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INTRODUCAO Este livro trata da populaggo kachin ¢ chan do nordeste da Birmania, mas pretende também fornecer uma contribuigio a teoria antropol6gica, Nao foi proje- ado como uma descrigio etnogréfica. A maioria dos fatos etnogréficos a que me refiro foram publicados anteriormente. Nao se deve, pois. procurar qualquer originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretacio desses mesmos fatos. A populagio de que nos ocupamos é a que habita a regio assinalada com o nome KACHIN nomapa 1 emostrada em grande escala no mapa 2, Essa populagao fala diferentes linguas ¢ disletos, ¢ existem grandes diferengas de cultura entre uma outa parte da regido em questo. No entanto, é comum denominar-se a totalidade dessa populagio com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a regio de Regido das Colinas de Kachin. ‘Num nivel grosseiro de generalizago, os chans ocupam os vales ribeirinhos onde cultivam arroz em campos irrigados; sio um povo relativamente sofisticado, ‘com uma cultura algo semethante & dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, ‘ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura itinerante através de derrubadas ¢ queimadas. A literatura publicada no século pasado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, to diferentes dos chans na aparéncia, na lingua ¢ na cultura geral que devem ser considerados de origem racial totaimente distinta!, 1. Por exemplo, Malcom (1837) lckstedt (1944) “s SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Sendo assim, est dentro das convengées normais da antropologia que as monografias sobre os kachins ignorem os chans e as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins e os chans so em quase toda parte vizinhos préximos e esto bastante associados nas questées comuns da vida. Considere-se, por exemplo, 0 seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testemunha num inquérito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 1930, [Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng Raa: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) dade: 79 Religifo: budista zawti Reside em: Man Hkawng, Mong Hko [Nascido em: Pao Mo, Mong Hko ‘Ocupaglo: Chefe aposentado Pai: Ma La, antigamente Duwa de Pao Mo ‘Quando eu era menino, cerca de setenta anos arés, o Regente (chan) Sa0 Hkam Hseng, que entéo reinava em Mong Mao, mandou um parente seu, de nome Hge Hkam, negociar uma slianga com os kachins de Mong Hko, Pouco tempo depois Nge Hkam estabeleceu-se em Pao ‘Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li e meu avé MaNaw, ento uwas de Pao Mo; depois disso nos tomamos chans e budisls e prosperamos grandemente e, como membros do cld Hkam, sempre que famos a Méng Mao ficdvamos com o Regente, © inversamente, em Mong Hko nossa casa era deles. [..] Parece que essa testemunha considerava que nos dltimos setenta anos ou aproximadamente sua familia tinha sido simultaneamente kachin ¢ chan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cla Lahtaw(ng). Como chan, era bbudista ¢ membro do cla Hkam, a casa real do Estado de Mong Mao. Além disso, Méng Mao ~ 0 conhecido Estado Chan desse nome em territério cchinés ~ ¢ tratado aqui como sendo uma entidade politica do mesmo tipo e tendo quase a mesma situagéo de Mong Hko, que aos olhos da administragao britanica de 1930 nada mais era que um “eftculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi do Notte. Dados desse tipo ndo podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema etnogrifico que, em termos lingttisticos, situa kachins e chans em “categorias” raciais diferentes. © problema, contudo, nio é simplesmente o de distinguir entre kachins € chans; hé também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura 2. Harvey & Barton (1930), p. 81 nro ucto discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategories séo principalmente lingifsticas, como quando se distinguem os kachins que falam jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs etc.; outras so sobretudo territoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da Birmfnia, ou os hkahkus da regio do Alto Mali Hke (Triangulo) dos gauris, aleste de Bhamo. Porém a tendéncia geral tem sido minimizar a importncia dessas distingdes € dizer que 0 essencial da cultura kachin é uniforme em toda a Regifio das Colinas de Kachin’ Livros com tftulos como The Kachin Tribes of Burma; The Kachins, their Religion and Mythology; The Kachins, their Customs and Tradi- tions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma* referem- se por implicacao a todos os kachins onde quer que sejam encontrados, isto 6, a uma populacio de cerca de 300 mil pessoas escassamente espalhadas por uma regio de uns 130 mil quil6metros quadrados*. ‘Nao faz parte de meu problema imediato discutir até que ponto semelhantes generalizagSes sobre a uniformidade da cultura kachin sio efetivamente justificd- veis; meu interesse reside antes no problema de saber até que pontose pode afirmar que um iinico tipo de estrutura social prevalece ao longo da regiéo kachin. E legitimo pensar que a sociedade kachin é organizada em toda parte segundo um conjunto particular de prineipios, ou seré que essa categoria bastante vaga de kachin inclui muitas formas diferentes de organizagio social? ‘Antes de tentar investigar essa questio, devemos primeiro deixar claro 0 que se entende por continuidade e por mudanga com respeito aos sistemas sociais. Sob 4que citcunstincias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A e B que “essas duas sociedades tém estruturas sociais fundamentalmente distintas”, enquanto entre duas outras sociedades Ce D podemos afirmar que “nessas duas sociedades a estrutura social 6 essencialmente a mesma”? No restante deste capitulo de abertura meu objetivo sera explicar o ponto de vista te6rico a partir do qual abordo essa questo basi A tese, em suma, & a seguinte. Os antropélogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupsem na verdade que as sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilfbrio estével. Seré, ento, possivel descrever, por meio de categorias sociol6gicas comuns, sociedades. que presumivelmente ndo esto em equilibrio estavel? 3. Porexemplo, Hanson (1913), p. 13. 44 Carrapet (1929); Githodes (1922); Hanson (1913); Wehsl (1904) 5. Chaptndice 5. o SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Minha conclusdo é que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente modelos de sistemas de equilfbrio, as sociedades reais nfo podem jamais estar em equilibrio. A discrepancia esté ligada ao fato de que, quando estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representagio é imprecisa em comparagio com a fomecida pelas categorias exatas que o soci6logo, qua cientista, gostaria de empregar. Digo que essas inconsisténcias na légica da expressio ritual so sempre necessérias para o bom funcionamento de qualquer sistema social. ‘A maior parte de meu livro é um desenvolvimento desse tema. Sustento que essa estrutura social em situagées prticas (em contraste com o modelo abstrato do sociélogo) consiste num conjunto de idéias sobre a distribuigio de poder entre pessoas e grupos de pessoas. Os individuos podem nutrir, e nutrem, idéias contra- dit6rias ¢ incongruentes sobre esse sistema. Sdo capazes de fazé-lo sem embaraco por causa da forma em que suas idéias sio expressas. A forma é a forma cultural; a expresso ¢ a expresso ritual, A dtima parte deste capitulo introdutério € uma claboragio desta portentosa observagio. Antes, porém, voltemos a estrutura social e &s unidades sociais, Estrutura Social Num certo nivel de abstragdo podemos discutir a estrutura social simples- mente em termos dos principios de organizacio que unem as partes componentes do sistema. Nesse nivel, a forma da estrutura pode ser considerada de mancira totalmente independente do conteiido cultural". Um conhecimento da forma de sociedade entre os cagadores gilyaks da Sibéria Oriental” e entre os pastores nuers do Sudao* me ajuda a entender a forma da sociedade kachin, a despeito do fato de estes tiltimos serem, em sua maioria, agricultores itinerantes que habitam a densa floresta de mongao das chuvas. [Nese nivel de abstracio, nfo € dificil distinguir um modelo formal de outto. As estruturas que 0 antropélogo descreve so modelos que existem apenas em sua propria mente na forma de construcGes Iégicas. Muito mais dificil € relacionar tal abstragio com os dados do trabalho empfrico de campo. Como podemos ter realmente certeza de que um modelo formal particular se ajusta aos fatos melhor do que qualquer outro modelo possivel? 6. Fontes (1945, pp 5860 iets 4. Lasers (900, apa XVI yea ce Evans Prichard (1040, Seah 2 wraopueko ‘As sociedades reais existem no tempo ¢ no espago. A situagéo demogritica, ecolbgica, econdmica e de politica externa ndo se estruturam num ambiente fixo, mas num ambiente em constante mudanga. Toda sociedade real é um processo no tempo. As mudancas que resultam dese processo podem ser discutidas sob dois angulos’. Primeio, existem as que so coerentes com uma continuidade da ordem formal existente. Por exemplo, quando um chefe morre e ésubstituido por seu filho, ‘ou quando uma linhagem se segmenta e temos duas linhagens onde anteriormente havia apenas uma, as mudangas séo parte do processo de continuidade. Nao hé ‘mudanga na estrutura formal. Segundo, existem mudangas que de fato refletem modificagées na estrutura formal. Se, por exemplo, se puder demonstrar que numa localidade particular, durante certo lapso de tempo, um sistema politico composto de segmentos de linhagem igualitérios substituido por uma hierarquia ordenada de tipo feudal, podemos falar de uma mudanga na estrutura social formal. Quando, neste livro, eu falo de mudancas da estrutura social, sempre me estou referindo a mudancas deste ultimo tipo. Unidades Sociais ‘Nocontexto da Regio das Colinas de Kachin, 0 conceito de “uma sociedade” apresenta muitas dificuldades que se tomnardo cada vez mais evidentes no curso dos préximos capftulos. Por ora vou seguir a recomendacao insatisfatéria de Radcliffe-Brown ¢ interpretar “uma sociedade” como se significasse “alguma localidade conveniente”™, Alternativamente, aceito os argumentos de Nadel. Por “uma sociedade” entendo realmente qualquer unidade politica autOnoma" ‘As unidades politicas na Regio das Colinas de Kachin variam grandemente de tamanho ¢ parecem ser intrinsecamente instéveis. Num extremo da escala pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro famflias que reivindicam firme- mente o seu direito de ser considerada uma unidade plenamente auténoma. No ‘outro extremo temos o Estado Chan de Hsenwi, que, antes de 1885, continha 49 subestados (méng), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numerosas outras, variedades de “sociedade”. Esses virios tipos de sistemas politicos diferem uns 9. Fortes, op cit pp. S455. 10, Radclife-Brown (1940), 1, CE Nadel (1951, p. 187 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA dos outros no s6 em escala mas também nos prinefpios formais & luz dos quais io organizados. E aqui que reside 0 ponto fundamental do nosso problema. Para certas partes da Regio das Colinas de Kachin os registros hist6ricos gemufnos remontam ao comego do século XIX. Isso mostra claramente que durante 0s tltimos 130 anos a organizagéo politica da regigo foi muito instavel. Pequenas ‘unidades politicas aut6nomas tenderam frequentemente a agregar-se em sistemas ‘maiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno- es. Houve mudangas violentas ¢ muito rapidas na distribuicio global do poder politico. portanto metodologicamente erréneo tratar como tipos independentes as diferentes variedades de sistemas politicos que encontramos hoje nessa regio; deveriam ser consideradas claramente como f{7] de um sistema total mais amplo em continua mudanga. Mas a esséncia de minhaTfese € que o processo pelo qual as equenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se fragmentam em menores nao € uma simples parte do processo de continuidade estrutural; nio é apenas um processo de segmentagio e agregacio, é um processo que envolve mudanga estrutural. Eo mecanismo desse processo de mudanga que nos interessa em particular. [Nao hé divida de que tanto o estudo quanto a descrigéo da mudanga social em contextos antropol6gicos comuns apresenta grandes dificuldades. Os estudos de campo sio de curta duragio, os registros hist6ricos raramente contém dados do tipo correto em pormenores adequados. Em verdade, embora os antropélogos tenham declarado amitide um interesse especial pelo assunto, sua discussao tedrica dos problemas da mudanca social tem merecido até agora poucos aplausos! Mesmo assim, parece-me que pelo menos algumas das dificuldades s6 surgem como um produto secundério dos préprios falsos pressupostos do antropé- logo acerca da natureza desses dados. Os antropélogos sociais ingleses tenderam a extrair seus conceitos bésicos muito mais de Durkheim do que de Pareto ou de Max Weber. Em conseqiiéncia, estio fortemente predispostos em favor de sociedades que apresentam sintomas de “integragio funcional”, “solidariedade social”, “uniformidade cultural”, “equi brio estrutural”. Essas sociedades, que os historiadores ou cientistas politicos bem poderiam considerar como moribundas, costumam ser vistas pelos antropélogos como ricas ¢ idealmente afortunadas. As sociedades que exibem sintomas de faccionarismo ¢ conflito interno que conduzem a répida mudanga so, por outro lado, suspeitas de “anomia” e de decadéncia patolégica’®. 12. Por exemplo, Malinowski (1945); G, & M, Wilson (1945); Herskovits (1949). 13, Homans (1951), pp. 336. 7” iwrmoougio Essa predisposigdo a favorecer as interpretagbes do “equilfbrio” decorre da natureza dos materiais do antropélogo ¢ das condigées sob as quais ele exccuta o seu trabalho. © antropélogo social normalmente estuda a populagio de um local particular num determinado ponto do tempo e nao esté muito preocupado com a probabilidade de ser ov nao a mesma localidade estudada de novo por outros antropélogos numa data posterior. Desse modo, temos estudos da sociedade trobriand, da sociedade tikopia, da sociedade nuer, mas ndo da “sociedade tro- briand de 1914”, da “sociedade tikopia de 1929”, da “sociedade nuer de 1935”. Quando as sociedades antropol6gicas sao assim dissociadas do tempo e do espaco, a interpretagio que é dada a0 mate pois, se assim néo fosse, decerto pareceria ao leitor que a andlise era incompleta. Mais do que isso, porém: como na maioria dos casos 0 trabalho de investigagio foi realizado definitivamente sem qualquer nogio de repeticao, a apresentagio € de equilibrio estével; 08 autores escrever como se os trobrianders, os tikopias, os ruers fossem 0 que so, agora e para todo o sempre. Com efeito, a confusio entre os conceitos de equilfbrio e de estabilidade esta tdo profundamente arraigada na literatura antropoldgica que 0 uso de qualquer desses termos esté sujeito a ambi- gilidade. Eles nao sao, claro esté, a mesma coisa. Minha posicdo pessoal é a que segue. 1 énecessariamente uma andlise de eqniltbria, Sistemas de Modelo Quando o antropélogo tenta descrever um sistema social, ele descreve neces- sariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, com feito, a hipstese do antropélogo sobre “o modo como o sistema social opera”. As diferentes partes do sistema de modelo formam, portanto, necessariamente, um todo coerente~ é um sistema em equilibrio. Isso porg=spio implica que a realidade social forma um todo coerente; a0 contrétio, a situ 1 é na maioria dos casos ccheia de incongruéncias; e so precisamente essas incongruéncias que nos podem propiciar uma compreensio dos processos de mudanca social. Em situagGes como as que encontramos na Regio das Colinas de Kachin, podemos considerar que qualquer individuo particular detém uma condigio social ‘em sistemas sociais diferentes a0 mesmo tempo. Para 0 proprio individuo, tais sistemas apresentem-se como allernativas ou incongruéneias no esquema de valo- res pelo qual ele ordena sua vida. O processo global de mudanga estrutural realiza-se por meio da manipulagio dessas alternativas como forma de progresso social. Todo individuo de uma sociedade, cada qual em seu proprio interesse, se n SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA empenha em explorara situagio & medida que apercebe e, a0 fazé-lo, acoletividade de indivéduos altera a estrutura da propria sociedade. Essa idéia um tanto complicada receberé frequente ilustracéo nas piginas seguintes, mas o argumento pode ser ilustrado por um simples exemplo. Em matéria politica, os kachins tém diante de si dois modos ideais de vida totalmente contraditérios. Um deles é 0 sistema chan de governo, que se assemelha uma hierarquia feudal. O outro é aquele que denomino neste livro organizacéo de tipo gumlao; 6 um sistema essencialmente anarquista ¢ igualitirio, Nao é raro encontrar um kachin ambicioso que assuma os nomes eos titulos de um principe chana fim de justificar sua pretensio 8 aristocracia, mas que apela simultaneamente 8 prinefpios gumlao de igualdade a fim de fugir a obrigacio de pagar direitos feudais a0 seu proprio chefe tradicional, E assim como os individuos kachins se véem freqiientemente diante de uma escolha quanto ao que é moralmente correto, da mesma forma pode-se dizer que 0 conjunto das comunidades kachin se oferece uma escolha quanto 20 tipo de sistema politico que seré 0 seu ideal. Em suma, minha (ese é que em termos de organizagio politica as comunidades kachins oscilam entre dois tipos polares — “‘democracia” gumlao, de um lado, ¢ autocracia chan, de outro. 3 auténticas comunidades kachins nao sio nem do tipo gumlao net ‘mas estdo organizadas segundo um sistema descrito neste livro como gumsa", que 6, com efeito, uma espécie de compromisso entre o ideal gumlao e o chan. Num capitulo posterior descrevo o sistema gumsa como se fosse um terceiro modelo estitico entre 0 modelo gumlao ¢ 0 chan, mas naturalmente o leitor precisa compreender que as comunidades gumsa nfo sto estéticas. Algumas, soba influén- cia de circunstancias econdmicas favordveis, tendem cada vez mais para o modelo ‘chan, até que no final os aristocratas kachins sentem que “se tornaram chans” (sam tai sai), como no caso do anciéo de Mong Hko, que encontramos na pégina 66; outras comunidades gumsa movem-se na diregio oposta e tornam-se gumlao. A organizagio social kachin, tal como € descrita nos relatos etnograticos existentes, sempre o sistema gumsa; mas minha tese € que esse sistema considerado em si ‘mesmo € realmente incompreensivel, pois esta cheio de contradigdes inerentes. Apenas enquanto esquema de modelo ele pode ser representado como um sistema de equilibrio's, embora Lévi-Strauss tenha percebido que a estrutura assim repre- sentada contém elementos que estio “en contradiction avec le systéme, et doit donc 14, Salvo quando ¢ dectarado em contétio, todas as palnasnativas usadas nese Livro so palavas da lingua jinghpaw pronunciadas de acordo com o sistema de romanizagf ciado por Hanson; ef. Hanson (1906). 15. Leach (1952), pp. 40-45 n monucko entrainer sa ruine”"*, No campo da realidade social, as estruturas politicas gumsa io essencialmente instaveis, e sustento que elas 6 se tornam plenamente inteli ‘giveis em termos do contraste apresentado pelos tipos polares de organizagio ‘gumlao e chan, fa maneira de estudar os fendmenos de mudanga estrutural consiste em del GGesames ines ne modngs tren nec sopodepalte dentro de um dado sistema, A descrigdo estrutural de um sistema social fomece-nos um modelo ideali zado que declara as relagGes de status “corretas” existentes entre grupos dentro do sistema total e entre as pessoas sociais que compdem grupos particulares”. A posigio de qualquer pessoa social em tal sistema de modelo é necessariamente fixa, ‘conquanto se possa pensar que os individuos preenchem diferentes posigdes no desempenho de diferentes tipos de ocupagao ¢ em diferentes estégios de sua carrera. Quando nos referimos a mudanga estrutural, temos de considerar nio apenas as mudangas na posigéo dos individuos com respeito a um sistema ideal de relacionamentos de status, mas também as mudangas no préprio sistema ide seja, mudancas na estrutura de poder. O poder em qualquer sistema deve ser pensado como um atributo de “deten- totes de cargo”, isto 6, de pessoas sociais que ocupam posigSes as quais 0 poder esté ligado. Os individuos exercem poder somente em sua capacidade de pessoas sociais. Como regra geral, creio que nunca se justifica que 0 antrop6logo social interprete @ aco como sendo inambiguamente orientada para algum fim particular. Por essa razo nunca me contento com os argumentos racionalistas referentes 3s ““necessidades” e “metas” como os aventados por Malinowski e por Talcott Par- sons't, mas considero necessario e justificavel supor que (@Ffesejo consciente ou inconsciente de adquirir poder é um motivo muito geral ES humanas. Por isso, suponho que os individuos que se defrontam com uma escolha de acio iri geralmente usar tal escolha para adquirir poder, vale dizer, procurardo o reconhe- cimento como pessoas sociais que tém poder; ou, para me servir de uma linguagem diferente, eles procurario ter acesso a0 cargo on ao apreco de seus companheiros que pode levé-los ao cargo. O aprego é um produto cultural. O que é admirado em uma sociedade pode ser deplorado em outra. A peculiaridade do tipo de situagio nas Colinas de Kachin 16, “..em contradigho com o sistema e deve aarreta a sus ruina”. Lévi-Strauss (1949), p. 325. 17, Para esse uso da expresio “pessoa social”, cf. especialmente Radelitfe-Brown (1940) p. 5 18 Malinowski (1944); Parsons (1949); Parsons & Shs (1951), Pate I a SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANA 6 que um individuo pode pertencer a mais de um sistema de aprego, e que esses sistemas podem nio ser coerentes. que € meritéria segundo as idéias chans pode ser tachada de humilhante no ‘gumiao. Portanto, raramente é clara a ‘melhor maneira de um individuo adquirir aprego em qualquer situagéo particular. Isso parece dificil, porém 0 leitor nio precisa imaginar que tal incerteza seja de qualquer modo incomum; em nossa propria sociedade a aco eticamente correta para um homem de negécios cristao é quase sempre igualmente ambigua. Ritual ara elaborar esta argumentacdo devo primeiramente explicar como uso 0 conceito de ritual. O ritual, digo eu, “serve para expressar 0 status do individuo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporaria mente”. Obviamente, a importancia de semelhante aforismo dependera do sentido que se deve atribuir & palavra ritual. Os antropélogos sociais ingleses, em sua maioria, seguiram Durkheim ao dividir as ages sociais em duas grandes classes ~ a saber, ritos religiosos que so sagrados e atos técnicos que so profanos. Das muitas dificuldades que resultam dessa posigio, uma das mais importantes diz respeito a definigdo e & classificagao de magia. Haveré uma classe especial de agdes que se podem descrever como atos migicos e, se houver, pertencerio & categoria “sagrada” ou & categoria “profana”, estario mais ligadas & natureza e & fungdo dos atos religiosos ou as dos atos técnicos? Varias respostas foram dadas a essa pergunta. Malinowski, por exemplo, situa a magia no terreno do sagrado”; Mauss parece consideré-la profana™. Mas, independentemente de a principal dicotomia estar situada entre 0 magico-religioso (Sagrado) e 0 técnico (profano), ou entre o religioso (sagrado) e 0 magico-téenico (profano), permanece o pressuposto de que situagdes de algum modo sagradas e profanas sio distintas como totalidades. Ritual € pois uma palavra usada para descrever as agées sociais que ocorrem em situagdes sagradas. Uso a palavra de modo diferente deste. Do ponto de vista do observador, as agSes afiguram-se meios para atingir fins, ¢ € perfeitamente exeqiiivel seguir a recomendacdo de Malinowski e classifi- car as agbes sociais no tocante a seus fins — isto &, as “necessidades basicas” que 20, Mauss (1947), p. 207, ” urtaopu¢ko parecem satisfazer. Mas os fatos que se revelam desse modo sio fatos técnicos; a anflise nfo fornece nenhum critério para distinguir as peculiaridades de alguma cultura ou de alguma sociedade. Pouquissimas ages, com efeito, tém essa forma elementar funcionalmente definida. Por exemplo, se se deseja cultivar arroz, é certamente essencial ¢ funcionalmente necessério limpar um pedago de chao € jogar sementes nele. E sem diivida as perspectivas de uma boa colheita melhorardo se o terreno for cercado e as ervas daninhas forem capinadas de quando em quando. (Os kachins fazem todas essas coisas e, na medida em que ofazem, esto executando simples atos técnicos de um tipo funcional. Essas ages servem para atender a “necessidades bisicas”, Mas hd muito mais do que isso. No “procedimento costu- meiro” dos kachins, as rotinas de limpar o terreno, plantar as sementes, cercar 0 pedago de terra e capinar as ervas daninhas sio Dp rsronzats de acordo com as convengdes formais ¢ entremeadas com tod0S bs tipos de adornos e omatos tecnicamente supérfluos. Sao esses adornos ¢ ornatos que tomam o desempenho ‘um desempenho kachin, e nfo um mero ato funcional. E 0 mesmo sucede com todo tipo de ago técnica; hé sempre o elemento que funcionalmente é essencial, ¢ outro elemento que é apenas o costume local, um adomno estético. Tais adornos estéticos, Malinowski os chama de “costume neutro”, e nesse esquema de andlise funcional 0 tratados como irrelevancias menores. Parece-me, contudo, que so precisamen- te esses adomos costumeiros que fornecem ao antropélogo social seus dados bésicos. Logicamente, estética e ética sdo idénticas, Se quisermos entender as normas éticas de uma sociedade, é a estética que devemos estudar. Na origem, os pormenores do costume podem ser um acidente histérico; mas para os individuos que vivem numa sociedade tais pormenores nunca podem ser irrelevantes, sio parte do sistema total de comunicagio interpessoal dentro do grupo. Sao agées simbéli- cas, ropresentagbes. & tarefa do antropélogo tentar descobrir ¢ traduzit para seu proprio jargio técnico aquilo que esta simbolizado ou representado. Tudo isso, € claro, esta muito préximo de Durkheim. Mas Durkheim e seus discipulos parecem ter acreditado que as representagées coletivas estavam confi- nadas & esfera do sagrado, e desde que afirmam que a dicotomia entre o sagrado € profano era universal e absoluta, inferia-se que s6 eram especificamente sagrados 0s simbolos que o antropélogo submetia & andlise. Quanto a mim, acho injustificével a énfase que Durkheim coloca na dicoto- mia absoluta entre 0 sagrado ¢ 0 profano®. Parece, antes, que as ages acontecem 21. Malinowski in Hogbin (1934), p. xxv 22, Wingenstein (1922) 6421. 23, Durkheim (1925), p53. * SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA ‘numa escala continua. Num extremo temos as agbes que sio inteiramente profanas, {nteiramente funcionais, pura e simples técnica; no outro, temos as ages que so inteiramente sagradas, estritamente estéticas, tecnicamente ndo-funcionais. Entre esses dois extremos temos a grande maioria das agées soci parte de uma das esferas e em parte da outra, Desse ponto de vista, técnica ¢ ritual, profano e sagrado nao denotam tipos de ago, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de agio. A técnica tem conseqiiéncias materiais econémicas que sio mensursveis e prediziveis; o ritual, por outro lado, ¢ uma declaragdo simbélica que “diz” alguma coisa sobre os individuos envolvidos na aco. Assim, de certos pontos de vista pode-se dizer que uum sacrificio religioso kachin 6 um ato puramente técnico econémico. £ um procedimento para matar gado ¢ distribuir a came, e acho que talvez haja pouca diivida de que para a maioria dos kachins isso parece ser 0 aspecto mais importante da questo. Um nat galaw (“executar um nat”, sacrificio) € quase sindnimo de uma boa festa. Mas do ponto de vista do observador ha muita coisa que ocorre num sacrificio que é absolutamente irrelevante no que conceme a matadouro, a cozi- mento ¢ a distribuigio de carne. Séo esses outros aspectos que tém significado como simbolos de status social, ¢ so esses outros aspectos que descrevo como que participa em rituais quer envolvam ou nao diretamente qualquer conceituagio do sobrenatural ou do metafisico™. mito, em minha terminologia, é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos sio uma s6 ¢ a mesma coisa, Essa posigio é ligeiramente diferente das teorias de Jane Harrison, de Durkheim e de Malinowski A doutrina classica na antropologia social inglesa é que mito e ritual sio entidades conceitualmente distintas que perpetuam uma & outra mediante uma interdepen- déncia funcional ~ o rito € uma dramatizagio do mito, 0 mito € a sangao ou a |justificativa do rito, Esse enfoque do material toma possivel discutir 0s mitos isoladamente como constituindo um sistema de crengas, e de fato uma parte muito grande da literatura antropolégica sobre religio diz respeito quase totalmente & discussdo do contetido da crenca e da racionalidade ou nfo desse conteido. Mas tais argumentos parecem-me um contra-senso escolistico. A meu ver, 0 mito encarado como uma afirmacdo em palavras “diz” a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmagio em aco. Indagar sobre 0 contetido da crenga que nio esta contido no contexido do ritual é um contra-senso. Se eu desenhar um diagrama grosseiro de um automével no quadro-negro escrever embaixo “isto € um carro”, ambas as declaragGes ~ 0 desenho € 0 escrito 24, Cf. dlstingto feta por Merton (1951) entre fungho manifesta e fang laren 76 ntroucho —“dizem” a mesma coisa ~ nenhuma diz mais do que @ outta, e seria claramente um contra-senso perguntar: “O carro é Ford ou Cadillac?” De igual modo, parece- me que, se eu vir um kachin matando um porco ¢ Ihe perguntar 0 que est fazendo ele disser nat jaw nngai ~ “Esto dando-o aos nats” -, esta afirmacao é apenas ‘uma descrigdo do que ele esté fazendo. E um contra-senso fazer perguntas com: “Os nats tém pernas? Eles comem came? Eles vivem no céu?” Em algumas partes deste livro farei freqientes referéncias a mitologia kachin, ‘mas nao farei nenhuma tentativa de encontrar qualquer coeréncia 6gica nos mitos aque me refiro. Os mitos, paramim, sio apenas um modo de descrever certos tipos de comportamento humano; 0 jargio do antropélogo € o uso que ele faz dos modelos estruturais so outras tantas maneiras de descrever os mesmos tipos de ‘comportamento humano. Na anélise sociol6gica nunca podemos ter uma autono- mia absoluta. Por abstrata que seja a minha representacio, minha preocupagio é sempre com o mundo material do comportamento humano observavel, nunca com ‘ametafisica ou com sistemas de idéias que tais. Interpretacao Em suma, portanto, minha opiniao aqui é que agio ritual e crenga devem ser entendidas como formas de afirmacao simbélica sobre a ordem social. Embora eu no afirme que 0s antropslogos estéo sempre em condigies de interpretar esse simbolismo, digo entretanto que a principal tarefa da antropologia social é tentar tal interpretacao™. Devo admitir aqui um pressuposto psicolégico basico. Suponho que todos os seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e 0 seu grau de complexidade mental, tendem a construir simbolos e a fazer associagSes mentais do mesmo tipo geral. Isso é uma suposicio muito ampla, se bem que todos os antropdlogos a fagam. A situagdo importa nisto: suponho que com paciéncia eu, um inglés, posso aprender a falar qualquer outra lingua verbal ~ por exemplo, Kachin. Além disso, suponho que entio serei capaz de dar uma tradugio aproxiémada em ingles de qualquer afirmagio verbal comum feita por um kachin. Quando se trata de afirma- ‘gdes que, embora verbais, so inteiramente simbélicas — como, por exemplo, na poesia ~, a tradugio torna-se muito dificil, visto que uma tradugdo literal, palavra por palavra, provavelmente nao traz quaisquer associagées para o leitor inglés. 25. © conceito de eds, tal como fol desenvolvido por Bateson (1936), tem relevinciapaa esa parte de minha angameniaéo. SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA comum; suponho todavia que posso, com paciéncia, chegar a compreender apro- ximadamente até mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso entio comunicar a outros essa compreensio, Da mesma maneia, suponho que posso dar ‘um interpretagio aproximada mesmo de ages simbélicas ndo-verbais, como itens do ritual. E dificil justificar completamente esse tipo de suposigo, mas sem ele todas as atividades dos antrop6logos tornam-se sem sentido. Desse ponto de vista posso voltar ao problema que levantei no comego deste capitulo, isto é, a relacio entre uma estrutura social considerada como modelo abstrato de uma sociedade ideal ea estrutura social de qualquer sociedade empfrica conereta. Estou afirmando que onde quer que eu encontre um “ritual” (no sentido em que 0 defini) posso, como antropélogo, interpreté-lo. © ritual em seu contexto cultural é um modelo de simbolos; as palavras com que 0 interpreto sio outro modelo de simbolos composto largamente de termos técnicos inventados por antrop6logos — palavras como linhagem, classe, status etc. Os dois sistemas de sfmbolo tém algo em comum, a saber, uma estrutura comum. De igual modo, uma partitura musical e sua execugo tém uma estrutura comum". Isso € o que estou querendo dizer quando afirmo que o ritual torna explfcita a estrutura social ‘Acestrutura que é simbolizada no ritual & o sistema das relagbes “corretas” socialmente aprovadas entre individuos e grupos. Essas relagées nfo sio formal- mente reconhecidas em todos os tempos. Quando os homens estio envolvidos em atividades priticas para satisfazer o que Malinowski denomina “as necessidades bésicas”, as implicagbes das relagSes estruturais podem ser totalmente desprezadas; ‘um chefe kachin trabalha em seu campo lado a lado com 0 menor dos seus servos. Na verdade, estou preparado para afirmar que o desprezo da estrutura formal € cessencial para o prosseguimento das atividades sociais informais ordinérias. ‘No entanto, se quisermos evitar a anarquia, os individuos que compdem uma sociedade devem de tempos em tempos ser lembrados, pelo menos em simbolo, da ordem bésica que presumivelmente guia suas atividades sociais. Os desempenhos rituais t8m essa funcéo para o grupo participante como um todo”; eles tornam momentaneamente explicito aquilo que de outro modo ¢ ficgio. 26, Russell (1948), p. 479. 23h, Paro individ, a pacipasio num ritual pode também te ouras fngdes ~ por exempo, uma fungio psloldgica catia mas so, a mes ver, est fora do mbito do antropSlogo social * wronucko Estrutura Social e Cultura Minha opini&o quanto ao tipo de relacio que existe entre estrutura social ¢ cultura™* € uma decorréncia imediata disso. A cultura proporciona @ forma, a “roupagem” da situago social. Para mim, a situacéo cultural é um fator dado, é um produto e um acidente da hist6ria. Nao sei por que as mulheres kachins antes de se casarem andam com a cabega descoberia e 0 cabelo cortado curto, mas usam um turbante depois, tanto quanto néo sei por que as mulheres inglesas pdem um anel num dedo particular para denotar a mesma mudanga de status social; tudo 0 que me interessa é que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher tem esse significado simbélico. & uma afirmagio sobre o status da mulher. Porém a esirutura da situacio é largamente independente da sua forma cultural. © mesmo tipo de rela¢o estrutural pode existir em muitas culturas diferentes ¢ ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. No exemplo que acabamos de dar, o casamento é um relacdo estrutural que é comum tanto & sociedade inglesa quanto & kachin; é simbolizado por um anel em uma e por um turbante na outra, Isso significa que um nico e mesmo elemento da estrutura social pode aparecer com uma roupagem cultural na localidade A e outra rowpagem cultural na Ioealidade Ro Mas Ae R podem ger lugares adjacentes no. mapa, Em outras palavras, nfo existe razo intrinseca pela qual as fronteiras, significativas dos sistemas sociais devam sempre coincidir com as fronteiras culturais. Admito que as diferengas de cultura sio estruturalmente significativas, mas © mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente néo implica necessariamente ~ como quase sempre se sup6s ~ que pertengam a dois sistemas sociais totalmente diferentes. Nesse livro pressuponho 0 contrério. Em qualquer regio geografica que carega de fronteiras naturais bésicas, é provével que os seres humanos das regides adjacentes do mapa tenham relagdes uns com 0 outros ~ pelo menos até certo ponto -, nao importa quais possam ser 28. Como este livre pode ser lio tanto por antopSlogos americanas como ingleses, devo advrtt que 0 termo cultura, tal como 0 uso, no € aquela categoria sbrangeate que consti o tema dt antropotogia cultural americana. Sow um antroplogo sociale esou interessado a exratua social da sociedad kachio, Pars mim, os conceitos de eultutaesociedade sfo absolatamente dstnios. “Se se considers Sociedade como um agreyado de relagoes socials, ent a cultura € o conteddo dessas relagbes. A sociedade encarece o componente homano,ongregado de pessoas e as relagSes ene elas. A cul ‘enfatza 0 componente dos recuracsacumslados, amo material como material, que a pessossherdam, tempregam, transmutam, 2umentam €transmitem” (Firth, 1951, p. 27) Para 0 uso algo diferente do termo cultura coment ene os antrop6logos americanos, ver Kroeber (1952) e Kroeber & Kluckhohn (4952). * SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA seus atributos culturais. Na medida em que essas relagdes sio ordenadas e no totalmente fortuitas, hé implicita nelas uma estrutura social. Mas - pode-se per- guntar — se as estruturas sociais sio expressas em simbolos culturais, como se podem expressar as relagbes culturais entre grupos de cultura diferente? Minha resposta é que a manutengio da diferenca cultural e a insisténcia nessa diferenca podem por si mesmas tornar a agio ritual expressiva das relagbes sociais. Na regifo geogrifica discutida neste livro, as variagées culturais entre um grupo ¢ outro séo muito numerosas € muito acentuadas. Mas as pessoas que falam uma Ifngua diferente, usam roupa diferente, adoram divindades diferentes etc. naio io vistas como estrangeiros inteiramente, fora do Ambito do reconhecimento social. Os kachins e os chans sio mutuamente arrogantes uns com os outros, mas, resume-se que os kachins e os chans tém, apesar de tudo, um antepassado comum. Nesse contexto, atributos culturais como lingua, roupa e procedimento ritual so meros rétulos simbélicos que denotam os diferentes setores de um sistema estru- tural tinico e extenso. Para os meus propésitos, o que tem significado real é 0 modelo estrutural bisico, ¢ no o modelo cultural manifesto. Estou interessado nao tanto na interpre- taco estrutural de uma cultura particular, mas no modo como as estruturas particulares podem admitir virias interpretagdes culturais e no modo como estru- turas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de simbolos cultu- ais. Ao tratar desse tema, procuro demonstrar um mecanismo bésico da mudanga social AS CATEGORIAS CHAN E KACHIN E SUAS SUBDIVISOES Deve ter ficado evidente, pelo que foi dito, que um requisite bésico paras compreensii da tese deste livro 6 que o leitor seja capaz de conceituar para si ‘mesmo exatamente 0 que se entende por categoria kachin ¢ chan e suas vérias subdivisses, ¢ também pelas subcategorias contrastantes kachin gumsa e kachin gumlao. O presente capitulo é uma tentativa de tornar claras essas distingdes no plano muito superficial da emografia descritiva; somente mais tarde patentear-se-4 até onde se podem distinguir as categorias no nivel da estrutura social Chan Examinemos em primeiro lugar acategoria chan. A palavra nessa forma deriva do birmanés. Os termos geogrificos Assam ¢ Siio sio vocibulos correlatas. O cequivalente kachin (jinghpaw) do birmanés chan 6 sam. Os birmaneses aplicam 0 termo chan, de maneira bastante coerente, a todos os habitantes da Birménia politica da regizo fronteiriga entre Birmania e Yun-nan que se autodenominam Tais, No coeste e no sudeste da Birmfnia isso envolve certa ambighidade, uma vez que os birmaneses distinguem os chans dos siameses, embora ambos os grupos se autode- ‘nominem tais. Mas para o noroeste da Birmania a definigio ésuficientemente clara. (Os chans, assim definidos, encontram-se territorialmente dispersos, mas tém uma cultura razoavelmente uniforme. As variagbes dialetais entre diferentes loca- cy SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA lidades sio consideraveis, mas ainda assim, & parte umas poucas excegies espe- ciais, pode-se dizer que todos os chans da Birmania do Norte ¢ do Yun-nan Ocidental falam uma mesma lingua, a saber, o tai. As excegSes so os chans de ‘Méng Hsa (os maingthas ou a’changs), que falam 0 que parece ser um dialeto do maru; os chans do vale do Kubaw, que falam atualmente uma corruptela do birmangs; e pequenos bolsdes heterogéneos de chans nas regides do alto Chindwin do vale do Hukawng, cuja lingua atual parece ser principalmente o jinghpaw, ‘com forte mistura do tai e do assamés. A maior parte da populagio conhecida pelo nome de kadu parece entrar nessa categoria’. Ha também um pequeno grupo de pessoas que habitam o Irrawaddy, perto de Sinbo, que vivem como chans mas falam ‘uma lingua chamada hpon, mais ou menos intermediéria entre o maru eo birmanés. Segundo parece, a maioria dos derradeiros falantes do hpon — existem apenas algumas centenas deles - consideram-se tais. ‘Um critério mais importante de identidade de grupo € que todos os chans sio budistas®. E verdade que a maioria ndo é muito devota, ¢ o budismo chan inclui varias seitas decididamente heréticas, mas ser budista é simbolicamente importante ‘como indice da complexidade chan. Quando, como sucede com nao pouca frequén- cia, um kachin “se torna um chan” (sam tai), a adogio do budismo é uma parte decisiva do processo. O individuo que na Birménia atual (1951) recebe o titulo oficial de “Chefe do Estado de Kachin” é um budista-kachin-e-chan desse género. ‘Um segundo critério geral é que “todos os povoados chans estao associados a cultura do arroz itrigado”. Podemos aqui combinar o conceito chan com os dados citados no capitulo 2. A Birmania do Norte 6 uma regido de colinas ¢ montanhas. Os chans estio espalhados por essa regio, mas nao aleatoriamente. Os povoados chans ocorrem somente ao longo dos vales dos rios ou em bolsdes de tertit6rio plano nas colinas. Esses povoados esto sempre associados as terras de arroz intigado, Hé portanto uma grosseira equivaléncia entre cultura e sofisticagio. Nessa regio, a prosperidade que provém das planicies onde se cultiva 0 arroz itrigado subentende o budismo, que por sua vezsubentende a vinculacéo a um Estado feudal ago encontram-se mais ou menos fora 10 que estamos estudando. Os palaungs néo derivam sua prosperidade econdmica do arroz itrigado, mas do cultivo do ché; so budistas ¢ tém um sistema social do tipo chan, mas habitam as colinas’. Existem também alguns habitantes sofisticados nos Estados de Was, que se enriqueceram com os lucros decorrentes 1.Ver também p. 108 2. Na Indochina hi um gropo nfo budstaconbecido como “tai negro", mas concento-me aqui apenas tos chans da Regifo das Colinas de Kachin. 3, Milne (1924); Cameron (1911); Lows (1906). * _SITeMAS POLITICOSDAALTA Bn dda cultura da papoula. Ainda vivem nas montanhas, mas adotaram o budismo e so cconhecidos pela designagio de tais lois (isto é chans das colinas). A proposigio inversa é epenas aproximadamente verdadeira. No interior da Regio das Colinas de Kachin a majoria das comunidades (mas no todas) que dependem totalmente do cultivo do arroz irrigado sdo chans (ou birmaneses). As principais excecbes slo as seguintes. A leste, na parte alta da bacia do rio Shweli, ao norte de Tengyueh, a populacio que cultiva arroz, na sua maiora, fala o chinés. Mais para o este, no vale do Hukawng, hi regiées de arroz irrigado em que os, hhabitantes atuais se consideram mais kachins (jinghpaw) do que chans. Finalmen- te, em Assam, na fronteira ocidental da regio, ocamp6nio assamés comum cultiva (© arroz ittigado. Devo ainda acrescentar que nos distritos administrativos de Bhamo ¢ de Myitkyina, na Birménia, os primeiros Estados Chans jé néo existem ‘como entidades politicas separadas. Nessas regiGes no se pode estabelecer uma distinggo clara entre os componentes chans © of hirmaneses da poplagho que habita ovale O cultivo de arroz pelos chans é feito quase sempre em regides planas que permitem 0 uso de arados © grades puxados por béfalos. As comunidades chans esto muito ocasionalmente associadas aos sistemas de terragos de colina como os, ‘mencionados no capitulo 2, mas a maioria dos sistemas de terragos de colina dessa regitio sio cultivados por kachins. ‘Tentei indicar nos mapas 3 e 4 a distribuicao aproximada de povoados chans, ‘mas os bolsoes desses assentamentos si0 amide tio pequenos que s6 um mapa ‘em pequena escala poderia dar uma verdadeira indicacéo do quanto, geografica- ‘mente falando, 08 chans 0s kachins esto “misturados”. (Os birmaneses estabelecom uma distingio entre os chans birmaneses (Shan B’mah), os chans chineses (Shan Tayok) e os chans hkamtis. Grosso modo, os ‘chans bitmaneses compreendem os chans dos Estados Chans birmaneses, onde 0 ‘budismo é mais ou menos do tipo birmanés ¢ onde os principes (saohpa) ha muito esto subordinados nominalmente ao rei birmanés. Os chans chineses sio os dos Estados Chans do Yun-nan, o mais importante dos quais se situa na regio ao sul de Tengyueh e a oeste do Salween. Muitos dos chans que ora residem na Birmania, nos distritos de Bhamo e de Myitkyina, sio imigrantes recentes do Yun-nan e sio classificados pelos birmaneses como chans chineses, Os chans hkamtis sio consi- {derados um subtipo dos chans birmaneses. Com base na hist6ria, podemos defini- “A “Apaenterete ets exresi é snl sont nos dns de Bao ede Myittyiny; ver Benson (4933), p18, i “8 Mapa 4. Distribuicio da populagdo chan e kachin por volta de 1825 na poredo norte da Regio das Colinas de Kachin, BAM0R EG } / SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA os como os chans que possivelmente estabeleceram uma certa alianga politica com © antigo Estado Chan de Mogaung (Méng Kawng). ‘Até a metade do século XVIII os Estados Chans da Birminia do Norte conservaram um grau significativo de independéncia e demonstraram muito mais lealdade & China que & Birménia, No dltimo quartel do século XVIII, no curso de uma série de guerras algo irresolvidas entre a Birménia e a China, 0s vérios principados chans da regio do alto Irrawaddy (Mogaung, Mobnyin, Waingmaw, Bhamo) parecem ter tomado o partido dos chineses; em conseqiiéncia, sofreram uma destruigéo nas mos dos exércitos birmaneses*. A partir do final do século XVIII néo houve principes chans (saohpa) regulares nesses Estados. Estes eram tratados como dependéncias feudais diretas da coroa birmanesa. Os rendimentos do departamento de myosa dependiam da mercé do rei e 0 governante do Estado (myowun) era nomeado diretamente pelo castelo de Ava. Hkamti parece ter sido originariamente um titulo associado a familia real de a independente, continuou a servir para descrever aqueles principados chans que anteriormente haviam sido dependéncias politicas de Mogaung num sentido feudal. Como esses Estados Hkamtis desempenharam um papel de relevo nos negé- ccios dos kachins, vale a pena enumeré-los em detalhe. Mogaung. Depois da eliminagao de Mogaung como unidade politi ‘2, Hkamti Long (Grande Hkamti), hoje uma confederagio de sete pequenos principados chans, situada perto das cabeceiras do Irrawaddy (Mali Hka). Embora a principio tenha sido talvez colonizado diretamente desde a China, Hkamti Long parece ter sido uma dependéncia de ‘Mogaung nos séculos XVII e XVILP. No mapa 2, Hkamti Long aparece com o nome de Putao; (0s principados componentes sio mostrados no mapa 4 'b. Chans do vale do Hukawng, sobretudo os de Maingkwan, Ningbyen e Taro, Bsses ‘chans s8o hoje, em sua maior, dependentes polticamente dos kachins citcunvizinhos. Diz-se {que sio os emanescentes de uma populago outrora muito mais mumerosa em linhagens feudais* (mapa 4. . Singkaling Hkamti, Pequeno Estado chan no alto Chindwin. O grosso da populacio local € formado de kachins ¢ de nagas. O elemento chan, inclusive a familia governante, parece {er vindo de Ningbyen, no vale do Hukawng® (mapas 3 ¢ 4). 4. Os Hkamti de Assam. Localizados a leste de Sadiya e também na margem do Dihing, perto de Ledo (mapa 4). Os primeiros derivam de colonizadores vindos de Hkamti Long que entraram em Assam por volta de 1795. Os iltimos provém de virios grupos de colonizadores ‘Ver Imbault-Huart (1878), onde Meng K’ong = Mogaung; Meng Yang CConbecem-se as varanes: Kati, Kans, Khampti, Kami ete Barnard (1925); MacGregor (1894). Kawlu Ma Naving (1942), pt Chan States and Karenn, pp. 75-16. Mohayin AS CATEGORIAS CHAN & KACHIV E SUAS SUBDIVISOES cchans que entraram em Assam, durante 0s séculos XVIII e XIX, procedentes do vale do Hkawng", Nos Gltimos 120 anos os hkamtis de Assam sempre estiveram muito misturados ‘com os assameses, 0s mishmis, os nagas e os kachins (singphos)". . A egio das Minas de Jade, que foram um fator importante na queda dos principes do ‘Mogaung no século XVII, estiveram, pelo menos nos tiltimos sessenta anos, sob o controle de ‘uma linhagem de chefes kachins. Esses chefes, chamados embora de kachins pela administragSo britiica,imitaram as maneiras dos chans e casaram-se nas famflias chans. Assumiram também fo titulo de Kansi (Kant) duwa como herdeitos, segundo parece, do domfnio chan original” (mapa 2). Por essa lista pode-se ver que existe uma confusio entre 0 uso do termo ‘hkamti para denotar um grupo particular de povos de origem étnica supostamente comum ¢ 0 uso do mesmo termo como o nome de um estado politico. Essa ambighidade aplica-se também ao termo mais geral chan, Quase todos os Estados CChans da Regifio das Colinas de Kachin incluem elementos de populagdo nfo-chan. Em muitos casos, os elementos ndo-chans sio muito mais numerosos que os elementos chans. A capital politica de um estado chan é, em todos 0s casos, uma municipalidade localizada na vizinhanga de terras de arroz irrigado, mas as depen- déncias feudais de tal estado podem incluir no apenas outras comunidades de cchans cultivadores de arroz irrigado, como também vérias aldeias de colina com uma populagdo ndo-chan e uma economia de taungya. Em alguns casos, a hierar- quia politica dai resultante é um tanto complexa. Por exemplo, antes de 1895, 0 atual Estado de Méng Wan, chan chinés, inclufa néo s6 as aldeias chans do vale do Nam Wan como também numerosos povoados kachins que hoje estdo no lado bbirmanés da fronteira. Em sua maioria, os aldeses chans da planicie de Nam Wan nfo pagavam seus impostos feudais diretamente aos saohpa de Mong Wan, mas a uum ou outro de varios chefes tribais kachins. Os chefes kachins, por seu turno, pagavam seus impostos aos saohpa de Méng Wan. Os aldedes chans pagavam seus impostos com arroz, enquanto os chefes kachins pagavam os seus com pélvora, arranjo economicamente muito satisfatério para ambas as partes”. ‘Uma referéncia a0 Chan States Gazeteer mostra que em 1900 havia nume- +0808 exemplos similares nos quais 0s dominios politicos kachins estavam integra- dos numa estrutura feudal chan mais ampla. A total separagdo politica do territ6rio kashin ¢ chan, que prevaleceu durante a iltima fase do regime britinico na 10, Dalton (1872, 96 1. Ver, especialmente, Pemberton (1835); Mackenzie (1884); Michel (1883). 12. Hertz (1912) 13. RNEF. (1899), p.3 14, Scot & Hardiman (1900-1901), SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Birminia, nfo era um fendmeno natural, mas fruto de uma ago administrativa por parte do poder superior. {A distribuigio esparsa da crescente populagio cultivadora de arroz irrigado ¢ budista, de lingua tai, foi objeto de freqiientes comentarios ¢ especulagio pseudo-hist6rica. Parece que a teoria explicativa aventada mais comumente é a de que os povos de lingua tibetano-birmanesa e os de Iingua tai representam duas fam(lias étnicas diferentes. Atribui-se aos povos tibetano-birmaneses uma tendén- cia geral a migrar do Norte para o Sul. Segundo essa teoria, a migragio para o Sul foi temporariamente interrompida entre os séculos Vill e XI d. C. por uma infiltragio em sentido oeste dos chans de lingua tai. Essa migragio dos chans para 0 Oeste corresponde & expansio politica do “Império” Chan de Nanchao, que tinha sua capital nas vizinhancas de Tali. Mais tarde, com o declinio do poderio politico chan, supde-se que se tenha reencetado 0 movimento tibetano-birmanés para o Sul. De acordo com essa teoria, os Kachins de fala jinghpaw sio os Gltimos dos tibetano-birmaneses a chegarem do Norte; durante 0s séculos XVIII e XIX, supbe-se que tenham “devastado” os chans, de modo que os chans da Birménia do Norte de hoje sio meros sobreviventes dessa invasio paga'®. Essa complicada interpretagio dos testemunhos é desnecesséria. Como Von Eickstedt reconheceu claramente", a esséncia da cultura chan (tai) €a sua associa- go com 0 cultivo do arroz irrigado. Na Regio das Colinas de Kachin, com rarfssimas excegies, onde quer que exista uma extensio de terreno adequado para © cultivo do arroz irrigado, ou encontramos chans ou nio encontramos ninguém. 86 excepcionalmente é que deparamos com algum dos povos “kachins” domicilia- dos nas planicies e nos vales. E, vice-versa, em localidades adequadas somente para 0 cultivo de faungya, ou encontramos kachins ou no encontramos ninguém, A inferéncia € clara; € improvavel que a distribuigéo dos povoados chans tenha sido alguma vez, em qualquer época desde a difusto original da cultura chan, substancialmente diversa do que 6 agora. Se, como é bem possivel, houve anterior- ‘mente uma populagio chan numericamente maior do que a atual, isso nao implica que os chans estivessem mais amplamente dispersos; significa apenas que os povoados chans atuais eram anteriormente um pouco maiores. Nunca houve uma poptlagdo chan domiciliada nas regides de montanha. Somente em localidades ‘como 0 vale do Hukawng, onde vamos encontrar kachins cultivando o arroz pelos 15, Hs uma extens literatara sabe ete spico; ver, po exemplo, Enriquez (1933); Hanson (1913); Lowis (1919); Elcksted (1944, Na ertica, Groen (1933; 1934 indicou que as diferengas nos tpos fscos no Notdeste da Birminin no correspondem de modo nenhum as distibuigheslingltstias; sso invalida toda a tse 16, Bicksteat (1944), 100 ASCATEGORS CHAN & RACHIN E SUAS SURDIUISOES métodos chans, é que se pode inferir com alguma probabilidade que os kachins tenham “devastado” ou desalojado uma populado chan. B quanto a isso, se deparamos com povos de lingua kachin cultivando arroz pelos métodos chans, quase se poderia inferir que esses “kachins” jé esto em via de “se tornarem chans”. E bem possfvel que nos dltimos mil anos, ou aproximadamente, tenham ocorrido muitas migragSes ¢ mudancas demograficas substanciais entre a popula- gio montanhesa ao longo da Regio das Colinas de Kachin, mas cumpre lembrar que essas mudancas poderiam ocorter sem afetar a posicdo da populagio chan nas planicies € nos vales. Fatos ou inferéncias sobre a histéria de um segmento da populacio total podem, portanto, dar-nos certos indicios sobre a hist6ria do outro. Histéria fatual, pois qualquer parle da Regio das Colinas de Kachin 6 fragmentéria. Dou um resumo dessa historia estabelecida no cepftulo 8, juntamente com minhas proprias conjecturas sobre alguns dos fatos decisivos acerca dos quais dispomos senio de provas circunstanciais. Mas no capitulo 8 ocupo-me prineipalmente da “hist conjecturas sobre os chans. Um dos fatos que se podem dar como estabelecidos € que os chineses, ja no século Id. C., estavam familiarizados com vérias rotas do Yun-nan & fndia. Nao podemos saber ao certo quais eram essas rotas, mas, desde que sto constitufdas apenas por um niimero muito limitado de desfiladeiros através das principais cadeias de montanhas, as rotas ndo podem ter diferido muito das que conhecemos hoje. Nao & desarrazoado ver a colonizagio chan original dos vales dos rios como. tum processo associado & permanéncia dessas rotas de comércio. Hé testemunhos de que as comunicagdes eram mantidas através de uma série de pequenas guarni- ‘gGes militares estabelecidas em postos apropriados a0 longo da rota. E claro que essas guamigdes precisaram mantcr-se a si mesmas ¢ deveriam portanto estar jtuadas num terreno adequado ao cultivo do arroz. O povoado assim formado iria constituir o micleo de uma regio de cultura complexa que, com o passar do tempo, ‘evoluiria para um tipo de Estado chan subalterno. ‘A extensdo em que qualquer estado particular iria desenvolver-se seria condicionada pelas circunstincias locais. Em Hkamti Long, por exemplo, a drea apropriada a desenvolver-se em plan ” kachin, ¢ por isso ser melhor expor desde jé minhas de arroz é substancial, e, segundo parece, no passado foi de fato cultivada uma drea muito maior do que agora. As rotas comerciais através de Hkamti Long permaneceram pouco usadas por mais de um século: antigamente, quando essa rota comercial era muito mais frequentada, é possivel que a populagio tenha sido maior. Em contrapartida, a escala da comunidade chan em Sima-pa dificilmente deve ter mudado durante séculos. Trata-se de uma pequena planteie de arroz de 101 SISTEMAS POLI; 05 DAALTA BIRMANIA mais ou menos sete quilémetros quadrados, situada a uma altitude elevada (cerca de 1700 metros acima do nivel do mar). Constitui uma das principais passagens do Yun-nan para a Alta Birménia e situa-se na rota das antigas caravanas de jade de Mogaung para Tengyueh. Esti portanto localizada estrategicamente ¢ esteve certamente ali durante longo tempo. E apenas um lugarejo, mas em alguma ¢poca do passado pode ter sido um pouco maior, pois fica a pelo menos um dia de marcha de qualquer outra comunidade chan ou chinesa, ¢ toda a tetra de arroz que é disponivel no local esté plenamente ocupada (mapa 2, p. 87). Essa explicagio segundo a qual a localizago e a escala das comunidades chans foram determinadas pela estratégia e economia das rotas comerciais é claramente especulativa, mas ajusta-se melhor a0s fatos conhecidos do que as teorias que explicam a atual distribui¢ao dos povoados chans como o resultado de alguma fabulosa conquista militar em larga escala"”. Uma importante implicagéo de minha tese € que a cultura chan, tal como a conhecemos hoje, nao deve set considerada um complexo importado de fora, j4 pronto, para a regio, como a maioria das autoridades no assunto parece ter suposto, E um desenvolvimento nativo resultante da interagdo econémica, durante um longo perfodo, de colénias militares de pequena escala com uma populagio montanhesa nativa. ‘O processo pelo qual acorre o desenvolvimento de tipo chan é hem ilustrada. pela descrigéo de Ming Ka feita por Davies. Os atuais habitantes de Mong Ka sio cchineses de lingua lisu; sua semelhanca cultural geral com os chans de comunida- des similares, como a de Sima-pa, € muito grande, O topénimo Méng Ka é chan, Davies escreve 0 seguinte: ‘A pequena planicie de arroz de Méng Ka (1 700 km') € habitada por cineses ¢ lisus. A. terra 6 totalmente cultivada, mas nfo ¢ fen, e 0 povo ndo obtém dela senio 0 necesstio para viver [..] © chefe de Mang Ka 6 conhecido pelo nome de Yang-hsing-kuan, que significa simplesmente “o tunclonério cujo sobrenome é Yang”. Seu cargo € hereditério. Parece que urn seu antepastado, quma outra época, conquistou os habitantes lisus originals para o governo chings e, como recompensa, ele seus homens se estabeleceram ali como colonizadores-solda- dos, ¢ 0 governo do lugar foi dado a cle ¢ a seus descendentes. Os lisus ¢ os chineses agora vivem juntos em perfeita amizade e sem diivida os colonizadores originals casaram-se com mulheres lisus de modo que seus descendentes sio por rage tio lisus quanto chineses". Existem varios outros tipos de testemunhos que respaldam a opinigo de que grandes porgies de povos hoje conhecidos como chans so descendentes de 17, & desnecessrio dizer que at préprin tradigSes chant tre o atsunio fo expres conguistas militares [€ Bliss (1876)] mas tas relatos nko tm valor hstéric. 18, Davies (1909), pp. 37-38. Mong Ka é um posto de servigo na rota de Sadon para Tengyueh. em fungho de [AS CATEGORIAS CHAN E KACHIN E SUAS SUBDIVISOES membros de tribos das colinas que foram, no passado recente, assimilados por formes mais requintadas de cultura budista-chan. Por exemplo, Wilcox, 0 primeiro inglés a visitar Hkamti Long, menciona que “a massa da populagio trabalhadora é da tribo khaphok, cujo dialeto é estreitamente aparentado com o singpho”". Esse termo chan Kha-phok ou hka-hpaw pode traduzit-se por “escravo ka- chin, Barnard, mais tarde uma autoridade na mesma regio, menciona que dois ‘grupos de classe baixa da sociedade hkamti so denominados hsampyens (isto 6, sam hpyen) e chares#', Na lingua jinghpaw esses termos significariam “soldado mercenétio chan’ ¢ “soldado contratado”, respectivamente; subentende-se que esses, chans de classe baixa so de origem kachin jinghpaw. De modo anilogo, se se ‘examinar, como fizemos, a longa sucessao de referéncias aos hkamtis de Assam que aparecem em documentos de lingua inglesa, oficiais ¢ outros, entre 1824 ¢ 1940, & inevitavel a conclusio de que os ancestrais de muitos povos hoje classificados como hhkamtis (isto €, chans) teriam sido mais apropriadamente classificados, um século airs, sob algum outro nome, como singpho, lisu ou nung (isto é, kachins). Detathes sobre essa mudanga evidente de identidade cultural sfo dados no apéndice 1. O que eu quero ressaltar aqui é que a localizagéo territorial, a relativa complexidade ¢ as principais caracteristicas da organizagio econdmica do que chamamos agora de sociedade chan so determinadas em grande parte pelo meio ambiente. Dados 0s requisitos de uma economia assentada no cultive do arroz irtigado nesse terreno, 08 povoados chans dificilmente seriam diferentes do que sio. Bis por que me sinto autorizado a tratar o sistema social de tipo chan como um ponto relativamente estivel no fluxo total. Nos meus iltimos capitulos tebricos discuto os sistemas sociais kachins ~ 0 tipo gumiao e 0 tipo gumsa ~ como sendo intrinsecamente instéveis, a0 paso que considero 0 tipo oposto, chan, como intrinsecamente estével. A justificagéo para {sso deve ser encontrada em dados de campo como os que mencionei acima, A cultura chan atual estende-se por bolsdes esparsos de Assam a Tongking e, para 0 sul, a Bangkok e a0 Cambodja. Os povos das colinas vizinhos dos chans sfo espantosamente variados em sua cultura; os chans, dada sua ampla dispersio e sua forma esparsa de povoamento, S40 espantosamente uniformes. Minha tese é que essa uniformidade esté correlacionada a uma uniformidade da organizagéo politica chan, ‘que por sua vez € largamente determinada pelos fatos econdmicos especificos da situagio chan. Minha suposigdo hist6rica & que os chans dos vales assimilaram em 18, Witeox (1832),p. 446. 20, Barnard (1936), p vil. CE pp. 269, 284. 21, Barnard (1925), p. 139. 103 SISTEWAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA toda parte, durante séculos, seus vizinhos das colinas, mas os fatores econémicos imutéveis na situaglo significaram que o padrio de assimilagio foi muito semelhan- te em toda parte. A prépria cultura chan foi relativamente pouco modificada. Kachin Isso quanto ao sentido bésico do termo chan; a categoria kachin é mais complicada. Primeiro, a propria palavra, Kachin é uma romanizagio do termo birmanés om yf. Essa grafia comegou a ser usada por volta de 1890. Antes dessa data a forma usual era Kakhyen. ara os birmaneses a categoria originariamente era vaga, aplicade indistinta- ‘mente aos bérbaros das fronteiras do Nordeste. Aparece pela primeira vez em inglés por volta de 1837", Era usada, entéo, como um termo geral para designar os membros das tribos que no eram palaungs, que viviam no distrito de Bhamo € no Estado de Hsenwi do Norte. Essa populagdo era na época, como hoje, poliglota; incluia falantes das Iinguas ¢ dialetos atualmente conhecidos pelos nomes de jinghpaw, gauri, maru, atsi lachi e lisu. De inicio, portanto, o kachin ndo era uma categoria lingiistica, Outra categoria de populagao birmanesa foi a princfpio romanizada com a designagio de theinbaw. Outras versdes da mesma palavra aparecem na literatura na forma de singpho, singfo, chingpaw, jinghpaw etc. uma calogoria que os povos que félam a I{ngua que hoje denominamos jinghpaw aplicam-se a si ‘mesmos. Mas, assim como consideramos que a expressio inglesa “We Britons” tanto pode incluir quanto excluir os escoceses, os galeses e os canadenses na mente do falante, assim a expressio “Nés jinghpaw” (ankte jinghpaw ni) é ambigua, Comumente inclui muitos povos que nao falam a lingua jinghpaw, e na verdade a palavra pode ser usada até para abarcar toda a humanidade. Os birma- neses usavam theinbaw principalmente com referéncia aos bérbaros do distrito de Mogaung e do vale do Hukawng. Parecem té-los tratado como uma categoria diferente dos kakhyens. Os briténicos foram os primeiros a estabelecer, por volta de 1824, contato politico com os falantes do jinghpaw ¢ de outras linguas “kachins” cm Assam; os ppovos em questo eram entéo chamados singphos ¢ kakoos. Em 1837, 0 servigo de inteligéncia militar britanico tinha reunido um corpo de informagdes muito subs- tancial, relativo nao apenas aos singphos de Assam mas também aos seus parentes 2 Hannay (1837); Burney (1837); Richardson (1837); Malcom (1839. 104 AS CATECORIAS CHAN & KACHINE SUAS SUBDIVISOES tribais do vale do Hukawng ¢ das regiGes a nordeste de Mogaung”. Nesses informes, 0 ermo singpho 6 usado para designar os falantes do jinghpaw residentes no vale de Hukawng e seus parentes proximos de Assam, enquanto kako abrange © jinghpaw das regides do Tridngulo ¢ do Sumprabum, ¢ também 0 maru, o lachi, © lisu, 0 mung ¢ 0 duleng. Os “kakoos” eram considerados uma variedade dos singphos, mas de um tipo algo inferior®. ‘Segundo parece, supunha-se nessa época que a categoria inglesa singpho ¢ a categoria birmanesa theinbaw eram idénticas, porém a categoria kakhyen ainda era considerada distinta®. Dez anos depois, Hannay, que fora responsével por parte do trabalho original do exército briténico acima mencionado, publicou um tratado sobre The Singphos or Kakhyens of Burma, onde reunia sob uma categoria tinica ‘0s montanhoses a leste de Bhamo, os singphos do vale do Hukawng e de Assam, ‘©0s heterogéneos “kakoos” dos vales do Mali Hka e do N’mai ka”. No esquema de Hannay, a populacio total da Birmania ao norte de Bhamo entra apenas em duas categorias: os chans e os kakhyens. Evidentemente, 0 que mais impressionou Hannay foi a similaridade cultural geral entre os diferentes ‘grupos de povos das colinas. Percebeu que esses grupos nfo falavam a mesma lingva, mas isso nao Ihe pareceu particularmente relevant. As opinides de Hannay foram aceitas de moda geral até final da séeulo, Por exemplo, em 1891 um escritor™ considerava que os gauris, que falam o dialeto jinghpaw, e os szis(atsis), que falam um dialeto maru, eram porgdes “estreitamente aparentadas” da mesma “subtribo dos kachins”. Kachin era ainda, portanto, uma categoria cultural, ¢ néo lingistica Nesse perfodo, contudo, a expressiio Colinas de Kachin foi introduzida no jargio administrativo oficial da Birménia britinica e levou & nogio altamente artificial de que um kachin era alguém que vivia num tipo particular de terreno mais do que uma pessoa de caracteristicas culturais particulares. Isso & visto claramente quando se comparam duas diretrizes governamentais contraditérias publicadas em 1892 ¢ 1893, respectivamente. 23. Selection of Papers (1873); Wileox (1832); Pemberton (1835) 24, Ae regies “Kakoo" nfo eram conbecidas diretemente, mas hava ax seins lis, nungs © dlengs em ‘Assamehavin 5 aleins mara no Hutawng.O temo kakoo~ i= ka hu ~€ designagtoemjnghpa de “tio acima(pessoas)” em oposicfo aka nam, “ro abaino”, A regio referida aparece no mapa 4, po. 25, Malcom, i, 243, 26, Hannay (1887) 27, Burney (1842), p. 40, também faz a ideniffeagio “kakhyens ou singphos” 28, George (1891). 105 SISTEMAS POLITICS DA ALTA BIRMAWIA 1892 Trios e cls kachins dentro de nossa linha de posts fronteirigo e aldeias estabele- .onat celeste Muchenge sua filha Bunghpot Oscheles sacificam a: 2 nats de famfia Entre 0s espiritos “benevotentes” 0s plebeus sacriticam a ‘a. ancestais 6 familia b.onaterleste Musheng esta filha Bunghpo! Nos feriados da aldeia os fundadores de linhsgem sactificam a: 4. nats de familia 255 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA bo mung nat, que 60 uma nat da linha- —_-b. o mung nat ~ esphrito ligado de certo ‘gem do chete ‘modo ao fundador da comunidade e eorsi- €.0 nat celeste Madai e sua filha Hpraw derado amitide um antepassado de todas as Nes linhagens originais do nat tetestre Chadip ¢. algum nat celeste — freqientemente Sinlap munca Ma 4. um nat terresre ~ ga nat ~considerado distinto de Chadip © ponto que tentei realgar nessa comparagéo é que, no sistema gumlao, a igualdade de status entre os elementos de qualquer comunidade local é um dogma decisivo. Como a igualdade de facto é provavelmente muito dificil de manter, ‘podemos esperar dos prineipios bésicos que as comunidades organizadas de acordo com 0 modelo ideal gumlao serdo politicamente instiveis. A demonstragio de que essa instabilidade te6rica é um fato empitico envolve uso de materiais historicos de qualidade muito desigual. O que se segue parece serem os exemplos mais bem documentados da instabilidade gumlao através do tempo. 1. No relato de Kawlu Ma Nawng 0s gumlao da regiéo do vale do Hukawng originaram-se de uma revolta deflagrada pela linhagem N’Dup-Dumsa (“sacerdo- te-ferreiro”) do cla Tsasen contra seus chefes tradicionais. A tinhagem N’Dup- Dumsa controla hoje a grande regido a nordeste do vale do Hukawng; seus ‘membros consideram-se gumlao, mas seus lideres tém o poder € o status de chefes “no comem coxas”, nao erigem postes nes casas de chefe, nao cavam valas a0 redor de seus ttimulos, mas eram tratados como chefes pelas autoridades birmane- sas j4 em 1820" e coerentemente chamados de chefes pelos viajantes briténicos dos anos 1830" e pelos administradores briténicos, que finalmente assumiram 0 controle da regio um século mais tarde, Kawlu Ma Nawg, ao registrar esses fatos, comenta que é muito estranho que tanto os birmaneses quanto os britinices tenham emitido ordens de nomeagio de chefes ao povo “que nio conhece 0 direito ou ‘mesmo a existéncia de chefes”. Esse testemunho sugere que, muito tempo antes de os briténicos estarem em condigées de interferir nas coisas, as principais linhagens gumlao do Hukawng hhaviam aberto caminho de volta a algo que na pritica, se no no nome, se aproximava estreitamente do sistema gumsa. 11, Kawlu Ma Nawng (1942), p. 30, 12, Hannay (1847), Aqui N’Dup Dum ¢ grafado Undooptun Sah 256 2. A regido gumlao que era considerada a fons et origo do movimento gumlao pelos escritores ingleses dos anos 1890 era a parte do Triangulo que abrange os dominios de Sagri Bum ¢ N’Gum La, Supunha-se que essa regio se tomara gumiao pela primeira vez pot volta de 1870, conquanto outra autoridade tenha aventado a data especifica de 1858". (Ver mapa 4, p. 97.) A hist6ria, tal como foi contada nos anos 1890, dizia que Maran Khawle, aparentemente um fundador de linhagem pouco importante de N’Gum La, matou Naw Pe, chefe de N’Gum La, O eld e a linhagem deste tltimo no séo declarados. Simultaneamente, Labu Shawn, outro plebeu, matou o chefe de Sumpawng Bum, um Lahpai. Sumbka Sinwa de Sagribum (também um Lahpai e irméo de linhagem do chefe Sumpawng) € outros chefes vizinhos concordaram desde entio em abandonar todos os seus privilégios de chefe e em assumir 0 titulo de agyi (lideres) no lugar de du (chefe). Em 1915 essa regido ainda nao era administrada pelos britinicos. Nessa data’, (a) 0 lider de N’Gum La, aldeia de 42 casas, era um Lahpai li Era “suserano de oito aldeias”, Era um gumlao. (b) O lider de Sagribum, Sumhka Sao Tawng, ¢ seu irmao, Bumbu Sao Tawng, governaram entre si mais de 24 aldeias, das quais as duas maiores continham 65 ¢ 32 casas. Esses homens eram ambos gumlao. Deve se notar, todavia, que ambos eram conhecides pelo titulo de Seo (Zau), apropriado apenas para chefes. (c) O lider de Sumpawng Bum, um gumlao, era um Labu La, evidentemente um descendente de linhagem do Labu Shawng que se acreditava ter matado o chefe original Sumpawng Bum. Por volta de 1943, (a) 0 lider de N’Gum La era um Mangala Uri Nawng, que me foi descrito como um Lahtaw; (6) o lider de Sagribum era Sumhka Zao, provavelmente o filho do homem que era lider em 1916. Nem um nem outro desses individuos parecia ter qualquer pretenséo a ser gumlao. Nessa data eram conside- rados dois dos chefes mais influentes e confiéveis da regido do Triangulo. Assim, 6s herdeiros ¢ descendentes dos supostos revolucionérios de 1870 eram, por volta de 1943, 05 mais firmes sustentéculos da lei e da ordem britanicas. Infelizmente, nao disponho de dados relativos a escala dos tributos, se € que os havia, arrecadados, por esses “chefes-gumlao” junto aos seus subordinados. Nos exemplos anteriores a organizagio gumlao, nos dias atuais, é claramente uma ficgéo; os chamados Ifderes gumlao comportam-se, para todos os efeitos préticos, como chefes gumsa. Surge, entio, a questio de saber se oconceito de uma 13, Assim Walker (1892), citando Eliot assim também Scott ¢ Hardiman (1901), vol. Pare I, p. 370. 14, Seotte Hardiman, op. elt p. 414 15. RNER (1915 ¢ 1916), p15, A dat € importante por mostrar que n tendBacis a revertr& forms ‘umsa nko era produto de pressio exercida pela Adminstagh britinic, 237 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA sociedade tipo gumlao nao seria uma fiegio mitolégica usada como pretexto para justificar uma mudanga de dinastia naquela que foi todo 0 tempo coerentemente ‘uma comunidade de tipo gumsa. © ceticismo nessa forma extrema nfo se justifica. Na maioria das atuais comunidades gumlao de lingua jinghpaw, o “tepublicanismo” parece ser genuino. Assim, a totalidade do territério Duleng € hoje gumlao. Nio existem chefes dulengs. Cada aldeola Duleng 6 uma entidade estritamente independente. As linhagens Duleng so pequenas ¢ muito numerosas ¢ nio esto claramente vincu- Jadas a um sistema segmentado. No entanto, hé uma tradigio segundo a qual os dulengs séo todos descendentes de um antepassado comum, e que outrora havia uma linhagem de grandes chefes dulengs que eram a linha hierérquica (uma) snior entre todas as linhagens de chefes kachins. Entlo, “cerca de seis peragées atrés, 0s povos de Kinduyang” revoltaram-se contra os seus chefes.e desde entao todos os ‘mung dulengs passaram a ser gumlao, Naverdade, existem provas histéricas de que os dulengs iveram chefes muito mais recentemente do que isso. Ainda em 1893, Errol Gray, que chegara a Hkamti Long procedente de Assam, viu seu intento de prosseguir mais a leste frustrado pelas supostas objegées de um poderoso chefe kachin chamado Alang Chow Tong, (Alang Zau Tawng), que vivia em Alang Ga, no centro da regio Duleng. E possivel {que Gray tenha recebido referéncias cxageradas sobre ainfluéncia do chefe Alang, mas € muito pouco provavel que ele nio tenha existido”. Todavia eu préprio acampei em Alang Ga em 1943, ¢ hoje a regio é certamente gumlao. Eo mesmo sucede com muitos outros exemplos; os testemunhos slo ténues, 1mas coerentes. Parece que tudo se resume no seguinte. Onde hoje encontramos Comunidade de tipo gumlao — isto é, sem chefes, constituindo cada aldeia uma ‘unidade politicamente independente, tendo um mung nat que no é exclusivo de nenhuma linhagem particular, constatamos uma tradigio segundo a qual, “outro- za, x geragies atrds, tinhamos chefes”, ¢ depois houve uma rebelifo na gual os chefes ou foram mortos ou expulsos. Por outro lado, se examinarmos hoje aquelas localidades que so, por tradiglo, os pontos focais do sistema gumlao, em geral cencontraremos comunidades do tipo gumsa, ou algo extremamente préximo desse tipo. 16. Kinduyang ~" planiie Kindo” ~€0foco de grande pate da mitlopa 6 Kachin do None. O nat King € mung nat para bos pare da regio de Dueng interstate nla que ochefe Pyisaem Assam (Geesa Gam) taka conado a Neutvie, em 1828, qe sua linagem migra, vile e uma geraghes anes, de "Kunduyung para ur brago do Sei Lonit (Inawaddy)” (Neuville, 1828, p. 340). 0 Gnico Kind Ga que sei que existe hoje fics sudoeste da regio de Duleng e ess em tengo gum. 17, Gray 1894). 28 GUMLAG € GUMSA ‘Nao estou afirmando que essas provas sejam suficientes para dizer que durante um dado periodo hé sempre uma oscilagio constante entre os extremos polares de gumsa ¢ gumlao, mas creio haver fortes indicios de que por vezes, na verdade freqientemente, € 0 que acontece. Penso ainda que esse tipo de oscilaglo aplica-se especialmente as comunids- des de lingua jinghpaw na medida em que se opsem a outros grupos kachins, em grande parte porque as idéias sobre incesto contidas em categorias lingdisticas jinghpaws obrigam mesmo os jinghpaws gumlao a adequar-se as regras de case- ‘mento mayu-dama. A assimetria da relagio mayu-dama é, por assim dizer, incom- pativel com o dogma de igualdade de status entre linhagens que domina a teoria gumiao; conseqientemente, uma comunidade gumlao que adota as regras de casamento mayu-dama resvala com muita facilidade para préticas de tipo gumsa. Fora da regio de lingua jinghpaw, o esquema mayu-dama nao se aplica com ‘a mesma forga, e em grupos fora da regio de Kachin nao se aplica de modo algum. Assim, com os lisus a regra de casamento preferida & com a filha da irma do pai, conquanto seja permitido 0 casamento entre primos cruzados", $6 quando um lisa se casa com um kachin gumsa & que as regras gumsa sio observadas. Para a maioria das regides limitrofes, o material etnogréfico 6 ambiguo. Até agora nao houve estudos satisfat6rios da terminologia de parentesco maru ou lachi. ‘mas as categorias de parentesco nao parecem adequat-se perfeitamente as do sistema jinghpaw"”. Isso seria incompreensivel se esquema mayu-dama fosse adotado na principal regio maru-lachi, a leste do N’mai Hka, cuja maior parte é, politicamente falando, gumlao. Os rawang-nungs, conforme foram descritos por Bamard, adotam as regras jinghpaws de casamento, mas duvido que o fagam sempre, pois esses nungs so subordinados tanto aos lisus como aos jinghpaws e se unem por casamento a uns e a outros. O sistema de parentesco nio é idéntico a0 jinghpaw**, Diz-se que alguns grupos de Palaung adotam as regras mayu-dama, mas ndo todos". Os dados sobre a regido a oeste sio igualmente vagos. Com relacéo & maioria dos grupos nagas chins ha registros de que ha preferéncia pelo casamento com a filha do irméo da mae, mas a proibigéo de unio com a filha da inma do pai ~ que é decisiva para o sistema mayu-dama ~ é relativamente rara. E. relatado entre os lahkers (chins do sudoeste) ¢ também entre alguns grupos de ““velhos kukis” em Manipur, 18 Geis (1911), p. 152; Fraser (1922), pp 6. 1B. Listas de termos so dadas em Census (1911) « em Cletk (1912), p. SL 20, Barnard (1934), pp.47 114-115. 21, Cameron (1911). 22. Para etertcias lesterunhos, ver Levi-Straus (1949), capulo XVII. 250 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Minha hip6tese é que uma regra de casamento de tipo mayu-dama nunca sera encontrada associada a tipos estaveis de organizacio gumlao, Quando as regras ‘mayu-dama s8o encontradas em associagao com a organizagio gumlao, entao a ‘ltima pode ser vista como uma fase transit6ria. Nao estou querendo dizer que esse processo de fluxo seja um automatismo social que se desenvolve automaticamente sem a intervencdo de influéncias exter- nas. As “causas” iltimas da mudanca social, a meu ver, quase sempre devem ser cencontradas em mudancas no ambiente politico e econémico extemo; mas a forma que qualquer mudanca assume é largamente determinada pela estrutura interna existente de um sistema dado. Nesse caso, a ordem gumlao e a ordem gumsa so ambas instiveis; em situagBes de perturbacio externa, a tendéncia é que sistemas gumlao se convertam em gumsa € que sistemas gumsa se convertam em gumlao, No entanto, isso no passa de uma tendéncia; é a possibilidade mais plausivel. Nao afiemo ser capaz de predizer 0 que aconteceré a alguma comunidade particular em alguma circunstincia especitica. Assevero, entio, que mudancas da organizagio de tipo gumsa para a gumlao € vice-versa so reagGes a fatores externos & situagio kachin imediata. Que espécie de fatores? Essa questdo seré discutida mais adiante, no capitulo 8. Entrementes, tendo explicado adisfungao entie gumsa e gumlao, devo fazer una anilise bastante similar da relacio entre a teoria politica gumsa e a chan. Capitulo 7 GUMSA E CHAN Este livro trata dos kachins, mas a tese que desenvolvi em capitulos anteriores 6 que a sociedade kachin gumsa assume a forma que tem porque os chefes kachins, quando tém a oportunidade, tomam por modelo o comportamento dos principes chans (saokpa), Neste capitulo, tenciono explicar exatamente o que essa imitacdo envolve € Por que, no conjunto, ela é malsucedida Em primeiro lugar, esclaregamos as principais diferengas entre o modo de vida dos kachins comuns e o dos chans comuns, Os assentamentos chans esto quase sempre associados & rea de terra irrigada para o cultivo do artoz de varzea. ‘As casas variam bastante no tipo de construgio ¢ no padrio de agrupamento, mas 0s assentamentos so permanentes. © agricultor chan esta preso a sua terra; pode rapidamente mudar sua lealdade de um chefe territorial para outro, como 0 pode um kachin. Via de regra, um chan espera desposar uma jovem de sua propria aldeia e ali passar toda a sua vida. Identifica-se com essa aldeia, & 0 seu lar; mesmo que as circunstancias o obriguem a morar em outra parte, sempre se descreverd ‘como pertencente & sua aldeia natal. Quando a escassez de terras compele um grupo de aldeias a segmentar-se, tudo indica que a nova aldeia receberd o mesmo nome da antiga. Portanto, a primeira lealdade de um chan é para com um lugar, € nfo ara com o grupo de parentesco. De fato, dentro da comunidade, no existem grupos de parentesco claros. Os chans plebeus mio possuem patronimicos de linhagem como os kachins. Nao hé restri¢do ao casamento entre primos; conse- 261 Ster2Mas Pounicos ba aura ues 4qlentemente, muitas vezes a comunidade local é, em grande medida, um grupo endégamo de parentes, Entretanto, parece haver pouco ou nenhum senso de solidariedade no grupo de parentesco; 0s casamentos slo arranjados pelos chefes individuais da familia, ¢ néo por grupos de parentes; um homem pode pagar em espécie 0 prego da noiva ao pai desta, e paga-o mesmo que a jovem seja filha do irmio do seu proprio pai. Os direitos de propriedade, inclusive da terra, favorecem 6 filhos em detrimento das filhas, favorecem os irmaos mais velhos em detrimento dos mais novos, mas em todos os casos as filhas também tém algum dircito Concebe-se que 0 grupo proprietirio da tera ¢ integrado por todos os descendentes do primeiro dono; o ditimo dono usualmente adquire sua posse ou por oeupagio de terras desocupadas ou por concessio doprincipe reinante que Ihe concede direito de posse em paga de servicos prestados?. Na pritica, a propricdade limita-se aqueles descendentes do dono original que continuam a residir na terra e a tirar dela a sua subsisténcia. Estritamente falando, os direitos sobre a terra nao podem ser vendidos, apenas hipotecados. Se A hipoteca sua terra a B, entdo, apés mais ou menos tres anos, A (ou qualquer descendente de A) tem direito a reaver a terra sempre que tiver os meios; e supde-se que essa norma se aplica até a décima geragio. Uma comunidade aldea kachin, como vimos, compoe-se de um grupo de segmentos de linhagemn ligados por lagos de eld ¢ de afinidade; esses lagos de cla de afinidade nao desempenham o mesmo papel na organizagio local chan; é a ‘propria posse da terra que forma o elemento de continuidade estrutural. Assim, onde um kachin diria pertencer a este ou aquele ramo desta ou daquela linhagem, um chan diria: “Eu e meus ancestrais somos gente de Mong Mao e temos cultivado (0s mesmos campos em Ho Nawng por tanto tempo que jé ninguém se lembra”® AA lideranga, numa aldeia chan, parece depender principalmente da idade eda ccapacidade natural. A chefia pode passar de pai para filho, mas nio necessariamen- te, Ela ndo é restrita @ uma linhagem em particular’. Em lugar da estrutura de linhagem da sociedade kachin, temos aqui uma exagerada consciéncia de classe ou de casta hereditéria. Omitindo-se a antiga categoria dos escravos, existem, nominalmente,trés castas principais na sociedade chan: 1. Bm teata, a ernst chan € epi plo eign budisa Biman etaelecido no damathat. Sobre st rormas de secessi, ver Richardson (1912) pp. 227 6 © 265 es e também Labi (1913), passim. 2. Chea exposicio dos dietes de posse na Bimini pré-briinica em Scat e Harciman (1901) vol 1, Pate I pp. 434 Harvey e Barton (1930), p. 29. Ver Fen (1949) sobre adscusio d elaghoente idee e status numa comuniade chines-chan. 2a oumsAs cman 1. A nobreza. Esta, teoricamente, incluiria todo aquele que possa tragar algum tipo de conexio genealégica com 0 saohpa reinante, Dado o principio da descendéncia bilateral, 0 niémero total de pessoas que podem reivindicar essa conexio de parentesco € grande, ¢ a definigio de facto da nobreza é: “aquelas pessoas capazes de persuadir seus amigos a dirigir-se a elas pelos titulos de Sao, ‘Hkun, Nang etc.” Supde-se que @ nobreza seja uma casta hereditéria; na prética, ha sempre alguns individuos em sua orla que se dizem nobres mas ndo sio reconhecidos como tais'. A conexio patrilincar € mais importante que amatrilinear. A riqueza também constitui fator importante na manutencio do status patricio. Os membros da nobreza tendem a desempenhar fungSes na corte ¢ a praticar o comércio ou o artesanato da prata. De modo geral, ndo sio agricultores. 2. A classe comum dos agricultores, eujo principe interesse esté em sua terra, Numericamente, formam o componente mais numeroso da populacao. 3. Aclasse baixa. Pescadores, agougueiros, comerciantes de bebida, guarda- dores de porcos etc., isto é, todas aquelas pessoas que desempenham funcdes impréprias segundo 0 estrito c6digo budista. Os plebeus kachins que, por casamen- to ou por outromeio qualquer, assimilam-se aos chans ocupam essa casta, Acontece ‘o mesmo com os descendentes de antigos escravos. © governo do dominio (mdng) esta nas maos de um principe hereditério (Gaohpa) e sua corte de funcionrios nomeados (amat). E provavel que muitos dos ‘dtimos sejam parentes do principe e, portanto, nobres, embora os plebeus também possam alcangar altos postos e, mediante casamentos adequados, assegurar nobreza para seus descendentes. Conceitualmente, 0 saohpa é um rei divino, um monatca absoluto, Mas aqui 6 preciso diferenciar. O saohpa chan com quem os kachins tém estreitas relagies que, portanto, serve de modelo para os chefes kachins é um homem como os principes de Mong Mao e Kang Ai, ou os chefes subaltemnos de Hkamti Long, Tais homens, na escala chan das coisas, ndo passam de figuras insignificantes. ‘Ao que parece, 0 ideal chan de um saohpa foi representado bem melhor pelos reis da Birmania. O monarca vive isolado do mundo, em seu palécio (haw) sagrado, onde passa uma vida de luxo e de indoléncia, rodeado por vasto harém de esposas € concubinas. Os negécios préticos do Estado sfo delegados a um conselho de rinistios (amat). Esses funcionérios nio recebem salérios, mas conseguem uma ‘5. Harvey ¢ Baron (op. i, p. 68) ctam um chan chamado Paw Lun que dizia:“Vesho de uma familia patria muito bos ..]agotestn veo e pobre [tenho diteito a0 pefixo Hk, mat ninguém me hana assim” 26 [SSTEMAS POLITICS DAALTA snus vida Iucrativa com as prerrogaivas de seu cargo.O “bom” governante Saquele que ‘consegue manter uma corte extravagante ¢ pomposs ao mesmo tempo que contém dentro de certs limites rapacidade dos cortesios. Acxagerada poliginiapraticada ‘pelo monarea®constiui parte importante do sistema. Entre as esposas do principe contam-se filhas de outros principes, de nobres e de plebeus. A presenga dessas ‘mulheres na corte ajuda a manter a coosio politica do domnio ea estabelecer um ‘equilfbrio de poder entre Facgdes adversirias no seio da propria come ‘As dimensGes do palécio eo némero de esposas do principe eram (eso) mais ou menos proporcionais 2 influéncia politica do monasea. O rei Mindon da Birménia,falecido em 1878, tinha, segundo se diz, cinglentae 8s esposas’. saohpa de Hsenwi do Sul, falecido em 1913, tnha dezesses; seu sucessor, sinda vivo, tem nove. O saohpa do Estado de Hsipaw, falecido em 1928, tinha vinte & quatro esposas", Todos esses Estados sio vastos.Parece ques prineipes de Estados pequenos como Méng Mao e Kang Ai raramente mantém mais de duas ou és esposns a0 mesmo tempo’. {A sucessio 20 trono €, em todos os casos, doterminada pela descendéncia Patrilnear, de sorte que para a realeza, e somente para ela linhagem agndtia se tora importante, As “casas reais” dos diferentes Estados recebem 0 nome de patrlinhagens com titlostotémiccs. Assim, as casas reais de Mag Mao, Chanta (Ganta) ¢ Ta Chiang Pa consinuem 1és tinhagene eeparadne da cf do Tigre (Bz0), sendo a de Mong Mao os “Tigres Dourados” (Hkam Hso)"; as de Chefang ¢ de Lungehwan sfo ambas “Vespoes Negros” (Taw), enquanto os Kang Ai sio “Ves- oes Vermelinos” (Tao). Segundo uma font, espera-se que 0 saohpa inelua uma ‘eia-inmi entre suas esposas". Essa era certamente a moda na corte bitmanesa!, ‘mas as geneslogiasdivulgaéas nao corroboram a tese de que se tratade uma pitica chan', Ao contrio, um membro da casa real de Méng Mao asseverou que as patrlinhagens reais so esritamente exégamas que a realeza de Ming Mao nto pode sequer casar-se com @ realeza Chanta porque sao ambas membros do clt do ‘Tigre. Esse ponto tem certa importincia para minha tese geral. E pelo flo de a {Tanna Bimini gusto os Estados Chane olgini er fora do plc 7. Suan (1010, pp. 137s. Shen tates and Kerenn (19), p 58 8. Ver Harvey e Baton (1930), psn 10, haoexplin a obveragiod pagina 6 de. AL, Haeey'e Baton, op p98 12 Mine (1910), p78 1B Scolt e Harman (190), vol 1, Pane Ih p. 98, sa sponser ‘ecestariamene ame do here. 14, Shon Stter ond Karenni (294, 1S, Harvey e Baton, op. itp 98. 1 saohpa de Mong Mao eam “membros do cd Ha ainda principal, mas no OUNSAE CHA realeza chan do Norte se dizer pertencente a patrilinhagens exOgamas, as quais formam um sistema segmentado, que os chefes kachins e as casas reais chans podem casar-se entre si sem contradizer o seu proprio sistema de idéias. ‘Uma familia real poligina representava um trunfo politico, porque dotava 0 soberano de ligagdes pessoais com um grande ntimero de grupos diferentes tanto dentro quanto fora da corte. Mas era também uma desvantagem, porque estimulava rivatidades em tomno da sucesso. Por exemplo, o rei Mindon deixou ao morrer uumas quarenta vidivas vivas, cerca de cento e dez filhos e perto de duzentos netos, qualquer um dos quais poderia reclamar o trono. Thibaw, que Ihe sucedeu, era a esse respeito um candidato dos mais improvéveis, pois era filho de uma esposa divorciada, A sua ascenséo deveu-se as maquinagées da segunda esposa de Min- don, que planejava casar sua filha Supayalat com Thibaw. Enquanto Mindon agonizava, a maioria das esposas rivais ¢ dos meios-itmios de ‘Thibaw foram presos. Um ano depois, oito ou mais deles foram massacrados'*. O comportamento de Thibaw nesse particular chocou o Ocidente ¢ recebeu enorme publicidade, mas averdade é que os assassinatos palacianos sempre fizeram parte dos padres tanto a sociedade chan quanto da birmanesa. As testemunhas do caso ocorrido em 1930” em Méng Mao consideraram ponto pacifico que os cortesios (amat) : Beye (1873), p.193 Ce tmbdm Hesegy (1873), pp. 97¢ 8 Vr tam p 522» Harvey ¢ Baron (193), pp.#1,98 e111 ‘Ver Herts (1912) para a gencalois kasi ts dat. Desde eto persitizem oxcatamentos com membros do meso repo de may chan Sct oar ca chains de aw Haengnovaleda Huktwog, ‘er Kawi Ma Nava (1943) pp 15. EBRE 2 SSTEMAS POLITICOSDA ALTA BIRMANIA 0 antigo (or extinto) trono Mogaung, do qual os chefes kansis derivavam seu dirito de propriedade da terra. O titulo kansié a verso jinghpaw de Hkamt ‘CASAMENTO DE ARISTOCRATA CHAN COM MOGAKACHIN DE STATUS ARISTOCRATICO (© chefe kachin de Mong Hko (mencionado na p. 66) explicava sua conexdo com a casa real de Mong Mzo dizendo que um membro dessa casa real Nga Hkam se estabelecera em MOng koe tornara-s irmio de sangue dos chefes kachins; depois, casats-se com uma moga kachin, € outros de sua linhagem fizeram 0 mesmo. Assim, Méng Mao € Méng Hko tornaram-se {errt6rios aliados, mas no eram poiticamenteinterdependentes. Deve-se notar que, em dois desses exemplos, as ambiguas implicagbes de status de uma relagio mayu-dama entre chan ¢ kachin so evitadas colocando-se as partes contratantes numa telagio “de irmaos”. A fratemnidade de sangue € complementar a0 casamento como meio de cstabelecer uma alianga permanente entre aristocratas chans e kachins. Para os dois ‘grupos, o procedimento consiste em “trocar nomes”. “Listas dos parentes imediatos dos dois ‘irméos’ em perspectiva slo trocadas, memorizadas ¢ incluidas por cada uum entre seus préprios parentes (isto é, o primeiro filho do ‘irmio’ torna-se 0 ‘segundo sobrinho do ‘irmao”etc.)"™, Os nats de familia de ambas as linhagens 830 ‘comuns as duas, as regras de exogamia de um grupo sio adotads pelo outro, os conflitos de inhagem passam a ser de ambos assim por diante. De fato,alinhagem real chan e a linhagem real Kachin tornam-se uma 6. Essa forma de alianga de parentesco, que evita qualquer implicagio de diferenge de status, tem atrativos para as duas partes. Infelizmente, os dados sobre © assunto sdo raros. Seria de esperar que, onde um mung de chefe kachin € claramente reconhecido como um segmento subfeudatério do mung do chefe chan, ‘enti a familia do chefe kachin casaria periodicamente com mulheres da familia do chefe chan e, em retribuicéo, seria aliado militar deste. Por outro lado, onde 0 ‘mung do chefe kachin & independente de qualquer suserano chan, a slianga militar entre os kachins ¢ os chans seria assinalada pela fraternidade de sangue, além de casamentos com terceiros, aliados de ambos. Finalmente, onde aldedes chans pagam tributo a suseranos kachins, nfo haveria de modo nenhum casamentos em nivel aristocrdtico. Tudo isso, entretanto, conceme apenas as relagoes entre chefes chans ¢ achins. A adogio do sistema chan pelos kachins, em nivel plebeu, segue um esquema bastante diverso. Aqui, a norma é que os kachins, individualmente ou em 25. Harvey Baron (1930), p81 26. Idem, idem grupo, entrem para o servigo dos chans como trabalhadores ¢ recebam mulheres em retribuicao. Ao estabelecer-se essim num vale chan, o kachin desvincula-se de sua propria parentela. Adota os nats de sua esposa chan ~ ou seja, torna-se budista ~¢, do ponto de vista kachin, transforma-se num chan (samt tai); mas ingressa no sistema chan no ponto mais baixo da escala como pessoa da casta inferior: 6, virtualmente, um escravo. Os termos chans utilizados para denotar os kachins como tum todo Kha-pok, Kh-nung, Kha-ng etc. tém todos o prefixo kta, que significa “servo” ou “escravo”®”. Na Regitio das Colinas de Kachin, quase todos os chans de classe baixa sio origindrios provavelmente de escravos ou plebeus kachins. tipo inverso de assimilacdo — de plebeu chan a plebeu kachin ~ 6 implau- sivel, pois a vida nas colinas ndo oferece strativos para os homens da planicie, CChans ou birmaneses instalados nas colinas a servigo do governo podem as vezes estabelecer-se ali, casar-se com uma kachin e criar uma familia kachin, mas tais casos séo raros. ‘Uma garota kachin pode, sem diivida, fugir eventualmente com um chan que la conheceu na feira, mas, se 0 fizer, cortard em definitivo os lagos com a sua répria parentela. Néo hé procedimento reconhecido gragas ao qual um homem chan pode pagar o hpaga do preco da noiva por uma moga kachin. De fato, nio pode existir uma relagio mayu-dama entee kachin e chan em nivel plebeu. Devemos, portanto, distinguir claramente entre a adaptagfo do kechin a0 chan em nfvel aristocrético e em nivel plebeu. Aristocratas kachins podem “tomar- se chans” no sentido de se tomarem mais sofisticados e contrafrem uma relago ‘mayu-dama de casamento com uma linhagem chan aristocrética, mas nem por isso renunciam aseu status de chefes kachins. Ao contrério,o seu status de chefe kechin € robustecido: 0 dpice dos ideais gumsa € que o duwa kachin seja tratado como Saohpa por sua contraparte chan. Os plebeus kachins, por outro lado, 6 se tomam chans se deixarem de ser kachins, Em nivel plebeu, o sistema chan ¢ o kachin, embora vinculados economicamente, sao totalmente separados por barteiras de parentesco e de religiéo. Parece-me que aqui chegamos a uma explicacéo do fato de quase sempre terminarem em desastre as tentativas dos chefes kachins gumsa de se tornarem principes chans. Hé uma multidao de exemplos bem documentados: o chefe Pyisa, em Assam, por volta de 1825; 0 chefe Dainpa, em Hukawng, dez anos mais tarde; 0s chefes Gauris de Mahtang (Mong Hka), no periodo 1855-70; o chefe Mong Si, 27. Os kachins,reconbecendo a iplicgho derrogatéia de Khang, aplicam 0 termo aos nagas das egies {oho Chindwine de Patho que eles (os kachins)domiaram smplameste. Khang tambémse excreve ‘ang e kang, 209 SISTEMAS POLIFICOS DA ALTA BIRMANIA cerca de 1885; os chefes Kansis nos iiltimos setenta anos. Para cada um desses casos existem descrigées de chefes individuais como a que se segue, referente a0 chefe Mahtang, tal como era em 1868: [.]um homom de grande inteligéncia autodominio, de conduta calma.e de maneitas ta polidas {quanto qualquer cavalheiro birmanés ou chan. Usao cabelo & birmaness, mas o vestuério 6 uma mistara dos esilos chan e chinés, uma vestimenta que condiz perfeitamente com a sua familia fidade com as duas Iinguas, além da sua propria, o kakhyen' Foram temporariamente bem-sucedidos enquanto individuos, porém, mais do que isso, foram reconhecidos como homens de sucesso; 0s reis birmaneses (€ mesmo 0 governo britinico) recompensaram-nos com guarda-séis dourados € titulos honorificos proprios do status de saohpa®. Entretanto, a estrutura politica que emergiu nesses casos mostrou-se total- mente precéria, Embora um chefe kachin possa algar-se a uma posicio na qual seja tratado por seus iguais como um saokpa, néo the é dado comportar-se como um saokpa de verdade perante seus vassalos, pois, se assim fizer, seré privado do apoio dos outros chefes kachins Aeestabilidade de um auténtico Estado chan depende do fato de que a alianga, politica representada pelas numerosas esposas do saohpa 6 mais forte do que qualquer facgio dissidente que possa surgir entre os préprios parentes imediatos do saohpa. O chefe kachin que aspira & posicdo de saohpa chan néo pode consolidar 4 sua posigio dessa forma, Nao pode aceitar mulheres de seus vassalos chans sem prejudicar a sua posigio de kachin; no pode continuar dando mulheres a seus vassalos kachins (seus dama) sem prejuizo de seu status de principe chan. Em outras palavras, o chefe kachin pode “tomar-se um chan” sem perda de status, mas seus seguidores kachins plebeus no 0 podem, Por isso, ao tornar-se um chan, 0 chefe kachin tende a isolar-se das raizes de seu poder, ofende os principios da reciprocidade mayu-dama ¢ encoraja 0 desenvolvimento das tendéncias revolucio- nirias gumlao. Assim, & primeira mudanca nos rumos econdmicos ¢ politicos, seu poder abalado. Em sua ascensio ao poder, o chefe kachin depende do apoio de seus parentes; mas, se logra éxito, 56 consegue manter a posigao com a ajuda de autoridade externa. Os casos relacionados abaixo ilustram esse ponto. 4, Pyisa. Quando os britinicos tomaram Assam Oriental em 1824, descobriram que 0 chefe kachin (singhpo) mais influente era um Pyisa Gam, Ganhou de um rei birmanés o titulo 28, Anderson (1871), p. 381 29° CL Kawlu Ma Naveng (1943), p. 40; Anderson op. ct, p. 231 ‘GUMSAE CHAN «durante o regime birmanés em Assam, adquirirs,juntamente com outos chefes, vastondmero de escravos assameses. Em sua maior, esses chefes eram, como ele préprio, membros da linhagem Tangai do cli Teasen, mas pertenciam a diferenies sublinhagens, como Wahkyet, Sharaw, Hpungin, Ningkrawp, Lata, Numbrawng, N'Gav, Ningru, Hkawisu, Gasheng, Daibpa etc. Logo que os birmaneses se reiraram de Assam, eclodiu um conflio entre esses chefes {angaisaliados.O rancor aumentou quando os brtinicos os privaram ée seus escravos e, mais tarde, subrairam suas melhores (eras para 0 cultvo do chs. O Pyisa Gam era tratado como chete supremo pelos britinicose, por iso, conquistou a lesldade de seus iguais kachins. Em 1840, todavia, os britinicos haviam concludo ser desnecessiio continuar patrocinando os kachins por mais tempo ¢retiraram seu apoio ao chefe Pyisa como chefe supremo. Finalmente, ‘le morreu num presiio de Assam, onde cumpria pena pepétua pr tentativa de rebeifo™ ', Daihpa. Daihps Gam era um distant iro de inhagem do Pyise Gam acima. Os dois, cram inimigos. Quando os bitinicos deram a Pyisa Gam a posicio de chefe supremoem Assam, o restante da linhagem Tanga transeru seu apoio para Dap. Ele era extremamente bem-su- cedido. Em 1837 haviavistado Ava, fra cumulado pelo rei birmanés de presenese tule, negociara questées frontirgas com os emissérios britnicos. Mas em sua terra, no vale do Hukawng, teve de combater seus préprios parentes numa revolta gumce, Manteve 0 poder durante algum tempo com a ajuda de tropas birmanesas, mas, to logo estas se retraram, por volta de 1842, ele perdeu toda aimporncia”. & Mahiang. No inicio do século XIX, grande parte do comércio ene & Bimfnia e ‘China chegava de barco a Bhamo e dali em lombo de mula erzava as Colinas Kachins até 0 Estado de Hohen# af até Ming Myen (Tengyieh) Os chefee doe tritrne avessados pelae caravaras lucravam bastante com as taxas de pedégio. A “rota que desde tempos imemoriais representava s grande estrada entre a China e 2 Birminia™ passave pelo centro kachin de Lollung (E. 9740: N. 24 20), situado no dominio dos chefes gauri Iakpais da linhagem Aura. Esses chefes se tomaram extremamenteprestgiosos¢ deram a seu dominio o titulo chan de Mong Hk, adotando o nome da linhagem familiar de Munggs isto €, Mong Hk). Em 1868, 0 chefe sénior estava vivendo em Mahtang a cerca de seis quldmetios a leste. Loilung era governada pelo iemto mais velho do chefe de Mahtang. Mahtang e Loilung sfo descritas por ‘Anderson como as dus aldeias mais florescentes que ele vira. Em Mahtang, a casa do chefe, “emboraconstruida segundo a planta que prvalece nesses colinas 6 rodeads por sido muro 4e tjolos e pedas, com um portio no estilo chinés, chega-se até ela por um camino pavimentado que atravessaopétio™. A aparéaciasofistcada dochefe de Mahtang; fi referida acima (p. 270). Os tGmulos dos chefes de Mabtang harmonizavam-se com tudo iso. Eram constrldos de “Iajes macias de granitoe belamente omamentadoseenalhados no estilo chines ‘Afachadaé como o prtico de uma cas, com porta de imitagSo.”™ Maso sucesso dos chefes de Méng Hka valeushes a hostildade de seus irmsos de liahagem, os chefes geuris da regio de Sinlum, que se diciam, um tanto dubiamente, oramo uma da linhagem Aura®, Ao tomar 0 130, Asrefertncins necessiras esto em Leach (1946), capitulo 6 31, Idem, ibid 132, Hannay (1897), p97 33. Anderson (1871, p. 383. 34. Enriquez (1923), p. 128. 35. Hanson (1906), re. uma, Ver também pp. 3155. am sistas POUTICOS DA ALTA BINANIA poder, os britinicas nfo 86 privarim os chefes de Mang Hs de sas taxa de pedo, coma lambém constviram oquateldstrial no terri de seus rivsis,em Sinlum, Em 1920, prem, estes tirarem vinganga. Numa causa ajuizads “perante os anciéosgauris,otibunat do supe tendent-assistente, cm Sinlum, concedeu ao chefe de MahtangvafculaindenizagSo de 30 Rs «© 6 ipaga conra um de seus prpros plebeus que engravidara sua filha". Uma geragao antes, ‘8 mulia tera sido astondmics™; estava completo o eclipse do prestigio de Mong His. d. Meng Si. Nas luas pelo console do vasio Estedo Chan de Hsenw, lutas que se destacam na hstriabirmanesa de 1846a 1887, todasasfcgSeschans rivastinhamstusadeptes tachins. Os chefes kachins de Mong Si cram alias firmes do saofpalegitimo, Hseng Naw Hops, e, embora o proprio Naw Hpa raamentelograsse éxito, Mong Si prosperava. Quando os britinicos chegaram, o chefe kachin de Mong Si possui 0 states de myosa e governava wna populagio de cerca de 12 mil pessoas que abrangiam cem aldeis kachins, vine chans, quinze palaungs ¢ doze chiness, O dominio esiava dividido em vérios suberitéios, “cade um dos ‘gus goverrado por um davea kachin, um psrente do myoza™. Por decisi britinica, fi vm Inimigo de Naw Hpa que aseerdeu a0 ono do Hseawi do Nore, € em nenhum momento os britinicsrecuraram-se aprovar sida de chefeskachns gowernremchans, E1940, antigo domiaio de Mong Si foi fagmentado em perto de uma dizia de chefias separeda. Virios dos chefes envolvidos ainda tentaram macaquear as maneras de um sagkpa chan 2. Kans. A linhagem dos chefes kansischegou ao poder gragas ao fato de ter a posse seconhecida da tera de onde se extii o jade, a cese de Kamaing. Ao longo de todas 25, vicissitudes da histérabirmanesa dos limos ceno e cinglenta anos, nada parece tr prejudi- cago setamenteo comercio do J, € © ehefe Kans ainda auere seus aetios de explora, Por volta de 1940, o ovemo britnico “comprou” os dseitos do chefe kansi, mas garantivtbe ‘uma rend anual. Est ao estou 208 britinios a leaade do chefekansi durene a guera, pois cle se jugava fraudado, Depois da guerra, esteve preso por algim teepo, sob suspeta de colaboracio com os japaneses, Hoe, €quace fo inflente quanto outta e continua perceber seu sabsfio anval do goverto birmants, Os chefeskanss os chins casaram-se ene sims Liveramo bom senso de preservar também suas relagbes de mayudama com os prncipaschetes achins. A moral parece clara: com sorte nos negécios e grande avimero de parentes, ‘um chefe kachin tem chance de tornar-se algo muito proximo de um saokpa chan, Mas, se alcangar esse status, a desvantagem é que sous parentes se mostrarao hostis Por isso, o status usualmente depende do capricho de algum poder superior. 36, Carapes (1929), p15. 31, Kawie Ma Nav (1922), 9.63. 38. Shan Stes cd Karen (1943) p65, Sot Haran, vl 2, verbete "Mong I. Capitulo 9 O MITO COMO JUSTIFICAGAO DA FACCAO E DA MUDANCA SOCIAL Agora deixarei de parte a discussio das diversidades de organizacdo chan kachin ¢ sua permutabilidade © examinarei meu tema principal de um Angulo siferente. Afirmei no capftulo 1 que, na linguagem empregada neste livro, mito e ritual so essencialmente uma coisa 96. Ambos so modos de fazer afirmagbes sobre relagGes estruturais. No capitulo 5, onde descrevo alguns importantes conceitos que ocorrem na ideologia kachin gumsa, desenvolvi esse tema. O que descrevo sio objetos, agSes ¢ idéias definidos culturalmente; 0 que me interessa é a sua impli cagio para as relagdes formais que existem entre pessoas sociais. Até agor procurei enfatizar mais 0 ritual que-o mito —isto é, mais as agGes que as aficmagies verbais que sdo contrapartes da aco, mas jé em alguns exemplos, particularmente quando tentei explicar a diferenga conceitual entre gumsa e gumlao, tive de explicé-la por meio do mito Isso suscita questGes de importancia tedrica, das quais a mais importante ¢ “Como pode a mitologia ser usada para justificar a mudanga na estrutura secial™ Nao seré quase uma contradigao de termos sugerir tal possibilidade? Dentro do complexo geral kachin-chan temos, a meu ver, alguns subsistemas instaveis, Comunidades particulares conseguem mudar de um subsistema para outro, Suponhamos por enquanto que esta anslise seja correta do ponto de vista sociol6gico. Devemos entio perguntar-nos como tais mudangas e formas alterna- tivas de organizagao se apresentam para os kachins ¢ chans participantes? SISTENAS POLIFICOS DA ALTA BIRMANIA Afirmei que a estrutura social é “representada” no ritual. Mas, se as estruturas, sociais com que estamos lidando sao instaveis, essa instabilidade deve também estar “representada” no sistema ritual. Mas seré o ritual, respaldado que & pela tradigdo, sempre e seguramente o elemento mais rigido ¢ conservador na organi- zagio social? Parece-me razodvel dizer que a maioria dos antropdlogos briténicos geral- mente consideram o mito do mesmo ponto de vista que o adotado por Malinowski ‘em seu conhecido ensaio Myth in Primitive Psychology’. Segundo esse ponto de vista, deve-se imaginar 0 mito € a tradicéo basicamente como uma sangio ou justificagio de uma ago ritual, A agdo ritual reflete a estrutura social, mas € também uma recapitulacdo dramatica do mito. Mito e ritual so assim complemen- tares ¢ servem para perpetuar um ao outro, Nao faz parte dessa doutrina que os mitos de qualquer cultura devam ser mutuamente congrventes, mas a adesio a0 restante da teoria funcionalista de Malinowski conduz & pressuposigéo de que efetivamente o s40. No esquema malinowskiano, 0s varios aspectos de uma cultura sio necessariamente integrados para formar um todo coerente; por conseguinte, os mitos de um povo devem ser mutuamente coerentes — para qualquer grupo de pessoas hd apenas uma cultura, um sistema estrutural, um conjunto mutuamente coerente de mitos, Ora, a meu ver é desnecessério postular esse tipo de coeréncia. Acho que os antropélogos sociais tendem apenas a pensar que os sistemas de mitos so cocren- tes internamente porque conservam algo da nogio do etnélogo segundo a qual 0 mnito é uma espécie de histria. Devido a esse preconceito, tornam-se seletivos em sua andlise do mito e tendem a discriminar entre versbes “corretas’ do mesmo conto. No caso da mitologia kachin, no pode haver possibitidade de eliminar as contradigoes ¢ incoeréncias. Elas so fundamentais. Onde existem versoes rivais da mesma histéria, nenhuma versio “mais correta” do que outra, Ao contrério, afirmo que as contradigdes sdo mais significativas do que as uniformidades. Os kachins recontam suas tradigdes em ocasides determinadas, para justificar uma querela, para legitimar um costume social, para acompanhar uma repre- sentagao religiosa. O ato de contar uma histéria tem, portanto, um propésito; serve para validar o status do individuo que conta a hist6ria, ou antes do individuo que contrata um bardo para contar @ histéria, porquanto entre os kachins a tarefa de narrar contos tradicionais é uma ocupacao profissional desempenhada por sacer- dotes e bardos de vérios graus (jaiwa, dumsa, laika). No entanto, se 0 status de “incorretas” 1. Malinowaki (1926). (miro cowo usTiicacho DA FACCAO E BA MUDANCA SOCIAL um individuo é legitimado, isso quase sempre significa que o status de um terceiro 6 denegrido. Entio pode-se quase inferir dos principios bisicos que cada conto tradicional ocorrerd em vérias versGes diferentes, cada uma delas tendendo a corroborar as alegagdes de um direito adquirido diferente. E 6 0 que acontece. Nao existe uma “versao auténtica” de tradigao kachin com a qual todos os kachins concordariam; existem apenas algumas hist6rias que dizem respeito mais ou menos ao mesmo conjunto de personagens mitol6gicas © que fazem uso dos mesmos tipos de simbolismo estrutural (por exemplo, 0 casamento de um homem com a filha de um nat), mas que diferem entre si em pormenores fundamentais de acordo com aquele que narra o conto, Pode-se ver um bom exemplo desse tipo de adaptagao nas duas verses publicadas da histéria da origem do nat Nsu~ espirito do citime as quais ja se fez referencia. O esterestipo kachin de uma situacdo de citime ¢ a relagio entre 0 irmao mais velho eo irmao cagula. Dois etnégrafos kachins, Hanson e Gilhodes, recontam de maneira bastante aproximada o mesmo mito, mas uma ¢ o inverso da outra®, Na histéria de Gilhodes, o irméo mais velho tem ciéme do irméo caculs, que 6 favorecido pelos nats, No fim, o irmio mais velho ¢ afogado num atatide que cle preparou para o irmio cagula ¢ este se tora um chefe poderoso. Ne histéria de Hanson, os papéis so invertidos e o irmao cagula, tendo por longo tempo defrau- dado o mais vetho, éfinalmente afogado no atatide que preparou para o irmao mais, velho. ‘Nem ma nem otra dessas verndes pode ser considerada a mais correts. E simplesmente que, onde existe conflito entre um imo mais velho ¢ um irmio cagula, cada parte pode suspeitar que @ outra esté provocando desgraca por pensamentos de inveja; cada parte pode entio fazer uma oferenda ao nat Tsu. Se é © irmao cagula que faz.a oferenda, a versao de Gilhodes figurard como a sangéo Intica; se € 0 imo mais velho que a faz, a versio de Hanson serviré so mesmo ‘objetivo. O sacerdote-bardo (dumsa) adaptaré suas hist6rias de scordo com a platéia que 0 contratou. Ora, no passado, os tndgrafos kachins nunca levaram em conta esse ponto. Consideraram a tradigéo como uma espécie de histéria malcontada, Quando encontravam incoeréncias no registro, sentiam-se justificados para escolher a versio que Ihes parecia mais plausivelmente “verdadeira” ou mesmo para inventar partes da estéria que pareciam estar faltando, 2 Githodes, pp. 52-54; Hanson, pp. 126,128 histria completa é longa. Todos os ncientes ma verso 4 Hanson ocorrem (Irverios) na versto de Guhodes, prem esta ima tem alguns aspcios que {aliam aa primeira. Ver também p. 220, acim. 0 SISTENAS POLfFICOS DA ALTA BIRMANIA Esse tratamento dos dados torna impossivel representar a estrutura bésica da sociedade kachin como muito simples. Confusdes da pritica so consideradas uma decorréncia do fato de os estépidos kachins nao conseguirem entender sua propria sociedade ou obedecer as suas proprias regras. Enriquez, por exemplo, reduziu todo o sistema estrutural a dois pardgrafos. Exist um equfvoco comum entre os europeus que dizem respeito& existéncia das tribos ‘achins. Na verdade,dificilmente existe um sentimento rial entre oskachins,salvoemconexio ‘coma propriedade as fronteirss,©a azo disso é que se consideram divididos maisem familias ue em tribos. As chamadas cinco trios principais (Marip, Lahtaw, Lahpai, N'Hkum e Maran) sio na realidade cinco familias arisloctiticas que descendem dos cinco filhos mais velhos de Wahkye Wa, o pai reputado da raga kachin, Sua ordem de precedéncia é a apresentada acima, sendo os Marips » familia stnicr. Qualquer homem com um ou out desses nomes pode set considerado bem-nascido; ¢ os duwas ou “chefes” sempre pertencem a essas familias. Outros lis sho subsegdes dos cinco principais, ou si de algum modo parentes dels, Um homem no pode casar-se numa familia que use 0 mesmo sobrenome. Cada familia Kachin sabe exatamente em que familias pode casar-se. Entre as cinco familias atistocréticas, os Marips vio busear suas noivas ene os Marans, os Marans entre os N’Hkums, os N’Hkums entre 0s Lahpais, 05 Lahpais enire 0s Lahtaws e os Lahtaws entre os Matips. ss0,contudo, no 6 apenas uma afirmagio muito genética. As subsegSes de quase todo eff apresentam modificagées das regra de casamento peculiaresa simesmas. Nenhumeuropeu, pelo que sci, jamais as compreendeu, ¢ certamente nenhum kachin as compreende, Qualquer Aiscusséo sobre as leis do casamento toma-se geralmente acitrada, No caso dos dawas, aregra € ainda mais modifieada, porque nao jé néo exisem duwas Marips’ ¢ com relagio aos plebeus existem muitas excegdes menores entre as familias individusis. Contudo, as regras no si0 impostas agora io rigidamente como costumavem sé-1o outrorat Se as incocréncias mitoligicas sio climinadas sob a alegagio de que, afinal, poderia haver apenas um conjunto de fatos histéricos, as incoeréncias na lei e no costume tradicionais sio também forgosamente eliminadas e o esquema inteiro torna-se rfgido e simples. Se, porém, consideramos a mitologia kachin a expressao de um sistema de idéias © ndo um sistema de regras ou um conjunto de eventos histéricos, desaparece a necessidade de coeréncia formal nas vérias tradigdes. As contradigdes entre verses antagonicas da mesma hist6ria adquirem entéo um novo significado. Minha tese aqui pode ser bem ilustrada por uma comparacdo entre as vérias versdes publicadas das est6rias kachins concernentes a relagio entre os primeiros homens ¢ os nats € relagiio entre os antepassados dos principais cls aristocriticos. 3. Isso nfo 6 verde, embora geralmente se acredite se esse o caso enre os kichns da regio de Bhar. 4 Enriquer (1923), pp. 26-27 310 (0 MITO.cOMOUSTIFICAGAO DA FACEAO.E DA MUDANGA SOCIAL O relato do contador de sagas ( jaéwa) de uma genealogia de chefes kachins “desde 0 principio” (ahtik labau gawn) divide-se normalmente nas diversas partes correspondentes a0 sistema dos “ramos” ou segmentos em fungio dos quais € concebida a drvore da famflia, A primeira parte leva a estoria desde a criacdo até © nascimento de Chapawng Yawng — 0 primeiro kachin; a segunda parte vai de ‘Chapawng Yawng até os filhos de Wabkyet Wa ~ que, como notau Enriquez, s40 considerados fundadores de cli; a est6ria entéo se segmenta © fala das vérias fortunas de cada cla independentemente, mencionando 05 varios pontos de seg- mentacio. ‘Somente uma fonte (Kawlu Ma Nawng) nos forneceu extenso material do {erceiro tipo, mas para as dvas primeiras partes da est6ria temos verses antagoni- cas de George, Wehtli, Hertz, Tilhodes, Hanson, Carrapiett, Kawlu Ma Nawng. Conquanto em certos aspectos essas fontes antagOnicas sejam derivadas umas das outras, suas contradigées matuas bastam para ilustrar a minha tese. ‘A primeira parte da hist6ria preocupa-se na verdade apenasem estabelecer 0 fato de que 0 nat Chadip ¢ o Ser Supremo, de que os primeiros seres humanos eram dama «em relagdo aos nats celestes (mu nat) ¢ de que 86 os chefes sio dama em relacio a0 nat Madai. As verses antaginicas diferem entre si apenas no grau de condensagio, {sto é, no numero de geragoes que se interpoem entre dois eventos. A parte da estoria ‘que nos interessa aqui pode ser reduzida ao seguinte resumo (fig. 6): [No prinefpio havia um espfrito criador macho-fémea que dew origem aos vétios elementos do universo. Esse ser, Woiehun-Chyanun, uma espécie de personificaggo da terrae do céu, € agora adorado na forma de Chadip (Ga Nat) -0 Espfrito Terrestre dos chefes. ‘De Woichun-Chyanun descendem: 4, Ninggawn Wa, um eriador meio humano meio divine que “forja” a Terra. Mais tarde assume uma forma mais humana e & conhecido pelo name de Ka-ang Duwa, chefe da tetra do ‘meio, titulo de sabor fortemente chins. (© Ke-ang Duws casa-se com um aligstor (baren) e tem sis filhos, que sio os progenitores dos nungs, dos chineses, dos marus, dos nagas (Kang) e dos jinghpaws. ‘O mais novo desses filhos € Chapawng Yawng, que é 0 primeito genitor dos jinghpaws. 1B. Os Mu Nat ~ os nats celestes que controlam a prosperidade ¢ a riqueza gersl. Os incipais Mu Nat sfo urna série de see, oito ou nove irmBos. Embors haja concordincia quanto 805 nomes da maioria deles, existe uma significative controversia acerca da sua ordem de nascimento, O chefe dos Mu Naté La N’Roi Madai, ea esse Madai Nat somente os chefes podem abordar. © Madai Nat €o filho cagula do Mu Nat. ‘c. Os Maraw ~ esses seres foram descritos na p, 228. Chapawng Yawng, o primeiro jinghpaw, funda uma linhagem chamada Chingra, que so senhores de Chingra Ga (terra original). Um descendente dessa an SISTEMAS POLITICS DA ALTA BIRMANIA eno. ame V [sjeetmmnous | sa ay "Ching we 5 Ht I | 4 wo “sa Sa, coven A» CTs Aigivor OQ = Asc dae chee ben Fig 6. As elagdes entre os seres humanos ¢ os deuses. casa desposa uma filha do Madai Nat chamada Madai Hpraw Nga (Madai Bifalo Branco). Outros descendentes continuam a casat-se com aligatores (baren num- raw). O casamento de Madai Hpraw Nga constituiu o primeiro manau. Todos os jinghpaws aristocraticos so descendentes de Madai Hpraw Nga. Quase todas as linhagens na sociedade gumsa podem reivindicar conexdes aristocréticas, mas os aristocratas atuais afirmam que os plebeus sio total € inatamente inferiores. Existem, por conseguinte, varias estorias que dizem ser os plebeus descendentes de érfios (hkrai). Os descendentes desses 6rffios (que ainda aqui so, as vezes, filhos de aligatores) recebem um status em relagio aos nats celestes menores semelhante ao dos chefes em relagio ao chefe dos nats celestes, Madai, ‘0 mio como JUSTIFICAGAO DA FACGAO EDA MUDANCA SOCIAL Num relato, Hkrai Mai, o érfo, casa-se com Bunghpoi, a filha de Mucheng; ‘outro, casa-se com uma filha do Ka-ang Duwa. Assim, os plebeus so dama em relagio ao nat celeste Mucheng, mas nfo em relagio a Madai; sio também dama em relagio a linha de chefes que descendem do Ka-ang Duwa. Ressaliei em capitulo anterior que o status de parentesco por afinidade dos plebeus em relagéo aos chefes 6 uma espécie de paradoxo na estrutura gumsa. Sintomstico disso 6 que, ao lado de est6rias que fazem os plebeus dama em relagio a0 chefes e/ou aos nats celesies menores, encontramos outras que fazem os plebeus descenderem de um par de érfios que sto 0s tinicas sobreviventes do Dihivio e que no tém nenhuma conexo com os chefes ou os nats’ A historia entra agora em sua segunda parte. Aqui as discrepancias entre ‘verses diferentes tornam-se mais sérias. © arcabouco da histéria € dado acima na citagio tirada de Enriquez. Chapawng Yawng tem um descendente, Wahkyet Wa, Ccajos filhos so os fundadores de importantes lis. A ordem de nascimento desses fithos, como Enriquez bem percebe, deve afetaraordem hierérquica dos els, mas os diferentes clas tm idsias muito diferentes sobre o que seja essa ordem. Sem alterar seriamenteaestrutura da est6ria mitol6gica, cada um dos cinco elas citados assim como virios outros — pode reivindicar ser 0 grupo sénior. Primeiro quanto a patte avcita da esta, Isso esté representado em fornia de diggs ena na Cigate 7. Hé um consenso de que a linha masculina de descendéncia de Chingra Kumja Madai Jan Hpraw Nga acaba por levar a Wahkyet Wa Ma Gam, que 6 pai de uma. série defilhos. Concorda-se também em que 0s primeiros tésfilhos sio respecti- ‘vamente os antepassados de Marip, Lahtaw e Lahpai. Outros clis so considerados, descendentes ou dos itmios cagulas desses 185 ou de um antepassado de Wahkyet ‘Wa por uma linha colateral. Wahkyet Wa 6 geralmentea linha de descendéncia do “filho cagula”. A versio de Kawlu Ma Nawng, que o converte em membro de um ramo do filho mais velho, torna sua esposa principal, Magawn Kabang Jan, um ‘membro da linhagem do “filho caguls”. Passemos agora as variagGes apresentadas por diferentes cls. 5. Minh explicagio bands principaiment CGithodes (1922), pp. 8, 10,13, 4, St, 70.5, 121 165; Herz 194), p. 135 € 136; Anderson ( 4 Bayfield (1679, p. 22. Hf aiorcoeénes rite as visa verses aque poderia parecer rine vis. Porexempla,embora osalgatoes (are) esta ausentes em alguns, so substhulos pr maleres da ehagem Numan fu Nemrweg, Mat ox aligatores si mnie vats deceit como baron numratag)~ “lgsor ‘monsiruoo"=, de mado que as hstras Sf realmente as mesmas. Como ficou resalsdo mp. 228 1, conceis aloigios de Bren umraw e maraw eso ese tment associates. Ale dso, ‘cam se obecrvo ate, x rosio de harem nesemlhase is cinema de "dapio™ (arg) vats ones: Carpi (1929), pp, 12,78, 76695 26; Geers (191) Hanson (113) pp. 11, 2), apace; Kaw Ma Newng (1942, pp. 1 SISTEMAS POLIFICOS DA ALTA BIRMANIA (Cla Marip: Wahkyet Wa teve sete filhos. O mais velho era Marip Ws Kumja, antepassado do Matip régio. O cagula e ume era La N'Hka Hkachu Hkacha, Mas, pate alguns elementos {que foram absorvidos pelos Marips, os Hkachus Hkachas se extinguiram. Assim, os Marips sio ‘cla stnior (Kawlu Ma Nawng, 1942, pp. 2,3, 7). Cli Lahtaw: Wahkyet We teve sete filhos. © segundo filho era sntepassado dos Lahtaw. © filho cagula e wnaera La N’Hka Hkachu Hkacha. Os sltimos extingviram-se em grande parte, ‘mas assimilaram-se a0 ramo principal das Lahtaw. Afora isso, um descerdente de Lahtaw Wa (egundo filho de Wahkyet Wa), chamado Ngaw Wa, casou-se com uma filha do nat celeste Mucheng. Além do mais, as pretensGes dos chefes Marips so falsas, pois todos os Marips “verdadeitos” extinguiram:se ha muito tempo ¢ 0s chefes Marips atuais sio metos pretendentes (Enriquez (1923), p.27; Catrapiett(1929), p. 80; Gilhodes (1922), p. 84; Hanson (1913),p. 14). Cla Lahpai: Wahkyet Wa teveinsimeros filhos, dos quai 0 terceiro foo antepassado dos Lahpais. Wakyet Wa teve numerosss esposas, mas apenas os primeiros tris filhos nasceram de sua esposa principal Magawng Kabang. Portanto, o terceiro filho era 0 wma verdadcira © 08 Lahpais sfo 0 cli sénior. (Néo existe nenhuma versio impressa disso; a primeira versdo foi que eu préprio tegistre.) Cla Nikum: A maioria das pessoas dizem que os Nhkums sio descendentes de um dos {thos mais novos de Wahkyet Wa ~ 0 quarto ou 0 sexto. Isso ¢ incorreto. O primelro Nhkum foi Mehtum Hkum, identificado como If na figura 7, Casou-se com Madai Jan, uma filha do nat Madai, eteve dela um fitho, Tsinghkum Tu (Maisaw Wa Tsinghkum), que se easou com wma Fith do nat solar Gass San). Os Mikes én asin aks eonerGes com & mun wa do que {qualquer um dos descendentes de Wabkyet Wa (Kawlu Ma Navng (1942), pp. 1-6; ef. Hanson (1913), p. 14). Cla Maran: Wahkyet Wa teve oito ou nove filhos,e nto sete. O cagula era La N'Kying Maran Wa Kying Nang 0uma, Os Marans sfo, pois, ld sénior. Altemativamente, em regiGes conde 0s Lahpais afirmam que apenas alguns dos filhos de Wahiyet Wa eram filhos de sua primeira esposa,o argumento fica assim: Wahkyet Wa teve cinco filhos de sua primeira espose, destes o cagula, como uma, era La NTang Maran Wa Ning Chawng (Kawlu Ma Nawng (1942), p-2-3; Hanson (1913) p. 14; Gilhodes (1922), p. 84), (Cla Kareng-Hpauwiz Alguns alegam que 0s Karengs nio sio de modo algum de sangue real. Isso € a coisa mais insultante. Os Karengs slo descendentes de Ill na figura 7. Suas pretens6es sio, entio, semelhantes as dos Nhkums (Carrapiett (1929), p. 2; Kawlu Ma Nawng. (1942), p. 1; Enriquez (1923), p. 27). assim por diante. ‘Todas as variantes acima representam pretensdes a condigdo de cla superior por parte dos principais clas gumsa diferentes. O mesmo tipo de rivalidade ¢ interpretagio conflitante do mito & ainda perceptivel em niveis inferiores de segmentagio de clas, como entre diferentes linhagens do mesmo cla. Por exemplo: aM (0 MITO.CoMO TUSTIFICACKO DA FACGAO E DA NUDANGA SOCIAL cnowa xen J = Ost ‘tram en ieenes veer, seus, A - O “iainaso™ (oanepeads ‘rn WAMAGAM (Wabikyet Sing gab) 1 2 3 ‘ 5 sHteHt7: 2 % MARIPLANTAW —LANPAI QUHKUM) (Pyen-Tingu) hum) (each. (Mp) QMARAN) TSASEN) "Garp “ringmnety bse) (ean) ite be a Fig. 7. A ordem hierérquica dos antepassados dos clés. Os nove filhos de Wahkyet Wa Ma Gam na linha inferior ds genealogia sto os antepassados dos cls principais. Somentes afiliagSo deci dos és primeirosfilhos é geralmenteaceta. Parao restante tanto. mero de filhos ‘como a ordem de nascimento 6 controversa. Hkachu-Hkacha (7) (‘‘os descendentes”) € tum elf ficfcio, mas é mitologicamente importante, j6 que costuma ser considerado como linha do caguls, portanto wma, ‘Ramo Aura da linhagem Chadan do cla Lakpai. Todos os chefes Lahpai dos gauris e dos atsis consideram-se Lahpai-Chadan-Aura. Os Auras sio ainda divididos em virios segmentos 14 fol mencionado (capftulo 7) 0 conilito no século XIX entre os chefes Gaur da regito de Mahtang.e seus vizinhos do grupo de aldeias: ascendéncia; compoe-se sobretudo de batistas, enquanto a E a verséo de Sinlum que o missionério batista Hanson as jor parte de seus ri im relate: ais SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMASIA ““A divisto do terrtério gauri em duas partes ocorreu depois de uma festa de um certo Jauhpa Hiun Wat, que executou uma dupla danga (hting htang manau) para seus filhos gémeos, ‘o:mais novo dos quais era um uma; 0 mais velho dos dois procurou um pats proprio, isto 6, foi para ‘outro pais’ (mung kaga) ¢ por isso chamou seu tersit6rio de Mung Ga, enquanto 0 pafs do .gémeo mais novo foi chamado Uma Ga™, Esse relato deve ser comparado com of testemunhos histricos que cite p. 271 A historia é muito bem elaborada para denegrir o status indubitavelmente superior dos primeiros chefes de Mung Ga (Mong Hka). Nesta conexio, deve ser lembrada quando se 160 relato usualmente excelente de Kawlu Ma Nawng, no qual sua propria linhagem (Kawlu) ¢ comumente considerada um ramo subordinado dessa mesma linhagem Aura, Nahistéria de Kawlu Ma Nawng, um ancestral lahpai basico 6 Numtin La Jawng, que tem cinco esposas ¢ um grande nimero de filhos, especificados como ancestrais de diferentes linhagens Lahpais. A linhagem Aura 6 apresentada como uma — os descendentes do quinto filho da primeira esposa. Eis aqui outro exemplo em que as partes rivais citam mitos diferentes para justificar 0s mesmos fatos, Na regio de Duleng ao sul de Patao, a situacéoempirica ‘mostra que os Dulengs so atualmente gumalao. Seus vizinhos imediatos 20 sul so gumsa A primeira versio € a que cu proprio re gumlao de Duleng: trei, tendo-a ouvido de ancifios (Os Dulengs dizem que sio todos descendentes de um Duleng Hkawp Gumwa, filho mais vvelho de Duleng Yawng Nang, sexto filho de Wahkyet Wa. Esse Duleng Hkawp Gumwra teve ‘um inmio mais novo, Duleng Newng Dungmai, que foi expulso da regio de Dulenge foi viver no vale do Hukawng. Os descendentes de Duleng Hkawp Gumwa assumiram (ilegalmente) 2 ‘chefia. Numa época em que havia dois chefes com os ominosos nomes de Maju Kinji e Hpyi ‘08 chefes foram expulsos. Desde entio oterit6rio de Duleng tem sido governado pelo sistema ‘gumlao, sem chefes. A segunda versio é a fornecida por Kawlu Ma Nawng e deriva claramente de fontes gumsa: (O sexo filo de Wahkyet Wa (antepassado dos Dulengs) foi Tingmaicha Dawng Yawng (N'Dawng Wa). Dele descende o cli dos Tingmaichas ov N'Dawngs, que abrange os Dulengs. 6. Jauhps Hhun Wa (Saohpa Hhun) & um tslo chan paniclarmente espalhafatoso, Pars localizagio dos gai, vor mapa 5 . 126. 7. Ver Hanson (1906), p 4, Ct. também 0 mito que associa os chefesgauris (Lahpa-Auras) aos chefes sis ¢ hpunggans (Scott e Hardiman (1901), Parte T, vo. I, p. 378) Isso também existe em vivias verses anaynicas. 316 (0 MiT0 CowOJUSTIFICAGHO DA FACEAO E DA MUDANGA SOCIAL [No grande manau onde se decidia » precedéncia dos cls e onde os Hkachus Hkechas ‘eam reconhecidos como a linhagem principal os N’Dawngs chegaram tarde, depois que a festa tinha terminado. “Viram que tinham chegado tarde demais para comer a carne e por isso decidiram recolher os bambus espalhados nos quai tina sido cozida a came e lamberam-thes as partes de dentro.” Assim, os gumsa classificam os N'Dawngs no status de cies pias. “Ate hoje as pessoas que se desavém com os N’dawngs podem intulté-os e molesté-los dizendo: *‘Vocds, N’daung, que lemberam bambus nas cabeceiras do Phunghkang’ ™ Em todos os exemplos anteriores os rivais por precedéncia concordam todos sobre quais sejam os princfpios de superioridade; s6 discordam quanto a0s inci- dentes mitol6gicos fundamentais que supostamente sencionam o status atual. Um tipo ligeiramente diferente de conflito surge quando as partes antagonicas discor- ‘dam sobre a “ética” do proprio mito, como, por exemplo, na rivalidade, relatada por Kawlu Ma Nawng, entre porgbes gumsa e gumiao do cla Tsasen. Os principais aspectos do mito relevante jé foram apresentados no capitulo 6 (pp. 251 es.). Ver-se-4 que nesse caso os fatos do mito sto igualmente aceitaveis para ambas as partes, mas hé desacordo quanto as regras estruturais formalmente corretas. Os gumisa afirmam que os filhos de uma “viva recolhida” s8o ipso facto de status hierérquico inferior 20s seus meios-irmaos, de sorte que os descendentes ‘dos primeiros podem ser tratados como plebeus pelos descendentes dos siltimos. ‘Os gumlao, por outro lado, repudiam essa nogdo de hierarquia e dizem que os inmaos ou meios-irmios ¢ todos os outros descendentes patrilineares devem clas- sificar-se igualmente como irméos de cla, A propria esséncia da oposigio gumsa- _gumlao & que, enquanto estes repudiam as distingSes hereditirias de classe, aqueles as glorificam. Como os gumsa validam a diferenca de classes por referéncia a aspectos como casamento levirato e 0 status inferior das esposas secundérias, 6 natural que os gumlao venham a validar scus préprios principios por referéncia a ‘um mito que contesta os gumsa exatamente nesse pont. ‘O exemplo seguinte é semelhante. Também aqui os gumlao nao discutem os fatos do mito, mas contestam as dedugées éticas feitas a partir dele pelos gumsa e, por conseguinte, negam mais uma vez o principio de inferioridade hereditéria de classe. ‘Pyen Tingsa Marip A maiotin das versbes dizem que of descendentes do guint flho (de Wabkyet Wa eram ou Marip ou Pyen Tingsa. A verso gumsa € que fitho mais velho de ‘Wahkyet Wa, Marip Wa Gumja, se casou com Woigawag Sumpyi. Marip Wa Gumje parti para 8 Kawlu Ma Nawng (1942, pp. 2 € 7. Os nomes Maju Kin © Hpy signficam stcerdte azngo" €“etcein” espectivament a7 SYSTEMAS POLITICOS DA ALTA IRMANIA ‘uma longa viagem, deixando sua mulher em casa. Enguanto ele estava fo {eve quatro fos de Pyen Tingsa Tang, quinto lho de Wahkyet Wa e imo cagua de Marip ‘Ws Gumja. Como castigo poressa ofensa, os descendentes de Woigawng Sumpyie Pyen Tingsa ‘Tang, embora classifcados como Marip,sio para sempre plebeus e servos hereditéros dos descendentes de Woigawng Sumpyi,¢ Marip Wa Gumjaé o verdadeio Matipaistocrtco. (0s gumlaoaceitam amaior parce dahistriaacima, mas dzem que foi por culpa do préprio Marip Wa Gumja que sus mulher o tsi, pois ee nio devia t-a deixado sozinha por tanto tempo. Em todo caso, muitos kachins sustentam que, se wm marido fica fora durante muito tempo, perfeitamente natural ue aesposa durma com oirmio do mari. Porsso,osancestrais do subclé Pyen Tings recusaram-s com rexdo a aceitaro status de inferioidade eaderiram 30 ‘movimento gumlao" Essa hist6ria particular parece servir de bandeira para muitos tipos de facgio, Admite-se comumente que os modernos representantes do subcla Pyen Tingsa si ‘membros da linhagem maior dos N’Ding, da qual existe um grande nimero de ramos. Alguns deles so gumiao, outros compreendem chefes de grande influ€ncia. A hist6ria citada acima pode, pois, ser usada ndo sé para realcar a oposigo entre Marips gumsa e gumlao mas também para justificar cisdes entre setores gumsa rivais do cla Marip ~os N’Dings, de um lado, e os Ums, Ningrangs e Rurengs, de outr Penso que todos devem concordar em que os exemplos de tradigao que citei neste capitulo sio, sem divida, mito num sentido cléssico ortodoxo. Mas em cada caso as implicacbes estruturais do mito so totalmente ambfguas e variam de acordo com 08 direitos adquiridos do individuo que esté citando a historia. No capftulo 4, ao descrever os conflitos € as facgées de Hpalang, mostrei como as tradigdes sobre 0 pasado razoavelmente recente sao usadas para fazer afirmagies controvertidas sobre o status relativo de individuos vivos. Chamei essas estérias de Hpalang de “mito”, embora ressaltasse a0 mesmo tempo que nio se ajustam A definigio usual de mito, j4 que os eventos parecem recentes ¢ as personagens sio seres humanos comuns. As estérias que apresentei agora so mitos ‘mum sentido cléssico; tratam de deuses, semideuses e ancestrais de status semidi- vino, ¢.a maioria deles so comuns, em grande medida, a todos os povos de lingua jinghpaw. Nao creio que seja ir longe demais afirmar que, devidamente questiona- do, qualquer contador de sagas jinghpaw (jaiwa) nas Colinas de Kachin daria uma versio da criagéo e do comego da humanidade que seria prontamente considerada como a “mesma est6ria” esquematizada nas figuras 6 ¢7 (pp. 312.€ 315). Mas seria a mesma estéria apenas na estrutura geral, pois os detalhes menores variariam a 8. Idem, pp. 4,563. 10, CY, Kawiu Ma Navng (1942), pp. 68. 38 ‘OMITO.COMO JUSTIFICAGAO DA FACAO EDA MUDANGA SOCIAL fim de ressaltar (por implicagio) o status pessoal do narrador. Noutras palavras, 0 que os testemunhos deste capitulo mostraram é que o mito do tipo ortodoxo varia da mesma forma e pelas mesmas razes que 0 mito do tipo nio-ortodoxo que citei no caso de Hpalang, Minha conclusio é que a definigéo antropolégica usual de mito € uma categoria inapropriada no que concerne aos kachins. As hist6rias sagradas — isto 6, as hist6rias sobre seres divinos que séo largamente conhecidas — nfo tém uma caracteristica especial que as diferencie des histGrias sobre acontecimentos locais de vinte anos atrds. Ambos os tipos de hist6ria tém a mesma fungio ~ 0 ato de cconté-las é um ato ritual (no sentido que dow ao termo) que justifica a atitude particular adotada pelo narrador no momento de conté-la Sou, pois, levado & conclusio de que @ existéncia de um arcabougo comum no 6, em sentido algum, um indicador de solidariedade social ou equilfbrio. Esse onto de vista diverge daquilo que # maioria dos antropélogos tém postulado — pelo menos até muito recentemente. Desde o tempo de Malinowski tem sido Tugar-comum afirmar que 0 mito serve para sancionar o comportamento social e para validar os direitos de individuos grupos especificos dentro de um sistema social particular. Como todo sistema social, por estivel e equilibrado que passa ser, contém tacgdes opostas, ha de haver por torga mitos diferentes para validar os direitos particulares de grupos diferentes de pessoas. O préprio Malinowski per- cebeu isso. a idéia foi defendida por outros~notadamente Fortes" e Firth", Porém. a tese desses autores, se € que os entendo corretamente, é a de que, quaisquer que possam ser as tenses e oposigdes dentro de um sistema social, a estrutura global esté de certo modo em equilibrio, onde as reivindicagdes de um grupo contraba~ langam as de outro. Na anélise de Fortes, por exemplo, o proprio fato de os namoos 0s talis, rivais na sociedade tallensi, usarem uma linguagem comum de expresso ritual parece ser tomado como prova da estabilidade geral do sistema total” que estou sugerindo exatamente 0 oposto disso. Mito e ritual sio uma linguagem de signos em fungo da qual se expressam as pretensdes a direitos e a status, mas € uma linguagem de argumentagio, ¢ nfo um coro de harmonia, Se 0 ritual 6 as vezes um mecanismo de integraglo, pode-se igualmente dizer que ele 6 frequentemente um mecanismo de desintegragao, Uma assimilagio adequadadesse ponto de vista requer, dizia eu, uma mudanga fundamental no atual conceito antropol6gico de estrutura social. 11 Fones (1988). 12, Fith (1932). etehaonce 13, Fores (1945), especialmente pp. 24s a0 CONCLUSAO No primeiro capitulo especifiquei a minha questio como sendo um estudo do modo como estruturas particulares podem assumir vérias interpretagdes culturais © como cstruturas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de simbolos culturais. (© que constatamos é mais ou menos o seguinte. A populacdo da Regio das Colinas de Kachin nio é culturalmente uniforme; nfo se poderia esperar que 0 fosse, porque a ecologia varia. Mas, se pusermos de lado essa parte muito grande da cultura que esté preocupada com a ago econémica pratica ~ ou seja, a totalidade do que Malinowski consideraria o aparato para a satisfagdo das necessidades humanas bésicas -, ficamos ainda com algo, esse algo que tratei neste livro sob 0 nome de acdo ritual. E, no que diz respeito a esses aspectos rituais da cultura, a populagdo da Regitio das Colinas de Kachin é relativamente uniforme. As pessoas podem falar linguas diferentes, usar tipos de roupa diferentes, morar em tipos diferentes de casa, mas compreendem 0 ritual uma da outra, Os atos rituais so modos de “dizer coisas” sobre o status social, ¢ a “Lingua” em que essas coisas s0 ditas € comum 4 totalidade da Regio das Colinas de Kachin. Os birmaneses que administraram a regio antes da chegada dos britinicos compreenderam-no muito bem. Temos um relato, datado de 1835, de um ato ritual que ilustra perfeitamente a minha tese. Apresento um resumo da hist6ria'. 1, Hannay (1837) ¢ Hannay (1847) contém relatos que so substancialmente iBnticos, mas num existem cerlos pormenores que faltam no outro. 321 SISTEMAS POLIPICOS DAALTA BIRMANIA Em 1836 0 vale do Hukawng era administrado pelo governador birmanés de Mogaung, No tocante aos kechins, ele assumira as fungGes ritusis do antigo saohpa chan de Mogaung. [Nessa época eram conservados nos mosieiros budistas de Mogaung trés santuérios portéteis (imagens?), considerados os nats dos ancestrais fundadores da linhagem saokpa Mogaung — rnoutras palavras, eram nats méng de Mogaung. Seus nomes eram Chow Pya Ho Seng, Chow ‘Sue Kap Ha e Chow Sam Loung Hue Mong. Em vida tinham sido tts irmios. Os nomes sto tttulos régios chans ortodoxos. Em todas as ocasibes de ceriménia oficial, ou sempre que 0 governador de Mogaung viajava, os t8s nats eram expostos e “colocados em trés pequenos templos de bambu e transportados sobre as ombros de homens” ‘Em 1836 o govemador birmanés visitou Maingkwan ¢ recebeu a submissfo de eelebri- dades chans ¢ kachins locais. © procedimento era 0 seguinte, “A cerimBnia comecava com 0 sacrificio de um bifalo, o que se fazia por meio de vérios golpes de malho,¢ a carne do animal cera corlada para ser cozida para a ocasifo; em seguida cada Tsobus! apresentava su espada e ‘ua Janga aos espiritos dos trésirmios. [.] Eram feitas a esses nats oferendas de arroz, de carne ‘etc.,e cada pessoa que prestava juramento recebia uma pequena porgio de arrozna mo e,numa postura ajoelnada, com os dedos das mis entrelacados acima da cabeca, ouvia a leitura dos |juramentos na lingua chan € em birmanés. Depois disso © papel no qual os juramentos estavem ‘scritos eram queimados, as cinzas resultantes misturadas com gua e uma xicara chela dessa ‘mistura era dada de beber a cada um dos Tsobuas, que, antes de inget-Ie,reafirmavam sua

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