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Jean-Yves Calvez 1927-2010

O jesuíta que elogiava Marx na crítica ao capitalismo


http://jornal.publico.clix.pt/noticia/19-01-2010/o-jesuita-que-elogiava-marx-na-
critica-ao-capitalismo19272010jeanyves-calvez-18615785.htm

Era um dos maiores especialistas em marxismo, sendo padre. Foi redactor de


importantes documentos sociais católicos, mesmo criticando as falhas da Igreja
nesta área

Um dos livros deste padre, sobre o marxismo, era recomendado pelo antigo Partido Comunista
da União Soviética. Por causa do seu conhecimento sobre o tema, era considerado de
esquerda por muitos católicos - mas foi ele um dos principais redactores de importantes
documentos de doutrina social católica. Filósofo, teólogo, especialista em marxismo, poliglota,
o jesuíta Jean-Yves Calvez morreu segunda-feira, dia 11, em Paris, na sequência de um
edema pulmonar, agravado por complicações cardíacas. Tinha quase 83 anos.
Com menos de 30 anos, em 1956, um dos seus primeiros livros - O Pensamento de Karl Marx,
que continua a ser reeditado e é já um clássico - revelou-se um sucesso. Nessa altura, Calvez
já era jesuíta (entrara aos 16 anos), mas ainda não era padre - seria ordenado a 31 de Julho de
1957.
De tal modo o livro foi bem acolhido que, conta Claire Lesegretain no La Croix, era
recomendado nas células do Partido Comunista Francês. Também o PC da União Soviética
sugeria a sua leitura. O que lhe trouxe desconfianças, mesmo no interior da Igreja Católica: "O
padre Calvez era um homem de consensos, acima de tudo", diz dele o colega jesuíta Georges
de Charrin, citado pelo mesmo jornal.
Os seus interesses e saberes eram múltiplos: além do marxismo e do socialismo, estudava a
economia e o capitalismo, o pensamento social católico, o conflito do Médio Oriente, a
cooperação Norte-Sul, a laicidade e as relações Igreja-Estado...
Nascido a 3 de Fevereiro de 1927, em Saint Brieuc (Bretanha francesa), Jean-Yves entrou no
noviciado dos jesuítas em 1943. Como ele próprio escreveu no livroTravessias Jesuítas,
publicado em 2009, atravessou várias etapas da história da Igreja e do mundo: a II Guerra
Mundial, os padres-operários do pós-guerra, o personalismo cristão e os filósofos
existencialistas, o Concílio Vaticano II a pretender renovar a Igreja, os vertiginosos anos 60 e o
Maio de 68, o longo pontificado de João Paulo II que mudaria o rosto católico, a queda do Muro
de Berlim e o final dos regimes comunistas de Leste.
Tudo isso Jean-Yves Calvez viveu, sobre tudo isso ele reflectiu e deu chaves de leitura. Em
2007, dois anos antes de rebentar a crise em que o mundo está mergulhado, dizia em
entrevista ao P2: "O capital financeiro, divorciado da economia real, é muito perigoso." O
capital financeiro não é o verdadeiro poder do mundo, "mas joga um papel, por vezes, muito
prejudicial", acrescentava.
Acreditava no pleno emprego e na partilha do tempo de trabalho, através da redução do tempo
laboral, tendência que se vem acentuando desde há um século, dizia.
As pessoas no centro
Em 2005, também em declarações ao PÚBLICO, durante uma outra vinda a Lisboa,
confessara-se "tocado" pelo entusiasmo da passagem de milénio e com as mudanças
provocadas pelo 11 de Setembro no mundo. "Talvez não por razões reais, mas pela
interpretação dada por George W. Bush, criou-se uma atmosfera de receio, de inquietude." A
""guerra ao terrorismo" é uma guerra a fantasmas, um pouco assustadora", acrescentava.
Na Companhia de Jesus desempenhou vários cargos de responsabilidade, incluindo o de
provincial de França e de assistente do superior geral, o padre Pedro Arrupe, que revolucionou
a intervenção social dos jesuítas. Na Igreja Católica, deu aulas em faculdades de teologia e
filosofia, criou e dirigiu vários institutos de investigação teológica e política.
Viajante incansável, esteve no Leste europeu convidado por universidades e governos
comunistas, nas Américas a dirigir cursos e a coordenar experiências de renovação da Igreja,
em países da Europa a fazer conferências. Além do francês, falava russo, espanhol, inglês,
alemão, italiano, português (graças às temporadas passadas no Brasil).
Um dos textos fundamentais do pensamento social católico das últimas décadas - a
encíclica Populorum Progressio (1967), do Papa Paulo VI, sobre o desenvolvimento - teve
Calvez como o principal redactor. Mesmo assim, o teólogo e filósofo dizia, ainda há três anos,
que a doutrina social católica deveria falar mais de alguns temas - e citava a necessária crítica
ao capitalismo como "carácter desigual da gestão do capital". E alertava para a necessidade de
políticos e empresários católicos serem formados na doutrina social, para aumentar a
consciência do bem comum. "Demasiado poucos homens intervêm para determinar o destino
dos outros, por exemplo nas empresas. A maior parte das pessoas - mesmo quem tem
responsabilidades - depende do capital financeiro exterior, que age sobre elas", afirmava.
Era esta realidade que o levava a dizer que as críticas de Karl Marx ao capitalismo
permaneciam "válidas". Em Mudar o Capitalismo, de 2001, defendia que "é possível encontrar
meios de tornar o capitalismo mais igual, menos divisor da sociedade". E explicava: "O
capitalismo actual tem como grande defeito matar a iniciativa, a criatividade, engendrar a
passividade, porque tudo está determinado a partir do capital, da finança. E as pessoas -
incluindo os chefes das empresas - são esmagadas por este poder demasiado anónimo. Esse
é o grande defeito." Jean-Yves Calvez queria as pessoas no centro.

TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2010

Jean-Yves Calvez [1927-2010]

O filósofo e teólogo Jean-Yves Calvez faleceu ontem de manhã. Tinha 82 anos. Em


2005, António Marujo entrevistou-o para o Público:

O Capitalismo tem como grande defeito matar a criatividade

Esteve com frequência no Brasil, onde aprendeu Português. Com 77 anos, o padre
jesuíta francês Jean-Yves Calvez tem uma vasta obra no campo da filosofia política
e da doutrina social católica. Esteve esta semana em Lisboa, onde participou nas
jornadas sobre o emprego, promovidas pela Fundação Ajuda à Igreja Que Sofre.
"Tocado" pelo entusiasmo da mudança de milénio, diz que, com o 11 de Setembro,
"o mundo mudou". "Talvez não por razões reais, mas pela interpretação dada por
Bush, criou-se uma atmosfera de receio, de inquietude", afirma, recordando que
estava em Washington a 11 de Setembro. "A 'guerra ao terrorismo' é uma guerra a
fantasmas. É um pouco assustadora."
PÚBLICO - Propõe, como alternativa ao abono universal e à redução do tempo de
trabalho, a busca de novas formas de trabalho, de serviço "pessoa a pessoa". Quer
explicar?
JEAN-YVES CALVEZ - As necessidades deslocam-se na direcção de serviços mais
pessoais, de todo o género: cultural, médico, etc. [Esta verificação] será mesmo a
resposta a quem diz que já não há trabalho - uma hipótese insensata, pois seria
dizer que não há mais rendimentos de trabalho e que não haveria pessoas para ir
comprar nos supermercados, uma impossibilidade.
Todos os processos puramente materiais são fáceis de automatizar, quando há
meios mecânicos ou informáticos. Como dispomos cada vez mais desses meios, é
evidente que o vamos fazer. Devemos esperar que muitas coisas passem a estar
automatizadas. E não creio que haja marcha-atrás, nunca se regressa, neste tipo
de coisas, ao que existia.
P. - O que alguns lamentam...
R. - Haverá gente que dirá: que pena que já não seja como era... Não o lamento de
todo. Cada vez mais, à medida que as necessidades materiais forem sendo
satisfeitas, as pessoas têm outras necessidades e são capazes de as manifestar.
No início, terão a impressão de que não há respostas. É o que dizem alguns velhos
com necessidades reais de serviços que não encontram ou estão mal organizados...
Isso quer dizer que é preciso organizar esses serviços, que as pessoas se
encontrem para isso, que queiram trabalhar criando organizações, cooperativas,
empresas.
P. - Isso só depende dos indivíduos?
R. - Há alguma iniciativa privada, mas será necessário haver também iniciativa
pública, porque muitas destas questões dependem de decisões do poder político.
P. - Por exemplo?
R. - Ao nível da educação: preparar as pessoas para estas novas tarefas supõe que
a educação pública compreenda isso, [o que acontecerá] apenas quando as
autoridades o forcem.
P. - Significa que acredita numa sociedade de pleno emprego?
R. - Sim. O tempo de trabalho - que já diminuiu muito desde há um século -
continuará a reduzir-se. Mas o facto de diminuir não quer dizer que não haja
trabalho para toda a gente.
P. - É preciso partilhá-lo?
R. - Claro. Se o trabalho for correctamente remunerado, as pessoas não terão
muito interesse em trabalhar 60 horas por semana. Simplesmente, há situações em
que, por má organização, as pessoas trabalham demasiado tempo.
P. - Esse é um caminho possível?...
R. - Creio que sim. A população actual não tem o desejo de trabalhar muito tempo
e, se não conseguirmos encontrar um sistema que partilhe suficientemente o
trabalho, não se adaptará. A condição é que as pessoas sejam formadas nesse
sentido.
P. - Foi um dos primeiros teólogos a debruçar-se sobre Karl Marx. O pensamento de
Marx ainda é actual?
R. - É actual de muitas maneiras. Não se poderia compreender nada do século XIX
e XX sem conhecer o pensamento de Karl Marx. É verdade que a ideia messiânica
em Marx foi muito abandonada - com razão. Mas há uma grande diferença entre a
sua visão messiânica da história, muito débil, e as análises [que Marx faz] da
economia e a crítica do capitalismo, [que] permanecem fundamentalmente válidas.
A situação a que se referenciava Marx é bem diferente da de hoje, mas as grandes
linhas dessa crítica são fundadas ainda hoje.
P. - Foi nessa perspectiva crítica que escreveu o seu último livro, "Mudar o
Capitalismo"?
R. - Sim, mesmo se não me ocupo muito de Marx, mas da realidade
contemporânea. É possível encontrar meios de tornar o capitalismo mais igual,
menos divisor da sociedade. É evidente que há uma preocupação semelhante à de
Marx, na sua época, mas há uma grande diferença: Marx tinha a impressão de que
o capitalismo era de todo incapaz de fazer sair as pessoas da miséria. Eu penso
que, hoje, ele é capaz.
O capitalismo actual tem como grande defeito matar a iniciativa, a criatividade, de
engendrar a passividade, porque tudo está determinado a partir do capital, da
finança. E as pessoas - incluindo os chefes das empresas - são esmagadas por este
poder demasiado anónimo. Esse é o grande defeito.

Há Resistências Políticas à Mensagem Social da Igreja

A mensagem social católica chega às pessoas, mas há resistências a ela, também


ao nível político, afirma o padre Calvez. E o que o Papa diz no campo da moral
individual não é muito seguido...
PÚBLICO - Tem um livro intitulado "Os Silêncios da Doutrina Social Católica"...
JEAN-YVES CALVEZ - Sim, silêncio é uma palavra muito forte. Não são silêncios
voluntários...
P. - Nele diz que a Igreja deveria fazer propostas concretas sobre o emprego, por
exemplo. Não há o risco de confundir essas propostas com as dos partidos
políticos?
R. - Não creio. Se as coisas forem apresentadas de modo discreto, sem vontade de
impor, mas de sugerir e encorajar as pessoas a procurar, penso que isso não trará
dificuldades... Sei que cada vez que fazemos proposições em público, confrontamo-
nos sempre com os partidos - e porque não?
P. - O Papa, a Igreja, falam do perdão da dívida externa, condenam a corrida aos
armamentos, defendem a reforma agrária. Mas este discurso não chega às
pessoas. Há um problema de transmissão da mensagem social?
R. - Ela chega às pessoas mas encontra, evidentemente, resistências...
P. - Ao nível político?
R. - Também ao nível político. Citou a reforma agrária: o Vaticano produziu um
documento sobre o tema, muito firme. Mas tardou em publicar esse documento,
que estava em preparação há muito tempo. Sabia-se que a publicação poderia
provocar reacções de governos importantes para a Igreja - por exemplo, o Brasil.
Só se publicou o documento após a última viagem que o Papa fez ao Brasil, no
tempo do Presidente [Fernando Henrique] Cardoso. Ali, o Papa falou, de viva voz,
muito firmemente. E depois publicou-se o documento.
Isto quer dizer que as autoridades da Igreja estão dependentes das relações com
governos. É inevitável. O momento em que as coisas podiam ser ditas não era
qualquer um. Se se tivesse apresentado de longe, a partir de Roma, "aí está um
documento", poderia esperar-se uma reacção negativa das autoridades brasileiras.
A que serve isso? Criaria uma espécie de conflito, que não serviria para nada.
P. - Sobre questões de moral individual, como o aborto, se o Papa diz alguma coisa,
toda a gente fala...
R. - Sim, mas ao mesmo tempo, sobre esse tema, ele não será facilmente seguido.
Esse é um domínio em que as declarações do Vaticano, nos últimos anos, não
tiveram muito em conta as obrigações dos homens de Estado. Mesmo se eles estão
em harmonia com as posições da Igreja, são obrigados a ter em conta a opinião
real num país. Por consequência, não podem fazer qualquer lei.
A Igreja admitiu sempre que não há identidade entre a moral e o legal. As pessoas
que fazem leis estão obrigadas a ter em conta muitos factores e opiniões
importantes para o bem comum, do qual elas são responsáveis. Infelizmente, nos
últimos anos, o Vaticano não foi muito sensível a este aspecto do bem comum.
P. - Não há também um paradoxo entre ser contra o aborto, por exemplo, e não
defender com o mesmo vigor as condições de vida e de trabalho dignas para as
pessoas?
R. - Não, penso que há o mesmo vigor...
P. - É então um problema mediático?
R. - Talvez. Porque no plano mediático, é verdade que se dá uma importância
extrema a todas as declarações que se referem a questões morais, de ética da
vida, etc. Isso deforma o equilíbrio das declarações, porque as autoridades da
Igreja são muito sensíveis ao problema do emprego. Mesmo se não indicam
soluções, são muito sensíveis.

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