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+soma . #15 Morte, sacrifício e recomeço são temas constantes em todas as artes.

Isso,
para alguns, tem a ver com a capacidade que a arte tem de tocar a alma hu-
mana em profundidades nebulosas, indizíveis. É por isso que as manifestações
artísticas incitam as paixões mais incandescentes e os desentendimentos mais
irracionais. A se levar isso tudo em conta, esta primeira década do século XXI,
em vias de se encerrar, foi um banquete temático para o mundo das artes.
Uma a uma, certezas cristalizadas na centena passada foram caindo por terra:
a inevitabilidade prática do neoliberalismo, o progresso dos valores democrá-
ticos ocidentais, a liderança insular dos EUA, a estabilidade do clima na Terra,
a nossa capacidade de produzir comida, energia e outros recursos por tempo
e em quantidade ilimitada.

A +Soma 15 – meio sem querer, o que é ainda mais significativo – acabou


reunindo artistas e trabalhos que trazem essas questões no âmago de suas
propostas. A decepção com o american way of life, e a certeza de seu esgota-
mento, foi o que levou o quadrinista Robert Crumb a trocar seu país de nas-
cimento por uma vila bucólica no interior da França. Lá, ele criou seu Gênesis,
ambiciosa obra de ilustração do mito geracional de duas das maiores religiões
monoteístas do mundo. Em entrevista exclusiva, Crumb mostra porque ainda
é, aos 66 anos, um dos artistas mais visionários e geniais da história. Um olhar
semelhante está na obra de Dave Longstreth, líder dos Dirty Projectors, uma
das bandas mais importantes de 2009. A relação predatória da humanidade
com seus recursos o levou a “Cannibal Resource”, uma das letras mais emble- C

máticas dos últimos anos. Ele fala sobre essa e outras faixas do multicolorido
M
Bitte Orca, disco fundamental deste final de década.
Y

Beleza e morte também são centrais no trabalho da paulista Tatiana Blass, CM

que cria perturbadoras esculturas em cera e metal, além de telas e outros tra- MY

balhos, que a colocaram no topo da nova geração artística brasileira. Vindo da


CY
ponta oposta da cultura, mas atingindo resultados tão contundentes quanto
CMY
ela, o curitibano Rimon fala de liberdade e inquietação por linhas literalmente
tortas. Entre idas e vindas, o lendário crew de rap paulistano RZO já foi dado K

como morto, mas conta em detalhes como está se reinventando para uma
nova era musical. Como o fez a cidade de Seattle, que da decadência e falta
de perspectivas de uma geração mudou a cultura dos anos 1990. O fotógrafo
Michael Lavine estava lá desde 1982 e registrou tudo com olhar privilegiado.
A decadência urbana também é o que atrai Formiga, que assina o ensaio de
fotos desta edição e dá mais uma prova inconteste de que o belo está nos
olhos de quem vê. E não foi outra convicção que levou Mônica Nador a aban-
donar uma carreira promissora nas artes para criar um centro de convivência
revolucionário no Jardim Miriam, um dos bairros mais pobres de São Paulo.

Em 2010, a +Soma deseja que todos (nós, você, o Brasil e o planeta Terra, tudo
junto e misturado) encontrem a força, a coragem e a visão necessárias para
começar a construir, das cinzas de um mundo que já tem cheiro de velho, um
outro mundo. E que, nesse mundo, mais e mais pessoas dotadas de olhares
privilegiados passem de espectadores a atores de transformações reais.

4detalhe da obra “antes da briga #2” . acrílica sobre tela . 2009 . foto por Tatiana Blass
+conteúdo

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Lançamento do novo album $ 1,99

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Faça o download gratuito do album na integra em

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www.cemporcentoskate.com.br/afilial

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16 18 30 36 42 48 56 62 68 72 76 82 84 86 88 90 94 98

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ais, leva u

shuffle
robert crumb
dirty projectors
tatiana blass
rimon
ensaio de fotos: formiga
coletivos de cinema
entre (outros)
rzo
mayer hawthorne
michael lavine
velho de câncer
quem soma: mônica nador
seleta: newton carlos
mini
reviews
melhores
quadrinhos

ezekielbrasil.com
10 11
O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo.

Para informações acesse: www.maissoma.com

Iniciativa . ssssssssssssssssss

Kultur Studio

Rua Fidalga, 98 . Pinheiros

05432 000 . São Paulo . SP

www.kulturstudio.com

REVISTA SOMA #15

Janeiro 2010

Fundadores . Kultur
Alexandre Charro, Fernanda Masini,

Rodrigo Brasil e Tiago Moraes

Editor . Mateus Potumati

Assistente Editorial . Marina Mantovanini

Fotografia . Fernando Martins

Revisão . Alexandre Boide

Projeto gráfico . Fernanda Masini

Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera

Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz

Colunistas . Gustavo Mini, Tiago Nicolas,

Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto, Stêvz e Rafael Sica

Gostaríamos de agradecer a Lora Fountain, Rogério de Campos, Marcos Sacchi e Luis Guidi;

Jake Lovepump, Sérgio Ugeda, Fabrício e Larissa Nobre, Leo Razuk, Marília Assis e Priscilla

Deretti; Lucas Pexão e Ana Ferraz; Clarissa Campolina, Daigo Oliva, Marcos Diego, Nathalia

Birkholz, Amanda Louzada, Rafael Argemon, Fabio Zimbres, Agência Alavanca, a todos os

nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes

e aos pontos de distribuição da revista.

Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista

se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Foto: Gabriela D`Andrea l Arte: Renato Petillo


Capa

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de Auto Retrato - R. Crumb . 2001

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Periodicidade . Bimestral

Publicidade . Cristiana Namur Moraes Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais,

cris@kulturstudio.com shows, eventos e casas noturnas.

Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através Impressão . Prol Gráfica

do e-mail redacao@maissoma.com. Tiragem . 10.000 exemplares

santapinup.com.br
+colaboradores

Rafael Sica Fernando Eichenberg Daniel Tamenpi Nathalia Birkholz Tiago Mesquita Arthur Dantas

É de um lugar frio e selvagem. Correu Jornalista, há doze anos vive Jornalista, pesquisador musical Jornalista, produtora e fã de rap Tiago Mesquita é crítico de 31 anos. O capitalismo roubou minha
atrás do tempo perdido, mas trocou em Paris, de onde colabora para e DJ especializado em soul, funk nacional. Teve textos publicados por arte, professor e está fantasiado virgindade e atualmente sou contra
as pernas. Vestiu as mãos antes que diversas publicações brasileiras. É e hip-hop. Escreve o blog Só veículos como O Estado de S. Paulo, de pirata. TUDO que tá aí. Ama Crass, 4 Walls
perdesse os dedos e se ergueu sob autor do livro Entre Apas - Diálogos Pedrada Musical, onde apresenta revista Joyce Pascovitch, DJ Mag e Itamar Assumpção. A favor da
um pequeno ponto de luz. Radicado Contemporâneos (ed. Globo, 2006), lançamentos e clássicos da etc. Às vezes acaba na frente das paz, do amor e da esperança.
no mesmo lugar, desenha com seu compilação de entrevistas com 27 música negra. câmeras, mas seu negócio mesmo é
par de luvas de boxe. personalidades europeias. batucar linhas.

Lucas Pexão Amanda Louzada Marcos Diego Rafael Argemon Lauro Mesquita Nik Neves

Skatista, jornalista, curador Fotógrafa , já fez trabalhos para É jornalista, gosta de som alto, Jornalista, cocacólatra, toxicômano, Jornalista, foi vocalista e guitarrista Misto de ilustrador e viajante, tem
independente, art dealer. Editora Globo, Grupo Estado e cerveja gelada e camisa xadrez. cinéfilo, gamer e não vive sem do Space Invaders. Nas horas nos quadrinhos seu porto. Produz
Proprietário da galeria FITA TAPE, X-Games, entre outros. Mas também Não à toa, entrevistou o fotógrafo geleia de mocotó de copinho. vagas escuta um som e aproveita com o grupo Bestiário a revista
sócio do escritório noz.art e escreve faz as vezes de cinegrafista. Clicou que documentou a cena Grunge a vida em Belo Horizonte, Pouso PICABU 5. A história desta edição
para as revistas Vista e Void. No os caras do RZO na laje e com entre os anos 80 e 90. Alegre e na idílica Heliodora. é uma homenagem ao universo das
tempo livre, conspira pela abolição uma ajudinha do tempo – parou de Apesar de negar com veemência, é BD europeias, especialmente Hergé
do sistema monetário. chover só na hora de fazer as fotos. roqueiro brasileiro nato. e seu Tintin.

14 15
com Chris Couto
Por tiago nicolas

Sem querer ser Bozó, muito menos


Disco que deveria amigo do Boni, mas a entrevistada
ser anunciado no da Shuffle deste mês é atriz e já fez
plantão do Jornal bastante novela pra Grobo.
Uma trilha sonora Nacional Chris Couto é de formação
A do filme Flores Enter the 37th Chamber – teatral, mas faz carreira na TV desde
Partidas, com o Mulato El Michels Affair a extinta e saudosa TV Manchete
(que saudade do Scala) e, além das
novelas, foi VJ da MTV. Atualmente
pode ser vista como entrevistadora
Disco político para do programa A Fazenda, da Record,
a Glória Pires poder e tem um gosto musical parecido
dançar com o meu ou o seu.
Midnight Band: The First Ah, e a Chris é a primeira mina que
Um disco de mãe Minute Of A New Day – responde as perguntas da coluna
The Miseducation of Gil Scott-Heron/ direto da caixa de sonhos da sua sala
Lauryn Hill Brian Jackson para as páginas da +Soma: 9 discos,
mais um. Os essenciais da Chris
Couto. Plim, plim! 1
Um disco da Som
Livre
Aquelas trilhas de
novelas antigas, tipo Um disco feito por
Véu de Noiva, Selva de um amigo
Pedra, Cavalo de Aço... Velha Guarda 22 –
só tranqueira! Mamelo Sound System

Discão rei do gado Disco de um cantor/


On the Beach – ator amigo ou não
Neil Young The Ecstatic – Mos Def

Disco que eu daria


Um disco de época de amigo secreto
Band on the Run – no Fantástico
Paul Mc Cartney Fluorescent Black –
Anti-Pop Consortium

2Tiago Nicolas é 1/6 da Chaka Hotnightz

16 17
E pítetos não faltam para qualificar Robert
Crumb: papa da cultura underground dos comix
americanos, iconoclasta, um dos artistas mais
importantes do século XX, e por aí vai. Seu precioso
portfolio é composto de personagens que se tornaram
James (do século XVII) e a recente tradução The Five Books of
Moses (2004), de Robert Alter, crítico literário norte-americano e
professor da Universidade de Berkeley (EUA).

Na entrevista coletiva à imprensa internacional em outubro no


Por Fernando Eichenberg . Imagens cedidas por Conrad Editora . Retratos Por Peter Poplaski. lendas, como Mr. Natural e Fritz the Cat, e de revistas Centro Georges Pompidou, em Paris, seu editor francês, Jean-Luc
emblemáticas como Zap Comix e Weirdo. Neste final de Fromental, afirmou: “Todos que amam os quadrinhos se darão
ano, o infatigável Crumb reapareceu nas prateleiras com o conta de que pela primeira vez todo comentário, interpretação
que definiu como sua magnum opus: a aguardada versão e exegese se dão pelo desenho. É um trabalho mudo. Ele é
ilustrada dos 50 capítulos do Gênesis bíblico (um livro de subversivo porque nos remete à Bíblia de uma forma até hoje
224 páginas e capa dura na edição brasileira da Conrad; nunca feita, não religiosa, mas como um texto fundamental, que
leia review nesta edição). A obra, que teve lançamento vem de nossas origens”.
simultâneo em 12 países (dez na Europa, mais EUA e
Brasil), consumiu quatro laboriosos anos do quadrinista. Ao seu lado, Crumb, a silhueta delgada, espessos óculos de grau
e a barba grisalha de seus 66 anos, exclamou em concordância:
Do sarcástico e sexualmente obcecado Crumb, ex- “That’s beautiful!”, provocando risos na sala. Longe de satirizar a
consumidor de LSD e de anfetaminas, esperava-se uma Bíblia, sua intenção primeira foi a de “iluminar” o texto, que para
adaptação livre do Gênesis, com cenas de sexo explícito ele se trata de uma criação do homem e não da “palavra de Deus”.
e legendas de humor corrosivo. Porém, ao se associar ao “Muitas pessoas ficarão surpresas com as histórias contidas no
Deus de Abraão na história da criação do Universo – da Gênesis”, resumiu.
expulsão de Adão e Eva do Paraíso, passando pela Arca
de Noé e a destruição de Sodoma e Gomorra, até a morte Crumb vive recolhido há 18 anos no Sul da França, em Sauve, uma
de José no Egito –, o autor manteve fidelidade absoluta aldeia medieval encravada nas colinas de Languedoc-Roussilon,
ao texto original. ao lado da mulher e parceira de HQs, Aline Kominsky-Crumb, da
filha Sophie, também quadrinista – que acaba de lhe dar um neto
Além disso, mergulhou em uma profunda pesquisa –, e de sua invejável coleção de mais de cinco mil discos raros de
histórica e pictórica antes de começar a rabiscar seus 78 rotações. De passagem por Paris, onde mantém um pequeno
traços bíblicos. O desenho, obsessivo nos detalhes e apartamento, a caminho da turnê de lançamento do Gênesis nos
extremamente corporal, não explicita órgãos sexuais EUA, Robert Crumb conversou com a + Soma sobre seu mais
nem recorre a ilustrações sexualmente ousadas. Suas recente trabalho, o governo Obama, a França e os EUA, sua
principais fontes escritas foram a versão da Bíblia do Rei condição de gnóstico e, claro, sua adoração por discos antigos. 1

18 19
U
Desde o lançamento de Gênesis, você já soube de alguma reação
m articulista afirmou no
adversa de fundamentalistas ou de outros grupos mais radicais? Washington Post que era
Ainda não. E não tenho certeza de que eles irão atacar o livro
ou a mim. É possível, mas não tenho ideia. Não sei o que poderá
um absurdo alguém como
acontecer quando for a Austin, no Texas, onde há cristãos eu, conhecido pelo trabalho artístico
fundamentalistas. Não estou ridicularizando o Gênesis. Quem ler
o livro verá um trabalho de ilustração bastante rigoroso. Fui muito
escandaloso, pornográfico, de imagens
cuidadoso, não queria de forma alguma ridicularizar nada, mas racistas malucas e tudo o mais, fazer
que o texto falasse por si mesmo por meio de ilustrações. Dei o
melhor de mim e tentei ser o mais fiel possível na interpretação
uma ilustração correta da Bíblia. Ele não
do que realmente estava escrito. O texto abre espaço a várias entendeu: “O que ele está fazendo, qual
interpretações. Quando Deus, desapontado e enojado com a raça
humana, provoca o Dilúvio, ele não o explica. Está decepcionado o objetivo disso?”. De certa forma, é uma
com o comportamento do ser humano, com a fraqueza de seu boa pergunta, à qual não posso responder
coração, mas não diz especificamente o que o incomoda tanto.
Então tive que inventar, mostrei pessoas sendo cruéis umas claramente. Não sei.
com as outras. Há muitas situações assim, abertas a diferentes
interpretações visuais, e eu tentei o máximo que pude não desviar
os desenhos do texto. Eu me contive em colocar qualquer tipo de
piada ou outras coisas que pudessem distrair as pessoas. Não é
uma abordagem irônica, mas completamente fiel. E fui criticado
por isso. Alguns críticos não gostaram, esperavam que eu fosse
escandaloso. Uma das peças de propaganda da versão inglesa
dizia: “Crumb fez uma sátira escandalosa da Bíblia”. Obviamente, menos de Alá. Mas entre os católicos as imagens estão em todo
a pessoa que escreveu isso não leu o livro. Falei para minha o lugar, em todas as igrejas. É engraçado que eles tiveram medo
agente, Lora Fountain: “Diga para não usarem isso, não é uma de mostrar isso. Não sei que tipo de reação poderia ocorrer no
sátira escandalosa, não foi isso que eu fiz”. Mas era o que as Brasil. Não tenho ideia.
pessoas esperavam, já que sou conhecido por isso. Um articulista
afirmou no Washington Post que era um absurdo alguém como Considerando o fato de que quase nenhuma palavra do texto
eu, conhecido pelo trabalho artístico escandaloso, pornográfico, original do Gênesis foi alterada, que não há ilustrações de pênis
de imagens racistas malucas e tudo o mais, fazer uma ilustração em ereção ou cenas de sexo explícito, por que a advertência
correta da Bíblia. Ele não entendeu: “O que ele está fazendo, qual inserida na capa da edição americana: “Supervisão adulta
o objetivo disso?”. De certa forma, é uma boa pergunta, à qual não recomendada para menores”?
posso responder claramente. Não sei. Imagine um pai indo na [rede de livrarias] Barnes & Noble: “Oh,
uma versão em quadrinhos da Bíblia, vou comprá-la para o meu
A verdadeira subversão reclamada pelos críticos está na filho”. Aí chegam em casa e veem pessoas fodendo no livro. Não
fidelidade ao texto original? se mostra nenhum pênis, mas há pessoas fazendo sexo, mulheres
Exatamente. A coisa mais subversiva é a exposição do texto. O nuas, corpos nus. Cristãos e pessoas conservadoras nos EUA
objetivo de todo o trabalho que tive foi esse, iluminar um texto poderão ficar bastante inquietas ao ver isso, e na verdade eles
tão importante para a civilização ocidental. Isso nunca havia compraram o livro para o filho. Eles vão reclamar, vão chamar a
sido feito antes: ilustrar cada palavra desse texto. Assim, ele é polícia para prender o coitado que está trabalhando na loja, que
revelado mesmo em suas partes estranhas e esquisitas, que as vendeu o livro para uma católica de direita que achou que fosse
pessoas na maioria das vezes leem de forma rápida e superficial. uma HQ para crianças. Essa é a razão da advertência na capa.
Elas geralmente pulam as partes bizarras, que não fazem Foi engraçado, porque quando colocaram, o Norton (da editora
sentido para as pessoas da nossa época. Por exemplo, quando Norton) disse: “Que ótimo, agora a criançada vai querer comprar
Abraão oferece sua mulher ao Faraó. Mas que diabo é isso? mesmo!” (risos). Foi minha ideia incluir isso, pela experiência que
Normalmente, as pessoas não atentam para isso. Não faz sentido tive anteriormente com os quadrinhos, sabe? Eram os vendedores
para pessoas modernas. que iam presos e não os artistas ou a editora. Era o coitado que
trabalhava na loja.
O Brasil é o maior país católico do mundo. A editora brasileira
de Gênesis fez para o livro uma capa que procurasse não ferir Ao fazer esse trabalho, você ficou surpreso com a força e a
suscetibilidades e evitar eventuais reações contrárias, sem importância do papel desempenhado pelas mulheres no Gênesis?
mostrar a imagem de Deus. Sim, foi algo bastante surpreendente. Eu li o Gênesis antes de
É, fiquei sabendo disso, a Lora me mostrou a capa. Mostra só a fazer meu livro, mas você faz uma leitura geral e não foca nisso
palavra “Gênesis” no meio daquele vazio negro que dá voltas, ou naquilo. Então, peguei um livro chamado Sarah The Priestess
não é? Eles têm medo de mostrar a imagem de Deus na capa? - The First Matriarch of Genesis, de Savina Teubal.
É engraçado porque, de todos os cristãos, os católicos são os Ela apresenta tudo isso de forma bastante forte, com
que mais mostram a imagem de Deus. Você pode ir à Capela argumentos muito incisivos. Há mapas e representações
Sistina, em Roma, e ver a imagem de Deus por Michelangelo, gráficas nesse livro mostrando que o clã iniciado por Abraão
de barba branca. É o mesmo cara (risos). Eu não entendo isso, é matrilinear, e que são as mulheres que decidem quem vai
mostrar Deus não é considerado blasfêmia na tradição católica. herdar a aliança com Deus. Ela apresenta detalhes do contexto
Na tradição ortodoxa judaica não é permitido. Na tradição histórico daquela época, de 2000 a.C., dos sumérios, que
islâmica não se pode fazer nenhuma imagem de Maomé, muito tinham um poder patriarcal e matriarcal.

20 21
E os dois eram iguais – tinham atribuições diferentes, mas eram dá para ver os detalhes. Mas ainda assim é bem útil. Os filmes
iguais. Muito mais tarde isso mudou, e a sociedade se tornou maquiaram alguns detalhes, mas são úteis.
inteiramente patriarcal. Mas a tradição desse sistema matriarcal
ainda era bastante forte em 2000 a.C. Havia uma sacerdotisa Desde o início dos anos 1980, você tem feito uma série de
responsável pelos celeiros. O sacerdote era um tipo de dalai lama, adaptações literárias, de autores como James Boswell, Richard
homem sagrado e governante ao mesmo tempo. von Krafft-Ebing, Jean-Paul Sartre ou Franz Kafka. Sua versão
do Gênesis já foi definida como o ápice de seu “impulso de
Seu traço em Gênesis apresenta um detalhismo maior em relação ilustração clássica”. Você concorda?
a obras anteriores. Você mudou sua maneira de desenhar? Sim, é o meu maior impulso de ilustração clássica. Precisamente.
Aprendi muito. Acho que aperfeiçoei minhas habilidades em É certamente o meu maior trabalho em muito tempo. É o maior
alguns aspectos. Nunca tinha desenhado animais de forma tão trabalho que já realizei para um único livro desde quando tinha
realista – burros, camelos, ovelhas, cabras. Aprendi a me educar 19 anos, quando fiz aquele livro colorido, The Big Yum Yum Book
nesse sentido. Primeiro, copiava de outras fotografias e de outros (risos). Foi o meu maior projeto desde aquele tempo.
desenhos. Com o tempo passei a desenhar sem copiar. Aprendi
a desenhar camelos e burros muito bem. Nunca tinha desenhado Especialmente a partir dos anos 1990, tem havido uma
um camelo na vida (risos)! Também melhorei no desenho da reavaliação da sua obra, com destaque para o célebre texto
anatomia humana. Desenhei tantas e tantas figuras humanas, do Robert Hughes que o compara a Pieter Bruegel. Como
em diferentes posições de ação, que acabei progredindo. você vê esse tipo de abordagem à sua obra e em relação aos
Também desenhei muito essas roupas drapeadas. Todos eles quadrinhos em geral?
vestem roupas compridas, soltas e drapeadas. Acho que minhas A minha abordagem com os quadrinhos é bastante conservadora.
qualidades nessa área ainda são toscas, nunca consegui atingir Não uso layouts extravagantes e o meu traço é tradicional.
um alto nível no entendimento da ciência das dobras das roupas. Não uso efeitos cinematográficos e dramáticos, como fazem
Em ilustração, isso se chama “conceito das dobras”. É uma ciência muitos outros. Alguns críticos dizem que é cansativo ler meus
aprender a desenhar tecidos drapeados. Nunca estudei em quadrinhos. Mas não se pode agradar a todos.
escolas de artes, onde se tem aulas só para isso. Eles aprendiam
a desenhar aquelas dobrinhas. Se você pegar a arte europeia
do período pré-Renascentista, entre 1300 e 1400, muitas vezes

A
os artistas ficam completamente absorvidos nesse conceito das
dobras. São temas religiosos, mostram a Virgem Maria ou alguém prendi muito. Acho que
assim, mas os artistas dedicavam a maior parte do tempo a essas aperfeiçoei minhas habilidades
dobras, era algo novo. Se você deixa cair um tecido no chão,
como seriam as dobras? É muito complicado tentar desenhar em alguns aspectos. Nunca
isso (risos)! No começo, passei muito tempo corrigindo erros
em relação a roupas drapeadas e à anatomia das pessoas. No
tinha desenhado animais de forma tão
início, desenhava braços longos demais, havia muitas coisas a ser realista – burros, camelos, ovelhas, cabras.
corrigidas. Usava corretor líquido sem parar.
Aprendi a me educar nesse sentido.
Você teve a ajuda de seu amigo e ilustrador Peter Poplaski na Primeiro, copiava de outras fotografias e
pesquisa iconográfica.
Ele é um ótimo ilustrador. Entende o que é preciso para fazer
de outros desenhos. Com o tempo passei a
as coisas direito. Por iniciativa própria, passou bastante tempo desenhar sem copiar. Aprendi a desenhar
assistindo para mim a todos esses DVDs de filmes bíblicos
antigos como Os Dez Mandamentos (Cecil B. DeMille, 1956) e
camelos e burros muito bem. Nunca tinha
fazia fotos da tela da TV. Eu tinha centenas de fotos espalhadas desenhado um camelo na vida (risos)!
na minha mesa enquanto trabalhava. Os Dez Mandamentos foi
realmente o que mais me ajudou. Eles gastaram muito dinheiro
nos detalhes desse filme.

Mas você também se inspirou em referências hollywoodianas


menos previsíveis, como O Céu que nos Protege (1990), de
Bernardo Berlotucci; A Ultima Tentação de Cristo (1998), de
Martin Scorsese, e A Múmia (1999) e O Retorno da Múmia
(2001), de Stephen Sommers. Em que esses filmes ajudaram?
Os cenários e figurinos bíblicos não eram tão bons como em Os
Dez Mandamentos, porque foram filmes feitos com orçamentos
bem menores. Mas, mesmo assim, o meu modelo para o Faraó do
Egito veio do filme A Múmia (risos). Embora os figurinos sejam
meio inventados e feitos de qualquer jeito, ainda assim funcionava
para os quadrinhos. Não é possível chegar à exatidão histórica,
não há informação visual sobre o período dos sumérios, de
2000 a.C., na Mesopotâmia. Encontraram uma caixa com figuras
incrustadas de um veículo de quatro rodas puxado por bois,
desenhadas de uma forma bastante rústica. É bem estilizado, não

22 23
24 25
Depois da turnê americana do Gênesis, você pretende começar tentaram. Espero que Obama e sua equipe possam interromper
um novo projeto de livro com Aline [Kominski, esposa de isso, pelo menos um pouco. Essa máquina destruidora que é o
Crumb]. Como será? estado fascista corporativo tem muita força nos EUA, e o Obama
Queremos usar algumas das coisas antigas que fizemos para a não pode pará-la sozinho. Mas ele representa uma esperança em
New Yorker. Já temos muitas ideias, e com a Aline é tudo muito relação a isso. O mundo inteiro espera que ele possa parar essa
fácil, o livro se faz sozinho. Quando começo a trabalhar com ela, máquina. Aqui na França, todos o amam, o mundo ama Obama. É
o humor judeu começa a jorrar. Ela é uma comediante stand up uma esperança de que o estado fascista corporativo não vingue.
como Lenny Bruce, tem ideias o tempo todo. Uma herança judaica
nova-iorquina (risos). O problema é organizar aquilo tudo e editar, Você votou pela primeira vez na vida nas últimas eleições
cortar, porque tem sempre muito material. presidenciais americanas, em Obama. Como vê o primeiro
ano de seu governo e todas as reações que começam a
Você ainda lê quadrinhos? Que artistas atuais você aprecia? aparecer contra ele?
Não tenho nenhum artista favorito. Procuro ver novas coisas, É assustador. Ele pode ser morto. Posso imaginá-lo sendo
mas também leio HQs antigas. Há muita coisa interessante sendo assassinado por brancos racistas. Mas por trás desses racistas
criada por jovens artistas, desconhecidos, e tento acompanhar o pode haver um amplo programa do estado fascista corporativo,
que se passa na EUA e também aqui na Europa. instigando e provocando racistas a matá-lo, sem que isso afete a
reputação delas, sem que prejudique a imagem de pessoas que
Você ainda tem contato com Harvey Pekar, com quem não gostam dele, mas que estão no topo desse sistema. Tudo
colaborou no passado? depende de o quanto Obama conseguir ser eficaz. A eficácia
Não nos falamos mais com tanta frequência. Fico feliz por ele dele pode gerar grande raiva e ressentimento na direita. Se ele
estar bem de saúde e vivo, após quase ter morrido de câncer há não for tão eficiente, provavelmente não vão querer matá-lo. Não
alguns anos. Ele fez um livro ótimo, chamado Our Cancer Year, sei. A única coisa que sei é que a maior parte das pessoas que
cem páginas sobre sofrer de câncer. É um grande contador de gostam do Obama esperam que ele não seja atingido por essas
histórias, na tradição judaica. coisas, mas os americanos estão bastante preocupados e o resto
do mundo também. Já ouviu falar de uma ideia dos neocons,
Quais as principais mudanças que você notou nos EUA e na o “Projeto Para Um Novo Século Americano”? Um think tank
França desde que passou a morar aqui? formado no governo Bush por nomes como Dick Cheney, Paul
Vivo numa pequena aldeia no Sul. Cheguei em 1990 e não tenho Wolfowitz e Richard Pearl elaborou, no ano 2000, um relatório
visto tanta modernização por lá. Era um lugar bem atrasado para intitulado “Defesas Americanas”, algo assim. Há cerca de um
a França, que é considerado um país ocidental desenvolvido. mês, alguém baixou o texto para mim no computador; eu li, e é
A eletricidade e as linhas de telefone não funcionavam muito chocante. Eles afirmam de forma bastante clara que os Estados
bem – era como se fosse o Terceiro Mundo da França. Mas está Unidos são, desde o fim da União Soviética, a única superpotência
cada vez mais moderno, melhoraram bastante as estradas, do mundo, e que essa é a oportunidade para os EUA dominarem
construíram supermercados. Por um lado é bom; por outro, é militarmente todo o planeta. Está escrito ali. E não somente o
ruim. Tempos atrás, eu e a Aline nos envolvemos numa luta planeta, mas o espaço: eles querem dominar militarmente o
contra a instalação de um supermercado em nossa aldeia. Vários espaço, e também o ciberespaço. Durante anos essas pessoas
moradores queriam o supermercado, ficaram maravilhados, eram influenciaram o governo Bush para efetivar um programa de

T
ingênuos, não entendiam o que estavam fazendo para a cidade. dominação do mundo. De onde vinham os recursos, quem estava
Mas conseguimos embargar o supermercado. Algumas pessoas empos atrás, eu e a Aline nos pagando por isso? Eles tiveram que ignorar liberdades civis, a
que também eram contra me pediram para fazer um cartaz contra
o supermercado. Eu fiz um desenho e ele foi espalhado por toda
envolvemos numa luta contra a democracia teve que sofrer. Isso é fascismo na forma mais simples
e literal, como defendido por Mussolini. Não podemos confundir
parte. As pessoas que eram a favor direcionaram toda a raiva instalação de um supermercado em com nazismo, mas é fascismo.
contra mim. Cheguei a ser agredido fisicamente por um jovem
que estava arrancando os cartazes. Houve essa mudança pela
nossa aldeia. Vários moradores queriam o Quando entrevistei Claude Lévi-Strauss (1908-2009), ele
modernização. Agora o lugar está mais parecido com os EUA supermercado, ficaram maravilhados, eram manifestou sua inquietação pelo fato de que, quando nasceu,
– eles se vestem como americanos, estão mais gordos, a dieta
mudou, comem mais snack food. A cultura consumista está na
ingênuos, não entendiam o que estavam havia 1,5 bilhão de homens sobre a Terra; quando entrou na
Universidade de São Paulo, eram 2 bilhões; hoje, há quase
moda. As crianças da nova geração são mais obesas. As coisas fazendo para a cidade. 7 bilhões, e daqui a 20 ou 30 anos teremos 9 bilhões. Você
acontecem muito rápido, é espantoso. diz ter a mesma preocupação com o rápido aumento da
população mundial.
Você pretende retornar aos EUA? Isso certamente terá um efeito significativo no planeta e em nossas
Não. Eu volto com bastante frequência, pelo menos uma vez relações sociais. Mas, às vezes, penso que essa grande multiplicação
por ano. Sinto falta dos meus amigos e da família, gostaria de de seres humanos também possa ter um lado positivo. Haverá
vê-los mais vezes. É muito complicado viajar de avião hoje, os mais energia mental no planeta, como nunca houve, por causa
aeroportos são horríveis. Mas para rever essas pessoas tenho que desse crescimento. A energia mental humana poderá atingir uma
voltar de vez em quando. Para mim, a cultura dos EUA está se massa crítica e provocar um salto na evolução da inteligência.
tornando ainda mais corporativa. É repugnante. Dentro ou fora Essa é a teoria mais otimista em relação à explosão populacional:
de casa, você é constantemente bombardeado por propaganda coletivamente, poderemos atingir um ponto em que nos tornaremos
corporativa, para consumir. Começou com o Reagan, mas acredito mais sensíveis ao bem-estar coletivo ou à nossa intenção coletiva.
que nos anos Bush houve um impulso muito agressivo em direção Mas também podemos regredir e nos tornar novamente bárbaros.
a um estado fascista corporativo. Não acho que conseguiram, mas É difícil dizer (risos).

26 27
Você se define como gnóstico.
Gnóstico é alguém que busca o conhecimento de Deus. Sou alguém
em busca desse conhecimento. Não tenho a pretensão de dizer que
possuo algum conhecimento, mas o procuro. Quando você medita, tenta
compreender a natureza da realidade, da nossa existência, da vida. Tenta
unificar o todo da vida. Isso é muito gnóstico. Existe um texto gnóstico
descoberto nos anos 1940, chamado “Nag Hammadi”, que é muito
interessante. Fui bastante reprimido. A Igreja cristã e outras não gostavam
de gnósticos – é algo muito vago, solto, sem doutrina suficiente. Os
primeiros católicos se doutrinaram muito rapidamente. Queriam verdades
absolutas, e todos que não concordavam com essas verdades eram
excomungados. Por volta de 300 d.C., um bispo decidiu que todos que
não reconhecessem Jesus como a encarnação de Deus não eram cristãos.
Foi aí que começou o conflito em torno da heresia e dos hereges, de
quem discordava da Igreja, milhões de pessoas perseguidas ao longo dos
séculos. Ser gnóstico é não se limitar e não ter doutrinas. É diferente de ser
agnóstico. Agnósticos duvidam da existência de Deus. Não são exatamente
ateus, mas é um jeito de dizer “isso não é comigo”. Mas os gnósticos são
interessados e praticam essa busca, na forma de meditação.

Você medita?

D
Sim, tento meditar todos os dias. Às vezes estou muito ocupado e não
urante anos essas pessoas consigo, mas tento meditar todos os dias. É algo muito benéfico e útil.

influenciaram o governo Bush Você ainda é um colecionador compulsivo de 78 rotações?


para efetivar um programa Ainda coleciono, tenho mais de cinco mil discos. Pouco antes da nossa

de dominação do mundo. De onde entrevista, estava ouvindo alguns 78 rotações que consegui aqui em Paris,
há três dias, com um cara que os garimpa em feiras de antiguidades.
vinham os recursos, quem estava Troquei os discos por desenhos (risos). Ele achou ótimos discos –

pagando por isso? Eles tiveram que franceses, da África do Norte, Turquia e um disco grego fabuloso. Coisas
desconhecidas, perdidas. É como se você resgatasse esses discos do
ignorar liberdades civis, a democracia esquecimento. Muitas vezes é preciso lavá-los, porque estão sujos,

teve que sofrer. Isso é fascismo na forma ninguém cuida.

mais simples e literal, como defendido Você também já mencionou que aprecia discos brasileiros.
Sim, coisas antigas. Mas é muito difícil de encontrar fora do Brasil, muito
por Mussolini. Não podemos confundir pouca coisa saiu em alguns raros CDs. Aqui na França há muito mais
com nazismo, mas é fascismo. interesse do que nos EUA. Tenho amigos que colecionam discos de 78
rotações e um deles conseguiu achar alguns brasileiros excelentes. Há
diferentes estilos e tipos de música. Acho muito interessante o período do
final dos anos 1920 e começo dos anos 1930. É música de primeira linha.
Gostaria de ouvir mais, mas, mesmo para mim, que sou colecionador, é
muito difícil de achar. Esse amigo encontrou discos brasileiros em Portugal.

Como você avalia a música brasileira desse período?


Ritmicamente é muito avançada, uma combinação de música africana
com influências europeias, tudo misturado. É genial. Há ótimos músicos
de instrumentos de cordas, e mesmo grupos que tocam um tipo de jazz
e coisas com sopros. Mas não posso falar com autoridade, não lembro de
nomes, minha familiaridade é limitada. Mesmo tendo ouvido tão pouco,
a qualidade me espanta. Provavelmente há colecionadores sérios de 78
rotações daquele período no Brasil. Tenho certeza de que deve existir no
Rio ou em São Paulo. Se você pudesse contatar alguns deles e conseguir
cópias eu agradeceria. Mas discos do tempo da Carmem Miranda não me
interessam (risos)! 3

2saiba mais
crumbproducts.com

28 29
dirty projectors indie rock de breque Por Mateus Potumati

Sentado à mesa em um restaurante de Goiânia,


naquele que é provavelmente seu primeiro al-
moço decente no Brasil – no dia anterior, quando
chegou, ele teve que se contentar com o aeropor-
to –, Dave Longstreth explica a seus colegas de
banda, animado, os ingredientes dos pratos locais.
O cardápio não é bilíngue, e ele não fala portu-
guês, mas se sai surpreendentemente bem. Não
pergunto para não interromper o momento, mas
arrisco que a familiaridade com as palavras venha
de seu grande interesse pela música brasileira. Se-
manas antes, pelo telefone, ele havia me dito que
cresceu cercado por MPB e que já foi “fanático pe-
los discos de Tom Jobim e Caetano Veloso”. Não é
por acaso que o Dirty Projectors escolheu o Bra-
sil para encerrar a turnê de um ano memorável,
em que saltou da condição de banda interessante,
mas ainda um tanto hermética, para o posto de
um dos grupos mais importantes e influentes da
música norte-americana neste fim de década. 1

30 31
Dave Longstreth falou com a +SOMA, na única entrevista que deu durante sua
passagem pelo Brasil, depois de uma escapada para comprar vinis. Nacionais,
“A música deles tem elementos é claro.

familiares, e mesmo assim “Cannibal Resource” tem uma letra bastante forte sobre os problemas
muitas vezes soa como música que o mundo vive hoje – que basicamente se resumem ao uso predatório
dos recursos humanos e naturais –, e sobre a postura de cada um de nós
pop feita por alguém que leu a respeito. Ao mesmo tempo em que é pessimista, tem uma certa dose
sobre a forma, mas nunca de esperança. É possível ficar bem com o mundo no ponto em que che-
gamos?
ouviu as músicas, e depois Não sei. Não sei dizer se os nossos dias estão definitivamente contados por

pegou os elementos básicos conta do que fizemos com o clima. A consciência está aumentando, mas a
responsabilidade não segue o mesmo ritmo. O planeta está irremediavel-
para compor. Mas isso não é mente fodido? Não sei. O que é certo é que a forma como vivemos – ou

verdade, porque Dave tem um melhor, como as Américas e a Europa vivem e o resto do mundo se inspira
– não é sustentável, exige muito da Terra. Parece impossível pensar em me-
conhecimento profundo sobre lhorar a qualidade de vida na Terra com a população aumentando de forma
tão acelerada como está agora. É mais lógico pensar em uma diminuição
músicas e seus respectivos acelerada como fruto das nossas próprias ações.

autores. Mesmo assim, o Houve um ponto em que você decidiu partir de uma visão mais idiossin-
som da banda segue sendo crática, como em Rise Above [disco de 2007 em que a banda faz uma
releitura do clássico álbum punk Damaged, do Black Flag], para tratar de
completamente estranho e assuntos mais abrangentes como esse?
estranhamente familiar ao Até você ter colocado dessa forma eu não tinha pensado nisso, e talvez
nunca pensasse em organizar as coisas sob essa lógica progressiva. Acho
mesmo tempo.” David que a música tem a capacidade de falar sobre todos os tipos de coisas que
Byrne encontramos pela frente na vida, e desde que comecei a compor é assim
que eu penso. Mesmo Rise Above, que tem esse conceito mais idiossincrá-
tico, acho que trata de coisas tão amplas e universais como qualquer coisa
O salto se deu com o lançamento, em junho, de Bitte Orca (“bitte” do ale- no disco novo.
mão “por favor”), que ampliou o estilo peculiar de composição de Lon-
gstreth em direção a um pop de vanguarda – algo como um indie-rock Ainda falando sobre letras, “Stillness Is The Move” é inspirada em um
com déficit de atenção, que une de forma inteligente estilos como punk/ diálogo de Asas do Desejo, do Win Wenders, que fala sobre um anjo que
pós-punk, no-wave, rock progressivo, música africana, r&b, hip-hop e a se apaixona por uma mulher e quer se tornar humano. É um filme impor-
composição europeia contemporânea. Antropofagia tropicalista pura, ver- tante pra você?
são Brooklyn do século XXI. Quando entrevistei Longstreth, horas antes de Eu não vi o filme, na verdade, porque não tive tempo. Mas queria ver e li a
seu show no Goiânia Noise 2009, comentei que, na minha opinião, o Dirty respeito, e parece o tipo de filme com o qual a Amber [Coffman, vocalista,
Projectors fazia um som mais “brasileiro” do que a maioria das bandas do para quem Longstreth compôs a música] se identificaria muito. Aí, como
festival. “Vou encarar isso como um elogio”, ele disse, se divertindo com a uma forma de assistir sem assistir, pedi a ela para lembrar as frases do filme
ideia. Quatro dias depois, no final de seu show apoteótico em São Paulo, que mais chamaram sua atenção e elas foram inseridas no esqueleto vocal,
ele diria: “É uma honra para nós ter encerrado nossa turnê tocando para que já existia.
vocês. Os brasileiros são capazes de qualquer coisa. Vocês são o povo mais
musical do mundo”. Um pouco parecido com o que você fez em Rise Above.
Isso, um pouco.
Bitte Orca, sexto álbum do grupo (excluídos EPs e singles), fisgou pesos-
pesados como David Byrne, Arto Lindsey e o já citado Caetano – que, para O que na história se parece com a Amber, para você? “O que me preocupa sobre
felicidade geral dos Projectors, compareceu ao show da banda no Rio de Eu sei só o básico do roteiro: um anjo se apaixona por uma mulher e quer se
Janeiro. Em seu blog, Byrne disse: “A música deles tem elementos familia- tornar humano, com todas as imperfeições. É uma história bonita. É difícil consciência ecológica nos
res, e mesmo assim muitas vezes soa como música pop feita por alguém
que leu sobre a forma, mas nunca ouviu as músicas, e depois pegou os ele-
verbalizar, mas a Amber é uma pessoa muito apaixonada. As primeiras fra-
ses vão do ponto mais grave do alcance vocal dela, e os vocalises no final
EUA é que ela tem um aspecto
mentos básicos para compor. Mas isso não é verdade, porque Dave tem um atingem as notas mais agudas, então também é feito pra ela nesse sentido. fetichista. As grandes empresas
conhecimento profundo sobre músicas e seus respectivos autores. Mesmo E o clima r&b da música também é totalmente pensado nela. A Amber ou-
assim, o som da banda segue sendo completamente estranho e estranha- via muito esse tipo de música quando era adolescente. estão na onda de se definirem
mente familiar ao mesmo tempo”. Quem assistiu a algum show sabe que é como ‘verdes’. É a palavra
como pagar por uma banda e ver umas 40 ao mesmo tempo. Muito disso é Acho interessante a forma incomum como você encaixa os acentos das
culpa de seu conjunto magnífico, formado por Amber Coffman (voz e gui- palavras nessa música. Às vezes é como se a criança do começo da letra da moda, e eu não sei até que
tarra), Angel Deradoorian (voz, teclados, guitarra e baixo), Brian Mcomber
(bateria), Haley Dekle (voz) e Nat Baldwin (baixo). A dinâmica entre os seis
estivesse cantando, tentando encaixar no ritmo coisas que ela acabou
de inventar. Eu não ousaria cantar aqui agora, mas você sabe do que eu
ponto os produtos [dessas
gera resultados tão impressionantes – no disco e mais ainda ao vivo – que estou falando, não? empresas] são diferentes do
fica claro estarmos diante de um desses encontros que não acontecem com (Risos) Sei, sim. Obrigado pelo comentário. Não sei explicar, é minha forma
muita frequência. de compor. Tentar encaixar música e ideias verbais. que já temos disponível.”
32 33
“É uma ótima época para fazer
Gosto de um verso em “Temecula Sunrise” em que você canta “I know the música, os discos não são O que você acha de pessoas como Thom Yorke e Bono, que criaram essa
horizon is bright and motionless/ Like an EKG of a dying woman” (“Sei que persona pública imensa, ativista e às vezes caricata? Sem levar em conta
o horizonte é brilhante e imóvel/ Como o eletrocardiograma de uma mu- mais posicionados como o que você pensa da música deles.
lher que está morrendo”). É trágico, mas ao mesmo tempo tem uma ironia. produtos como antes, não há Você diz a posição do rockstar como um tipo de autoridade social, uma
Nos EUA, muita gente muda para o Sul quando fica velha e se aposenta, persona em prol do ativismo? Especificamente em relação ao meio-am-
porque lá é quente. Como na Flórida, no Sudoeste ou no Sul da Califórnia. praticamente mais interesse em biente? Em princípio, acho legal. [É legal] usar a plataforma que eles têm
Isso é uma coisa. E a outra é que a primeira vez que passamos de carro
pela região de Temecula (cidade ao sul da Califórnia, próxima a San Die-
discos como produtos. Por para atrair atenção a uma área tão importante. Acho ótimo, na verdade.
Acho que o Bono tem feito um trabalho imenso na África, em relação à
go), durante a primeira turnê de Rise Above, uma garota chamada Susanna isso, estamos provavelmente AIDS, ao perdão da dívida externa. É algo grande demais para ser realizado
[Waiche], que canta no disco com Amber e é de San Diego, ficou surpresa por um homem só. Por outro lado, não sei muito a respeito, talvez seja cheio
com o desenvolvimento, as casas novas. Ela dizia “nossa, lembro de vir aqui mais livres do que nunca para de furos e eu não esteja ciente de tudo. O mesmo vale para Thom Yorke.
quando era criança, na primavera, com a minha avó, fazer piquenique na criar o que quisermos. “ Há uma linha nebulosa entre ser consciente, chato e hipócrita, de certa for-
colina, entre os arbustos”. Acho que pensei na imagem da avó dela, velha, ma, porque ambos usam caminhões imensos – 50, 100 por show – e levam
morrendo no deserto. centenas de milhares de pessoas, que às vezes dirigem duas horas, até are-
nas gigantes. É difícil não se tornar uma força desse tamanho na Terra, com
Você fala sobre morte aí e em “Cannibal Resource”. Acha que há uma um impacto ambiental tão grande, quando sua música é tão conhecida.
ligação entre as duas nesse sentido, de começar a sentir de forma mais
concreta a proximidade da morte? Uma escritora brasileira, Hilda Hilst, diz em um de seus livros que “os
Talvez. “Temecula Sunrise” também é uma música sobre o fim do mundo, gigantes devem ser mortos porque são gigantescos”.
à sua maneira. Certamente sobre o fim dos EUA. Faz sentido estabelecer Há uma certa aura revolucionária por trás dessa frase, uma força, uma
essa ligação. Os EUA estão perto do fim, isso é muito visível agora. O espí- intensidade agressiva na forma como essa escritora colocou a coisa.
rito está cansado – o espírito da nação, da democracia participativa. Não Em geral, penso que gigantes tendem a tropeçar, cair e quebrar o pescoço
há muita inspiração hoje, as pessoas não percebem que têm o poder de por si próprios. Não é necessariamente preciso acabar com eles.
mudar as coisas.
Como na história do sonho de Nabucodonosor, na Bíblia, em que ele é
Um ano atrás, com Obama, estava um pouco diferente. uma estátua com pés de barro.
O Obama é um cara incrivelmente carismático, e depois do Bush nós todos Não conheço isso, em que parte da Bíblia é?
levantamos a cabeça e percebemos que precisávamos de alguma mudança
nominal. Mas estou falando... Sinto que o tipo de mudança que produz um No livro de Daniel, acho. A estátua é gigante, com cabeça de ouro etc., mas
crescimento recíproco real é a soma das tarefas pequenas que as pessoas os pés são de barro. Aí uma pedra gigante cai do céu bem nos pés e derruba
realizam em sua vida diária. Algo para poupar energia, usar menos água, tudo. A interpretação bíblica tem a ver com o futuro do judaísmo, a chegada
menos papel, gerar menos lixo, esse tipo de coisa. de Cristo e tal, mas independentemente disso é uma imagem interessante.
Oh, eu não sabia disso. Parece legal, vou procurar me informar. Acho que
isso costuma acontecer com muita frequência.
Muito pouca gente faz isso.
Exato. Mas se você tiver 35 milhões de pessoas mudando seus hábitos A sua voz foi uma das mais influentes na música americana este ano. Você
cotidianos, para fazer algo... O que me preocupa sobre consciência eco- se imagina crescendo a ponto de estar em uma posição parecida no futuro?
lógica nos EUA é que ela tem um aspecto fetichista. As grandes empre- Não sei. Foi um grande ano para nós, fizemos uma turnê muito extensa,
sas estão na onda de se definirem como “verdes”. É a palavra da moda, e o público nos nossos shows é muito maior do que antes. Mas eu ainda
eu não sei até que ponto os produtos [dessas empresas] são diferentes me sinto como se o nível de relacionamento fosse de pessoa para pessoa.
do que já temos disponível. Por outro lado, a História é muito extensa. A É difícil imaginar qualquer banda ou artista hoje ocupando o espaço cul-
janela de 23 anos de consciência que eu tive até agora (o músico tem 27 tural que aquelas bandas tiveram no passado, porque tudo é bem menor.
anos) é muito pequena para julgar o cenário inteiro. Na história do meu É uma ótima época para fazer música, os discos não são mais posicionados
país, houve outras vezes em que a nação e a União estiveram fracas, e as como produtos como antes, não há praticamente mais interesse em discos
pessoas choraram pelo fim dos EUA da mesma forma que fazem agora. como produtos. Por isso, estamos provavelmente mais livres do que nunca
Então, não sei. Realmente não sei. Mas acho que nós realmente precisa- para criar o que quisermos.
mos mudar as coisas.
Sem contar que dez, quinze anos atrás seria inimaginável uma banda
Você faz alguma coisa para ajudar, na sua vida diária? como vocês tocando no Brasil.
(Pensativo) Tento usar menos papel. Mas não estou envolvido em nenhuma Com certeza. Todos nós na banda sabemos que temos muita sorte por
forma de ativismo. E, claro, nós [gastamos muita energia] nos locomovendo estarmos onde estamos hoje, e por podermos tocar no Brasil. Somos
o tempo todo de avião e van em turnê. É difícil conciliar ações com crenças. muito gratos por isso. É a primeira vez de todo mundo, estamos todos
muito empolgados. 3

2saiba mais
dominorecordco.com/artists/dirty-projectors

34 35
não é assim que as coisas são:
por Tiago Mesquita
.

obscurantismo e razão na obra de Tatiana Blass


Cinema é feito de imagens recortadas e coladas.
Por vezes, os cortes são tão suaves que passamos de
uma cena a outra sem perceber que o foco saiu de um
lugar e foi para o canto oposto, criando uma ilusão
perfeita. Mas também existem cortes secos, bruscos.
Mesmo que suponham uma continuidade da ação que se
desenrola diante da câmera, notamos o intervalo entre
uma cena e outra.

Na segunda metade da década de 1960, Andy Warhol


fazia os seus Screen Tests, com a câmera parada com um
personagem posando diante dela. Um dos filmes mais
bonitos dessa série é um em que ele retratou Dennis
Hopper. O ator se mexe pouco, olha para a lente como
quem espera o tempo passar. Em um dado momento, a
imagem é interrompida por um desses cortes violentos.
Menos de um segundo depois, a cena volta, quase sem
nenhuma modificação. Mesmo assim, entre um negativo
e outro, temos a impressão de que perdemos alguma
coisa na escuridão. 1

4avião . acrílica sobre tela . 2009 . foto por Tatiana Blass

B oa parte dos trabalhos de Tatiana Blass lida com essas


interrupções, intervalos bem marcados que parecem ter rompido
formas, objetos e ambientes que tinham alguma integridade. São pernas
No ano passado, a editora espanhola Dardo, de Santiago de Compostela,
publicou um pequeno volume com os melhores textos sobre a artista e
imagens da sua obra. A partir do livro, tornou-se possível a quem não
de cavalo em metal ou mármore distribuídas simetricamente que nos conhece Tatiana apreender algo de sua trajetória.
fazem notar a falta do corpo do animal que deveria estar sobre elas
(como em Páreo, Patas e na Cabine da Monga); ou uma sala, como a Alguns trabalhos eu não via há algum tempo. Deparei-me com eles no livro
de Zona Morta (2007), que passa a ter uma faixa branca entre a parte e fiquei surpreso ao constatar retrospectivamente como algumas relações
debaixo e a de cima. A lacuna nos traz a impressão de um espaço falseadas sempre interessaram a artista. Como as imitações do que parece
recriado, farsesco, que também parece ter perdido algo de sua realidade. “natural” podem se mostrar verdadeiras na sua obra.
Isso porque Tatiana não se interessa pela realidade, ela fala é da ilusão.
Do que parece ser subtraído do mundo quando transformamos as Por exemplo, desde as pinturas de 2003 e 2004, seu interesse é pelo que não
experiências em um código. é verdadeiro. Nos trabalhos daquela época, Tatiana figurava relações formais
artificiais, com cores parecidas com corante de balas. Não por acaso, os
Desde suas colagens de 2005, sempre achei que esses intervalos trabalhos tinham nomes como Eno e Tobogã.
imitavam, em certa medida, um movimento que fazemos mentalmente
ao converter o que vivemos ou o que os outros viveram em uma Uma consciência cada vez maior das questões
imagem, uma narrativa ou uma descrição científica. Era como se a da imitação inverossímil do mundo fez com
artista mostrasse os lapsos e o que ignoramos ao passar uma série que a artista se aprofundasse na pesquisa e
de acontecimentos descontínuos, simultâneos e insondáveis em trabalhasse com as razões que nos fazem
relações coerentes, bem narradas, com começo, meio e fim, causa e atribuir às figuras peso de realidade, verdade à
consequência. ilusão. Como se não fosse nada, era como se ela perguntasse: por que
dizemos que tal bala ou tal sorvete é de abacaxi?
De certa forma, era como se ela, diante dos nossos olhos, fizesse e
desfizesse os esquemas da ilusão. Sobretudo o das ilusões racionalistas, Como, mesmo com a distância entre o gosto do doce e o gosto da fruta,
que nos fazem tomar a descrição de alguma coisa como verdade. No conseguimos colocá-los dentro da mesma família? Porém isso não é
intervalo entre uma coisa e outra, as melhores explicações se eclipsavam, mostrado como engano, mas como algo curioso, que faz com que os
tornavam-se obscurantismo. Nesse sentido, a ilusão mais ilusória seria significados sejam mais maleáveis do que parecem. Por isso, ao tentar
aquela que se pretende como verossímil. Aquela que explica as coisas responder ao dilema, a artista não recorre a respostas científicas ou
como se insistisse em dizer: “é assim que as coisas são”. filosóficas, mas cria novas ilusões.

36
4Cão cego #2 . parafina preta . 2009 . foto por Andrew Kemp

4Cão cego #1” . latão fundido e parafina . 2009 . foto por Andrew Kemp

38
4Teatro para cachorros . acrílica sobre tela . 2009 . foto por Milene Rinaldi

E m uma pintura feita em 2007, chamada Xadrez Prata, ela pinta


formas que parecem ser positivo e negativo umas das outras sobre
uma estampa regular de um xadrez pequenino. Poderíamos supor que a
integral do bicho, aqui se trata da conversão daquelas silhuetas em uma
mancha, que faz com que os cachorros se tornem mais indefinidos do
que as patas de cavalo dispostas regularmente nas escadarias de um
artista descamou uma cor e encontrou imagens soltas, que no fundo são museu. 4Cachorros molhados . acrílica sobre tela . 2009 . foto por Milene Rinaldi
lâminas da mesma cor, mas também podemos imaginar que são peças
desencaixadas, soltas, que só sugerem a relação de continuidade entre Quando vi as duas esculturas que a artista mostrou na exposição, as
4Zona Morta . instalação com móveis e objetos seccionados . 2007 . foto por Everton Ballardin
uma e outra parte por estarem próximas. imagens dos cães me pareceram mais violentas, selvagens e corrosivas.
São esculturas hiper-realistas em cera e metal. Ambas as peças se
Boa parte de suas pinturas, aliás, se comporta parecem muito com o animal, são cópias perfeitas. Imitam os pelos, as
como colagens. A artista é uma virtuose na marcas das costelas e os detalhes da pele do cachorro. O bicho dorme,
técnica. Embora nos seus primeiros e últimos mas deve estar morto. São dois, um preto, outro dourado e branco.
trabalhos a pincelada e a escolha da cor sejam O preto é todo de cera, sua cabeça se derrete, enquanto ele, impassível,
fundamentais, existe a ideia de retirar uma espera todo o seu corpo tornar-se mancha pelo chão. É muito aflitivo.
forma ou figura de um lugar e colar em outro
e fazer com que ganhem sentido diferente. Já o outro cão tem mais cara de escultura. Feito sobre uma base de
Ela já fez isso com cavalos, com um faisão empalhado e agora faz com latão, recebe um volume de parafina branca no seu interior. O metal
silhuetas de cachorro e de humanos que, dispostos como estão, parecem fundido constitui a cabeça, o pescoço, a parte de trás, o rabo e a ponta
contemplar uma cena, como se estivessem ao redor de um palco. das patas do cão. A parafina faz o resto. No decorrer da exposição, a
peça se deforma. A parafina também se tornou uma mancha disforme.
Na última exposição que fez, em 2009, no Museu de Arte Moderna da Sobraram os restos de metal. Assim, a representação das partes não
Bahia, Tatiana Blass mostrou cachorros figurados por todos os lados: nas é mais só incompleta, como tendia a ser nos outros trabalhos, mas
pinturas, nos desenhos, nos volumes e nos textos. Porque a artista, tal mórbida. Não se trata mais de fissura, mas de decomposição e mutilação.
como Nuno Ramos e Bruce Nauman, também lida com a palavra como
elemento visual. No caso de Tatiana, não se trata da dedicação ao ofício Tatiana Blass figura a morte. Porém não é o cachorro cego que morre, mas
das letras, mas do uso do texto como elemento expositivo. a imagem que tenta eternizá-lo. Em um dos seus textos a artista anota: já
Nesses textos, descobrimos, aliás, que os bichos, como o cachorro de não consigo esconder meu desespero. a cada minuto que passa
Goya, são cegos. Circulam por lá confiando em outros sentidos. Tatiana é sou engolido pelo chão! de que serve este inútil amigo que por mim
precisa: “são cães cegos que não se pode adestrar para se tornarem cães nada pode fazer a não ser observar com seus olhos mórbidos meu
guia. São como atores da vida comum, que vagam pela cena, sem um desaparecimento. late cão! late!
comportamento predestinado”.
Ele não late, desaparece, deixa uma mancha informe como lembrança.
Nas telas, eles estão sobre um palco de teatro, algumas vezes com Algo que não dá nem para nomear. Talvez como nossa ilusão de
plateia. Parece-me que tal tema tem relação direta com o interesse da compreender o mundo diante da tragédia, do inevitável. Não sobra muito
artista na ilusão. Se antes, como nas colagens da série Páreo, ou na mais do que resíduos quando o fato se põe diante de nós. Embora Tatiana
Cabine da monga, partes de um corpo de cavalo nos sugeria a imagem mostre cães cegos, quem fica no escuro ao lado deles somos nós.

2saiba mais
www.tatianablass.com.br

40
“Eu não compararia com essa geração, não sei...
Cada artista tem um traço diferente, mas o que
admiro no desenho dele é como ele cria, é bem
fluido e criativo. Gosto das situações e de como
usa as linhas. E ele é um desenhista de verdade.
Eu, ao contrário dele, não me considero um
desenhista, não sei desenhar como ele e admiro
isso. Ele é mais solto do que eu, sou mais
acadêmico.” A afirmação do jovem artista Pjota
faz todo sentido em relação ao igualmente
jovem curitibano Rimon Guimarães, ou
simplesmente Rim, cujo trabalho de linhas
sinuosas apresenta figuras dissolvidas em
meio ao entrelaçamento de formas obtusas,
linhas irregulares e padronagens mil. O
preto no branco predomina, mas é a cor
que o diferencia, o que imprime o traço de
personalidade do autor, que a usa com certa
parcimônia. “Sempre desenhei e sempre
busquei me aprimorar nisso. Só de estar 99%
do dia ativando essa prática, mesmo que seja
desenhando em meu cérebro, já é um bom
exercício”, explica o artista sulino de apenas
21 anos, assinando embaixo a máxima de
Thomas Edison: “a genialidade é fruto de 1% de
inspiração e 99% de transpiração”. 1

livre e inquieto

Por Arthur Dantas


Retrato por jaime vasconcelos

42 43
Se eu olhasse no seu mp3 player ou iPod, o 4tabuleiro romã, 2008
que encontraria?
Música espanhola e latina, Axel Krieger,
Juana Molina, afrobeat, novos compositores
Sou um pouco índio, africano, brasileiros, Moacir Santos, Bonobo, Tosca
italiano, português – não Tango Orchestra, tudo do Evard. Muita coisa de
vários estilos.
consigo especificar ao certo.
Curitiba, acima de tudo, é A produção de pôsteres e flyers é algo
presente na vida de vários artistas. Como
uma cidade brasileira, mas você se interessou por esses meios? Quais os
critérios que usa para ilustrar esse tipo
com muitos gringos de material?
im é tranquilo – nas poucas vezes que que fugiram de Geralmente ilustro flyers e pôsteres de
o vi parecia observar algo que não nos festas que eu ou algum amigo meu promove.
era possível ver. “Aqui tá tranquilo”, guerras e situações O critério é liberdade e calma.
escreveu, quando me desculpei pelo avançar das
horas madrugada adentro. A indeterminação de
desconfortáveis em O fato de ser negro influencia de alguma
seus desenhos é transposta em seu discurso. “As seu país de origem. forma seu trabalho? Para você, isso é um
organizações naturais, que vão além do físico, assunto a ser discutido em uma pintura?
a pura intenção de uma semente crescendo,
Racismo tem sido Na realidade, sou uma grande mistura, como a
essa imaterialidade do impulso que nos mantém um problema tão grande maioria no Brasil.
infinitos” foi sua resposta ao perguntar o que era
necessário para um trabalho lhe inspirar. bobo no mundo
No caso de um artista autodidata tão jovem,
é natural e importante que o imponderável aja
inteiro... Ainda mais
sobre seu discurso e prática. no Brasil.
Como você gostaria de ser lembrado pelos Acompanhar isso te influenciou de
que te conhecerem no futuro? alguma maneira?
Gostaria de ser lembrado pelos meus Sim, tem essa coisa de fazer com as próprias
atos, e não só por palavras. Atos de liberdade mãos, não pegar as coisas prontas, entender
e inquietação. todo o processo industrial.

Seu trabalho expressa isso em algum sentido? Você falou sobre pesquisa contínua. Tem algo
Sim, em todo o processo. que te interesse em particular? Alguma
questão ou temática?
Como é sua rotina de trabalho? Disciplinada Estou fazendo muitas experiências com sons,
ou caótica? O seu estúdio é daqueles que composições atmosféricas. Também sempre
parecem um hospital ou quarto de moradia gostei de fazer vestimentas – desenho minhas
estudantil? próprias roupas e às vezes lanço algo em
Minha rotina é bem volúvel, nunca é igual pequena escala pra ser vendido.
– até fujo disso. A disciplina que tenho é
natural, sempre estou desenhando algo ou Seu foco no momento é mais em música do
observando de maneira investigativa as que em artes plásticas?
coisas. Meu ateliê mais parece uma instalação Não, o lance é muito mesclado: sempre se cria
em processo contínuo. uma relação. É algo de percepção, com várias
vias novas e distintas.
Sendo autodidata, como tomou
conhecimento de todo esse mundo das artes, Vi uma foto sua tocando trompete. Que
ateliê, galerias etc? instrumentos você toca?
Sempre transitei nesses espaços, busco o Flauta barroca de bambu com palheta de sax e
que me instiga no momento. Tenho uma piano. Com o trompete ando meio parado – às
pesquisa permanente. vezes arrisco um violão. Mas os instrumentos
vocais são os meus prediletos.
Alguém de sua família é envolvido com artes?
Minha mãe sempre foi criativa, fazia minhas Quais seus interesses em música?
roupas quando era menor. Na costura ela não Experimentar, descobrir, compor, ampliar,
tem limites (risos). desmistificar, gravar, remixar etc.

44 45
Creio que espaços
expositivos têm que ser
livres pra manifestações meticulosamente a disposição dos elementos
totalmente novas e na tela (na rua sempre é mais livre, penso
eu), seu traço é muito solto. É como se não
desconcertantes – é bom respeitasse nunca a ideia do esboço, tem uma
que tenha uma mutação indeterminação no ato em si.
Sim, meus desenhos falam coisas que eu não
no espaço de acordo sabia, muitas descobertas e novos ângulos.

com o que o trabalho Lembro da parede que você pintou com


vem discutir, e que essa a Nina Moraes em Porto Alegre: pintava,
preenchia uma parte do rascunho, começava
discussão seja pertinente à uma nova linha e parava, observava, depois
quebra de formalidades > continuava. É como se tivesse uma ideia
inicial, mas que se transformava na ação,
por isso suas formas parecem mais livres,
menos arquitetadas.
Tem muito o lance de auto-observação nas
Qual é a mistura, no caso? Curitiba é composições visuais e também nas reflexões
conhecida pela migração europeia e tem fama filosóficas e espirituais, e ambas acabam se
de ser uma cidade bem racista. ligando. Isso é muito rico e fértil, acabam
Sou um pouco índio, africano, italiano, surgindo consciências aleatórias e ao mesmo
português – não consigo especificar ao tempo providenciais.
certo. Curitiba, acima de tudo, é uma
cidade brasileira, mas com muitos gringos
que fugiram de guerras e situações
desconfortáveis em seu país de origem.
Racismo tem sido um problema tão bobo no Rimon começou como todo
mundo inteiro... Ainda mais no Brasil, onde garoto: desenhando distraído
tem essa mescla maravilhosa. na sala de aula, observando
4fêmea guilhotina ou manhã gélida
com cabeça na mão, 2009
a Nike, por exemplo. Existe > tradicionais e revistas em quadrinhos e
Você participa do Interlux, um coletivo diferenciação entre trabalho o grafitti nas ruas, e muito
formado por pessoas das mais variadas áreas para publicidade e para provincianas. rapidamente passou a espalhar
que criam arte interativa. Qual o propósito
de vocês? Essa formalidade dos museus e
galerias etc?
Claro! As questões são outras,
Às vezes, o que seus trabalhos em desenhos
colados na rua. Poucos fizeram
galerias, sobretudo daquelas em que há uma mas é só saber como se me incomoda tão rapidamente a transição
separação rígida entre obras e espectadores, trabalha. Na publicidade há para galerias e museus, em
te incomoda de alguma forma? muitas limitações de clientes, às
é a posição exposições como a individual
O Interlux, além de interagir, é vivencial. vezes. A galeria, em tese, seria do artista de Madrugada, na Galeria Polinésia
Creio que espaços expositivos têm que ser um espaço de arte mais livre (SP) e a Volúvel – em parceria
livres pra manifestações totalmente novas para mostrar o trabalho pessoal. abaixar a cabeça com o artista Pjota, no Museu de
e desconcertantes – é bom que tenha uma
mutação no espaço de acordo com o que o Tem gente hoje que acha que
diante dessa Arte Contemporânea do Paraná
e na Transfer, no Santander
trabalho vem discutir, e que essa discussão vai pintar um ou dois muros e imposições. Cultural, em Porto Alegre.
seja pertinente à quebra de formalidades já vai expor em galeria. Como
tradicionais e provincianas. Às vezes, o que me foi para você alcançar certa notoriedade, ir Os poucos tons e mesmo a disposição e
incomoda é a posição do artista de abaixar a para exposições, galerias? Isso te assusta? O formas de elementos da natureza de um artista
cabeça diante dessa imposições. que se alterou na sua visão de mundo e na botânico como Ernest Haeckel encontram
sua rotina com tudo isso? reflexos em seu trabalho. Mas é a chamada
Conta como você se juntou aos outros três Foi natural – com 17 anos já estava expondo. arte primitiva que move seus desenhos. A
sócios do estúdio de criação Banzai. Onde se Antes disso já pintava. Claro que o raciocínio e a liberdade e inquietude da juventude sintetizam
conheceram? Como é o mercado em Curitiba? visão de mundo se altera naturalmente quando uma poética em que a aparente simplicidade,
Conheci o Luan na escola, morávamos perto, se decide viver disso. Na real, é um lance de ingenuidade e inobservância dos padrões
e o Thales e o Fernando através dele. O adaptação, depende das coisas que vão se eruditos esconde um trabalho que ganhou um
mercado é morno e raramente busca algo novo. apresentando na sua frente. Acho que essa refinamento absurdo em pouquíssimo tempo.
Trabalhamos com a OUS, marca curitibana de mudança é sempre pro bem, sempre pra cima. Tudo diluído num frenesi de linhas tortas. 3
tênis, MTV, Nike etc.
Seu trabalho encontra certo parentesco
É comum que artistas façam trabalhos com alguns nomes de destaque na 2Saiba Mais:
direcionados à publicidade, com finalidade cena de arte urbana nacional. Mas, ao banzaistudio.com.br
comercial imediata. Você fez um trabalho para contrário da maioria, que parece planejar flickr.com/photos/rimon

46 47
48 49
é no ínfimo que vejo a exuberância
Ensaio fotográfico por Formiga

50 51
52 53
É com a epígrafe de Manoel de Barros que o ensaio (em constante construção) do fotógrafo
paulista Formiga se apresenta. Um olhar curioso e incansável, que enxerga a beleza em locais
onde a maioria das pessoas prefere simplesmente desviar o olhar.
Paredes corroídas que não resistiram à ação do tempo, metais enferrujados e outros materiais em
processos de degradação reverenciam a obra de artistas como Miró, Munch, Picasso e Turner.
Um projeto que vem amadurecendo a cada dia em dois anos de produção e que já conta com
mais de 1000 imagens captadas com uma singela câmera digital portátil de 6.2 megapixels. Um
registro intenso de cores e texturas que aguçam (e às vezes confundem) nosso olhar e nos levam
a crer que beleza, na fotografia, é ponto de vista. 4Saiba mais
flickr.com/photos/-formiga-
Por Fernanda Masini Veja a exposição no mezzanino do Espaço +Soma até 23 de Janeiro de 2010.

54 55
Por Lauro Mesquita . Imagens Divulgação Existe um cinema As produções não estão no circuito
novíssimo sendo feito comercial: são exibidas nos mais de Filmes de Quintal
no Brasil. Uma produção 150 festivais de cinema no Brasil, em A Filmes de Quintal tem um
que acontece fora do eixo mostras, universidades, cineclubes e ou- papel importante nisso. O grupo
Rio-São Paulo e é coletiva. tros espaços que raramente contam com vai além dos filmes e nasceu para
Os grupos realizam filmes, bilheterias ou lanterninhas. “O Alexandre explorar o diálogo constante entre
organizam mostras, Veras (diretor cearense que é uma espécie cinema e antropologia. O Forumdoc.bh
promovem debates e de mentor do Alumbramento) faz um cálculo é a produção mais vistosa deles. Organi-
publicam suas reflexões do número de salas de aula em que ele exibiu zado desde 1997, o evento, que carrega o
sobre o audiovisual. Ao o filme dele, Vilas Volantes, e de acordo com subtítulo de Festival do Filme Documentário
contrário das produtoras os números o público do filme já é bem maior e Etnográfico, é reconhecidamente um dos es-
independentes da tal do que o de muitos festivais e filmes em circuito paços mais ricos de discussão sobre antropologia,
“retomada do cinema comercial. Porque o que mais tem é sala de cine- documentário e cinema com proposta estética mais
brasileiro dos anos 1990”, ma vazia”, diz Fred Benevides, montador e um dos inovadora. “Criamos o Forumdoc pra assistir aos fil-
a ideia não é criar para diretores do Alumbramento. mes que a gente não via. Até hoje é um pouco assim”,
o mercado televisivo de diz Junia. Doze anos depois, o festival extrapola Belo Ho-
sempre e nem levar a E é nesse circuito que os filmes começam a fazer rizonte e vai a várias cidades do interior de Minas e grandes
estética das propagandas e barulho. Radical e sem nenhuma concessão, o longa centros como São Paulo e Barcelona. Na capital mineira, ar-

cinema
dos filmões hollywoodianos Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo, foi o vencedor rasta multidões. A programação conta com um público majo-
para as telas refrigeradas do prêmio do júri jovem do último festival de cinema de ritariamente jovem. As mostras não se fecham no documentário
brasileiras. 1 Tiradentes. Aboio, primeiro longa-metragem de Marília etnográfico. “Tem muita ficção e filmes experimentais que carregam
Rocha, da Teia, recebeu o prêmio de melhor filme brasi- reflexões parecidas com a do documentário”, diz Junia.
leiro no É Tudo Verdade em 2005. Já Trecho, de Clarissa
Campolina e Helvécio Martins Jr., também da Teia, recebeu
os prêmios de curta-metragem, fotografia e montagem no
festival de Brasília no ano seguinte. Outros trabalhos seguem
recebendo prêmios e sendo discutidos em vários eventos no

em grupo
Brasil. Eles se reproduzem pela Internet e em DVDs copiados
nas faculdades e entre os jovens cinéfilos. Mas, para além disso,
esses coletivos têm construído uma nova dinâmica de produção,
em que os filmes e o pensamento sobre cinema andam de mãos
dadas, sem formalismo e de maneira absolutamente natural.

Em Minas Gerais e no Ceará, a preocupação com filmes mais livres,


em que o processo de realização é tão importante quanto o produto
final, é cada vez mais forte em termos de produção e de público.
Muito diferentes entre si, os três grupos parecem ter pontos comuns
muito fortes: o primeiro deles é a vontade de pensar através dos filmes
que fazem ou assistem. Os filmes ainda propõem uma relação mais dire-
ta entre a tela e a vida das pessoas.

A +Soma conversou com pessoas de três desses coletivos: ba potencializando o que a gente tem de me-
Alumbramento, de Fortaleza, Filmes de Quintal e Teia, am- lhor”. Ivo, que também trabalha como diretor
bos de BH. Em todos eles, o entusiasmo com a nova produ- de fotografia, explica: “Quando é um filme no
ção audiovisual brasileira é grande. O trabalho em conjunto esquema mais tradicional, cada pessoa cumpre
– apesar de todas as dificuldades administrativas e de orga- seu papel e a equipe técnica acaba não toman-
nização – é encarado como a melhor possibilidade de produ- do muito parte do processo criativo dos filmes.
zir um cinema independente mais barato e menos atrelado É tudo muito especializado, bem no esquema de
aos sabores do mercado. “Os grupos garantem as condições indústria. Quando a gente faz em conjunto não há
de produzir trabalhos autorais com independência. A vanta- como escapar. Todo mundo cria, interfere, mesmo
gem é que a gente consegue fazer muitas coisas sem tanto que respeitando a vontade do diretor”.
dinheiro”, explica Junia Torres, antropóloga, documentarista
e uma das integrantes da Filmes de Quintal. Todos os três coletivos já têm um currículo com muitos
filmes. Para se ter uma ideia, no Alumbramento, só os ir-
A organização em coletivos, como explica Clarissa Cam- mãos Ricardo e Luiz Pretti – conhecidos pelo furor criativo
polina, diretora e montadora da Teia, também oferece a – já produziram mais de quatro filmes este ano. Um deles, o
possibilidade de trabalhar fora de um esquema cruel, que longa Rumo, foi totalmente captado com imagens de celular.
acaba arrastando os profissionais do cinema para a pu- Os filmes em geral são feitos com verbas dos editais que se
blicidade e outros trabalhos comerciais. Para o diretor multiplicam pelos estados e municípios ou com a cara e a co-
cearense Ivo Lopes Araújo, do Alumbramento, além da ragem. É por isso que quase sempre as equipes são pequenas e
questão dos custos, “Esse nosso trabalho em grupo aca- as ideias na cabeça, bem grandes. 4público durante exibição no forumdoc.bh

56 57
4Imagem do filme Roda, de Carla Maia

“No Brasil, existe muito


festival de cinema,
mas pouco espaço pro
debate da produção
audiovisual.",
Clarissa Campolina

forçando essa vocação, a Filmes elaborou um projeto para se tornar um


ponto de cultura e inaugurou um cineclube, que exibirá semanalmente
parte do enorme acervo de filmes que já passou pelo Forumdoc.

Apesar de muito heterogêneas, as obras produzidas pelo grupo têm um


interesse grande pelo que Junia define como filme etnográfico: “são fil-
mes que partilham uma relação de aproximação entre quem filma e quem
é filmado”. Isso pode ser visto em Pelos Olhos de Mariquinha, de Cláudia
Mesquita e Junia Torres, Agosto de Minha Gente, de Ruben Caixeta, Roda,
de Carla Maia, Memórias de Um Tipógrafo Partideiro, de Pedro Portella, e
em muitos outros títulos produzidos pelo núcleo.
4sábado à noite, de ivo lopes araújo
A Filmes de Quintal também produz filmes com outros diretores mineiros,
como Tiago Mata Machado e Affonso Uchoa. “Ao longo do tempo, muita
A Filmes de Quintal ainda produz e gente do cinema daqui participou do Fórum com assiduidade. Gente como
publica livros, e o catálogo do festival o Cao Guimarães, a Marília Rocha, o Leandro HBL não são do coletivo, mas
se tornou uma referência bibliográfica têm muitos interesses em comum com a gente”, explica Paulo Maia.
sobre cinema e humanidades. Um exem-
plo disso é a caixa Imagem-Corpo-Verda- Teia
de: Trânsito de Saberes Maxakali, que traz Vários dos filmes produzidos pela Teia foram exibidos no Forumdoc, e
livros e DVDs com mais de seis horas de ima- muitos dos seus realizadores estão entre a plateia cativa do Festival. A já
gens de cantos gravados durante cerimônias citada Marília Rocha foi até curadora de uma das mostras do festival em
rituais. “É a primeira vez que se publica no Brasil 2007. O coletivo surgiu quando os seis jovens realizadores resolveram
um repertório inteiro de ritual indígena, sem cor- dividir as salas de uma antiga e espaçosa casa na Zona Oeste de Belo
tes”, destaca Rafael Barros, também da Filmes de Horizonte. Todos eles eram envolvidos com linguagens audiovisuais, mas
Quintal. Nessa variedade de trabalhos, cada membro cada um tinha uma perspectiva diferente. “Quando nos juntamos na casa,
do coletivo contribui como pode. A união desse mon- muita gente achava que não podia dar certo. Afinal, somos todos realiza-
te de gente que pensa as coisas sob um ponto de vista dores e cada um tem o seu projeto. O curioso foi que a coisa funcionou
específico faz toda a diferença, que se reflete no ver e no justamente por causa dessas diferenças”, diz Leonardo Barcelos, diretor
fazer. “A coisa da interdisciplinaridade é fundamental na de vídeos experimentais, VJ e integrante da Teia.
Filmes de Quintal”, diz Paulo Maia, antropólogo e um dos De acordo com Clarissa e Leonardo, as produções não são necessaria-
fundadores do grupo mineiro. “Tem antropólogo, escritor, mente desenvolvidas em conjunto, mas, com a proximidade dentro da
artista plástico, diretor de filmes, todos com interesses muito casa, é inevitável que a opinião dos outros interfira no resultado final. O
diferentes no cinema, e isso é uma das nossas riquezas.” grupo ainda é bastante ativo na cena dos jovens realizadores e neste ano
organizou um grande evento justamente para discutir o cinema brasileiro
A Filmes também já promoveu oficinas com os jovens das aldeias mais autoral. A mostra Tecer teve curadoria de Sérgio Borges e Clarissa
Maxacali, do Vale do Mucuri, em Minas Gerais, e com os Caxixó, da Campolina, da Teia, e do professor André Brasil, da PUC-MG. “No Brasil,
região metropolitana de BH. Alguns dos resultados são os documen- existe muito festival de cinema, mas pouco espaço pro debate da pro-
tários Caçando Capivara, Acordar do Dia e o longa Tatakox Vila Nova, dução audiovisual. O projeto a princípio foi uma maneira de criar uma
realizados pelos Maxacali, e Casca do chão, realizados pelos Caxixó. Re- discussão acerca dessa nova produção”, explica Clarissa.

58 59
4cinco dos seis integrantes do coletivo teia, de bh

No encerramento do Tecer, o
documentarista João Moreira
Salles desistiu de falar sobre sua
filmografia e preferiu perguntar à
plateia: “por que Minas Gerais tem uma
filmografia tão singular e diferente do
resto do Brasil?” O silêncio da plateia e da
mesa durou longos segundos e mostrou que
a resposta não era fácil. Sem dúvida, o estado
parece ser um dos poucos lugares onde cineas-
tas e pensadores como Jean Louis Commolli, Pedro
Costa e documentaristas como Jean Rouch parecem
ter mais público e adesão do que em qualquer outro lu-
gar no país. “BH não tem uma indústria de produção. Esse
é um fator que propicia um ambiente adequado para produ-
ções menores, um ‘cinema de cozinha’”, diz Clarissa, citando a
expressão de Cao Guimarães. A diretora ainda aponta a proximi-
dade dos realizadores com a universidade e a tradição de eventos
de cinema na capital mineira como fatores decisivos para esse debate
profundo sobre o audiovisual.

4Aboio, de Marília Rocha

Alumbramento bairro interiorano de Fortaleza”. A


Talvez tenha sido esse produção segue em velocidade total e
mesmo tipo de ambiente hoje envolve mais de trinta pessoas. “Eu
que estimulou a criação do já nem sei quem é e quem não é do Alum-
Alumbramento, em Fortaleza. bramento. A coisa funciona coletivamente
Em nenhum dos grupos a ex- mesmo, e isso é muito bom”, diz Ivo.
pressão comunidade pode ser
mais bem aplicada. Até dois anos Além da produção coletiva, outra tônica do Alum-
atrás, quase todos os seus treze bramento é a intervenção na cidade de Fortaleza e
integrantes dividiam o mesmo es- no estado do Ceará. Os filmes falam bastante da lo-
paço no Sítio Sabiá, em Sabiaguaba, calidade dos cineastas, em todos os projetos já citados
30 km a leste de Fortaleza. Os pri- e em outros como As Corujas, Road Movie ou Longa Vida
meiros filmes feitos pelo grupo – antes ao Cinema Cearense. A dinâmica, no entanto, funciona de
mesmo que ele existisse formalmente – maneira mais radical em projetos como Livro Livre e Super-
como Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araú- memórias. No primeiro, o grupo espalhou cem exemplares de
jo, surgiram nas reuniões nesse lugar. Essa um livro de cem páginas em branco e acompanhou sua trajetória
convivência intensiva também se repetiu no em filme. Dessas cópias, só uma voltou para a exposição, onde to-
longa Praia do Futuro, em que quinze curta- dos os registros eram exibidos simultaneamente.
metragens são exibidos em sequência e sem
divisão entre um e outro. Toda semana, o grupo ainda promove um cineclube na escola da Vila das
Artes, convidando um realizador independente para exibir e discutir seu fil-
Os integrantes do Alumbramento se conheceram me. “Os debates têm duas horas e meia e continuam depois nos bares e na
no Espaço Cultural Alpendre, um centro de refe- casa do pessoal”, diz Fred. Essa relação se ampliou na última edição do Festival
4Trecho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.
rência em dança, cinema e artes visuais na capital UFC de Cultura, que contou com representantes de coletivos como Símio e Trin-
cearense. O espaço é capitaneado ainda hoje pelo cheira, de Recife, Teia, de Belo Horizonte, e outros do Rio, de São Paulo, da Paraíba

“Esse nosso trabalho


professor e diretor Alexandre Veras. Essa convivência e do Piauí. “Foi bem bacana o encontro. Parecia que faltava ligar uns pontos pra gente
em parte se aprofundou nos cursos da Escola do Au- integrar essa produção nacionalmente”, conta Fred Benevides. O grupo ainda pensa em

em grupo acaba
diovisual da Vila das Artes, de Fortaleza, e depois na pro- um projeto de residência artística colaborativo que rode Ceará, Paraíba, Pernambuco e
dução de Vilas Volantes, do próprio Veras. “Esse longa era Minas. “A ideia é tentar criar uma rede em que as pessoas exibam seus filmes nesses esta-

potencializando o que a
do Alpendre, não tinha nada formalizado, mas foi quando dos e interfiram diretamente no processo artístico local”, explica o diretor, músico e técnico
começamos a trabalhar todos juntos”, conta Fred Benevides. de som Danilo Carvalho. Essa articulação pode ser o pulo do gato para esse cinema, que já

gente tem de melhor”,


influencia realizadores e chega ao público mais especializado via mostras e festivais. “O público
O grupo tinha crescido no Alpendre com influência decisiva tem interesse nisso, só precisa chegar. O pessoal cansou do Homem-Aranha”, diz Fred Benevides. 3
da volta de Ivo Lopes Araújo ao Ceará e a chegada dos gêmeos
cariocas Ricardo e Luiz Pretti que, segundo o jornalista carioca
Ivo Lopes Araújo 2saiba mais
Alumbramento . revistaetcetera.com.br/24/sessao_cinema/index.php
Marcelo Ikeda, do blog Cinecasulofilia, “desistiram da politicagem
Filmes de Quintal . filmesdequintal.org.br
mauricinha do cinema carioca e desembocaram em Sabiaguaba, Teia . teia.art.br

60 61
Jaime Bregantin 4flickr.com/photos/bregantin

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64
hermann 4flickr.com/photos/easy_going

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65
MATEUS BAILON 4flickr.com/photos/mateusbailon MATEU VELASCO 4www.flickr.com/photos/mateu

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RZO parte 2 O Retorno
“Está na hora de voltar”, afirmou
KL Jay, DJ dos Racionais MCs, se
referindo ao RZO em entrevista
publicada na + Soma 6, em fevereiro
de 2008. Pouco tempo depois, a
Rapaziada da Zona Oeste estava nos
palcos. Na época da dissolução do
Por Nathalia Birkholz . Fotos por Amanda Louzada

A pressão para o retorno das atividades do


grupo vinha forte dos amigos e fãs. Afinal
de contas, o RZO é um grande ícone do rap
nacional, um dos pouquíssimos nomes que
transcenderam a barreira do underground e
foram parar no mercado de massa. “Temos uma
boa relação com a imprensa e hoje podemos
dizer que estamos nas revistas, na TV. Mas
infelizmente o rap ainda não tem vez na grande
mídia”, lamenta Sandrão. Em 2000, o grupo
grupo, em 2004, muita fofoca rolou, – que já se posicionava como um dos mais
mas a verdade é que Helião, Sandrão conhecidos no cenário hip-hop e colecionava
e DJ Cia sempre estiveram lado a lado, hits de seu primeiro disco, Todos São Manos
mesmo quando decidiram investir em (1998) – ganhou os holofotes do mainstream ao
projetos solo. “O povo fala coisas sem gravar a faixa “A Banca (Ratatá é Bicho Solto)”,
nem saber o que acontece. Diziam no terceiro disco do Charlie Brown Jr., Nadando
que a gente não se falava mais. Eu Com os Tubarões – bem na época em que a
fiz a música ‘Respeito Oriental’, que banda de Chorão estava em todas as rádios e
apresentei com o CIA e a cantora na boca do povo. Negra Li, que na época fazia
japonesa Miss Mayume no VMB de parte do RZO, também gravou com o quinteto
2007, mas quem fez o refrão? O de Santos a faixa “Não é Sério”, uma das mais
Hélio!”, conta Sandrão. 1 tocadas do disco. Pronto, o RZO tinha ganhado
68 a “playboyzada”, como dizem eles. 69
O balanço e a ironia dos caras passeia por O RZO leva muito a sério um dos conceitos os maiores de 18 anos. A gente tem nossos
um amplo leque de temas: da dura rotina na mais banalizados do hip-hop: coletividade. momentos de descontração, né? (risos)”
periferia à tiração de onda nas festas, sempre E foi há um ano e meio que Helião, Sandrão Sobre a competitividade e as dificuldades
com uma perspectiva de orgulho favelado, de e o DJ Cia voltaram, juntos, a figurar nos do rap e da música em geral no século XXI,
boemia e loucuras, mas levantando a bandeira flyers de rap. Entre um trago e outro, os três ele é direto: “quem não fizer um bom disco
do respeito ao próximo e sem papas na língua falaram da segunda parte da caminhada. As ou não tiver um bom show não vai vender”.
para defender o uso da maconha. O último faixas “Você Já Sabe” e “Louco” já estão nas Apesar do espírito de concorrência velada
disco, Evolução é uma Coisa (2001) – produzido pistas e no MySpace do grupo. Um disco novo que vez por outra desanda o caldo no rap
no melhor estilo faça-você-mesmo, em cima está a caminho, mas ainda sem previsão para brasileiro, o RZO segue apostando na união
da laje da casa do Helião com um Pentium lançamento. Mas, para sentir um gostinho de talentos que sempre caracterizou o grupo.
4, groovebox e teclado insonic –, foi um dos do que vem por aí, logo os fãs verão o clipe “Procuramos trazer pessoas novas para
mais vendidos no subsolo da Galeria 24 de de “Louco”, que está sendo produzido pela participar, tanto nas composições quanto
Maio e trouxe uma enxurrada de hits como “A Olldog Filmes e deve estrear na TV até o nos shows”, explica Sandrão. O show é
Blazer”, “Quem não é Cabelo Voa” e “Titititi”, final do ano. Segundo Helião, trata-se de uma uma verdadeira reunião entre amigos, que
com participação de Sabotage, grande amigo grande produção, na qual os realizadores estão acontece de forma quase imprevisível.
do grupo, assassinado em 2003. Afinal, foi o investindo pesado. Outros dois clipes estão em
RZO quem projetou o rapper na cena. Sandrão negociação e, paralelamente, Sandrão trabalha Na tarde chuvosa em que o RZO recebeu a +
relembra a história: “Ele me deu uma fita com a banda na web. Soma na laje da casa de Helião em Pirituba, (a
um pedaço da música ‘Rap é Compromiso’. Ouvi mesma onde produziram o clássico Evolução é
no walkman no meio de uma festa e disse que Outro tema que deve permear o disco novo Uma Coisa), haveria uma apresentação gratuita
um dia ia buscar ele pra fazer um negócio com o é a questão ecológica: temas como água e do grupo no Centro Cultural da Juventude Ruth
RZO. Ele não acreditou. Depois de um ano eu fui sustentabilidade estão em pauta. No menu Cardoso, como parte da programação musical do
com o Rappin’ Hood pra Zona Sul achar o cara de assuntos novos figuram também reflexões Outubro Independente (projeto da Secretaria da
sem nem saber onde ele morava, perguntando sobre o sucesso. Nada de ostentação pimp (que Cultura de São Paulo nascido no CCJ). O show
aqui e ali. Trouxemos ele pra Pirituba, fizemos a passa longe do perfil do trio), mas falar das estava marcado para as 20h, e às 17h ainda não
música na hora e ‘Rap é Compromiso’ estourou conquistas profissionais e materiais também se sabia quem iria participar. “Não tem nada
na sequência. Fomos de bike até o Capão é válido. “Estamos ganhando um dinheirinho, programado, vamos dar uma ligada pro pessoal
Redondo, na casa do [Mano] Brown e levamos o o Cia e o Sandrão compraram seus carros, eu pra saber quem está por aí”, diz Sandrão. “Do
som pra ele, que também decidiu dar uma força. estou prestes a ter o meu também e a gente pessoal que cola, cada um tem seus hits e o Cia
Depois de uns dias fomos para o estúdio com o quer comentar isso”, afirma Helião, o principal tem acesso a todos os instrumentais de tudo Além disso, o RZO também está com os dois pés
Ganjaman, o Zegon, Tejo, Quincas [do Instituto], letrista do RZO. “Demos a vida numa parada quanto é grupo de rap”, completa. Os amigos no Big Bang Jhonson (escrito assim mesmo),
e em 2001 o disco (homônimo) estava aí”. e agora estamos colhendo frutos. E a gente MCs Dom Quixote, Du Bronk’s, Nego Jam, um coletivo de all-stars do rap inventado pelos
quer se cuidar: ir pra academia, vestir roupas Sombra, Tio Fresh são habitués dos shows do Racionais MCs. A base é formada pelos dois
“Demos a vida numa legais. A molecada curte o nosso som e os pais RZO. E a Negra Li? “Com certeza vamos fazer grupos ícones do rap nacional, mas conta com o

parada e agora deles estão olhando. Se esses pais veem que


nós estamos bem, vão falar que o rap faz bem”,
alguma música com ela”, afirma Helião. reforço de Rosana Bronk’s, Consciência Humana,
Conexão do Morro, Nego Jam, Quelynah, entre

estamos colhendo completa o rapper, ostentando o símbolo do


Santos F.C. da cabeça aos pés.
“O funk é envolvente outros. E nem é preciso dizer que o combo vem
lotando shows para cerca de 10 mil pessoas no
frutos. E a gente pra caramba, as Brasil inteiro.

quer se cuidar: ir Helião está com 40 anos; Sandrão e Cia,


com 36. Eles amadureceram, assim como o batidas, a dança... E a “Estamos num recomeço”, admite Cia, que
pra academia, vestir rap – afinal, a cada dia surgem novas batidas
gente está estudando concilia o RZO e o Big Bang com outra
e métricas. Entre os novos nomes do hip-hop agenda bem agitada de apresentações solo.
roupas legais. A nacional, eles destacam Emicida, Flora Matos, uma forma de fazer O beatmaker está colecionando gravações

molecada curte o Sevenlox, Wu-Furmigueiro, Família Madá, MC


Nathy e U-Inversu. O trio entende que a música um som nessa preciosas que realizou com gente como Nature,
Ching, U-God (do Wu Tang Clan) e outros
nosso som e os pais eletrônica e o funk carioca aterrissaram nas pegada também. É rappers gringos para compilar num disco. Mais

deles estão olhando. festas de rap – assim como o rap faz parte da
programação de muitas baladas “de boy” – e importante passar
um lançamento que com certeza vai bombar
no mercado é o disco póstumo do Sabotage,
Se esses pais veem que hoje todos disputam espaço nas mesmas
pistas. Curtem o funk carioca e admiram sua
mensagens para que está sendo produzido por Daniel Ganjaman.
“Só falta terminar as faixas do Helião e do Mano
que nós estamos bem, evolução. Sandrão afirma ter sido o primeiro a todos os tipos de Brown”, conta Sandrão.

vão falar que o rap subir no palco com cantores de funk, no auge
do Proibidão, quando São Paulo ainda nem público, mas também Com tantas possibilidades nas mangas, o
faz bem.” conhecia essa linha. “Acho que a música está
para os maiores de retorno era iminente. Da mesma forma como
aí pras pessoas optarem pelo que querem”, começaram em 1990, cantando nas festas da
pensa. O rapper chegou a gravar com Mr. Catra 18 anos. A gente tem Chic Show e da Black Magic, o RZO está de
a música “As Cachorras”, do disco WX (2006).
“O funk é envolvente pra caramba, as batidas,
nossos momentos de volta à cena. Afinal, quem é, é; quem não é
cabelo voa! 3
a dança... E a gente está estudando uma forma
de fazer um som nessa pegada também”, conta
descontração, né?
o rapper. “É importante passar mensagens para (risos)” 2Saiba mais:
myspace.com/rzobrasil
todos os tipos de público, mas também para

70 71
O ano de 2009 teve ótimas novidades na música, e o cantor, produtor,
arranjador, multi-instrumentista e engenheiro de som Mayer Hawthorne foi
uma das principais, tornando-se a nova sensação da música soul. Natural de
Ann Arbor, Michigan, o rapaz de 29 anos roubou a cena com o lançamento de
seu primeiro disco, ótimos videoclipes e ideias criativas, como um single em
vinil vermelho com formato de coração.

O mais engraçado é que Mayer jamais imaginou ser cantor.


Nunca participou de coral de igreja e nem teve aulas de
canto quando criança. Suas fichas estavam investidas no
hip-hop, como produtor dos grupos Now On e Athletic
Mic League, sob o nome DJ Haircut. O codinome Mayer
Hawthorne (seu nome é Andrew Mayer Cohen) não
passava de uma brincadeira caseira, onde experimentava
estilos de gravação vintage em seu homestudio, tocando
todos os instrumentos: da bateria ao piano, passando pelos Por Daniel Tamenpi
metais e por linhas de baixo que surpreendem. Fotos Divulgação

Foi essa surpresa que o cabeça da


Stones Throw, Peanut Butter Wolf,
teve ao ouvir sua demo. Com apenas

Mayer
duas músicas, Hawthorne conseguiu
um contrato com um dos selos mais
criativos do mundo, que lançou, entre
outros, Madlib, DOOM e o finado Jay
Dilla. Seu disco de estreia, Strange
Arrangement, foi lançado em outubro
e teve ótimas críticas, com um estilo

A nova cara (nerd) do Soul


sweet soul que lembra clássicos da
Motown e de produtores como Lamont

Hawthorne
Dozier. São 14 faixas em pouco mais
de meia hora, nas quais o branquelo
com jeitão de nerd conta histórias
românticas em baladas, intercalando
com músicas agitadas perfeitas para
requebrar no salão. Em conversa com a
+Soma, Mayer conta tudo isso e mais
um pouco.

Primeiramente, como começou sua história com a música? Antes do Mayer Hawthorne, você tinha projetos diferentes. Conte-nos um
Eu tive sorte de crescer em uma família musical. Meu pai é um grande bai- pouco sobre suas outras facetas.
xista e me ensinou a tocar quando eu tinha seis anos de idade. Minha mãe Eu sou DJ de hip-hop e produtor há mais de dez anos. Lancei diversos
toca piano e também canta. Dela, tirei as lições de piano. Toquei em várias projetos com o nome DJ Haircut. Você pode conferir no meu site (www.
bandas durante o colegial, mas era algo que ia mais pro punk rock. Até fiz asideworldwide.com). Chegou um momento em que resolvi mudar pra
coisas com o funk, mas o vício mesmo veio mais tarde. Depois me envolvi Los Angeles e seguir com a música como uma carreira de tempo integral.
muito com o hip-hop e comecei a tocar como DJ e a produzir beats para Mas o meu foco era o hip-hop, não o soul. O Mayer Hawthorne era um
MCs. Minhas influências são muito amplas. Vão de The Police a Smashing projeto paralelo que eu estava gravando no meu quarto, experimentando,
Pumpkins, passando por Steel Pulse, Stereolab, Public Enemy, Slum Village somente por diversão. Nunca imaginei que isso fosse me levar aos luga-
e, claro, os clássicos da Motown, Barry White, Curtis Mayfield e outros. res aonde estou indo nos últimos meses, ou que me traria aqui pra essa
entrevista pro Brasil.
Você é de Michigan. Nos conte como o seu estado e, principalmente, a
cidade de Detroit influenciaram a sua vida e sua música. Sua musica é considerada retrô, mas pessoalmente a considero muito atu-
Tenho muito orgulho de representar Ann Arbor e Detroit. A história musical al. Como você a define?
dessa área é incrível. Boa parte da melhor musica já feita no mundo vem As pessoas sempre vão tentar rotular, então eu não ligo muito. Não estou
de Detroit. E falo de todos os gêneros, não só do soul, que é o mais citado. simplesmente fazendo musica retrô. Eu tento fazer uma música atemporal.
Acho que parte disso tem a ver com o frio intenso do inverno e a mentalida- Espero que as pessoas procurem meus discos daqui a trinta anos e que
de trabalhadora das pessoas daqui. Detroit respira criatividade! ainda soe atual. Esse é o objetivo.

72 73
Quais instrumentos você toca no disco? No clipe de “Maybe So, Maybe No”, vemos
Eu toquei a maioria dos instrumentos nas músi- muitas referências ao skate. Você se aventura
cas do álbum. Bateria, baixo, guitarra, piano, sin- nas rodinhas?
tetizadores, sopros, percussão, etc. Tento tocar Eu ando, mas não sou muito bom. Eu amo o ska-
o máximo possível, mas, ao mesmo tempo, te- te, faz parte da minha vida desde sempre e faço
nho músicos convidados incríveis que comple- o possível para apoiar e reverenciar essa comu-
mentam no que é necessário. nidade. Só gostaria de andar melhor (risos).

Li declarações entusiasmadas de Peanut Butter Sendo bem sincero, escutei seu álbum em mp3
Wolf falando do seu trabalho. Como foi o con- fazendo download na internet. Aqui no Brasil,
tato entre vocês? se não for através de blogs ou sites de música,
Conheci o PB Wolf numa festa. Fui apresentado as cenas alternativas não chegam ao público.
a ele por um amigo em comum que havia escu- Como você vê essa situação?
tado minhas demos de soul. Mas, pra falar a ver- Essa história de downloads ilegais está mudan-
dade, eu ainda estava muito focado no hip-hop do a direção da música, quer a gente goste,
naquele momento. Nunca havia nem pensado quer não. Não tem como evitar. Tem tanto efei-
em gravar um álbum completo de música soul tos negativos quanto positivos, mas o principal
até o Wolf me chamar pra conversar e propor o é que veio para ficar e é melhor a gente aceitar
álbum pela Stones Throw. e seguir em frente, pensar em alternativas pra
lidar com isso.
E logo a Stones Throw, né? Um dos selos mais
interessantes da música atual. Como você se Você conhece música brasileira?
sente estando em uma das safras mais criativas Eu simplesmente amo a música brasileira. É in-
da música americana? descritível. Sou grande fã de Marcos Valle, João
Falou tudo! Criatividade é definitivamente a pa- Donato, Azymuth, Tim Maia, Jorge Ben, Arthur
lavra chave! É uma honra estar gravando para Verocai e vários outros. Os ritmos e arranjos
o selo de Jay Dilla, Madlib, MF Doom e todos são muito criativos, e o português é uma língua
os que fazem parte da equipe. Eu, pessoalmen- linda para a música. Espero ter a oportunidade
te, sou um grande fã do Dam-Funk e do James de conhecer o Brasil, fazer shows. Tomara que
Pants. Existe um respeito mútuo e realmente é essa entrevista faça um barulho por aí pra que
como uma grande família. Mas é perigoso quan- isso aconteça.
do todos nós vamos nos aventurar em lojas de
vinis usados (risos). Pra fechar, gostaria de pedir que você faça um
top 5 pessoal da música soul.
O single de “Just Ain’t Gonna Work Out” saiu Minha lista muda toda semana, mas aqui está a
em um formato de coração e fez muito barulho desta semana:
na cena pela inovação. Foi ideia sua? Danny Hunt – “What’s Happening to Our
Foi ideia minha, sim. Eu queria fazer do meu pri- Love Affair”
meiro disco algo especial para colecionadores Dee Dee Warwick – “It’s Not Fair”
de vinil como eu. A ideia já estava na cabeça, Barbara Randolph – “You Got Me Hurting
mas fazer um disco vermelho e em forma de All Over”
coração é um processo bem caro e complicado. The Four Mints – “Row, Row, Row Your Boat”
Fiz a proposta à Stones Throw sem muitas espe- Frankie Karl and the Dreams – “Don’t Be
ranças e fiquei surpreso quando eles concorda- Afraid, Do As I Say”
ram com a minha ousadia.

Como são as apresentações ao vivo?


Estou em turnê com uma banda que pra mim tem
os músicos mais talentosos do mundo. Eu os cha-
mo de “The County”. Nós demos muito duro, en- 1saiba mais
saiamos horas por dia até chegarmos ao formato stonesthrow.com/mayerhawthorne
que queríamos. É o show mais divertido possível. myspace.com/mayerhawthorne

74 75
por Marcos Diego
Fotos Por Michael Lavine/Divulgação

Em 1983, Michael Lavine tinha 19 anos e vontade de trabalhar com


animações. Morador da então pacata Seattle, onde nada de muita relevância
acontecia, era o fotógrafo da turma de skatistas, músicos e jovens que
gastavam o tempo procurando algo para fazer. Mal sabia ele que, ao
registrar esses grupos, documentava o surgimento de um dos momentos
centrais no rock dos anos 1990. Agora, 26 anos depois, lança Grunge, com
prefácio de Thurston Moore, em que mostra – em preto e branco – as bandas
e as “pessoas comuns” que, influenciadas por heavy metal, punk e hardcore,
mostravam em seu jeito de vestir e agir a mistura que mais tarde levou
grupos como Nirvana, Mudhoney e Pearl Jam à fama internacional. 1
4trashed, do livro Grunge. Seattle, 1983
76 77
Quando você decidiu ser fotógrafo profissional?
Comecei a trabalhar em 1987, mas já fotografava bem antes, quando estava
na escola. Acho que ganhei a primeira câmera aos 10 anos. Fotografava por
hobby, e foi nessa época que fiz as primei-
ras fotos do livro.

Se você não fosse fotógrafo, seria o quê?


Eu estava decidido a estudar animação.
Era o que eu gostaria de fazer, mas na últi-
ma hora mudei de ideia e troquei as aulas
de animação por fotografia. Sempre quis
ser animador.

Quais são suas recordações da Seattle


pré-grunge?
Eu me mudei de Seattle para Nova York em
1985, então não me lembro exatamente do
estilo de vida da cidade nessa época. O que
eu me lembro é da música que veio de lá
quando eu trabalhava para o escritório da

4dinosaur jr., 1989


Sub Pop aqui em Nova York. As bandas vi-
nham de lá e eu as fotografava. Mas, sobre
as coisas que mudaram, acho que foi uma
questão de conscientização. As pessoas
tomaram consciência da cena musical que
existia por lá, e de uma hora para a outra
o mundo inteiro ficou sabendo. Foi muito
louco. Porque antes era uma cena muito
pequena e independente, underground, em
que todos se conheciam. Aí o Nirvana apa-
receu com “Smells Like Teen Spirit”, explo-
diu no mainstream, e de repente todos es-
tavam envolvidos. Foi chocante para quem
vivia isso, algo difícil de lidar.

O que mudou na sua vida depois da explo-


são do grunge?
Não sei. Acho que foi uma sensação de per-
da, de que a nossa comunidade havia sido de
certa forma destruída. Mas, ao mesmo tempo,
sem isso eu não teria conhecido as pessoas
que conheci. Então é uma sensação amarga e
doce ao mesmo tempo. Agora, a ideia do livro
foi mesmo pontuar o fato de que o grunge
não foi exatamente o que as pessoas pensam
que foi. Esse livro é a minha visão pessoal, mi-
nha versão pessoal, sobre o que foi o grunge.
Não é um livro sobre sua história definitiva.

4Mudhoney, 1988
E o que é o grunge para você?
Grunge foi o rótulo dado pela imprensa tradicional para um amplo leque de
estilos musicais que estavam rolando por todo o país. Eles basicamente jun-
taram algumas bandas de metal e punk sob esse rótulo. Não significa muita

4sonic youth, 1988


coisa, na verdade. É só um nome que alguém deu a uma cena muito diferen-
te do que as pessoas imaginavam. As fotos ficaram no meu armário por 25
anos, e acho que é uma boa hora para olhar para trás e ver o que aconteceu
de verdade. Existem muitos mal-entendidos e [o livro] é uma forma de rede-
finir, esclarecer e ajudar as pessoas a entender o que rolava por lá.

78 79
O prefácio do seu livro é do Thurston Moore. Como ele entrou na história?
A ideia inicial do livro foi dele. Ele é meu amigo há muitos anos, meu vizi-
nho, e um dia, há uns dez anos, perguntou por que eu não fazia um livro. Há
quatro anos, novamente, ele lembrou da ideia. Demorou três anos para que
o livro ficasse pronto, o processo de seleção e compilação foi bem longo.

Qual foi a banda mais difícil de fotografar?


A mais difícil? Sonic Youth. (risos) Porque eles são difíceis, um pé no saco.
[Folheando o livro] Nirvana foi explosivo, Pearl Jam foi ok, Soundgarden eu
fotografei um milhão de vezes e todas renderam ótimas imagens, Butthole
Surfers também... Vou te dizer, a maior parte das pessoas é fácil de foto-
grafar, você raramente encontra alguém difícil. Até a Courtney Love não é
assim, ela é divertida. Quer dizer, ela pode dar uma de louca de uma hora
pra outra, mas sempre foi divertida.

Todas possuem uma Pensei que sua resposta seria Kurt Cobain. Como era o relacionamento
história, mas fiquei muito entre vocês?
Pois é, Kurt não foi difícil comigo porque era meu amigo. Ele me respeita-
feliz que as fotos dos va, eu acho, então foi uma boa relação de trabalho.

jovens na rua tenham Você é uma espécie de Bob


Gruen do grunge. Concorda O que, para você, fez dele alguém tão especial?
saído. Porque acho que com isso? Se eu soubesse responder isso, estaria rico! (risos) Nós não sabemos. Ele vi-
(Risos) Eu conheci o Bob Gruen, e via em Seattle, e é uma coisa mágica, é magia! Se você está numa sala com
ninguém conhece de talvez ele não goste dessa compa- um cara desses, ele é só mais um, uma pessoa doce e amável. É exatamente

verdade esse lado de ração. Ele e o trabalho dele são uma


grande influência, mas acho que
como você e seus amigos. Quer dizer, ninguém sabia que o cara ia se tornar
uma lenda. Ele era apenas um de nós.

Seattle. Tempos atrás para chegar lá ainda preciso ganhar


mais alguns cabelos brancos. Qual é o seu álbum favorito daquela época?
recebi um e-mail de uma Daydream Nation, do Sonic Youth. É um disco forte. Eu trabalhei nele e sinto
As primeiras fotos do livro sua força até hoje.
das fotografadas em mostram jovens de Seattle e

1983, dizendo que o livro Olympia em 1983 vestidos sob


influências de estilos variados.
O que você faz hoje em dia?
Tenho um grupo de pessoas que eu fotografo e um trabalho com vídeo
era o anuário escolar De onde vinha isso? também. Acabei de finalizar o videoclipe do Heavy Trash, a banda nova
Não existia internet naquela épo- do Jon Spencer. Trabalho também com a Cher, a Miley Cirus, fiz as promos
que ela nunca teve. ca, então as pessoas queriam se para o álbum do TV on the Radio. Trabalho também para algumas emisso-
expressar de diferentes formas – ras, como a Fox.
para questionar a autoridade, por exemplo. É uma espécie de tradição usar
roupas para enfrentar o sistema, se afirmar. Seja qual for a orientação polí- E o que você tem ouvido?
tica, isso ajuda a identificar grupos diferentes. Naquela época, em Seattle, a Muitas coisas. Peguei o Them Crooked Vultures recentemente, gosto também
cena underground era bem pequena, e a música que se ouvia em geral era do Spoon e do Heavy Trash. Já ouviu Fever Ray? É uma garota sueca que
da Costa Oeste, de Londres, Nova York. O pessoal de lá acabou misturando tocou no The Knife e não sai do meu som. Não é rock, é algo mais viajante.
todos os estilos e criou sua própria versão, que é o que as pessoas no mun-
do chamam hoje de grunge. Você pega pop, heavy metal, mods, skinheads, Qual é sua melhor foto, na sua opinião?
todos os tipos de rebeldia e transforma nisso. O som de Seattle também Todas possuem uma história, mas fiquei muito feliz que as fotos dos jovens
dizia isto naquela época: “nós não queremos ver The Go Go’s”, ou seja lá o na rua tenham saído. Porque acho que ninguém conhece de verdade esse
que fosse o mainstream em 1983. Havia muitas bandas de heavy metal e new lado de Seattle. Tempos atrás recebi um e-mail de uma das fotografadas em
wave ruins, a política estava ruim, era o Rock Against Reagan, então a união 1983, dizendo que o livro era o anuário escolar que ela nunca teve.
chegava à esfera política também.
Você planeja uma segunda edição do livro, ou outro com alguma
Como você fazia para capturar momentos espontâneos das bandas, como banda específica?
o Mudhoney? Você era amigo dos músicos? O livro tem uma versão em cores, que é completamente diferente. Fiz algo
No caso específico do Mudhoney, eu ainda não os conhecia. Mas eu acho parecido no meu outro livro, Noise From the Underground: A Secret History
que, por causa da minha amizade com o Bruce [Pavitt], chefe da Sub Pop, of Alternative Rock (Fireside), lançado há 10 anos e que tem diversas ban-
todo mundo era amigo de alguém, então havia um certo conforto nas das, de 1986 a 1996. 3
relações. E esse é um dos segredos para se tornar um bom fotógrafo. Se
você se sente à vontade perto de mim, você me escuta, e fotografar se
torna mais natural.

Mas ser amigo da banda é importante para conseguir uma boa foto?
Não, de jeito nenhum. Às vezes pode ser um problema, se você ficar con- 2saiba mais 4nirvana, 1991
versando e não se concentrar no trabalho. (risos) www.michaellavine.com

80 81
De antemão, um aviso: se você
nunca sentiu “raiva espiritual”, é
desaconselhável continuar a leitura.

s
air para farrear com Zé Ulisses é Dito isso, comecemos. Existem tudo isso era o fato de que para onde eu ia me
fundamental para entendê-lo: assuntos que cabem melhor no sentia deslocado, inclusive na minha própria
em voo rasante por ruas e bares campo da mitologia, do folclore. O casa, como se a coisa estivesse dentro de mim.
obscuros da boemia porto- Velho de Câncer, formado em 2006, O lance do Velho é decepção com gente. Tava
alegrense, o jovem punk rocker de 25 anos uma das melhores bandas brasileiras cansado de montar banda com fórmula, música
concentra as atenções de conhecidos e incautos; de hardcore do século XXI, é um assim, um faz as letras o outro não sei o quê.
bebe e fala em doses/volumes graúdos; tem deles. Assim como Emicida, outro Fiz umas músicas sozinho, chamei uns amigos
acessos de ternura para com os seus talento de um gênero antigos, bem fora do círculo punk, mas que
ao mesmo tempo em que pragueja tinham raiva no coração, moravam na periferia
contra o mundo; tempera seu e o caralho. O problema começou quando a
conhecimento de mundo típico banda começou a ser levada a
de estudante de História com sério pelos outros. A coisa
discursos niilistas contra tudo foi para um lado que nunca
e todos; reconta a vida de seus se quer – me escreveram
pares com um esmero que falando umas paradas
dá às situações mais pesadas etc. Sei lá se é
impossíveis verdade e esse o sentido da coisa. Sei
profundidade; chama que pelas músicas somos responsáveis.
a atenção pelo aspecto
corpulento e marcado Você me falou que tava numas de fazer um
por tatuagens horrendas (“Porra, sabe qual som mais emo...
meu apelido? Porta de banheiro – meus alunos igualmente nevrálgico, no caso de Zé Ah, mano, uns chamam de emo, eu chamo
falam que eu sou grande e todo riscado”). Tudo Ulisses – guitarrista exímio, cronista de reflexão. Tô a fim de pensar um pouco,
nele é hiperbólico e parece empurrá-lo adiante dileto da sarjeta e da desesperança principalmente sobre o que e como dizer
numa espiral que junta rancor, desesperança e vocalista de timbre rasgado e algumas coisas. Acho que um monte de
e um tanto de reflexão. A seguir, com raras decidido –, o imaginário construído coisa tem de ser desconstruída, falando
intervenções, o que se tem é a teogonia de Zé ao redor de si mesmo importa mais especificamente sobre a cena punk. Tá tudo
Ulisses, contada por um dos velhos de câncer do que a averiguação concreta muito bonito, e o bizarro é que vejo gente
típicos de certa classe média urbana que dos fatos, da mesma forma como muito mais tranqueira na igreja do que no punk.
subverteu apatia e alienação em algo muito ninguém se importou por muito
superior: música sincera e inspirada. tempo com o passado construído Ficou fácil, né? “Vamos imitar as bandas skate
por Joe Strummer. Narradores de punk, fazer como as bandas de Washington,
Conta aquela história do seu irmão mais velho, suas próprias vidas, esses tipos tocar punk 77...”
primeiro desajustado, depois crente... de músicos dão eles mesmos a Porra, mano, o lance tá ridículo! Tá na hora da
Pô, cara, meu irmão sempre foi um cara dimensão de quão pertinente é a cena punk acabar e começar outra coisa. A
totalmente perdido. Desde que minha mãe performance de seus discursos. 1 mensagem do punk foi passada e hoje virou um
morreu, ele ficou malucão, começou a usar estilo de vida. Me sinto tão deslocado em show
droga e o escambau. Ele foi tudo: clubber, punk quanto em um emprego de terno e gravata.
skin, rockabilly, regueiro, do hip-hop. Daí um
dia tava muito louco e acabou parando numa Duvido que haja lugar na alma de um evangé-
igreja, onde tá até agora. Só que a parada foi E aquilo de ser o gordinho bobo da escola etc? lico pra "raiva espiritual"...
maluquélvis. Meu irmão é daquelas pessoas Eu moro do lado da minha antiga escola de Lógico que não. Mas em show de hardcore
que são conhecidas pelo nome na Cidade Baixa primeiro grau. Eu era gordinho, é aquele lance: você acha que tem? Eu não!
(bairro boêmio da capital gaúcha), de treta e o pai durão, sem mãe e irmão doidão. Então era um
caralho-a-quatro. Faz três anos isso, mas rolou saco, só que eu era um pouco grande pra minha Então pra quem é o som do Velho de Câncer?
muita treta. Pra ter noção, até eu tô lendo a idade. Dai a única coisa que me deixava feliz Eu não sei mais, cara! Não faço a mínima
Bíblia – mas fique tranquilo, é pra sacar o barato. era ouvir Misfits no walkman. E, se os moleques ideia de quem é nosso público. Quem vai nos
A esposa dele morreu há duas semanas, minha na escola eram playboys, eu ia ser punk. Mas shows aqui são nossos amigos – é algo pela
melhor amiga, e adivinha de quê? CÂNCER! Daí na minha escola ocorreu o oposto de filme de camaradagem e cerveja compartilhada. A única
vi que quem tava com ele nessa parada era nego sessão da tarde: uma vez foram “porrar” um coisa que sei é que é a minha última banda
com Bíblia na mão e amizade no coração. Os colega meu, viadinho, e eu fiquei puto, soquei punk! A parada ainda não teve um fim, porque
anarcorockers, revolta mamãe-com-Nescau, que uns moleques e enfiei a cabeça de um deles na acho que musicalmente ainda tem algo pra
eram os caras que colavam com ele, no máximo privada. Daí os nerds da escola acharam foda, e a fazer. Vamos gravar algo entre março e abril,
foram ao velório, e de má vontade. Hoje meus gente criou uma gangue de gente torta e zoada. temos sete sons novos. 3
amigos são na maioria crentes, mas, pô: quero
dar risada e andar com gente que não bate nas Você tocou em outras bandas. O que te levou
costas e depois te passa o rapa na esquina. ao Velho de Câncer?
Tinha acabado de chegar de Curitiba, onde
Por Arthur Dantas morei um tempo, passava desgosto, boa parte 2saiba mais
Foto por Daigo Oliva por rolos com amigos e garotas. O que ligava myspace.com/velhodecancer

82 83
+quem soma . Mônica Nador . Por Marina Mantovanini

E u quase mudei de profissão porque


achava muito difícil trabalhar no meio
das artes plásticas. Arte é um saco. É
uma competição, é só isso.”
do bairro, para explicar o projeto, mostrar as
minhas intenções e conquistar a confiança. Não
dava apenas para chegar, chegando.
Eu queria mesmo é que eles participassem de
tudo.”
Fiquei maluca: não sabia se meu trabalho era
bom porque era bom ou se valia alguma coisa
porque um dia no futuro iria valer. E quando
caiu a ficha de que eu ia criar obras para
ficarem guardadas em um museu, sem que elas
Era um ensino baseado no modelo marxista,
tinha uns puta professores de sociologia,
história e filosofia que jogavam a gente no meio
da periferia para enxergamos o que realmente
acontecia no país.
tinha chances de frequentar uma escola de
arte. “Senti que precisava viver na periferia para
que os moradores se integrassem ao projeto.
Eu queria fazer o Paredes Pinturas com gente
do bairro. Então abri o JAMAC, que é um
Sem perder o bom humor, Mônica ainda abre
as portas do JAMAC para um café filosófico
mensal com apresentações de literatura,
palestras e debates e pretende transformá-lo
em um ponto de cultura. “No ano que vem,
Foi esse sentimento que levou a artista plástica tivessem feito um percurso na sociedade, eu espaço de experimentação cultural e artística, queremos montar uma estamparia para os
Mônica Nador, 54 anos, a largar o circuito Paredes Pinturas: o Começo realmente não consegui mais pintar telas por Ali eu construí uma relação forte com e comecei a dar aulas de estêncil ao pessoal da alunos do projeto.”
fechado das artes para levantar uma outra O projeto a que ela se refere é o Paredes dez anos. Fiquei em estado de choque.” habitação popular e, antes de montar o JAMAC, comunidade.”
bandeira: a da socialização das técnicas de Pinturas, que começou a ganhar vida em saí para pintar casas em Tihuana, no México, Enfrentando obstáculos tremendos, mas
pintura entre os moradores das periferias. 1996, quando a artista leu, no curso de pós- Jardim Miriam Arte Clube em assentamentos do MST, em uma favela em Estêncil, café filosófico, literatura e debates muito satisfeita com as escolhas que fez, a
graduação da ECA, o texto “O Fim da Pintura”, Foi aí que a artista, de sólida formação São José dos Campos e em algumas cidades A partir da linguagem da pintura e com a artista conseguiu transformar o JAMAC no
É no JAMAC, sigla para Jardim Miriam Arte do crítico norte-americano Douglas Crimp. esquerdista, resolveu transformar os muros do interior do Nordeste.” intenção de desburocratizar a arte, Mônica que ela queria: um local de passe livre para a
Clube, na divisa de São Paulo com Diadema, e as paredes das periferias ou regiões bem escolheu o estêncil pela variedade de comunidade do Jardim Miriam.
que Mônica lembra sua trajetória: as visitas O documento faz uma análise sobre o pobres no seu ateliê a céu aberto. “Antes de ir As primeiras experiências de embelezar lugares possibilidades que a técnica abre: “O estêncil
do artista Alfredo Volpi ao ateliê de seu pai esgotamento das relações do mercado das para a FAAP, estudei arquitetura por três anos degradados e caóticos e aumentar a auto- é mais simples, e você pode pintar de pano de
em São José dos Campos, o curso de artes artes e sobre o futuro das obras versus na antiga Faculdade de Urbanismo Eumano estima dos moradores deu certo. “O pessoal prato a muro de museu.
plásticas na FAAP e a mudança do bairro de museu. “Quando me formei na FAAP, saí de lá Ferreira Velos, em São José dos Campos. do bairro acabava participando do processo
classe média-alta da Vila Madalena para viver e e fiquei tentando ser artista. de criação. Eu sempre perguntava o que eles É importante ensinar algo que possa se tornar
montar seu projeto de vida na periferia. “E u quase mudei de profissão queriam na parede da casa deles e pintava em uma profissão. Se eles quiserem fazer um
Fazia exposições, participava do circuito, mas porque achava muito difícil cima das ideias trocadas.” dinheiro com isso, rola. Para completar, sempre
“Antes de vir para cá e colocar em prática as tinha uma preguiça... Não entendia muito bem trabalhar no meio das artes tive uma conexão com a coisa do padrão, tipo
minhas ideias, eu me reuni durante um ano as regras. A realidade não tinha nada a ver plásticas. Arte é um saco. Esse intercâmbio reviveu a necessidade de pintura islâmica. Foi o casamento perfeito”. 2saiba mais
na casa do Mauro, que é uma das lideranças com o que eu havia estudado. É uma competição, é só isso.” compartilhar conhecimentos com quem não jamac.org.br

84 85
Quando foram lançados os bonecos?
Esses bonecos foram lançados no EUA em
1964, mas só chegaram aqui, pela Estrela, no
final da década de 1970. O cabelo “flocado” foi
um diferencial.

Por que você se dedicou a colocar cabelo


no Falcon?
De início foi para recuperar alguns dos meus
bonecos, mas hoje restauro cabeças para cole-
cionadores do Brasil todo.

E por que eles ficam carecas?


O fato é esse, com o tempo alguns Falcons ficam
carecas. Os mais suscetíveis à calvície, muitas ve-
zes até precoce, são os que foram submetidos a
aventuras sub-aquáticas, porque, quando foram
lançados no Brasil no final da década de 1970,
não existia o respeito ao consumidor de hoje, e
o reclame na TV mostrava as crianças mergu-
lhando o Falcon. Mas a cola não era resistente a
água, e logo vinha a queda dos cabelos. 

Como é o processo de reposição capilar


do Falcon?
Uso uma máquina de flocagem com algumas

4newton Carlos e sua fantástica adaptações mínimas para recolocar o cabelo.


Por Mentalozzz e Ouriço fábrica de Falcons A seleta desta edição é com O processo consiste em remover a cabeça
o Newton Carlos, que é (com secador de cabelo, usando o calor para
coordenador regional do grupo amolecer cuidadosamente o plástico), que é
moveleiro Todeschini e está aqui espetada em um palito de madeira conecta-
porque guarda muitos bonecos do do a um pólo elétrico negativo. Em seguida,
tipo Action Man GI Joe – ou, como passa-se cola onde se deseja que tenha
foi batizado aqui no Brasil, Falcon.  cabelo. Em uma bandeja, é despejada uma
quantidade generosa de cabelinhos, onde se
Newton tem por volta de 100 conecta o pólo positivo. Com o fechamento
aventuras (como eram chamados os do circuito, ocorre a reação: os pelos da ban-
packs com boneco e acessórios) e deja pulam para a cabecinha do Falcon, que
além de colecionador é também o fica parecendo um globetrotter. Deixo secar
responsável por uma clinica tipo hair por quatro dias com muito cuidado para não
center para os Falcons, porque, assim amassar o cabelo. Aí vem a parte de corte,
como seus donos, os bonecos sofrem que pode ser com a tesoura ou fogo, para
com a ação do tempo. Para homens queimar o excesso. Essa fase requer algum
com altos níveis de testosterona dom, tempo de treino e algumas cabeças
como o Falcon, manter os cabelos na danificadas no início. 
cabeça é algo que se torna difícil com
o passar dos anos. E o cabelo, onde você consegue?
O cabelo é feito de raspas de carpete, e eu,
O boneco tinha como um de seus depois de muitos anos, cheguei à receita correta
diferenciais o fato de possuir vários para cada tom de cabelo que foi lançado com o
tipos de cabelos, barbas e bigodes, Falcon – além do grisalho, uma invenção atual,
fabricados por um processo de porque muitos donos quando mandam restaurar
flocagem, o que conferia um toque aproveitam para reciclar o visual. Tenho que usar
especial ao brinquedo (eu tive um seis tipos de flocos de três tamanhos diferentes
Falcon e hoje sou tricotilomaníaco). 1 e três cores para fazer um único tipo de cabelo.

coisas que gostamos de guardar 2mentalozzz e ouriço sofrem de síndrome do pânico e atuam na censura televisiva.

86 87
Se os DJs podem navegar pelas suas coleções de música
e se divertir colando trechos de canções, por que quem
tem conexão com a palavra não pode fazer algo assim
também? Inspirado pelo documentário Scratch, ouvindo
Endtroducing, do DJ Shadow, e sem a menor habilidade Em vez de browsear música, fui pra outra estante e comecei
pra toca-discos, CDJs (ou pra escrever um romance), a buscar trechos de livros que eu pudesse fazer fluir juntos. Não há perdas em escrever: faz seus dedos do pé rirem enquanto você
resolvi inventar minha própria forma de mixtape. Deixei a mente solta, cortei parágrafos e fui mixando... dorme, faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você
O resultado está aí. Vamos ver se funciona… 1 frente a frente com a Morte. A sorte da palavra. Vá com ela, mande-a. Seja
o Palhaço das Trevas. Morte é ausência definitiva. Tomei consciência desse

storymixtape
2gustavo mini escreve em fato aos quatro anos de idade, depois de ter ficado órfão. Estava sentado à
oesquema.com.br/conector mesa do café-da-manhã, encolhido por causa do frio. Minha avó espanhola,
de vestido preto, vigiava o leite no fogão de costas para mim.

Imaginar a morte como um fardo prestes a desabar sobre nosso destino é

.1
insuportável. Conviver com a impressão de que ela nos espreita é tão an-
gustiante que organizamos a rotina diária como se fôssemos imortais, e ain-
da criamos teorias fantásticas para nos convencer de que a vida é eterna.
Ilustração guilherme dable Nada transforma tanto o homem quanto a constatação de que seu fim
Eu adoro música. Música profunda e clara, música com alma e suingada, mú- pode estar perto. Existe acontecimento comparável? Um grande amor? O
sica com melodias inspiradoras e harmonias acolhedoras. Música hipnótica, nascimento de um filho? Pior, muito pior do que as escandalosas tempesta-
cheia de elementos etéreos, que te transporta para outros universos. Música des eram os momentos de tensão e expectativas provocados por traiçoei-
dinâmica e dramática com uma orquestração rica, daquelas clássicas ou en- ras calmarias, quando as águas calmas e o vento morto traziam consigo a
tão das que fazem parte da trilha sonora de um filme. certeza de mudanças no tempo e de mar agitado pela frente.

Às vezes, é difícil definir o que é que realmente faz de uma música algo tão Muitas pessoas me disseram que admiram Chris pelo que ele estava ten-
evocativo e emocionante. Talvez seja apenas a sua honestidade, através da tando fazer. Se tivesse sobrevivido, eu concordaria com elas. Mas isso não
qual o compositor conseguiu traduzir emoção em estado puro, sentimentos aconteceu e não há como trazê-lo de volta. Não tem conserto. Não sei se a
ou ideias em ondas sonoras. Como ouvintes, nós re-traduzimos as ondas gente supera esse tipo de perda. O fato de que Chris se foi é uma dor aguda
que saem dos alto-falantes novamente em ideias, sentimentos ou emoção que sinto todos os dias. É realmente duro.
em estado puro. Cientificamente falando, isso tudo é apenas transferência
de energia. Mas eu sei que é mais do que isso. No esquema de coisas de Alguns dias são menos ruins que outros, mas todos os dias pelo resto de
Kathy Torrance, havia um desdém especial reservado para o cantor. Ela o minha vida vão ser duros. Quando a música terminar, apague a luz. Porque
via como um fóssil vivo, um sobrevivente inoportuno de uma era anterior, a música é um amigo muito especial.
menos evoluída. Ele era ao mesmo tempo maciça e insignificantemente fa-
moso, dizia ela, da mesma forma que era maciça e insignificantemente rico.
Kathy considerava a notoriedade um fluido sutil, um elemento universal,
como o flogisto dos antigos, algo disperso uniformemente no momento da
criação por todo o universo, mas com tendência a aglutinar-se, sob condi-
ções específicas, em torno de certos indivíduos e suas carreiras.

Rez, na opinião de Kathy, havia simplesmente durado demais. À medida que


vivemos, caímos e somos destroçados por várias armadilhas. Ninguém es-
capa delas. Alguns até mesmo convivem com elas. A ideia é se dar conta de tracklist
que uma armadilha é uma armadilha. Se você está numa e não se dá conta, Tom Middletom . Texto do encarte do álbum The Sound of The Cosmos
está fodido. Acho que me dei conta da maioria das minhas armadilhas e es- William Gibson . Idoru
crevi sobre elas. Ainda não encontrei um preso que não conte os dias, todos Charles Bukowski . O Capitão Saiu Para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio
os dias, muitas vezes ao dia. Estou cansado de ouvir planos de fugas mira- J.B. Gelpi . Pankrác ECII – Crônicas do Cárcere de Praga
bolantes, estou cansado de ouvir gente dizendo que, quando sair, a primeira Dráuzio Varella . Por Um Fio
providência vai ser roubar um automóvel na esquina. Amyr Klink . 100 Dias Entre o Céu e o Mar
Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a John Krakauer . Na Natureza Selvagem
precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isso não Jim Morrison . “When The Music’s Over”
tem nada de sagrado. O ser humano já conseguiu ampliar bastante suas
capacidades, a saber: aumentar seu tempo de vida, pulverizar sempre mais
e mais suas marcas atléticas, quintuplicar os requintes de suas técnicas de
extermínio mútuo, centuplicar o poder de se comunicar e outras conquistas
tais que todos conhecem – tudo em progressão aritmética. Em progressão
geométrica exponencial o ser humano só se supera constantemente na ca-
pacidade de se surpreender.

88 89
+reviews

1Gênesis . Robert Crumb .


Conrad Editora . 2009

Em 2005, uma notícia agitou o mundo 1Na Boca


editorial: Robert Crumb, lendário qua- Dos Outros . 1Left 4 Dead 2 . Valve Corporation . 2009
drinista norte-americano, um dos pais Kiko Dinucci .
da contracultura, voltaria a produzir um Desmonta . 2009 Como nas séries de filmes de zumbi de George Romero, o mundo dos games começa a ganhar mais uma boa linhagem de co-
livro inédito. Mais do que isso: produziria medores de cérebro. Left 4 Dead 2 chega aos PCs e Xbox 360 com uma grande responsabilidade: superar seu antecessor. No
uma adaptação do livro bíblico do Gê- Bastaria para Kiko começo pode-se achar que a Valve seguiu a filosofia de que em time que está ganhando não se mexe, porque a mecânica do
nesis, pedra fundamental na moral de frente Dinucci ser apenas jogo continua a mesma. Porém, muitos novos detalhes foram acrescentados ao conjunto. O sistema de quatro personagens
duas das maiores religiões monoteístas o talentoso compositor que é para torná-lo refe- que lutam para sobreviver a hordas de zumbis está lá, mas agora eles são mais bem acabados e conectados com a trama,
do mundo. Em uma época de intolerân- rência de boa música praticada em São Paulo e, ambientada na região Sul dos Estados Unidos. O jovem mecânico Ellis, a produtora de televisão Rochelle, o vigarista Nick e o
cia ascendente – religiosa, legal, de li- por extensão, no Brasil. Chamá-lo de sambista– técnico de futebol americano Coach arrancam membros e explodem crânios em pântanos, shoppings abandonados, cidades inundadas... Aliás, um dos
berdades individuais –, o fato de um dos ainda que o rótulo seja pertinente – é diminuí-lo. capítulos (o game é todo dividido em episódios, como filmes trash com tramas independentes umas das outras, mas que seguem uma espinha dorsal
artistas mais ácidos e impiedosos vivos O álbum Na Boca dos Outros vem para concre- em comum), “Hard Rain”, faz referência ao cenário de Nova Orleans durante o furacão Katrina.
se dedicar a uma missão como essa pro- tizar uma percepção a respeito de suas aptidões Aqui, o companheirismo de pessoas totalmente estranhas entre si é o segredo. Capta a essência dos filmes de zumbi e dá mais emoção em momen-
vocou risinhos sarcásticos de contenta- e colocar em cheque determinados matizes de tos chave da narrativa, como desligar alarmes, coletar itens ou se encurralar em algum ponto até a chegada do resgate. Entre as diferenças entre o
mento entre os fãs, certos de mais uma seu trabalho. Kiko vive a contemporaneidade – primeiro e este novo episódio da série, estão os modos Realism, que limita as mortes dos heróis e outros recursos normais de jogo; o Versus, que
obra-prima do escárnio e da imoralida- não se atrela a tradições estáticas, mantém o divide os usuários entre times de humanos e monstros; e o Scavenge, que coloca o time de humanos para coletar gasolina e alimentar geradores
de. Mas não era bem assim: logo no prin- ouvido esperto e aberto, e se joga por aí, o que enquanto o grupo inimigo tenta atrapalhar. É claro que o Multiplayer é o grande barato de Left 4 Dead 2, mas não importa se você for jogar no modo
cípio, o artista deixou claro que faria um se comprova por sua participação em um grupo single. Além de manter a diversão com altas doses de sustos, sangue e meleca, você nunca se sentirá sozinho cercado de amiguinhos doidos para
trabalho fielmente ilustrativo. Sua intenção não era parodiar o primeiro livro do Pentateuco, de samba e quetais, um trio de afro jazz, um duo chupar seus miolos. 3Por Rafael Argemon
mas trazer à luz em imagens o teor da obra. O resto, ele dizia, o texto original faria por si só. de cabaré, improvisos e até um surpreendente
Quatro anos depois, o livro chega ao Brasil – em lançamento simultâneo com outros onze grupo com o MC Sombra, por exemplo.
países –, em edição de luxo, com capa dura e notas da ótima tradução brasileira. À primeira A tônica é a generosidade e a amplitude desses
folheada, já fica claro que estamos diante de um outro Crumb: em vez de cenas explícitas voos: falta ego e sobram recompensas para to- 1Lord Newborn And The 1Cristalina . Lulina . Tratore . 2009
com genitais, sugestões e relações indiretas; em vez de rompantes de revolta, um autor dos os envolvidos. Mas, obviamente, seu talento Magic Skulls . Vários
incrivelmente submisso ao texto original. Parte da crítica não demorou a condenar o livro e sua verve lírica, tão atrelada à enviesada tra- Artistas . Ubiquity Records . Ouvir as 18 faixas de Cristalina é embarcar numa
como obra monótona (afinal, a linguagem empolada do Gênesis não é das mais divertidas), dição que comporta desde o escritor João An- 2009 curiosa viagem ao mundo de Lulina, também
subserviente, sem sentido. Do outro lado, leitores incautos se chocaram com as imagens di- tonio até o gênio Itamar Assumpção, se adap- conhecido como “Lulilândia”. Difícil ficar indi-
vulgadas na imprensa, em especial a de Adão e Eva nus – ele sobre ela, ela com o êxtase da tam melhor a alguns contextos do que a outros. Projeto musical que envolve três ferente. A imersão ocorre quase sem querer.
primeira penetração da história humana irrompendo no rosto. Difícil imaginar situação mais Em um álbum em que o compositor se arrisca das figuras mais criativas da Quando se dá conta, o ouvinte se pega sorrindo
gratificante para Robert Crumb. Em uma só tacada, traiu os que julgavam tê-lo entendido em tantos gêneros e um tanto cansativo (14 fai- música alternativa atual: Money ao escutar as letras, batendo o pé ao ritmo con-
(domesticado?), chocou os neocons fregueses das listas de mais vendidos, e de quebra xas), vêm à tona tanto o brilho como os desli- Mark, conhecido por suas parce- tagiante das canções e sentindo um friozinho
meteu uma bolada de dinheiro no bolso. Claro, no meio disso tudo produziu um deleite zes. Como Itamar, suas composições brilham nas rias com os Beastie Boys, além na barriga por causa da voz suave de menina, que conquista até o mais duro
majestoso ao grande número de fãs que, como sempre, entenderam a piada. vozes femininas: na abertura fantástica com “Ci- de seus ótimos álbuns; Tommy Guerrero, skatista lendário da dos machões. O álbum, apesar de altamente psicodélico, seja pelas letras sur-
A grande subversão do Gênesis de Crumb é justamente sua sutileza – a primeira delas, randa Para Janaína” (Fabiana Cozza), “Partida Powell Peralta, que ao se aposentar das rodinhas construiu reais ou pelas texturas sonoras pouco comuns, não demanda grande sacrifício
fazer um monte de marmanjos hereges lerem a Bíblia pela primeira vez. Fruto de um em Arujá” (na voz de sua contumaz intérprete uma carreira sólida como músico, com vários discos lançados; para ser compreendido, pois é pop na essência.
trabalho hercúleo de pesquisa histórica, as ilustrações trazem o apogeu do desenhista Juçara Marçal) ou em “Bom Jesus da Cabeça” e Shawn Lee, o caçula da história, multi-instrumentista e ar- Composto por rimas fáceis e acordes simples de violão, além de referências
até agora, exibindo um equilíbrio primoroso entre seus contornos sujos e seu detalhismo (Alessandra Leão, que lançou belíssimo álbum ranjador de sua Ping Pong Orchestra, além de parcerias com o que passam por Júpiter Maçã, Pato Fu, Os Mutantes e até mesmo Raul Sei-
obsessivo. Assim, Crumb alcança um êxito silencioso, ao mostrar coisas que ficavam es- também este ano). enigmático Clutchy Hopkins. No final de 2008, os três se tran- xas, o álbum flui sem maiores solavancos, com direito a vários momentos ge-
condidas sob o texto protocolar. Deus finalmente aparece em toda sua humanidade, inver- O ponto alto do trabalho é “Forró do Homem- cafiaram durante duas semanas no estúdio de Money Mark, niais, boas sacadas e inteligência ímpar. Lulina, alcunha de Luciana Lins, per-
tendo a célebre relação de imagem e semelhança, com poder criador e atitude irascível, Bomba” (escrita em parceria com o grande em Los Angeles, com um objetivo: criar uma aventura sonora. nambucana de Recife radicada em São Paulo, lançou quase uma dezena de
mas cheio de dúvidas e incoerências em sua onisciência. As cenas de guerra e violência Douglas Germano), na qual o gênero de Gonza- Em clima de trilha sonora, o resultado é eclético e de extre- discos caseiros distribuídos em CD-R antes do álbum oficial, uma compilação
em geral – o assassinato de Abel, o Dilúvio, o fogo sobre Sodoma e Gomorra – aproxi- gão encontra ressonâncias em uma queda livre mo bom gosto, unindo grooves do funk, do soul e do jazz, das melhores canções dos discos anteriores, agora gravadas de forma mais
mam o leitor de uma era muito mais crua do que o cristianismo politicamente correto violenta cuja grandiloquência encontra porto com pitadas de rock progressivo e temperos psicodélicos. Se profissional, daí o título Cristalina. Apesar de um tanto longo, percebe-se que
atual. Vendas de mulheres, traições e figuras fálicas – como o cantil de couro sobre o seguro na voz de Marcelo Pretto. Abstenho-me uma boa trilha sonora sempre complementa a experiência de o trabalho foi dividido em duas partes: a primeira, que vai até a nona faixa,
peito de Ló durante o coito bêbado com suas filhas – expõem o senso prático de uma de apontar as falhas – Kiko Dinucci é um talen- um filme, Lord Newborn And The Magic Skulls não precisa de aposta nas canções mais fofas e folclóricas de Lulina, enquanto o restante
moral em que, enfim, resultados são mais importantes do que princípios. Quem diria, o to novo tão estimulante que não merece cen- filme para estimular a visão: a audição já se encarrega disso, segue uma linha mais ácida, permeada por uma fina ironia. São dois lados
registro definitivo de um livro santo, feito pelo menos santo dos artistas. Um epílogo suras. 3Por Arthur Dantas 1você encontra este e através dos diversos climas sonoros. Indicado para ouvidos que se completam, fazendo desse álbum um dos grandes destaques do ano.
essencial e oportuno à história do século XX. 3Por mateus potumati 1você encontra este e outros discos na loja da +soma com imaginação fértil e aguçada. 3Por Daniel Tamenpi 3Por Gilberto Custódio Junior
outros livros na loja da +soma

90 91
+reviews

1Revanchismo . Rogério de Campos . Amok . 2009 1Shenzen, Uma


viagem à China
Quando uma obra vem com todas as etiquetas à mostra, recomenda-se . Guy Delisle .
desconfiança. A trama é contemporânea, urbana. A ação é envolvente, Zarabatana . 2009
com cortes cinematográficos – tendência comum à maioria dos escrito-
res novos metidos a ousados (com o atenuante de se tratar um livro de As histórias em qua-
um gênero voltado por excelência à sétima arte, o policial) –, a protago- drinhos sobre os três 1Entre (Outros) Vol 1 . Vários . +Soma . 2009
nista tem até trilha sonora composta (“Laura Te espera Com Uma Arma meses em que o ca-
na Mão”, de Stela Campos) e as referências à corrupção policial e à nadense Guy Delisle Livros/catálogos, quando bem feitos, ainda são a melhor maneira de dar permanência a um projeto de arte.
cultura pop agradam o público médio. Tudo isso seria sinal indicativo de passou trabalhando Livros têm peso, lugar na história e não evaporam quando alguém não paga a hospedagem do website.
fiasco, caso o autor não fosse Rogério de Campos, o editor-guerrilheiro como chefe de uma equipe de animação Pensando na publicação Entre (Outros) Vol.1, talvez “peso” seja um termo incompatível com o projeto grá-
midiático por trás da Conrad Editora, a mais importante editora de HQs em Shenzen, cidade no sul da China, foram fico leve e sutil, de capa lilás pastel e papel aveludado. Se não é pesado, sem dúvida é um objeto especial e
do país. O passado de militante esquerdista do autor (“o nacionalismo publicadas separadamente em revistas an- precioso, suporte confortável para os trabalhos de 21 jovens artistas que passaram pelas páginas da seção
tem razões que escandalizam a razão”) e o bom conhecimento da obra tes de se tornarem o primeiro livro de uma homônima da revista e pelas paredes do Espaço +Soma, na primeira exposição anual do projeto.
de autores como Valerio Evangelisti e Luther Blissett/Wu Ming acrescentam um componente de crítica série de “guias de viagem” do autor. Recém- De maneira geral, o novo livro apresenta criadores influenciados pela street art e/ou pelo cenário indepen-
política que agrada tanto aos caretas como aos radicais (“a gente descobre que a verdade da vida lançado no Brasil, Shenzen, Uma viagem à dente, desenhistas antes de tudo, principalmente residentes em São Paulo, mas também de estados como
está em qualquer jornalzinho tosco, demagógico, de partideco de esquerda”, afirmação que, proferida China faz um relato dessa experiência e re- Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entre os mais conhecidos estão P.Jota,
por um policial federal, soa engraçada), já que se insere em um vácuo ideológico (para os padrões trata o cotidiano de Delisle em uma cidade Tinico Rosa, Luciano Scherer e Fernando Chamarelli – familiares ao menos para quem presta atenção ao
brasileiros) que o empurra para algo conhecido como autonomismo. Mas isso, enfim, é discussão para que se transformou rapidamente de uma vibrante panorama de arte gráfica atual. Trabalhos bem humorados e perturbadores, como os de Don Torelly, Dea Lellis, Pablo Etchepare e Rômolo,
outro momento. A disputa eleitoreira entre velhos parceiros do passado que na atualidade militam em pequena vila de pescadores para uma me- garantem algumas risadas nervosas durante a leitura, enquanto as diferentes técnicas de nomes como Binho Barreto, Eduardo Sancinetti, Renan Santos
campos opostos (daí o revanchismo do título e o curioso jogo de falsa verossimilhança com a realidade galópole de 14 milhões de habitantes vol- e Viti convidam à contemplação. Se Wagner doNasc, Cena 7, Emol e Ignore por Favor trazem estilos e propostas que aumentam a diversidade da arte
brasileira) move personagens acossados e bem delineados por seus papéis sociais. Entre eles destaca- tada para os negócios. Quem já viajou nas brasileira de raiz urbana, Dimas Forchetti, Lucas Biazon, Mariana Abasolo, Vital Lordelo e Leandro Schereder poderiam ser artistas de qualquer país, no
se uma nerd fã de cultura pop (Nick Drake, R. Crumb, Hagakure, Lênin, Lou Reed – o próprio universo duas outras histórias do autor, Pyongyang, compasso do desenho contemporâneo mundial.
do autor) e um policial honesto – personagens possíveis e ao mesmo tempo irreais. Todos tendo que Uma viagem à Coreia do Norte e Crônicas Tudo isso no livrinho lilás, com uma página de apresentação e breve análise, mais três páginas com reproduções de obras para cada um dos participantes.
lidar com situações em que a realpolitik os força a lidar com forças nem sempre desejáveis. Nesse cabo Birmanesas, vai sentir falta das situações Entre (Outros) Vol.1 tem seu lugar garantido nas melhores estantes, mas, por constituir objeto tão agradável aos olhos, por dentro e por fora, provavel-
de guerra entre projetos pessoais e dinâmicas macropolíticas dispostas de forma mais ou menos bem bem detalhadas sobre os costumes e o mente vai morar sobre mesas, no topo das pilhas de livros legais. 3Por lucas Pexão 1você encontra este e outros livros na loja da +soma
acabada nesse romance de estreia – graças ao ponto de vista enviesado sugerido – Revanchismo sopra modo de viver dos chineses, mas isso tem
ares promissores ao gênero policial pós-Rubem Fonseca.. 3Por Arthur Dantas uma explicação: apesar de ser bem perto de
Hong Kong, a cidade é isolada por cercas
elétricas e vigiada por guardas armados, o 1Call of Duty, Modern Warfare 2 (versão para Xbox 360) . Infinity Ward . 2009
1BK One with Benzilla . Rádio do Canibal . que dificulta a formação de círculos sociais
Rhymesayers . 2009 e torna a vivência do autor fria e impesso- Primeiro, os fatos: Call Of Duty, Modern Warfare 2 tornou-se, em sua primeira semana de vendas, o maior fenômeno
al. A falta de relacionamentos com outras de entretenimento deste ínicio de século, considerando a quantia arrecadada por suas vendas (US$ 550 milhões de
É complicado quando os gringos usufruem da nossa música e fa- pessoas fez com que Guy Delisle sentisse dólares). Agora os argumentos: embora o impacto não seja o mesmo causado pelo primeiro Modern Warfare, de 2007,
zem um monte de besteira. E isso acontece com cada vez mais fre- diariamente na pele o sentimento perturba- esta nova versão é primorosa em quase todos os aspectos que envolvem a criação de um bom game.
quência. A realidade é que eles já dissecaram a música americana e, dor da solidão, que aparece nas falas e nos Se no primeiro MW os gráficos (até hoje impressionantes) eram ultrarrealistas, em MW2 é perceptível um polimento
agora, estão atrás de outras fontes sonoras – como o Madlib com a traços sujos e empoeirados feitos com giz ainda maior. O cuidado com vidros, reflexos e outras “frescuras” que só gamers mais hardcore perceberão torna o
música indiana ou o Onra com a música vietnamita. Podem prever: de cera em preto e branco. jogo ainda mais imersivo. O sangue que brota na tela quando você é atingido por um inimigo chega a ser desespe-
a música brasileira estará na lista das mais sampleadas nos próxi- Mesmo sendo o álbum menos denso da rador em cenas de muita ação (praticamente o jogo inteiro).
mos dez anos. Neste caso, felizmente , o resultado foi muito bom. BK One, produtor e DJ conhecido série, foi em Shenzen que Delisle estreou a A construção dos cenários é por si só um aspecto que deveria ser premiado com um Oscar ou qualquer prêmio que o
por seu trabalho com Brother Ali, juntou-se ao parceiro Benzilla e criou um ótimo disco de rap, que sua multiplicidade de estilos, que consegue valha para a direção de arte do jogo. Prova disso são as duas fases que se passam dentro de uma favela carioca. Cada
tem como principal atração os samples de música brasileira. ilustrar desde as experiências mais realis- detalhe é muito bem reproduzido no jogo: roupas, vozes, os caminhos intrincados com ruas sem saída, telhados que-
Em viagem ao Brasil, a dupla fez a limpa em sebos e levou o que há de melhor no nosso groove tas até as mais fantasiosas. Neste primeiro brados, casas caindo aos pedaços etc.
para transformá-lo em beats para nomes importantes do hip-hop rimarem, criando parcerias ines- quadrinho da série, o ponto mais notável é MW2 mostra algo que já vem acontecendo há algum tempo dentro dos games: chamar o roteiro de “cinematográfico” não é mais um elogio. Os roteiristas
peradas como I Self Divine e Raekwon na faixa “The True & Living”, ou Brother Ali e Scarface em o modo como o artista usa habilmente sua da Infinity Ward encontraram um tom que vai além do cinema. Talvez os filmes ainda sirvam de inspiração para a construção visual da história, mas não mais
“American Nightmare”, que sampleia “Desengano da Visita”, de Pedro Santos. arte para contar suas histórias: além dos para a narrativa. Esta tem uma dinâmica própria, que trabalha em cima de seus próprios clichês e peculiaridades técnicas para chegar ao resultado final.
Rádio do Canibal ainda conta com veteranos como Black Thought (The Roots) e o grupo Haiku desenhos autobiográficos, Delisle agre- Além do modo campanha, no qual o jogador atravessa o mundo para destruir uma célula terrorista – enfrentando inclusive alguns aliados e se
D’Etat das lendas Aceyalone, Myka 9 e Abstract Rude, além de nomes atuais do underground ga aos quadrinhos um roteiro com base juntando a alguns inimigos –, MW2 conta também com um novo modo chamado SpecialOps, no qual o jogador faz pequenas missões, sozinho ou
como Phonte (Little Brother), Slug (Atmosphere), Blueprint, e outros. O disco ainda tem depoi- sólida permeado por seu humor suave. em dupla, e pontua de acordo com seu desempenho. Obviamente, o grande chamariz do jogo continua sendo seu modo multiplayer, que desde o
mentos de Ivan Tiririca (Trio Mocotó), Caetano Veloso, Tom Zé e Hyldon relatando casos da mú- 3Por Marina Mantovanini 1você encontra primeiro MW consagrou Call Of Duty como um dos melhores jogos da atualidade. Novas armas e novas premiações fazem desta versão sem dúvida
sica brasileira. BK One e Benzilla deram um bom exemplo de como usar a nossa música com bom este e outros livros na loja da +soma o melhor shooter multiplayer atual. 3Por rodolfo herrera
gosto e, acima de tudo, respeito. Que assim seja. 3Por Daniel Tamenpi

92 93
+especial
MELHORES 2Melhores Discos Nacionais . Marcelo Viegas (Cemporcento Skate)

DE
She Science . Wry
E não há tempo para mais nada! 2009 foi definitivamente pro saco, e pra gente Trilha Sonora Intuitiva . Fotograma
aqui vai deixar muitas saudades. Quer saber por quê? Então vai fundo nas Money . Money
listas de melhores do ano do staff e dos colaboradores da +Soma. 1 Granada . La Carne

2009
(H)our . Barfly

2Melhores . Lauro Mesquita (Jornalista)


Mostra . Jean Rouch (em BH, SP, RJ e BSB)
2Melhores . Luciano Valério (Desmonta) Filme . Corumbiara, de Vincent Carelli
Festa 1 . Terças-feiras na Engasgagato + Big Papa Records Show 1 . Dom Quixote de Strauss, pela Orquestra Filarmônica de MG
Festa 2 . Quartas-feiras no Ó do Borogodó Show 2 . Maria Alcina no encerramento do Jambolada, em Uberlândia
Filme . Um Homem de Moral . Ricardo Dias Show 3 . O emocionante retorno do Grupo Imbuia, em Pouso Alegre
Disco 1 . O Alumioso . Di Freitas
Disco 2 . Olho China . Doble CO 2Melhores . Arthur Dantas (Redator MTV Pública)
Show . Speeq no CCJ
2Melhores . Daigo Oliva (G1) Mixtape . Emicida
Jay Reatard (melhor show e melhor disco do ano) Exposição . Rodrigo Bivar na Galeria Milan
Bem Vindo e A Partida. Franceses e japoneses arregaçaram no cinema  Teatro . Till . Galpão . Praça da Independência
Sanduíche de funghi da Bella Paulista DVD . Coleção Cinema Marginal . Lume Filmes
Táxi da alegria Livro . Gênesis . Robert Crumb
Descobrir o real significado da frase “flex your head”
2Melhores . Tiago Moraes (+Soma)
2Melhores . Marina Mantovanini (+Soma) Show . Tommy Guerrero no Espaço +Soma
Exposição do fotógrafo Guy Bourdin no Mis Mixtape . Emicida . Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe
Conhecer a coleção de arte contemporânea de Inhotim Exposição . Coletiva “De dentro para fora/ De fora para dentro” . MASP
Margaret Mee na Pinacoteca Livro . Vida Boa . Fabio Zimbres
Show do Radiohead em São Paulo Disco . Farm . Dinosaur Jr
Mark Lanegan e Greg Dulli no Bourbon Street
2Melhores . Helena Sasseron (Ag. Carme)
2Melhores . André Maleronka (Vice Brasil) TV . House (5ª e 6ª temporadas)
BUNISLEYDE & o Bunismo. Disco . In Prism . Polvo
Editar a Vice. Banda nova do coração . The Pains of Being Pure At Heart 
Várias músicas ótimas de rap brasileiro. Várias! Disco de estreia que me pegou de surpresa e emocionou . XX . The XX
A volta do Casatti + a lista Fistaile Show melhor que o esperado e melhor que o disco . Girls, no Point Ephémère, em Paris
Lucky Bastards Inc.
2Melhores Discos . Amauri Gonzo (G1)
2Melhores . Dago Donato (Neu Club) Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe . Emicida
Disco . Merryweather Post Pavillion . Animal Collective Bitte Orca . Dirty Projectors
Dois shows . Yo La Tengo no Pop Montreal e HEALTH no South by Southwest Merriwheather Post Pavillion . Animal Collective
Revelação gringa . Hudson Mohawke Farm . Dinosaur Jr.
Revelação nacional . Soul One Aventuras de Zé no Planeta Roça . Psilosamples
Música . “Warm Heart of Africa” . The Very Best

94 95
+especial
MELHORES
DE 4Melhores Discos . Daniel Tamenpi (Jornalista e Músico) 2Melhores Documentários . Lucas Pexão (Fita Tape)

2009
Inspiration Information 3 . Mulatu Astatke & The Heliocentrics RE:BOARD . Sesper. (Ele também fez o do Garage Fuzz, que tá foda)
Strange Arrangement . Mayer Hawthorne Beautiful Losers . Aaron Rose
Jay Stay Paid . J Dilla TRANSFER . Antônio Ternurinha (inédito)
Tradition In Transition . Quantic And His Combo Barbaro Captured (Clayton Patterson) . Ben Solomon e Dan Levin
Vagarosa . Céu Ashes of American Flags (Wilco) . Brendan Canty e Christoph Green

4Melhores Shows do Espaço +Soma . Fernando Martins (+Soma) 2Melhores . Edu Lopes (+Soma/A Filial)
Kiko Dinucci + Thiago França + Sérgio Machado Flamengo campeão brasileiro de 2009
P.U.T.S. Sábado Finalizar o ano com a taxa de juros (selic) na casa de 0,60%.
Nathan Bell Recuperação do MCA (Beastie Boys), que teve câncer.
Porto Show do Kiko Dinnucci no Espaço +Soma
SP Underground Batalha de solo do Chris Cole vs Dennis Busenitz no The Batttle at the Berrics

4Melhores . Mateus Potumati (+Soma) 2Melhores da Política no YouTube . Alexandre Boide (+Soma)
Show . Dirty Projectors no Goiânia Noise José Serra explica a gripe suína de forma precisa e didática (bit.ly/Vk7gF)
Disco . Merryweather Post Pavillion . Animal Collective Gilberto Kassab faz piada sem graça sobre o desabamento da obra do metrô paulista (bit.ly/8Om0Sy)
Quadrinhos . Sábado dos Meus Amores . Marcello Quintanilha Yeda Crusius toca fogo na cuia e quase é engolida pelas chamas (bit.ly/24mFww)
Livro . O Resto é Ruído . Alex Ross Sérgio Cabral mostra todo o seu gingado no baile funk (bit.ly/7zfRIi)
Revelação . Emicida José Serra lança slogan da chapa com José Roberto Arruda: “vote num careca e ganhe dois” (bit.ly/6Ysjj8)

4Melhores . Tiago Mesquita (Crítico de Arte) 2Melhores Surpresas . Janaina Felix (Tangerina)
Um dos melhores dias da minha vida . Minha defesa de mestrado Lei Anti-Fumo
A volta do Grupo Imbuia . Muita emoção para os pousoalegrenses Show do Onda Vaga no Niceto, em Buenos Aires
Fazer o Blog do Guaciara com o pessoal mais legal do mundo Christoph Waltz em Bastardos Inglórios
Exposição do Robert Wilson “Voom Portraits” no SESC Pinheiros In And Out of Control . The Raveonettes
“Once Upon a Time”, trabalho de Steve McQueen no Inhotim Publicação de Retalhos (Craig Thompson) no Brasil

4Melhores Discos . Rodrigo Brasil (+Soma) 2Melhores Discos . Debora Pill (Fortes Villaça)
Woods . Songs of Shame Uhuuu! . Cidadão Instigado
Death . ...For the Whole World to See Sem Nostalgia . Lucas Santanna
Kurt Vile . Constant Hitmaker / God Is Saying This to You Iê Iê Iê . Arnaldo Antunes
Bowerbirds . Upper Air No Chão Sem o Chão . Rômulo Fróes
Cass McCombs . Catacombs Vagarosa . Céu

4Melhores . Rodolfo Herrera (+Soma) 2Filmes Que Marcaram 2009 . Alexandre Charro (+Soma)
Jogo . Call Of Duty - Modern Warfare 2 O Inferno de Clouzot (2009) . Serge Bromberg e Ruxandra Medrea
Disco 1 . I’m Going Away . The Fiery Furnaces The Wild Blue Yonder (2005) . Werner Herzog
Disco 2 . There Is No Enemy . Built to Spill Anticristo (2009) . Lars von Trier
Filme 1 . District 9 . Neill Blomkamp Stalker (1979) . Andrei Tarkovsky
Filme 2 . Funny People . Judd Apatow Salò (1975) . Pier Paolo Pasolini

2Melhores . Stutz (+Soma)


4Melhores . Jonas Pacheco (+Soma) Show . IRCAM . 43º Festival Musica Nova, no Sesc Vila Mariana
Esporte . Ronaldo Disco . The Empyrean . John Frusciante
Disco . Farm . Dinosaur Jr. Livro . Eclesiastes . Ed. Loyola . Autor Desconhecido
Show . Faith no More Bar . Cachaçaria Moendas . Pres. Altino
Gastronomia . Moqueca de polvo com camarão . Cabana da Celi, Salvador/BA Símbolo . Caveira
Documentário . Milton Glaser: To Inform and Delight . Wendy Keys

4Melhores Discos . Joshua Klein (Pitchfork)


Merriweather Post Pavillion . Animal Collective
Wolfgang Amadeus Phoenix . Phoenix
Bitte Orca . Dirty Projectors
XX . The Xx
Two Suns . Bat for Lashes

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+quadrinhos

rafael sica 4rafaelsica.zip.net

stêvz 4flickr.com/stevz

99
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nik neves 4nikilustrador.com

101
an pintar 230x133mm.pdf 1 12/3/09 11:19 AM

+ENDEREÇOS Pintar .
Rua Cotoxó . 110
Alavanca . São Paulo . SP
www.alavanca.art.br www.pintar.com.br

Centro Cultural da Juventude . Olldog Filmes .


Av. Deputado Emílio Carlos . 3641 www.olldog.com.br
Vila Nova Cachoeirinha Galeria 24 de maio .
São Paulo . SP Rua 24 de maio S/N +Soma .
ccjuve.prefeitura.sp.gov.br Centro. São Paulo . SP Rua Fidalga . 98 C

Vila Madalena . São Paulo . SP M

Converse . Georges Pompidou . www.maissoma.com


Y
www.converseallstar.com.br Place Georges Pompidou
75004 Paris . França Stones Throw Records . CM

Domino . www.centrepompidou.fr www.stonesthrow.com


MY
www.dominorecordco.com
Jardim Miriam Arte Clube . Volcom . CY

Editora Dardo . Rua Maria Balades Correa . 8 www.volcom.com CMY

www.dardomagazine.com Jardim Miriam . São Paulo . SP


K
www.jamac.org.br
Ezekiel .
www.ezekielbrasil.com Motown .
www.motown.com
Festival Goiânia Noise .
www.goianianoisefestival.com.br Museu de Arte Moderna da Bahia .
Av. Contorno S/N
Forumdoc . Solar do Unhão . Salvador . Bahia
www.forumdoc.org.br www.mam.ba.gov.br

Nike Sportswear .
Praça dos Omaguás . 100
Pinheiros . São Paulo . SP
www.nikesportswear.com

102 103
APResenTa
APResenTa

exposição

com o artista Jey


CONTÊINER FORMIGA

é no ínfimo que
vejo a exuberância

DE 04 DE DEZEMBRO ATÉ 23 DE JANEIRO*

www.maissoma.com
04 23 *
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Rua Fidalga 98 vila madalena São Paulo sp Rua Fidalga 98 vila madalena São Paulo sp
DE DE DEZEMBRO ATÉ DE JANEIRO De terça a sábado das 12 às 20h 11 3031 7945 De terça a sábado das 12 às 20h 11 3031 7945

*recesso de 23 de dezembro até 11 de janeiro


ESPAÇO CULTURAL . CAFÉ . LOJA
rua fidalga . 98 . vila madalena . são paulo . sp . 11 3031 7945
104 105
*RECESSO DE 23 DE DEZEMBRO ATÉ 11 DE JANEIRO
BEM VINDO AO TIME, ERIC KOSTON. NOLLIE HEELFLIP, PORTLAND OREGON.
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