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Transcrição do segundo capítulo do livro Contracultura Através dos Tempos – Do

Mito de Prometeu à Cultura Digital (2004), de Ken Goffman e Dan Joy , Uma
outra forma de excelência humana, tópicos Definindo contracultura, O que é hip?,
“Contracultura” questionável, Princípios definidores da contracultura,
Características quase universais da contracultura, A contracultura ainda é contra?
( respectivamente as paginas 45 à 58 e 62 à 64 ). (Rio de Janeiro: Ediouro 2007)

Capítulo Dois

Uma outra forma de excelência humana


Definindo contracultura

Há um diferente tipo de excelência humana (...) uma concepção de humanidade


como tendo sua natureza concedida a ela por outros propósitos que meramente
abnegação. (...)
Não é reduzindo à uniformidade tudo o que é individual neles, mas cultivando e
buscando isso (...) que os seres humanos se transformam em um nobre e belo
objetivo de contemplação (...) e o que quer que esmague a individualidade é
despotismo, qualquer nome que se dê a si mesmo e não importando se afirma estar
cumprindo a vontade de Deus ou as exigências dos homens.
John Stuart Mill, Da Individualidade

De certo ponto de vista, a contracultura parece ser um desafio à própria noção de


história. Para os que se rebelam contra a tradição, os exploradores que buscam novos
territórios conceituais e (em alguns casos) os defensores do Eterno Agora, a história
parece ser, na melhor da hipóteses, exóticas e, na pior, o inimigo.. No final das contas, o

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conceito ocidental de história como uma narrativa continuada, definida basicamente por
grandes líderes, estruturas sociais variáveis e as mutáveis fronteiras entre nações-estado
antagônicas parece que quase explicitamente projetado para nos amarrar a uma visão
hegemônica do potencial (muito limitado) da humanidade. Nesse contexto , o registro
histórico conspira para nos convencer de que o predomínio de comportamento não-
contraculturais, como conformismo e autoritarismo, é o que define a humanidade.
Alguma vezes somos tentados a dizer que na verdade, aqueles que recordam a história
são condenados a repeti-la.
Mas como a cultura ocidental, e particularmente suas gerações mais jovens, se
encaminha rapidamente para épocas crescentemente não-históricas, o quadro não parece
agradável. Para começar , a amnésia histórica descontextualiza situações passageiras no
mundo contemporâneo, produzindo resultados negativos. Assim, podemos, por
exemplo, reagindo ao rancor dos colonizadores (ou ex-colonizadores) com
incompreensível irritação, como se sua falta de passividade fosse um defeito de caráter,
uma grosseria inexplicável que algumas vezes atinge o grau da violência. Ou nós (nos
Estados Unidos) podemos simplesmente aceitar o senso comum de que nossa nação-
estado é “a terra da liberdade”, sem realmente compreender os direitos em nossa
Constituição e nossa Declaração de Direitos e as formas pelas quais eles foram
ampliados e reduzidos.
No nível da contracultura, encontramos muitos jovens influenciados pelo hedonismo
hippie, mas sem nenhuma verdadeira consciência dos princípios filosóficos mais
profundos daquele movimento. . E, o que é ainda mais perigoso, eles talvez consumam
as plantas sagradas e as substâncias químicas do movimento sem terem as informações
práticas adequadas acerca da segurança , ou sobre integrarem harmoniosamente essas
experiências em suas vidas cotidianas.
Essa busca da não-historicidade chega mesmo a privar alguns dos movimentos
contraculturais jovens de profundidade e humanidade. Ao longo de 1990, a Geração
X,/tecnocultura abraçou o culto ao novo. A revista Wired, soando exatamente como o
Camarada Mao durante a violenta Revolução Cultural na China dos anos 1960,
celebrava a rápida mudança tecnológica como um “furacão” apagando todas as
lembranças. Essa rejeição de todas as coisas passadas teve a sua apoteose naquele
glorioso surto de exuberância contracultural conhecido como o movimento rave. Em
meados dos anos de 1990, a arma mais devastadora do arsenal dessa cultura era a frase
“Era assim a cinco minutos”.
Ao ignorarem a história, mesmo a história recente, os contraculturalista do “culto ao
novo” se privam de coisas esplêndidas – como as maravilhosas músicas expansoras da
mente de John Cage e Iannis Xenakis ou as afirmações intensamente contraculturais de
Beggars Banquet, dos Rolling Stones, ou Never Mind the bollocks here’s the Sex
Pistols, dos Sex Pistols, ou mesmo o impressionante Premium Millennium Tension, de
Tricky que hoje parece ter acontecido há looongos cinco anos. Claro que toda geração
gosta de achar que inventou a sua própria cultura rebelde e , como esse livro irá
demonstrar, na maioria das vezes ela está certa. O espírito contracultural fundamental se
reinventa perpetuamente de formas imprevisíveis, estilos chocantes e novos modelos.
Ainda assim , muitos jovens contraculturalistas do século XXI poderiam lucrar se
aprendessem a história de seus antecedentes do final do século XX, e todos nós nos
beneficiaríamos se aprendêssemos sobre os movimentos contraculturais das
profundezas do tempo.

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O que é hip?

I walk forty-seven miles of barbed wire/ Use the snake for as necktie
Bo Diddley

Pouquíssimas pessoas têm uma definição pratica e adequada para o que seja
contracultura, mas têm certeza de que sabem reconhecer uma quando a vêem. Na
verdade, quando Theodore Roszak popularizou a expressão em seu livro The Making of
a Counter Culture, de 1969, ele literalmente podia ver quais eram as pessoas que se
encaixavam em sua concepção. Qualquer pessoa do sexo masculino com cabelos
compridos e, provavelmente, uma barba, vestindo jeans esfarrapados, uma bandana e
talvez uma camiseta estampada quase certamente era um contraculturalista. Qualquer
mulher com os cabelos ainda mais longos, vestindo a mesma coisa que o rapaz, ou,
opcionalmente, um vestido de camponesa, também provavelmente era uma
contraculturalista... Em outras palavras, praticamente todo mundo que naquela época
estava na faculdade. Essas pessoas representavam uma síntese do movimento hippie –
dedicado a fazer experiências com drogas que expandiam a consciência e a seguir a
onda, e ligado ao movimento da Nova Esquerda/pacifista - , que se dedicava a desafiar a
autoridade, acabar com o imperialismo e a guerra e a um mal definido comunalismo.
Do ponto de vista de Roszak, aquela era uma revolta contra a civilização alienante,
mecanizada e excessivamente materialista, em prol de uma forma de vida mais natural,
intuitiva, harmoniosa e generosa. Mas para outros , como Tim Leary e (em menos grau)
os yippies e os diggers, eles estavam se rendendo antecipadamente a um mundo no qual
a tecnologia nos libertava da miséria humana e do trabalho alienante, garantindo-nos
uma vida de espontâneo e divertido autoconhecimento e, até mesmo, auto-indulgência.
Qualquer que seja a visão ( e havia milhares de outras) da contracultura dos filhos do
baby boom que escolhamos, podemos estar certos de uma coisa: Newt Gingrich acredita
que ela destruiu a América.
Claro que características culturais que são inicialmente vistas como desafiadoras,
novas ou mesmo revolucionarias podem acabar se revelando rançosas – uma caricatura.
Hoje , um cara de cabelos compridos pode muito bem ser um caipira reacionário, e o
Zeitgeist contracultural hippie foi superado por uma cultura alternativa mais ampla e
eclética formada por subculturas contraculturalmente afetadas. Punks, artistas de
vanguarda, o movimento hip-hop, ativistas antiglobalização e anarquistas Black Bloc,
tecnoculturalistas leitores de Wired e hackers, ligados na cultura clubber, rappers
conscientes , psicodelistas educados, Burning Man, modernos primitivos com implantes
e piercings de aço pendurados em cada órgão, habitantes do submundo sexual, pagãos,
acadêmicos pós-modernos, funkeiros, adeptos da New Age, riot grrrls*, desertores,
freqüentadores de raves, dreadsters, zen-budistas, gnósticos, iconoclastas solitários,
vagabundos, poetas performáticos, góticos, abraçadores de árvores, libertinos e
libertários – todos algumas vezes definidos (e autodefinidos) como contraculturais.
Como se essa lista de supermercado de “doidões” não fosse longa o bastante, alguns
grupos tradicionalistas – cristãos fundamentalistas e grupos judaicos ortodoxos –
começaram a se referir a si mesmos como contraculturas. O Webster’s New World
Dictionary define contracultura como “uma cultura com um estilo de vida que é oposto
à cultura dominante”, portanto, não surpreende que grupos que se opõem
profundamente ao pluralismo, ao aborto, ao racionalismo, à liberdade sexual, à ciência,
a auto-indulgência materialista, à liberdade de opinião e a muitos outros aspectos de
nossa cultura que são mais ou menos dominantes possam ver s si mesmos como

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contraculturais. De acordo com essa definição, até mesmo muçulmanos praticantes da
jihad que vivem em países ocidentais constituem uma contracultura.

* Movimento iniciado na década de 1990 , por zines e bandas femininas, que repudiava o sexismo. (N. do
E.)

“Contracultura” é questionável

Embora possam ser encontradas poucas semelhanças entre alguns elementos


contraculturais e esses grupos fundamentalistas , nós rejeitamos a definição de
contracultura simplesmente como um estilo de vida que difere da cultura dominante.
Claramente , definição de contracultura é questionável, mas nós sustentamos que,
quaisquer que sejam as diferenças, havia uma intenção mútua específica que motivou
praticamente todos os que se definiram em termos contraculturais até os últimos anos.
Eles eram todos antiautoritaristas e não-autoritários. Nossa definição é a de que a
essência da contracultura como um fenômeno histórico perene é caracterizado pela
afirmação do poder individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar os ditames
das autoridades sociais e convenções circundantes, sejam elas dominantes ou
subculturais. Afirmamos ainda que a liberdade de comunicação é uma característica
fundamental da contracultura, já que o contato afirmativo é a chave para liberar o poder
criativo de cada indivíduo. ( Ao longo de todo este livro, faremos afirmações acerca da
natureza da contracultura. Reconhecemos que essas observações são baseadas em
nossos pontos de vista, e que outras visões são possíveis. Contudo, fazer esse tipo de
ressalve para cada uma de nossas afirmações seria algo cansativo tanto para o leitor
quanto para os escritores.)
Fenômenos culturais são entidades altamente multifacetadas . Esse fato determina
enormes desafios para qualquer esforço de definir e generalizar movimentos culturais.
Essas dificuldades são descritas por Roszak no prefácio de The Making of a Counter
Culture:

Eu tenho colegas acadêmicos que chegaram a ponto de tentar me convencer de que


nunca existiriam coisas como “o movimento romântico” ou “a Renascença” – não
se você começar a vasculhar os microscópicos fenômenos da história. Nesse nível,
a tendência é ver apenas diferentes pessoas fazendo muitas coisas diferentes e
pensando muitas coisas diferentes. (...) Certamente seria muito conveniente se
esses Zeitgeists teimosamente ectoplásmicos fossem movimentos organizados,
com um quartel-general, uma diretoria e um arquivo de manifestos oficiais. Mas é
claro que eles não são. Assim , você é obrigado a abordá-los com uma certa cautela
, esperando que a a maior parte das generalizações passe pela peneira, mas sempre
torcendo para que a maior parte do que é sólido e valioso permaneça em vez de se
perder.

Os problemas dos quis Roszak se queixa se multiplicam à medida que tentamos


definir não apenas um único acontecimento cultural, mas toda uma categoria de
acontecimentos culturais históricos.
Uma olhada rápida no sumário deste livro pode facilmente causar confusão, dado a
ampla gama de fenômenos sociais que nós definimos como contraculturais. As
contraculturas que escolhemos são extremamente diferentes e disparatadas – por
exemplo: é difícil ver uma relação imediata entre a Idade da Razão, os sufis e os

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surrealistas. Alguns movimentos são vistos como sendo fundamentalmente espirituais,
enquanto outros são conhecidos por suas contribuições artísticas, políticas o u filosófica.
Algumas contradizem as outras em certos aspectos. Os socráticos introduziram o
raciocínio dedutivo, enquanto os dadaístas o detonaram. Os libertinos do século XVII
debochavam da espiritualidade, enquanto os sufis a buscavam de uma forma algumas
vezes libertina.
Essa diversidade por vezes contraditória pode levar alguns leitores a concluir que nós
basicamente reunimos todos os movimentos culturais e políticos que achamos legais ou
interessantes, e chamamos isso de uma história da contracultura. Não é verdade. Os
movimentos contraculturais , não importa quão diferentes uns dos outros possam
parecer, surgem de diferentes combinações dos mesmos princípios e valores.

Princípios definidores da contracultura

Os humanos são seres multifacetados , teimosamente difíceis de enquadrar, e os tipos


contraculturais costumam estar entre os mais difíceis de definir. Ainda assim, existem
certos princípios fundamentais , ou metavalores , que distinguem contraculturas da
sociedade hegemônica, bem como de subculturas, minorias étnicas e religiosas e grupos
dissidentes não-contraculturais. As características fundamentais da contracultura são
três.

As contraculturas afirmam a precedência da individualidade acima de convenções


sociais e restrições governamentais.
As contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também
sutilmente.
As contraculturas defendem mudanças individuais e sociais.

A individualidade é algo fundamental para a contracultura. De certa forma , nós


poderíamos facilmente ter batizado este trabalho de uma história de livres-pensadores e
do livre - pensar. Defender o primado da individualidade implica estimular, encorajar e
defender a expressão pessoal , não apenas no sentido de “liberdade de opinião”, mas
também no que diz respeito a crenças , aparência pessoal, sexualidade e todos os outros
aspectos da vida. O espírito contracultural rejeita apenas aquelas expressões de
individualidade que claramente oprimem os outros.
Nossa visão de contracultura centrada na individualidade é, reconhecidamente, repleta
de riscos. Muitos dissidentes e contraculturalistas passaram a associar a palavra
individualismo com avareza, egoísmo , falta de compaixão e à solidão existencial que é
fruto da rejeição da comunidade ( ou da rejeição pela comunidade). A individualidade
contracultural não significa puro egoísmo. A individualidade contracultural é uma
profunda individualidade, partilhada. Ela inclui pessoas e culturas que seguem o
conselho socrático de “conhece-te a ti mesmo”. Essa distinção traz `a mente uma
entrevista que eu (Ken) certa vez li em um jornal nanico com o cineasta de vanguarda
Kenneth Anger. Comentando a famosa frase de Aleister Crowley “Faze o que decide ser
o conjunto da lei”, Anger disse (estou parafraseando) que isso não significa que você só
deva fazer o que quiser. O objetivo da investigação encantada é encontrar a sua

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“verdadeira motivação” por intermédio de uma auto-exploração profunda e disciplinada.
Aquele que procura precisa descobrir qual ´q a sua vontade, antes de fazê-lo.
Apesar dessas definições , nossa interpretação da contracultura inegavelmente
permanece um pouco libertária (com “l” minúsculo) . Não iremos discutir aqui se o
direito de indefinidamente acumular bens pessoais e riqueza é uma garantia
fundamental da liberdade individual ou se, na verdade, é um obstáculo e ela. Mas
afirmamos que , da mesma forma que rejeitamos o simples egoísmo, também excluímos
de nossa definição o puro comunalismo. As culturas que impedem ou desencorajam o
individuo de explorar plenamente e expressar seu autêntico ser – seja por coerção direta,
seja por pressão populista de seus colegas – não podem ser consideradas contraculturais.
Portanto, a participação nas contraculturas mais refinadas normalmente não exigem que
os indivíduos façam, digam, pensem ou acreditem em algo especifico. Tudo o que é
exigido é um compromisso com o processo de eliminar a submissão à autoridade
externamente aplicada e internamente inculcada, de modo que a verdadeira
individualidade possa florescer.

Outra característica básica das contraculturas – que é fruto direto do seu


individualismo – é que elas desafiam o autoritarismo tanto de forma obvia quanto
sutilmente. Algumas contraculturas podem desfiar o explicito controle dos indivíduos
pelo Estado ou por poderes religiosos. Mas todas desafiam o autoritarismo mais sutil
exercido por sistemas de crença rígidos, convenções amplamente aceitas , paradigmas
estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não.
A ampla gama de fenômenos autoritários que as contraculturas desafiam é sugerida
pelo continuum do movimentos contraculturais do Novo Mundo, desde o levante
democrático americano até as experiências literárias da Geração Perdida, passando pelo
transcendentalismo da Nova Inglaterra. O primeiro desses episódios eliminou a
autoridade do Império Britânico sobre suas colônias. Os transcendentalistas libertaram a
espiritualidade individual da autoridade da religião organizada. E os românticos da
Geração Perdida desafiaram a tirania da sintaxe sobre o pensamento, subvertendo as
convenções literárias em busca de uma linguagem natural da mente.

O humanismo antiautoritario d contracultura é algumas vezes afirmado por intermédio


de rebelião explicita e revolução. Mas, diferentemente da maioria dos revolucionários, o
revolucionário contraculturalista não quer estabelecer um regime autoritário alternativo
no lugar do antigo, e sim buscar crescente liberdade e fortalecimento democrático para o
maior número de pessoas.
Alguns indivíduos e grupos contraculturalistas identificam a si mesmos como
anarquistas. Hoje, o anarquismo geralmente é associado a situações caóticas e
violentas , períodos durante os quais - na ausência de uma autoridade – as pessoas se
engajam em atividades destruidoras, “ilegais”, que tornam difícil, ou mesmo impossível
que a maioria das pessoas consiga o indispensável para viver. Como dizemos, por
exemplo, “O Iraque está em uma situação de anarquia”, sabemos que isso não é bom. A
crença comum é de que um anarquista é uma pessoa que defende a “ausência de
governo”. Isso geralmente é verdade , mas a expressão “governante” seria mais precisa,
já que pode haver regras aceitas (preferencialmente por consenso) e formas de obrigar
ao cumprimento dessas regras quando absolutamente necessário.
Os anarquistas acreditam que as pessoas podem viver melhor e organizar suas vidas
sem hierarquias ou coerção. Há dezenas de teorias acerca de como esse ideal pode ser
atingido e qual forma ele deveria assumir. O anarquismo é a própria síntese de filosofia
política não-autoritaria. A duvida é se ele é factível, particularmente no caso de grandes

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populações. Muitos antiautoritaristas acreditam que tentativas idealistas de colocar em
prática o puro anarquismo em larga escala se mostrariam desastrosas simplesmente
levariam as massas a clamar por um renovado e forte governo autoritário. A maioria
preferiria limitar severamente a hierarquia e a coerção utilizando mecanismos
democráticos e de liberdade civil grandemente ampliados.
Outra característica básica de todos os episódios contraculturais é um entusiasmo por
mudanças pessoais e sociais. Esse principio pode ser formulado de uma forma quase
abstrata, como na descoberta do filósofo taoísta Lao-tsé de que a mudança é a única
constante ou na afirmação semelhante do grego Heráclito de que “tudo muda, nada
permanece”. Na contracultura taoísta, essa sabedoria era associada a uma política
anarquista, mas basicamente passiva. Outros contraculturalistas preferiram incorporar o
principio da mudança a ações concretas em larga escala.
No nível individual, os contraculturalistas demonstram mutabilidade : um processo
fluido, camaleônico de perpétua transformação na identidade pessoal, nos interesses e
nos objetivos almejados. Os contraculturalistas realizam apaixonadamente aquilo que
Nietzsche chamou de “transposição de valores” – uma filosofia e um estilo de vida que
implica uma continua transformação , com sistemas de valores, percepções e crenças
mutáveis, como um objetivo em si.
Nesse ponto , contraculturas ativistas como o radicalismo de 1960 e contraculturas
passivas como o taoísmo têm um ponto em comum. Assim como muitos conhecidos
contraculturalistas dos anos 1960 evoluíram por intermédio de uma impressionante série
de permutações no estilo, na estética, na política e na filosofia ao longo de alguns
poucos anos , os mais conhecidos representantes do taoísmo e da filosofia zen foram
tradicionalmente inescrutáveis pelos outros em função de seu comportamento
imprevisível e contraditório momento a momento, dia a dia, ano a ano.
O apego contracultural à mudança constante é algumas vezes confundido com
modismo ou com a aceitação de qualquer mudança. Especialmente hoje , qualquer
atividade au courant na mídia e na cultura jovem ( que se estende quase que até a
velhice) pode ser descrita como “avançada” – desde se alistar no corpo de Fuzileiros a
participar de pegas nas ruas , participar de disputas íntimas em rede nacional de TV ou
acompanhar a banda de rock Phish. Mesmo correndo o risco de parecer óbvio, algumas
mudanças , côo uma mudança da democracia para ditadura, ou de uma cultura libertina
para uma cultura matrimonial claramente não são contraculturais por natureza.
Naturalmente todos os princípios contraculturais básicos são expressos de acordo com
parâmetros estabelecidos pelo momento histórico. Contraculturas históricas especificas
representam os princípios básicos de contracultura em aspiração e rumo, mas a
concretização desses princípios no mundo é limitada pela imperfeição humana. De fato,
as próprias contradições e imperfeições humanas encontradas nesses episódios
históricos oferecem a esta narrativa várias oportunidades de critica irreverente, dando a
ela, espera-se, um cunho mais verdadeiramente contracultural do que um mero exercício
de animação de torcida – ou uma árida enumeração de acontecimentos.

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Características quase universais da contracultura

Outras características que se manifestam na maioria das contraculturas abordadas


neste livro derivam dos princípios definidores fundamentais que acabamos de ver.
Essas características quase universais da contracultura são:

Rupturas e inovações radicais em arte , ciência , espiritualidade, filosofia e estilo


de vida.
Diversidade.
Comunicação verdadeira e aberta e profundo contato interpessoal, bem como
generosidade e a partilha democrática dos instrumentos.
Perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas.
Exílio ou fuga.

As contracultura são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego contracultural


à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites da estética
e das visões aceitas. Os maiores exemplos de descoberta e criação contracultural como
resultado daquele impulso – vistos em conjunto – compõem uma das principais linhas
narrativas deste livro. Nós estamos vendo transgressões radicais que mudam a história.
As inovações podem ser políticas , espirituais , filosóficas, artísticas ou mesmo
difíceis de classificar. Os exemplos vão do estabelecimento do método socrático como
base o pensamento ocidental às conquistas estéticas produzidas pelo sufismo (os versos
de Rumi, por exemplo, atualmente o maior Best-seller entre os poetas) e os ideais
democráticos que hoje merecem rasgados elogios por todo o planeta.
Se uma aparente contracultura se parecer com uma monocultura conformista, é porque
ela pode ser tanto uma subcultura quanto uma verdadeira contracultura tentando lidar
com a popularização de massa. As contraculturas apresentam uma excepcional
diversidade, e as subculturas normalmente são definidas por um tipo de conformismo
alternativo ou minoritário.
Por outro lado , a adesão a um grupo cultural definido será sempre motivada ppor
alguma espécie de comunalidade, mesmo se for uma reunião de pessoas que – como
Groucho Marx – não gostariam de participar de nenhum grupo que os aceitasse como
membros. Além disso, particularmente na adolescência e na juventude , costuma haver
uma busca de identidade. Os verdadeiros anticonformistas também podem continuar a
sentir a necessidade de ostentar estilos e símbolos com algum toque alternativo
contemporâneo. No extremo oposto , alguns contraculturalistas são facilmente
identificáveis por sua absoluta recusa a admitirem que são contraculturais. Por que eles
escolheriam aceitar um rótulo? Eles são esse tipo de contraculturalistas. De qualquer
forma , a distinção entre subcultura e contracultura pode ser sutil, e passível de
discussão.

A comunicação aberta – o livre intercâmbio de arte e pensamento entre mentes


semelhantes – é freqüentemente um importante elemento de multiplicação e
comunidades contraculturais. A comunicação intelectual é fundamental para a formação
de contraculturas. Quando um contraculturalista se dispõe a divulgar suas noções
heréticas para um ouvinte interessado, é estabelecida uma ligação que pode se tornar a
primeira de uma corrente de uma comunidade contracultural.
O valor que os contraculturalistas atribuem à comunicação interpessoal pode ser visto
na declaração do sufi Califa Ali Bem Ali: “Um diálogo refinado – Ah! Esse é o

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verdadeiro Jardim do Éden.” E Ralph Waldo Emerson disse que caminharia cem milhas
sob uma tempestade de neve por uma boa conversa.
A comunicação emocional intima – a pratica de abrir a alma plenamente – é tão
importante quanto a comunicação intelectual na maioria dessas comunidades. Basta
recordar como a terna coragem de revelar os mais profundos segredos de alguém estava
no cerne do movimento beat, e não apenas nas confissões públicas publicadas de
Ginsberg, Kerouac, Diane di Prima e outros. Antes que suas obras circulassem
amplamente, os beats passaram centenas de noites falando intimamente uns com os
outros até o amanhecer.
O movimento beat, claro, saiu dessa intimidade privada, atraindo a atenção dos meios
de comunicação de massa. De fato , a maioria das erupções contraculturais foi
estimulada pela utilização criativa de qualquer meio de comunicação ou espaço publico
disponível. Sócrates conseguiu alunos discursando nos ginásios públicos e mercados de
Atenas. Os trovadores difundiram por toda a Europa um novo conceito de amor
viajando e cantando suas canções. Não teria havido Revolução Americana sem uma
incansável panfletagem. Picasso mudou para sempre a percepção visual do mundo
utilizando como meio a tela. E os anos 1960 poderiam ter sido um estalinho em vez de
uma bomba de fusão se não fosse pela sublime subversão sônica gravada nos sulcos dos
discos de vinil de consumo de massa.
A maioria dos contraculturalistas acredita em absoluta liberdade para divulgar o
conteúdo de suas mentes e de sua imaginação. Não surpreende, portanto, que as
contraculturas normalmente sejam submetidas a algum grau de perseguição. Quando
uma contracultura nasce, a sociedade encontra estrangeiros em seu meio. Quebra de
tabus, violação de normas, desafio a idéias sacrossantas: o espírito antiautoritario
inerente à contracultura é uma ameaça potencial a qualquer ordem estabelecida.
Normalmente se segue a eliminação.
Os tipos de perseguição variam de campanhas oficiais de convencimento do publico,
promovidas por autoridades governamentais, ao ostracismo social e à rejeição do
indivíduo contracultural por seus pares e sua família. O grau em que uma determinada
cultura foi ou é perseguida depende em grande medida do nível em que aquele
movimento pratica o ativismo social explicito e do grau de difusão de sua mensagem.
Quando a perseguição fracassa na tentativa de esmagar uma contracultura ativa, a
cultura dominante tende a assimilá-la , sutilmente enfraquecendo, distorcendo ou
mesmo algumas vezes invertendo seus memes, tirando deles seu poder subversivo. O
establishment força a incorporação do discurso contracultural em sua própria
propaganda , ao mesmo tempo em que o poder econômico reduz a arte e a estética
contracultural a mercadoria de consumo de massa. Theodore Roszak escreve em The
Making of Counter Culture que “é o experimento cultural dos jovens que
freqüentemente corre maior risco de exploração comercial – e, assim, de ter a força de
sua dissensão dissipada”. O filosofo da Nova Esquerda Herbert Marcuse chamou esse
processo de cooptação.
Por outro lado, mesmo os aspectos mais comercializados do meme contracultural
foram profundamente subversivos para os estados totalitários stalinistas que caíram no
final dos anos 1980. E mesmo nas relativamente abertas democracias empresariais a
cooptação pode sair pela culatra. Terá a comercialização da irreverência antiautoritária
por intermédio da música, da comédia, da animação infantil e de muitos outros meios
produzido uma contracultura ainda mais disseminada e sólida entre muitos dos jovens
de hoje, como pode ser visto no ceticismo, na cultura de software livre, no movimento
rave e no movimento antiglobalização da Geração X? e pode o espírito contracultural

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sobreviver à febre bélica em uma nação atacada por um inimigo invisível? Estas
perguntas continuam sem resposta.
A fuga freqüentemente é uma reação contracultural a essas dificuldades . Mesmo
quando não são forçados ao exílio, as contraculturas freqüentemente buscam maior
liberdade para explorar e viver segundo seus valores, afastando-se da cultura
hegemônica. Essa separação pode implicar isolamento geográfico ou pode ocorrer
segundo mecanismos mais sutis.
Como ocorreu com os transcendentalistas americanos antes deles, muitos membros da
contracultura jovem dos anos 1960 pegaram o caminho geográfico, estabelecendo
comunidades experimentais em regiões rurais remotas. Os escritores e artistas
americanos da Geração Perdida escolheram o exílio pleno, se transformando em
expatriados nos territórios mais sofisticados de Paris e outras regiões européias.
Outros contraculturalistas escaparam da cultura hegemônica, continuando a viver no
meio dela. Os beats se destacaram da sociedade hiperconformista americana dos anos
1950 por intermédio de um dialeto distintivo, de estilos de vestir atípicos e de uma
recusa a participar do joguinho econômico mesmo com o risco da pobreza. (Alguns
podem debochar , dizendo que os principais nomes beat acabaram conseguindo uma
situação econômica confortável como fruto de seus escritos e conferencias. Contudo ,
Allen Ginsberg foi o único que chegou a correr o risco de ter uma renda
verdadeiramente alta, e ele torrou a maior parte do seu dinheiro.) Mas a maioria dos
beats permaneceu nas cidades em vez de pegar o caminho das montanhas. Da mesma
forma, as invasões dos punks, as comunas “hippes” urbanas e a ocupação ilegal de
armazéns por participantes de raves abriram “zonas autônomas temporárias” – lugares e
momentos de autoconcedida libertação do reino das leis – no coração do poder
hegemônico.
A generosidade é outra característica importante e quase universal da contracultura.
Abraão abriu sua tenda para alimentar os pobres. O bodisatva zen leva uma vida de
trabalho , sem sucumbir à hipocrisia caritativa. Gertrude Stein e Ezra Pound deram
apoio a artistas que na Paris do inicio do século XX buscavam superar limites. As
contraculturas tendem a dar mais valor à humanidade que à propriedade, e muitas amam
acima de tudo abrir mão do que têm. Outras contraculturas exprimem sua generosidade
por intermédio do impulso prometéico de partilhar democraticamente descobertas e
intenções tecnológicas , idéias, visões e obras de arte. O famoso slogam hacker “ A
informação quer ser livre” é basicamente um conceito contracultural fundamental.

A contracultura ainda é contra?

Hoje, a cultura ocidental e mundial e mundial é uma confusão de valores. Mas quem
hoje pode negar que – em meio à caótica complexidade desta Nova Desordem Mundial
– cada vez mais indivíduos ampliaram a liberdade individual de não se adequar a
convenções e de transmitir suas próprias idéias excêntricas? Antes da popularização da
internet e da grande disponibilidade de outras formas de tecnologia de comunicação, a
maioria dos cidadãos ocidentais não tinha meios adequados de se expressão, o
questionamento da autoridade, a mudança constante, a liberdade sexual e a maioria dos
outros da contraculturalidade não sejam do gosto da maioria, essas liberdades são
permitidas e estão disponíveis a um enorme número de cidadãos globais, se não à
maioria deles. Talvez a contracultura já não seja contra.

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Por outro lado, continuamos a experimentar ataques à liberdade. Conservadores
culturais estão particularmente alertas contra o sucesso conseguido pela contracultura
em afrouxar os laços da população com estruturas de crença rígidas e absolutistas. Os
conservadores consideram que esse “relativismo moral” é responsável por um vácuo
ético. Eles afirmam que em uma sociedade de massa as pessoas precisam de regras e
códigos precisos segundo os quais viver – preferencialmente estabelecidos pela
autoridade religiosa e reforçados pelo temor de um Deus julgador e punitivo. Eles
consideram que a falta de uma ideologia social claramente definida e inflexível é
responsável pela anomia social e a decadência, uso de drogas, abusos sexuais,
gangsterismo e a grosseria geral que hoje reina na cultura ocidental. Eles culpam os
anos 1960. Embora possamos relacionar muitos outros fatores que são igualmente
responsáveis por todo esse comportamento perturbado e perturbador que preocupa
qualquer um que queira viver em paz e prosperidade, e não apenas os conservadores
culturais , não podemos negar que a liberdade desempenha um importante papel em
todo esse “caos”.
Apesar da aparente adoção da doutrina iluminista da liberdade individual no século
XVIII, desde então a maioria das pessoas viveu em sociedades e comunidades que
impuseram convenções sociais muito bem definidas e ofereceram a elas papéis
produtivos para toda a vida. À medida que as convenções, os papéis, as comunidades e
as famílias que sustentaram estáveis identidades conformistas ruíram sob o poderoso
tufão do desenvolvimento tecnológico,da interpenetração cultural global e da liberdade
individual, muitos – talvez a maioria – dos cidadão pós-modernos se descobriram
perdidos. A idéia taoísta de pegar a onda da constante mudança; o método cientifico de
buscar experimentalmente o conhecimento em vez de chegar à certeza; a herança
surrealista de transformar o caos em arte e “significado sem sentido” – essas formas de
ver e ser no mundo ainda não são compreendidas pela maioria das pessoas que vivem
nas terras (relativamente) livres. E mesmo quando elas compreendem intelectualmente,
não é fácil viver verdadeiramente livre.
O verdadeiro caminho contracultural é difícil. É incerto se uma maioria pode ser feliz
em algum tempo próximo vivendo sem algum tipo de sistema de crença externamente
determinado. A libertação da certeza e dos rígidos códigos de comportamento sem
dúvida continuará a produzir confusão, inquietação e um comportamento destrutivo em
muitos. E no nível da massa, nos Estados Unidos pós-11 de setembro, todo o projeto de
espalhar e expandir as fronteiras do não-conformismo e da autonomia se tronou muito
mais complexo. Talvez o melhor que a contracultura possa esperar seja perseverar,
embora outra visão identifique oportunidades para mudanças radicais em meio à
turbulência. Qualquer que seja o caso, pegue a onda!

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