8 RAFAEL LIMA

NONSENSE SÃO os OUTROS 9

Parte 1 Ellen, sua esposa. Por obra do acaso, quem ficou grávida foi Magda,
mas era Ellen quem ele realmente amava.
Seu nome é Eric, Eric Holf. para ser mais exato. Policial federal, Depois de uma dose de uísque e alguns salgadinhos, Eric sen-
32 anos, casado há nove, com uma moça lindíssima, de nome Ellen. tou -se na poltrona da sala e ligou o rádio. Estava tocando Shelovesyou,
O casal nunca conseguiu ter filhos, apesar de várias tentativas. Am- dos Beatles.
bos nunca tiveram coragem de procurar um especialista, por medo - Que rádio é essa que só toca músicas antigas? - perguntou-
de descobrir de quem era a culpa, se assim pode-se dizer. se. Antes de obter a sua resposta, Magda veio falar com ele:
Eric estava saindo de mais uma sessão com sua psiquiatra. Antes - Falei com a sua esposa, Ellen, hoje. Contei-lhe tudo.
não costumava ir a psiquiatras, mas uma série de repetições de um De súbito, Eric levantou-se enfurecido:
sonho o levou à médica. Sonhava sempre com uma nuvem em que - Você fez o quê? Você está louca?
estava deitado. A nuvem flutuava por cima de uma floresta e, lá de - Calma, Eric - rebatia a moça. - Fiz o que achei melhor
cima, ele avistava várias árvores. De repente, a nuvem descia e se para você, fiz o que era melhor para o nosso filho.
posicionava em frente a duas árvores específicas. Ele saltava da nu- - Você é louca! Se você não estivesse grávida. eu arrebentava a
vem e olhava para as duas árvores. Então, uma delas ganhava vida e sua cara - respondeu ele, gritando.
com seus galhos tentava estrangulá-Io. Neste ponto, chegava o fim - Eric, tente me entender. Eu só fiz isso porque eu te amo.
do sonho. Eric acordava algumas vezes suando muito e, em outras, O silêncio ficou estabelecido. Logo, Eric beijava a moça volup-
apenas sussurrando - Perdão, perdão, perdão. Foi procurar a psi- tuosamente. De forma progressiva, minutos depois, os dois esta-
quiatra, seguindo um conselho de Ellen. Fato atípico, este, pois sem- vam na cama da moça, fazendo o que alguns estudiosos chamam
pre fôra ela quem precisara de conselhos, porque, apesar de linda, de sexo, mas o que os mortais conhecem por "amor". Estavam os
tinha alguns distúrbios mentais. dois entrelaçados, como se fossem uma única pessoa.
Naquele instante, ele estava indo encontrar-se com alguém que De repente, Eric viu-se flutuando em uma nuvem, que logo o
não era Ellen. Para definir melhor, ia encontrar-se com Magda, sua deixou diante de uma árvore. Esta, por sinal, tinha vida, mas no
amante. Havia mentido para a sua esposa, mais uma vez. sentido humano. Ela, com seus braços, que, na verdade, eram ga-
Quando ele estacionou seu carro, o rádio tocava Loveme tender, lhos, agarrou-o e começou a estrangulá-Io. Ele começava a sentir
interpretada por Elvis Presley. Assobiando a música, minutos de- faltar-lhe o ar. Estava ficando sem respiração, pois aquela árvore o
pois, estava ele frente a frente com Magda. Tão logo, estavam se estava matando. Foi quando, num sobressalto, pegou a sua faca em
beijando. Depois dos longos beijos que trocaram, ela foi a primeira uma de suas botas e assim golpeou furiosamente aquele mortífero
a falar: ser, até que ele estivesse morto. Enfim, a criatura sucumbiu e ele
- Não me aperte tanto, Eric. Pode fazer mal ao nosso filho. ~ pôde sentir o ar percorrendo todo o seu corpo, novamente.
Ele esboçou um sorriso e colocou a mão sobre a barriga da De susto, despertou, e então olhou em volta. Magda estava à sua
I
moça. Falou, então: frente, deitada na cama, morta, toda ensangüentada, com sua faca
-Você sabe o quanto ele é importante para mim. E você tam- presa ao peito. Eric sentia suas pernas tremerem e seus olhos trans-
bém é. Na verdade, vocês dois são as duas coisas mais importantes bordavam de lágrimas, porém permanecia estático. Em sua cabeça,
da minha vida. - Eric mentiu novamente, pois, na realidade, as uma série de imagens corriam, desenfreadamente. Lembrou-se do
duas coisas mais importantes de sua vida eram o seu futuro filho e momento em que disse o "sim" para Ellen, no dia de seu casamen-
to, e quando, nesse mesmo dia, prometeu a ela que a faria a mulher

II
10 RAFAEL LIMA
mais feliz do mundo. Viu também seu pai dizendo-lhe, quando ain-
da era uma criança, que o segredo da vida é nunca tentar, porque se
você tentar, ela acaba com você. E assim, as imagens não paravam de
surgir, mas ele queria gritar e gritar muito. Porém, não conseguia.
Ele havia acabado de matar o seu futuro e sonhado filho e a mãe
dele.
Parte 2
Dois dias se passaram, e Eric permaneceu na casa, perambulando
feito um zumbi. Sua única atitude coerente foi a de cobrir o corpo
com um lençol, de seda, por sinal. Ele quase não se alimentou du-
rante esses dias, dormiu pouco e acabou com três garrafas de uís-
que do bar da casa da Magda. Não saiu da casa em nenhum mo-
mento e, também, não falou com ninguém. Limitou-se a chorar
muito, às vezes quebrando alguns objetos, e a pedir perdão ào ca-
o dáver da moça.
Naquele instante, estava sentado no chão, próximo à cama, onde
estava o corpo, bebendo a última garrafa de uísque que havia na
casa. Esperava a noite chegar, pois já tinha decidido o que fazer.
Levaria o corpo para um terreno baldio, do outro lado da cidade,
lugar em que alguns policiais amigos seus costumavam executar
bandidos, e atiraria fogo em sua amante morta.
Chegou, então, a noite, e ele começou a execução de seu plano.
Levou o corpo, enrolado no lençol de seda, para o porta-malas de
seu carro, entrou e começou a dirigir. Deu-se ao trabalho de ligar o
rádio, que tocava a música Dead flowers dos Rolling Stones. E seguiu
sem dizer uma palavra durante todo o percurso.
Algum tempo depois, chegou ao terreno baldio. Tirou o corpo
do porta-malas e colocou-o no chão. Pegou um vidro de querosene
e atirou o seu conteúdo sobre sua amante morta. Acendeu um fós-
foro e lançou-o ao cadáver. Logo, uma enorme chama dominou o
corpo da moça e começou a queimá-lo.Ali, vendo sua amante e seu
futuro filho sendo queimados, pensou que tudo havia sido em vão.
NONSENSE sÃo os OUTROS 11
Depois de livrar-se dos últimos vestígios, decidiu voltar para
casa, sem se preocupar se Ellen havia sentido a sua falta durante
aqueles dois dias, três, na verdade.
Quando abriu a porta de seu apartamento, defrontou-se com o
seu gato de estimação, o Dog, mas nem lhe deu atenção. Sentou-se
na poltrona e chamou por Ellen. Não houve resposta. Chamou no-
vamente, novo silêncio. Foi, então, que encontrou sobre a mesinha
da sala um bilhete. Ele leu:
"Querido, eu já sei de tudo. Sei que você tem uma amante e que
ela está grávida. Não é invenção minha, pois ela veio pessoalmente
conversar comigo, quando você estava com a psiquiatra. Não se
culpe, eu te entendo. Ter um filho era o seu maior sonho. Estou
saindo da sua vida, para que você seja feliz. Parabéns pela criança.
Com amor, Ellen."
Ele leu o bilhete umas três ou quatro vezes, sem acreditar. E,
então, pensou: "Por que a Ellen fez isso comigo? Por que ela foi me
abandonar no pior momento da minha vida?" Ainda inconformado,
viu o Dog tomar o seu leite, despreocupado, sem se importar com
as situações medonhas em que os humanos se metem. Depois de
"respirar" da infeliz surpresa, caminhou lentamente até o quarto,
ainda se perguntando o porquê da partida de Ellen. Quando che-
gou no quarto, nova surpresa. Ellen não havia ido embora, como
pensara. Apesar de todos os indícios de que ela o havia abandona-
do, essa não era a verdade, pois lá estava ela, no quarto, enforcada
no lustre, sobre a cama do casal. Estava morta, ou melhor, havia se
matado. Era mais uma morte para Eric carregar sobre as costas.
Quanto a ele, permaneceu parado, em silêncio, Um silêncio tão
grande, que era possível ouvir as rápidas batidas de seu coração.
Neste silêncio, ficou ali durante alguns minutos, acariciando sua
aliança, que havia tirado do dedo. Não chorou, não gritou e, tam-
bém, não quebrou nada, Apenas deixou a sua aliança sobre o tapete
e saiu.
12 RAfAEL LIMA

Epílogo

Uma semana depois, o velhinho do andar de baixo chamou a

polícia, sem, ao menos, saber do ocorrido na casa de Eric.
_. Qual foi o seu problema, meu senhor? - perguntou um
dos policiais.
- Os senhores precisam fazer alguma coisa - respondeu o
velho, sofregamente. -Tem um lobo, aqui, por estas redondezas. ,
- Um lobo? - perguntou o outro policial.
- É, um lobo. A vizinhança está em pânico.
- Mas, meu senhor, nesta área não há lobos. É impossível! -
arriscou o segundo policial.
- Eu digo que há um lobo por aqui. Eu tenho certeza! -
afirmou o velhinho.
- Calma, calma! Não vamos nos exaltar! - interveio o pri-
meiro policial. - Me diga, meu bom velho, alguém já viu a criatura?
O velho respondeu:
SURPRESA OU DESAFIO
- Não, mas, todas as noites, nós escutamos os seus uivos.