL, 1994, p. 34). No lugar da proteo assegurada pelo trabalho, restou o discurso liberal do empreendedorismo. Porm, o ideal de governamentalidade liberal tem uma face sombria: a individualidade negativa dos que se encontram sem vnculos e sem suportes, privados de qualquer proteo e de qualquer reconhecimento. O Estado social foi construdo para tentar solucionar essa problemtica, porm, no tem tido sucesso. Antes, na sociedade pr-industrial, a vulnerabilidade nascia do excesso de coeres. Hoje, surge pelo enfraquecimento das protees. No Brasil as dimenses do trabalho e da proteo social esto estreitamente articuladas, isto porque a maioria efetiva dos direitos sociais vincula-se condio de ser trabalhador (CARRETEIRO, 1999). Quanto mais as pessoas esto inseridas no mercado de trabalho, mais se inscrevem nos eixos de proteo social. O contrrio, isto , a distncia a esses eixos, pode ser entendido como formas de desfiliao social. As transformaes na economia global tm provocado conseqncias diretas na vida de trabalhadores brasileiros. Mudanas como a reestruturao produtiva, a integrao mundial de mercados financeiros, a internacionalizao das economias, a desregulamentao e abertura de novos mercados, a quebra de barreiras protecionistas geram incertezas e tenses na sociedade brasileira. Os vnculos laborais tambm tm empobrecido, levando insegurana, instabilidade e precariedade.
Essa degradao das condies materiais de vida, das formas de reproduo, agravada pela ausncia de mecanismos de proteo social e associada desestruturao/reconstruo de identidades geradas em torno do trabalho, configura, em sua complexidade, a nova questo social (Gmez e Thedim- Costa, 1999, p. 412).
No mundo do trabalho contemporneo, com as mudanas provocadas pela tecnologia, globalizao, pela construo do trabalho flexvel, a desregulamentao social, est em xeque a regulao do trabalho, isto , o processo de trabalho, o campo normativo dentro do qual este realizado.
Hoje a deteriorao das condies materiais de vida com a drstica reduo dos meios de sobrevivncia, atravs do acesso cada vez mais limitado ao mercado de trabalho, ou atravs da multiplicao de formas precrias de trabalho, com rendimentos aviltantes cria as condies para um quadro de misria absoluta cada vez mais intensa, potencializando as mais diversas formas de violncia social (DRUCK, ano, p. 24, grifo nosso).
Com o crescimento assustador do desemprego, a destruio dos postos de trabalho e a queda da massa salarial, implicando maior deteriorao das condies de vida. Intensifica-se e muda qualitativamente o processo de excluso social, medida que muitos que j estavam includos deixam de s-lo, caindo numa situao em que no h perspectivas de retorno. Para a grande massa dos j excludos resta o esfacelamento das polticas sociais do Estado, atestado pelo caos na sade, na educao, nas condies de moradia, enfim pelo quadro social tpico de pases como o Brasil. (DRUCK, s/d, p. 25) Esta realidade vista como um custo social da poltica de estabilizao e parece no surpreender economistas e o governo. No Brasil, calcula-se que o ndice de desemprego, da populao, varia de 10 a 12%; enquanto que o nvel aceitvel pela ONU de cerca de 7%. Hoje, o desemprego ajuda a regular o mercado capitalista e a justificar a precarizao das condies e relaes de trabalho. Novas modalidades de trabalho precarizados surgem, como o tempo do trabalho parcial, contratos por tempo determinado, trabalho temporrio, trabalho a domiclio, subcontratao e outros. Principalmente nos pases perifricos, tem-se um aprofundamento da excluso, que j atinge os que estava anteriormente com um trabalho. O modelo neoliberal acarreta precariedade e excluso social, que alimentam a violncia atual, atingindo no s a populao sob vulnerabilidade, mas a sociedade em geral. Usar novas formas de trabalho um eufemismo. No Brasil, pas perifrico, a precarizao leva rapidamente a rupturas, dissociaes e por fim, no empobrecimento. O trabalho, que deveria ser um direito fundamental, subtrado. A precariedade no atinge somente os trabalhadores precrios, mas a todos.
Ela tem grandes conseqncias para a vivncia e a conduta dos que trabalham. Afinal, so seus empregos que se precarizam pelo recurso possvel aos empregos precrios para substitu-los, bem como s demisses pelo mnimo deslize (quase no h mais absentesmo, os operadores continuam a trabalhar mesmo estando doentes, enquanto tenham condies para tanto). Assim, convm preferir o termo precarizao a precariedade (DEJOURS, 2001, p. 50- 51.)
Os efeitos desse processo de precarizao so: a) a intensificao do trabalho e o aumento do sofrimento subjetivo (morbidade); b) a neutralizao da mobilizao coletiva contra o sofrimento, a dominao e a alienao; c) a estratgia defensiva do silncio, da cegueira e da surdez. Nega-se o sofrimento alheio e cala-se o seu. d) O individualismo. cada um por si. Destruio da reciprocidade. (DEJOURS, 2001) H pouca mobilizao coletiva contra a injustia cometida em nome da racionalidade estratgica e as pessoas no conseguem resistir a participar desse sistema, colaborando com prticas de excluso, face ameaa de demisso.
Precarizao da Sociabilidade
No que concerne s redes de sociabilidade primria, suas mudanas so mais complexas para serem evidenciadas. Castel distingue duas variveis que compem esse eixo: a varivel familiar e a varivel dita cultural; esta engloba:
a partilha de modos de vida enraizados em uma tradio, a participao em valores concretos que, atravs do investimento nas prticas comuns e na cumplicidade produzida pelo sentimento de pertencer a um mesmo meio, estruturam a vida cotidiana e do sentido sua reproduo (CASTEL, 1994, p. 39).
A famlia pode ser entendida como uma rede no especializada que participa da sociabilidade primria, isto , cria laos entre os membros de seu grupo, que geram sentimentos de pertencimento e interdependncia. Neste territrio, as subjetividades so reproduzidas, a partir das injunes da tradio e do costume. As relaes familiares, por exemplo, veiculam papis sociais que permitem a transmisso da cultura e a reproduo da existncia social. A famlia um elemento decisivo da constituio que o autor denomina de proteo aproximada. Alm de fazer essa proteo, a famlia tem uma dimenso cultural, que , ao mesmo tempo, uma maneira de habitar um espao e de partilhar dos valores comuns sobre a base de uma unidade de condio (CASTEL, 1994, p. 42). Sobre a famlia, h diversos ndices objetivos que autorizam levantar a hiptese de uma transformao em sua estrutura, levando a um empobrecimento desta instituio enquanto vetor fundamental da insero relacional.
Nesta perspectiva, assim como a precariedade a frente sensvel e aparentemente em expanso no que se refere ao emprego, assim tambm a fragilizao da estrutura familiar, medida pelos ndices precedentes, circunscreve uma zona de vulnerabilidade relacional sobretudo para as famlias mais desprovidas, que no tm necessidade de ser uma forma universal para transportar consigo efeitos sociais destrutivos. Ela representa uma correnteza que, ao misturar-se com outras guas, alimenta o viveiro da desfiliao (CASTEL, 1994, p. 42).
A desfiliao, para o autor, a inexistncia de trabalho e a quebra da sociabilidade primria, que resultam da precarizao do trabalho e da insuficincia do territrio familiar e social rede de proximidade para reproduzir a existncia e garantir a proteo de algum membro. A precariedade econmica traz a privao, enquanto que da fragilidade relacional resulta o isolamento social. H risco de desfiliao quando o conjunto das relaes de proximidade que um indivduo mantm a partir de sua inscrio territorial, que tambm sua inscrio familiar e social, insuficiente para reproduzir sua existncia e para assegurar sua proteo (CASTEL, 1998a, p. 50-51). Analisando o fenmeno da violncia domstica, Barros et al (2005) e Suguihiro (2004) apresentam outra definio de desfiliao: ela est presente nas famlias que, frente s adversidades da sociedade contempornea, no conseguem desenvolver vnculos afetivos, fragilizando, social e psicologicamente, pais e filhos.
O comportamento que concretiza a desfiliao se manifesta de formas distintas: ora os pais se sentem incapazes de lidar com as situaes de conflito envolvendo os filhos, ora imputam responsabilidade prpria criana/adolescente, ou transferem o problema e a soluo para o poder pblico (SUGUIHIRO, 2004).
Estas autoras, ao tratar a desfiliao, privilegiam mais seu aspecto scio- familiar e o sentimento de no pertencimento social, em contraposio nfase dada por Castel tambm precarizao da insero no trabalho e desterritorializao. Em relao rede de integrao pelo trabalho, as famlias estudadas pelas autoras possuam uma histria de pobreza e de desamparo social, situando-se entre a zona de vulnerabilidade e de desfiliao. J a rede de sociabilidade primria, que envolve tanto a famlia quanto a cultura local, sofre efeitos diretos da vulnerabilidade e se mostra fragilizada. preciso compreender que os conflitos familiares, materializados nas prticas violentas de pais contra filhos, so antes, conseqncia direta da violncia social a que esto expostos, tanto por parte do Estado quanto pela sociedade, por meio das instituies sociais que a constitui (polcia, escola, trabalho, etc.). A partir do momento em que Estado, sociedade e mercado no respondem s situaes de desemprego, carncia, abandono, legitima as prticas de negligncia ao invs de suprimi-las, agravando o quadro de vulnerabilidade. A violncia inscrita no grupo familiar espelha o contexto histrico-social no qual essas pessoas se desenvolveram. Violentados, so inseridos em um processo de desqualificao, desamparo social e seqestro dos direitos humanos, cujas manifestaes ocorrem de forma intensa e diversificada. Convm, assim, somar esta contribuio e articulao com o campo da violncia, para desenvolver futuras pesquisas.
Ruptura ou negao da inscrio social
Em terceiro lugar, a desfiliao tambm pode acontecer quando h uma negao das normas que estabelecem o status ou a posio social que cada indivduo deve ocupar para participar das trocas sociais. Um exemplo de desfiliao pode se verificar, de acordo com Castel (1998b) na histria de vida de Tristo e Isolda. Ambos so os heris de uma lenda cltica do sculo XIV, que foi recontada diversas vezes na regio da Irlanda. So tidos como desfiliados por vivenciarem uma experincia de desengajamento social [...], quer dizer, o descolamento de regulaes por meio das quais a vida social se reproduz e se reconduz (CASTEL, 1998b, p. 174). A desfiliao denota a no-inscrio nas regras da filiao e da reproduo bem como nas relaes sociais convencionadas e hegemnicas, que pode se dar pela negao dos indivduos ou pela falta de oportunidade deste acesso. Quando o pertencimento social negado ou abandonado pelos autores, vive-se uma experincia do absoluto ou uma desterritorializao. A relao de Tristo e Isolda com a lei moral e social no de oposio, nem mesmo de indiferena. Eles a ultrapassam, pois o modo de vida pelo qual se desviam est fora das regras de inscrio social. Desta forma, no tm nada a transmitir ou a reproduzir. Castel (1998b) diz que s podem viver a vida enquanto experincia total e absoluta. No caso de Tristo e Isolda, em dois momentos, eles vivem seu amor em transparncia: no navio ao mar e na floresta, aps terem sido condenados e expulsos da corte do rei Marcos. So dois espaos no-sociais. A sociedade fica em um espao de flutuao. Eles esto, assim, atados a um double bind entre um estado de supersaturao dos valores sociais e um estado zero de existncia do social. A morte o nico outro lugar para essa maneira contraditria de estar em lugar nenhum. a sano dessa negao do social, entretanto onipresente (CASTEL, 1998b, p. 186).
O desenlace da desfiliao ganhar ou morrer e hoje quase no h grandes heris e nobres para jogar tal partida. No entanto, existem sempre desafiliados, por exemplo, os adolescentes em ruptura ou os heris de romance noir portadores de paixo sem soluo (CASTEL, 1998b, p. 188). A desfiliao denota a no-inscrio nas regras da filiao e da reproduo bem como nas relaes sociais convencionadas e hegemnicas, que pode se dar pela negao dos indivduos ou pela falta de oportunidade deste acesso. Fora das regras de inscrio social, os autores no tm nada a reproduzir. Assim, quando o pertencimento social negado ou abandonado, a violncia pode se constituir enquanto uma alternativa de vida.
Desfiliao e Violncia
O fenmeno da violncia recorrente em toda a histria e em diversas organizaes sociais. Trata-se de um complexo problema para as cincias e para a humanidade, pois a violncia se constitui e se desenvolve nos contextos sociais, a partir de condies histricas. Alguns estudiosos, como Wiervioka (1997), insistem na necessidade de pensar um novo paradigma da violncia, devido s profundas transformaes no mundo contemporneo e a centralidade que a violncia a adquire. Sua tese que tanto como realidade histrica quanto como representao coletiva e objeto de anlise e reflexo para as cincias sociais, a violncia contempornea parece modelar um novo paradigma: ela apresenta-se ao mesmo tempo globalizada e localizada, mundializada e fragmentada; ela vem sendo atravessada tambm pelo crescimento do individualismo moderno, estando carregada de significaes mais culturais e identitrias que sociais; ela funciona por condutas que, mais alm da expresso de uma crise ou de um conflito, parece autonomizar-se. (WIEVIORKA, 1997). Diversos estudiosos (Minayo, 1994; Abramovay et al, 2002, Wieviorka, 1997) estabelecem importantes relaes entre vulnerabilidade, excluso e violncia e nos sugerem que o estudo desse tema deve remeter questo do desequilbrio entre a disponibilidade de recursos materiais e simblicos e o acesso s oportunidades sociais, econmicas, culturais oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade. Dessa forma, o estudo do processo de desfiliao nos trs eixos apontados (precarizao do trabalho, precarizao da sociabilidade e negao do status social) pode evidenciar no apenas contextos em que a violncia emerge, mas complexificar critrios de entendimento e anlise deste fenmeno social. Como sugere Castel, para o enfrentamento da violncia, ento, preciso, alm de controlar a zona de vulnerabilidade, reparar a zona de desfiliao, com medidas concretas de insero social. Segundo Domnech e iguez (2002), a forma como interpretamos a violncia afetada pelos recursos discursivos que esto disponveis socialmente. Tais recursos no esto margem das relaes de dominao que atravessam a constituio social. Por isso, o interesse neste trabalho em produzir um discurso que relacione desfiliao violncia, de modo a contribuir tanto para a comunidade cientfica da Psicologia Social como para a comunidade em geral na problematizao desse campo, de modo a configurar novos critrios de entendimento e anlise deste fenmeno social. Referncias Bibliogrficas: ABRAMOVAY, Miriam et al. Juventude, violncia e vulnerabilidade social na Amrica Latina: desafios para polticas pblicas. Braslia: UNESCO, BID, 2002.
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