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DISCRICIONARIEDADE DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Rodrigo Garcia da Fonseca


Advogado.
Pós-Graduado em Direito pela PUC/RJ e UFRJ

Introdução

O Princípio da legalidade e a discricionariedade


O estudo da discricionariedade da atuação Administração Pública deve
necessariamente começar pela compreensão do princípio da legalidade.

Na fase do absolutismo, caracterizado pela frase de Luís XIV, “l’État,


c’est moi”, o Rei estava acima da lei, e tudo podia fazer e mandar fazer. Não
havia limites para a atuação do monarca, sendo a sua vontade soberana. A
partir da ascensão do liberalismo e do deslocamento da soberania para o povo,
representado pelo parlamento, a vontade da lei substituiu a vontade do Rei
1
como limite da atuação dos órgãos do Estado.

Hoje, no Brasil, por mandamento constitucional, a atuação da


Administração Pública é norteada pelo princípio da legalidade. Enquanto o
particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, como decorre do estatuído no
inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, a Administração só pode fazer
2
aquilo que a lei permite, como deflui do artigo 37 da Carta Política.

Como a doutrina já teve a oportunidade de afirmar, a Administração


3
funciona em verdadeiro regime de liberdade vigiada.

1
ABREU, João Leitão de. A Discrição administrativa. Revista de Direito Administrativo, v.
17, p. 12, jul./set. 1949.
2
O princípio da legalidade não é novidade da Constituição Federal de 1988, pois já vinha
expresso em outras Constituições Brasileiras anteriores.
3
TÁCITO, Caio. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 118.

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Em certas situações, a legislação deixa ao administrador público a
liberdade de escolher, dentre algumas alternativas igualmente válidas e legítimas,
qual ação deve ser adotada, e em qual momento. Daí a noção de discricionariedade
da atuação do administrador. Em matéria tributária, por exemplo, o Fisco tem
a obrigação legal de exigir o pagamento do tributo, mas há certa margem de
discricionariedade no como conferir os fatos declarados pelo contribuinte, no
modo de investigar os reais fatos ocorridos e até mesmo no quando iniciar a
4
cobrança, respeitados os prazos máximos estabelecidos em lei.

Portanto, quando se fala em discricionariedade da Administração, ou


discricionariedade administrativa, não se fala em arbitrariedade. A definição
de “discricionário” que consta dos dicionários comuns normalmente é ligada à
5
idéia de caprichoso, arbitrário ou sem limites, noção que não se coaduna com
a concepção jurídica acima referida. A discricionariedade da Administração
Pública é sempre limitada pela lei.

Na realidade, a idéia de discricionariedade administrativa é normalmente


ligada à liberdade que a lei atribui ao administrador para apreciar a oportunidade
e a conveniência da prática de determinado ato.

Trata-se da faculdade que a lei dá à Administração para apreciar o


valor dos motivos e determinar o objeto do ato, desde que a regra da lei não
6
os estabeleça de antemão. No campo da discricionariedade administrativa,
há um juízo subjetivo de oportunidade e conveniência que é exclusivo de
7
administrador. Mas a mesma lei que dá tal faculdade à Administração é
que igualmente dá os seus limites, não a simples vontade ou a intenção da
autoridade.

Como anotado por Hely Lopes Meirelles, “discrição é liberdade de ação


8
dentro dos limites legais; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei”.
4
SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios fundamentais do direito administrativo tributário.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 18-19.
5
Neste sentido: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário
da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 690.
6
TÁCITO, op. cit., p. 142.
7
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996. p. 559.
8
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 16. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1991. p. 144.

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Diante da aplicação do princípio da legalidade, assim, pode-se concluir
que a discricionariedade administrativa existirá em maior ou menor grau,
dependendo do enquadramento legal de cada situação dada, mas jamais será
absoluta, e portanto não se confunde com a arbitrariedade.

II. Ato discricionário e poder discricionário


Ao se discutir o tema da discricionariedade administrativa freqüentemente
se fala em ato discricionário do administrador. Boa parte da doutrina, no
entanto, critica tal terminologia.

Justamente por ser a discricionariedade sempre limitada pela lei, não é


próprio empregar o termo “ato discricionário”, pois nenhum ato é totalmente
discricionário. O que há é o ato administrativo praticado no exercício de um
9
poder discricionário, maior ou menor, outorgado pela lei.

Em lugar de poder discricionário, outros autores, como Eduardo García de


Enterría e Tomás-Ramón Fernández, usam a expressão potestade discricionária
10
ou discricional.

Alguns elementos do poder discricionário – ou da potestade discricional


– serão sempre disciplinados pela lei, como a sua própria existência (em
oposição à vinculação, que obriga o administrador à prática ou à abstenção de
um ou mais atos determinados), a sua extensão, a competência para exercê-
lo, e a sua finalidade. Outros elementos, como o tempo e a forma para o seu
11
exercício, poderão ser mais ou menos definidos na legislação.

Assim, mesmo quando presente a discricionariedade, o órgão


administrativo terá sempre poderes vinculados quanto a alguns aspectos
e discricionários quanto a outros. Daí não existirem atos puramente
discricionários, mas apenas atos praticados no exercício de poderes
12
discricionários cumulativamente com poderes vinculados.

9
LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 280.
No mesmo sentido: MEIRELLES, op. cit., p. 144.
10
ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito adminis-
trativo. Tradução Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1990. p. 389.
11
Ibid., p. 391.
12
CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 1991.
t. 1, p. 485.

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Nas palavras de Caio Tácito, “não se pode mais falar em ato discricionário,
como um todo orgânico; mas em aspectos discricionários relacionados a
13
determinados elementos, como os motivos ou o objeto”.
Ao tratar da discricionariedade administrativa, assim, o operador
do direito deve verificar, em cada situação, quais aspectos da atuação da
Administração são vinculados e quais outros podem se desenvolver dentro do
exercício de um poder discricionário. Havendo poder discricionário, impõe-se
observar os limites nos quais a legislação o aprisiona.
O poder discricionário estará presente quando a Constituição ou a lei
expressamente conferi-lo ao órgão administrativo ou quando, estabelecendo
uma determinada competência, não estabeleça a conduta a ser adotada. No
âmbito de tal poder discricionário, pode tanto haver
14
a liberdade de quando e
como agir quanto também a de agir ou não agir.
Por mais casuística e detalhada que fosse a legislação, ela jamais seria capaz
de dar conta de todas as hipóteses fáticas possíveis. Assim, diante da variedade
e complexidade de problemas a serem enfrentados pela Administração Pública,
deixa-lhe o legislador certa margem de discricionariedade, ou seja, atribui-lhe
determinados poderes discricionários, de modo15
que possa reagir do meio mais
vantajoso diante de cada ocorrência prática.
O excesso de detalhamento da lei, por outro lado, torna a Administração
rígida, incapaz de se adaptar às necessidades peculiares de cada caso.
O poder discricionário é, assim, uma necessidade para evitar o engessamento
da máquina administrativa, dando-lhe flexibilidade de atuação, tudo dentro 16
dos
limites tolerados pela lei. Justifica-se plenamente sob um aspecto prático.
O poder discricionário permite conciliar o princípio da legalidade com
a necessidade de uma certa liberdade de ação da Administração, evitando o
17
automatismo decorrente dos poderes-deveres vinculados.

Importante limitação ao poder discricionário, porém, será sempre a


finalidade do ato administrativo a ser praticado ou omitido. Mesmo quando a
legislação
13 não é explícita no assunto, haverá sempre uma finalidade pública
TÁCITO, op. cit., p. 65.
14
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992. p.
162-163.
15
MEIRELLES, op. cit., p. 144-145.
16
DI PIETRO, op. cit., p. 162.
17
LAUBADÈRE, André de; VENEZIA, Jean-Claude; GAUDEMET, Yves. Manuel de droit
administratif. 14. ed. Paris: LGDJ, 1992. p. 96.

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ao menos implícita em qualquer poder atribuído à Administração, finalidade
18
esta da qual a atuação estatal não poderá se afastar.

Daí afirmar Marcello Caetano que “discricionário 19


significa livre dentro
dos limites permitidos para realização de certo fim”. Nas palavras 20
de Caio
Tácito, “a finalidade legal do ato é o teto do poder discricionário.”

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder discricionário se justifica


na medida em que permite ao administrador eleger, segundo critérios de
razoabilidade, dentre vários possíveis, um comportamento, “a fim de cumprir21o
dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal”.

O conceito de finalidade do ato administrativo é da maior importância


para o controle judicial da atuação da Administração, como se verá adiante,
tendo sido a base para o desenvolvimento da teoria do détournement de
pouvoir, ou desvio de poder, fundamental para o controle dos abusos praticados
supostamente ao abrigo do exercício do poder discricionário.

III. Discricionariedade e interpretação da lei


Como visto acima, o exercício da discricionariedade por parte da
Administração pressupõe a atribuição a esta, pela legislação, de um poder
discricionário de determinada extensão.

Dentro dos limites estabelecidos pela legislação para o poder


discricionário, é ampla a discricionariedade volitiva do administrador, ou seja
pode ele atuar como melhor entender.

Questão interessante, porém, é examinar até que ponto, ao agir, o


administrador tem ou pode ter discricionariedade para interpretar a lei. É a
chamada discricionariedade cognitiva, a possibilidade de aplicação da norma
jurídica com alguma liberdade pelo intérprete, matéria sobre a qual as opiniões
22
divergem.

Num extremo, defendendo a ampla liberdade do intérprete, e portanto


18
ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op. cit., p. 391.
19
CAETANO, op. cit., p. 486.
20
TÁCITO, op. cit., p. 70.
21
MELLO, op. cit., p. 550.
22
SEIXAS FILHO, op. cit., p. 20-22.

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o maior grau de discricionariedade cognitiva, figura Hans Kelsen. Segundo
o seu conceito piramidal do direito, no qual cada norma ou ato superior
baliza os limites das normas ou atos inferiores, qualquer interpretação é
aceitável desde que se enquadre no que chama de uma moldura de decisões
possíveis, estabelecida pelas regras hierarquicamente prevalentes. “Sendo
assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma
única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções
que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual
valor, se bem que apenas
23
uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão
aplicador do Direito.”

Nesta ordem de idéias, defendida por outros juristas de renome, como


Adolfo Merkl, desde que respeitadas as normas jurídicas de graduação superior
não haveria a possibilidade de limitações ou vinculação na interpretação
da norma jurídica abstrata pela aplicador do direito, órgão
24
judiciário ou
administrativo, para a sua concretização na situação real.

Na outra ponta, há autores que negam a existência desta ampla


discricionariedade cognitiva, defendendo que, na realidade, só há uma
interpretação cabível para a lei. Embora o intérprete seja influenciado por uma
série de fatores inerentes à sua formação e à sua ideologia, cabe a ele buscar a
única solução admitida pela lei diante de um determinado caso concreto, pois
haveria objetivamente apenas uma solução querida pela lei para cada hipótese
dada. Nesta linha, Aurélio Pitanga Seixas Filho cita as lições
25
de Carlos da
Rocha Guimarães, Ricardo Lobo Torres e Alberto Xavier.

Argumento forte em favor da tese de possuir a lei uma única interpretação


possível para cada situação de fato é o próprio sistema judicial de recursos.
Havendo ampla discricionariedade cognitiva do juiz, ao aplicar a lei, qual
seria o fundamento para admitir que o Tribunal, apreciando o recurso, pudesse
reverter aquele entendimento e julgar em sentido diverso? Sentenças são
reformadas todos os dias em nossos Tribunais não apenas em razão da má
apreciação dos fatos, ou de um flagrante erro de direito, mas muitas vezes em
função exclusivamente da interpretação dada a um certo dispositivo legal.

23
O Superior Tribunal de Justiça, criado com a Constituição Federal de
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. p. 390-391.
24
SEIXAS FILHO, op.cit., p. 20-21.
25
Ibid., p. 22.

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1988, tem como uma de suas funções primordiais unificar a interpretação do
direito federal, devendo escolher, dentre as interpretações dadas por diferentes
Tribunais Estaduais ou Regionais Federais quais26as mais adequadas, ou
noutras palavras, quais as corretas e quais as erradas. Se houvesse verdadeira
discricionariedade na interpretação da lei, o recurso especial por violação da
lei ou por dissídio jurisprudencial não faria sentido.

Justamente em razão de sua função uniformizadora da interpretação do


direito federal, o Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação da antiga
Súmula n. 400 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a “decisão que deu
razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza o recurso
extraordinário (...).” Segundo o conceito predominante no âmbito do Superior
Tribunal de Justiça, “a lei não admite duas exegeses diferentes, e ambas certas;
uma delas estará necessariamente contrariando o mandamento da lei, 27que só
pode ser um, e para dizê-lo é que existe o recurso especial para o STJ.”

O tema se torna mais complexo, no entanto, quando entram em cena os


chamados conceitos indeterminados.

Ora, é impossível ao legislador, por mais bem preparado que seja – e


freqüentemente ele não o é – ser sempre claro e preciso. Ademais, como já
comentado, o excesso de detalhamentos na lei é muitas vezes inconveniente,
por não deixar flexibilidade suficiente para o trato com as complexas
necessidades emergentes de realidade dos fatos, impossíveis de serem previstas
todas antecipadamente. O mundo real é sempre mais complicado do que o
28
mundo dos gabinetes do Poder Público.

Assim, a legislação muitas vezes utiliza termos ou conceitos


indeterminados
26 ou abertos, cuja significação pode variar de pessoa para
Ver Constituição Federal, artigo 105, III, ‘a’ e ‘c’.
27
CARNEIRO, Athos Gusmão. Recurso especial, agravos e agravo interno. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. p. 38.
28
É importante observar que o emprego de conceitos indeterminados na lei é técnica de maior ou
menor conveniência dependendo da norma em questão. O Código Civil de 2002, por exemplo,
na esteira do Código de Defesa do Consumidor, é pródigo na utilização das chamadas cláusulas
gerais, conceitos abertos e indeterminados, na forma de princípios genéricos a serem transpostos
para os casos concretos. Nos direitos penal ou tributário, por exemplo, é mais indicada a utiliza-
ção de termos claros e inequívocos, pois do contrário corre-se o risco da norma ter a sua aplicação
dificultada sobremaneira diante das inúmeras proteções e garantias dadas pelo ordenamento
jurídico ao acusado criminalmente e ao contribuinte. No direito constitucional é comum o uso
de expressões gerais e indeterminadas, a serem detalhadas na legislação infraconstitucional.
No direito administrativo, é freqüente a convivência tanto de alguns conceitos indeterminados,
como as noções de interesse público ou moralidade administrativa, como o detalhamento de
regras e a vinculação expressa do administrador a determinados comportamentos.

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pessoa, ou cuja amplitude é tão grande que a especificação no caso concreto
se torna fluida.

Pois bem. Haveria discricionariedade na interpretação de tais conceitos


indeterminados empregados pelo legislador?

Para os defensores da larga discricionariedade cognitiva, na linha de


Kelsen e Adolfo Merkl, o problema sequer se coloca. Se mesmo na clareza
e definição cerrada da lei existe margem de discricionariedade para a sua
interpretação, com muito maior razão haverá quando estiver em jogo a
interpretação de um conceito indeterminado.

No lado oposto da doutrina, fiéis à idéia de que sempre há uma única


interpretação possível para a lei em cada caso concreto, alguns autores
defendem que a interpretação dos conceitos indeterminados, na essência, em
nada difere da interpretação dos demais. O conceito indeterminado deve ser
interpretado da maneira correta e, daí em diante, há mera subsunção,
29
aplicando-
se as normas (premissa maior) aos fatos (premissa menor).

Para Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, “a


indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações
30
do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso.”
Assim, embora sejam genericamente indeterminados os conceitos de boa-fé,
ou de justo preço, por exemplo, diante de uma caso concreto desaparece 31
a
indeterminação. Ou há boa-fé ou não há; ou o preço é justo ou não é.

Admitindo-se tal entendimento, a interpretação de conceitos


indeterminados pela Administração Pública estaria sempre sujeita ao controle
judicial, pois afastando-se o administrador da única solução admissível, haveria
ilegalidade, e portanto estaria legitimada a intervenção judicial.

Certos autores, no entanto, temem a simples substituição dos critérios


da Administração por outros do Judiciário, sendo certo que no sistema da
democracia brasileira a legitimação popular do Executivo é periodicamente
renovada por meio das eleições, o que não ocorre no âmbito do Judiciário,
estruturado em forma de burocracia estável.
29
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1998. p. 167.
30
ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, op.cit., p. 393.
31
ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, loc.cit.

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Assim, a título exemplificativo, Victor Nunes Leal teve o ensejo de
afirmar que “a noção de interesse coletivo é tão vaga e imprecisa que nenhuma
garantia teriam os particulares com a substituição do critério administrativo
32
pelo judiciário.” Mais se falará sobre o tema adiante.

De outra parte, forte corrente doutrinária acredita que, embora em muitas


situações os conceitos indeterminados podem ser efetivamente interpretados
de uma única maneira diante dos casos concretos, noutras hipóteses não
se poderá atingir uma solução unívoca com segurança. Em determinadas
circunstâncias restritas, conceitos legais fluidos e imprecisos poderiam levar
o administrador a mais de um significado possível, desde que contido nos
33
limites da razoabilidade.

Assim, a posição intermediária, entre as duas mais extremadas, vem


ganhando cada vez mais adeptos, parecendo ser a tendência mais atual. Alguns
conceitos indeterminados são de natureza essencialmente empírica, ou de
experiência, e normalmente podem ser entendidos nas situações concretas
através do exercício meramente interpretativo. Outros, notadamente aqueles
ligados a valores, impõem maiores dificuldades ao intérprete, permitindo algum
34
grau de subjetividade para a sua aplicação no caso concreto.

Esta subjetividade, porém, é limitada, guiada e balizada pelas próprias


normas aplicáveis, podendo se falar no que pareceria em princípio uma
35
contradição em termos, ou seja, numa discricionariedade vinculada.

IV. Discricionaridade e questões técnicas


Outro tema que merece especial atenção é o da presença ou não da
discricionariedade – ou do poder discricionário – quando o administrador
público se vê diante de problemas que exigem, para sua solução adequada,
uma análise de natureza técnica.

Havendo uma solução técnica mais eficaz do que as demais, não há que
se falar em discricionariedade da Administração. O interesse coletivo impõe
a adoção daquela opção que é a melhor. Não se pode esquecer, inclusive,
32
LEAL, op. cit., p. 292.
33
MELLO, op. cit., p. 559. SEIXAS FILHO, op.cit., p. 25.
34
Ibid., p. 26
35
Ibid., p. 27; 35.

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que o artigo 37 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda
Constitucional nº 19, elenca a eficiência como um dos princípios reitores da
atividade administrativa.

Normalmente, discricionariedade e técnica serão termos inconciliáveis,


não cabendo ao administrador público qualquer faculdade de se afastar dos
36
critérios puramente técnicos para fazer a escolha de como atuar.

No entanto, se o estado da arte da ciência apresentar, num determinado


momento, mais de uma solução técnica válida, eficiente e adequada para um
certo problema posto para a Administração, pode se falar numa verdadeira
37
discricionariedade técnica, ou numa discricionariedade
38
qualificada, segundo
a terminologia preferida por outros autores.

É necessário distinguir, portanto, quando os requisitos ou elementos


técnicos são rígidos e quando eles podem ser flexíveis, pois se no segundo
caso há margem para o exercício de uma avaliação subjetiva por parte do
administrador, na primeira hipótese a análise deve ser totalmente
39
objetiva,
acarretando uma atuação vinculada, e não discricionária.

Por outro lado, é importante ressaltar que, quando está em jogo uma escolha
técnica, ainda que haja campo para alguma margem de discricionariedade,
muitas vezes haverá também outros fatores e interesses relevantes a serem 40
considerados, e que transcendem a questão estritamente técnico-científica. A
opção por uma determinada tecnologia em detrimento de outra, por exemplo,
freqüentemente envolve escolhas de natureza política, social e econômica,
sendo fundamental verificar quem, dentro da Administração Pública, tem a
competência para decidir as matérias em questão, e qual a41extensão da sua
discricionariedade, segundo os critérios já expostos acima.

Em matéria técnica, porém, é preciso reconhecer a contínua possibilidade


36
Sobre o tema, vale conferir SEIXAS FILHO, op. cit., p. 30-31, citando Augustín Gordillo
e Ezio Vanoni.
37
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002. p. 31.
38
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1969. v. 1, p. 425.
39
MELLO, op.cit., p. 425.
40
Ver SEIXAS FILHO, op.cit., p. 31; 34, citando Massimo Severo Giannini.
41
SOUTO, op.cit., p. 31.

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de modificação, pela própria Administração, dos entendimentos manifestados
anteriormente. Na medida em que a ciência evolui, avança e se aperfeiçoa,
as novas concepções técnicas podem e devem ser incorporadas às decisões e
42
ações administrativas.

V. Controle judicial da dicricionariedade administrativa


Conforme se observou no início, a discricionariedade administrativa,
ou o poder discricionário da Administração, só existe nos estritos limites
estabelecidos na Constituição e na lei. A discricionariedade está inteiramente
subordinada ao princípio da legalidade.

O controle judicial, portanto, só poderá ocorrer quando, no pretenso


exercício de um poder discricionário, a Administração transbordar dos limites
impostos pela lei, e assim violar o princípio da legalidade. Desde que atue
dentro dos limites que lhe são outorgados na legislação, a atuação discricionária
da Administração não poderá ser questionada no Judiciário, sob pena de
usurpação da sua competência e de desrespeito ao princípio43
da separação dos
poderes expresso no artigo 2º da Constituição Federal.

Desde que esteja atuando dentro da legalidade, a Administração tem


a exclusividade do juízo de conveniência e oportunidade da sua atuação ou
omissão, nele não podendo ser intrometer a autoridade judicial. Do contrário,
como observado anteriormente, além da invasão de um poder na área de
competência do outro, haverá uma simples substituição da discricionariedade
administrativa pela discricionariedade judicial, ilegítima e sem qualquer
vantagem para a sociedade.

A regra acima mencionada, ou seja, de que o controle judicial é um


controle estritamente de legalidade, é antiga no direito brasileiro. Já vinha
expressa na Lei nº 221, de 1894, segundo a qual “a autoridade judiciária
fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de
atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência e oportunidade”,
bem como “a medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou
poder discricionário somente será havida por ilegal em razão da incompetência
44
da autoridade respectiva ou do excesso de poder.”
42
Ibid., p. 358-359.
43
MELLO, op. cit., p. 559.
44
LEAL, op. cit., p. 289. ABREU, op. cit., p. 19.

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O chamado excesso de poder, no âmbito dos direitos constitucional e
administrativo, constante da antiga legislação, é figura aproximada do abuso
de direito nas relações entre particulares. Ao extrapolar os limites dentro dos
quais lhe era lícito atuar, a Administração Pública abusa da discricionariedade
outorgada pela lei, e passa a agir arbitrariamente, do modo
45
ilícito, justificando
assim a repressão de sua conduta pelo Poder Judiciário.

Já a teoria do desvio de poder, criada inicialmente na França, através de


decisões do Conselho de Estado, é outra técnica amplamente aceita para o
controle dos atos praticados pela Administração ao alegado abrigo do exercício
de poder discricionário.

Segundo Caio Tácito, “o détournement de pouvoir se identifica sempre


que o agente administrativo, embora competente, pratica determinado ato
mediante o uso dos seus poderes
46
legais para fim diverso daquele em virtude
do qual lhe foram concedidos.”

Maurice Hauriou inicialmente identificou a desobediência à finalidade


da lei na atuação administrativa como uma questão de imoralidade da atuação
da Administração, e não propriamente de ilegalidade47
em sentido estrito. Tal
posição, no entanto, acabou minoritária e superada.

Como a finalidade é um aspecto vinculado da atuação do administrador,


48
conforme anotado acima, o desvio de poder é espécie de ilegalidade,
49
cujo
reconhecimento pode se dar no âmbito do Poder Judiciário.

A maioria da doutrina e da jurisprudência brasileiras, há muito, vêm


progressivamente acatando a teoria do desvio de poder como meio de controle
50
da discricionariedade administrativa.
45
LEAL, op. cit., p. 292-293. MELLO, op. cit., p. 426-429.
46
TÁCITO, op. cit., p. 73.
47
Ibid., p. 71, e CAETANO, op. cit., p. 506-509.
48
CAETANO, op. cit., p. 509.
49
Victor Nunes Leal, op. cit., p. 287-288; 290, adverte para os inconvenientes da pura e simples
importação da teoria do détournement de pouvoir, na medida em que o Conselho de Estado, na
França, é órgão contencioso da própria Administração, e como tal pode rever os atos administra-
tivos com maior liberdade. Assim, o autor defendeu que desvio de poder seria uma modalidade
do excesso de poder, e não poderia ter, no Brasil, a mesma amplitude que adquiriu na França.
Como veremos a seguir, no entanto, há hoje uma tendência de ampliação do controle judicial
dos atos administrativos em geral, em especial no campo do poder discricionário, e portanto a
crítica, embora extremamente bem articulada, parece ultrapassada.
50
TÁCITO, op. cit., p. 124-133.

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Também pode ser citada a teoria dos motivos ou fatos determinantes,
segundo a qual o controle pode se dar através do exame da motivação do ato
51
e da verificação da realidade e congruência dos motivos expostos. Trata-se
de teoria igualmente originária da França, mas que tem especial relevância
para o sistema jurídico brasileiro, no qual o princípio constitucional do
devido processo legal judicial e administrativo exige a motivação dos atos
52
da Administração Pública.

Celso Antônio Bandeira de Mello bem analisou o tema, esclarecendo


que “é o exame dos motivos – quer quanto à subsistência deles, quer quanto
à idoneidade que possuem para determinar a vontade do agente na direção
que haja tomado – meio hábil para a contenção do administrador na esfera
53
discricionária que lhe assista.”. Mais adiante, acrescentou o mesmo autor que
“a análise dos pressupostos de fato que embasaram a atuação administrativa é
recurso impostergável para aferição do Direito e o juiz, nesse caso, mantém-se
estritamente em sua função quando procede ao cotejo entre o enunciado legal
54
e a situação concreta.”

Com efeito, ao lado da observância da finalidade legal, o exame dos fatos


e dos motivos determinantes da prática do ato administrativo é importante meio
55
de combate ao arbítrio. Analisando a congruência entre os fatos efetivamente
ocorrentes, a fundamentação declinada e o ato concretamente praticado, pode
o Judiciário verificar se o administrador, a pretexto de agir dentro do poder
discricionário, não está na realidade agindo abusivamente, em sentido contrário
àquele perseguido pela legislação.

Sente-se, nos últimos anos, uma tendência à ampliação das hipóteses de


56
controle judicial sobre os atos administrativos.
51
DI PIETRO, op. cit., p. 166.
52
Constituição Federal, artigo 5º, LIV e LV. Também se pode inferir a necessidade de motivação
dos atos administrativos a partir dos princípios gerais da Administração Pública, como os princí-
pios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, expressos no artigo 37 da Carta Política.
A nível infraconstitucional, merece menção a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei n.
9.784/99), cujo artigo 50 exige expressamente a motivação dos atos administrativos em geral,
com indicação dos fatos e fundamentos jurídicos, devendo ser explícita, clara e congruente.
53
MELLO, op. cit., p. 555.
54
MELLO, loc. cit.
55
TÁCITO, op. cit., p. 133.
56
DI PIETRO, op. cit., p. 166.

78 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004


Como já referido anteriormente, sempre poderá haver o controle judicial
quanto aos aspectos vinculados do ato discricionário – ou do ato praticado
no exercício de poder discricionário, para usar a terminologia mais precisa.
Assim, com relação à competência do agente, à validade de sua manifestação,
à forma do ato e ao atendimento da finalidade legal, sempre poderá haver a
57
análise do Judiciário, seja o ato discricionário ou vinculado.

Embora um ato possa ser em princípio discricionário, ou seja, a sua prática


de uma ou de outra maneira esteja dentro do poder discricionário do agente,
sujeito ao seu juízo de conveniência e oportunidade, a ilegalidade poderá se
fazer presente de vários modos. Seja a ilegalidade relativa ao próprio agente,
em função do eventual abuso de sua competência, seja a ilegalidade referente à
finalidade, à forma, ao objeto ou aos motivos, sempre o que estará em questão
será o princípio da legalidade, e portanto o ato poderá ser impugnado junto ao
58
Judiciário.
59
Contrariando uma tendência anterior, no entanto, e principalmente a
partir da Constituição de 1988, o Judiciário passou a fazer uma análise ainda
mais aprofundada dos atos administrativos em geral, verificando não apenas
os seus aspectos de legalidade formal, como também, as suas características
de razoabilidade e proporcionalidade.

Como razoável deve entender-se todo o ato que, pelo senso comum,
segundo as informações disponíveis àquele que agiu, conforma-se aos objetivos
que visa atingir. De outra parte, será proporcional o ato quando houver correlação
entre os meios e os fins perseguidos, ou seja, quando não for o ato exagerado,
ou quando não houver meio menos gravoso para se atingir a meta objetivada.

Nessa concepção mais moderna, como afirma Marcos Juruena Villela


Souto, “a verificação dos fatos, da razoabilidade da motivação e da finalidade
integram a legalidade ou legitimidade em sentido amplo, sem substituição do
60
juízo de valor pelo do juiz.”

Também se tem defendido a possibilidade de aferição da moralidade


57
FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 76.
58
LAUBADÈRE; VENEZIA; GAUDEMET, op. cit., p. 95.
59
Ver LEAL, op. cit., p. 290-291.
60
SOUTO, op. cit., p. 358.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 79


dos atos administrativos, sempre dentro de conceitos e padrões aceitáveis
61
pelo senso comum.

No entanto, enquanto a análise da razoabilidade e da proporcionalidade


dos atos administrativos parece escorada em standards mais objetivamente
aferíveis diante de situações concretas, em especial a partir de conceitos
desenvolvidos pela jurisprudência constitucional norte-americana e alemã,
principalmente, e do próprio Supremo Tribunal Federal no Brasil, no exame
62
da constitucionalidade dos atos normativos, o controle judicial dos atos
administrativos pelo exclusivo prisma da moralidade parece carecer de
parâmetros mais concretos, capazes de garantir a segurança jurídica e impedir
a simples substituição do arbítrio administrativo pelo arbítrio judicial, tão ou
mais danoso do que aquele.

De qualquer modo, os limites impostos à discricionariedade em virtude


do princípio da legalidade não podem mais ser entendidos apenas como a
observância da letra fria da lei. Também ressaltam, como limitações à atuação
discricionária do administrador público, em decorrência do sistema jurídico
como um todo, a proporcionalidade, a boa-fé, a lealdade e a igualdade, pois
não se pode compactuar com favorecimentos espúrios a uns em detrimento
63
de outros.

Não obstante, postos os devidos limites, ainda se reconhece um campo


de atuação livre para a Administração, verdadeiramente discricionário, que
é absolutamente essencial e necessário ao bom funcionamento da máquina
administrativa.

Vem crescendo no Judiciário brasileiro, por exemplo, um uso distorcido e


abusivo da ação civil pública por parte do Ministério Público, como tentativa
de tutelar a atuação do Executivo. Os Tribunais vêm rejeitando tais demandas
coletivas, bem esclarecendo o âmbito da discricionariedade administrativa
nos dias atuais.

Neste sentido, vale destacar alguns acórdãos recentes do Superior


61
DI PIETRO, op. cit., p. 166-167.
62
Sobre os parâmetros aceitos para a averiguação da razoabilidade e da proporcionalidade das
leis e dos atos estatais em geral, vale conferir: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamen-
tais e controle da constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1998. p. 67-83. BARROSO,
Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.
209-234.
63
FIGUEIREDO, op. cit., p. 173.

80 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004


Tribunal de Justiça sobre o tema:
Administrativo. Processo Civil. Ação civil pública.
1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública
para proteger interesses coletivos.
2. Impossibilidade do juiz substituir a Administração Pública
determinando que obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto
habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para
atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano.
3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar
atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.).
O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo interesses
coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas.
4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm
força para quebrar a harmonia e independência dos Poderes.
5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário
está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de
obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência,
da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do
mérito.
6. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração
depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades
estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto,
determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio
ambiente.
64
7. Recurso provido.
Constitucional. Administrativo. Ação Civil Pública. Poder Discricionário
da Administração. Exercício pelo Juiz. Impossibilidade. Princípio da
Harmonia entre os Poderes.
O juiz não pode substituir a Administração Pública no exercício do
poder discricionário. Assim, fica a cargo do Executivo a verificação da
conveniência e da oportunidade de serem realizados atos de administração,
tais como, a compra de ambulâncias e de obras de reforma de hospital
público.
O princípio da harmonia e independência entre os Poderes há de ser
observado, ainda que em tese, em ação civil pública, possa o Município
64
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial n. 169-876-SP, da 1ª
Turma. Relator: Min. José Delgado. Revista do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, v. 114,
p. 98-99, fev. 1999.
65
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 252.083-
RJ, da 2ª Turma. Relatora: Min. Nancy Andrighi. DJU, 26 mar. 2001. Disponível em: <http://www.
stj.gov.br>

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 81


ser condenado a obrigação de fazer.
65
Agravo a que se nega provimento.
Administrativo. Processo Civil. Ação Civil Pública.
1. O Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional, deve
observância aos princípios constitucionais, inclusive ao da independência
e harmonia entre poderes (art. 2º, CF).
2. A observância das normas constitucionais delimita a interpretação
e o âmbito de aplicação da legislação infraconstitucional.
3. Não compete ao Judiciário, no seu mister, editar normas genéricas
e abstratas de conduta, nem fixar prioridades no desenvolvimento de
atividades de administração.
4. Ao Poder Executivo compete analisar a conveniência e oportunidade
da adoção de medidas administrativas.
66
5. Agravo desprovido.
Vê-se dos precedentes acima transcritos, portanto, que o Judiciário tem
a exata noção dos limites da sua própria atuação em matéria de controle da
discricionariedade administrativa, sendo salutar o cuidado com que trata da
matéria.

Os recursos do Estado são escassos, e cabe ao Executivo, dentro dos


limites traçados pelo Legislativo – ambos periodicamente renovados por
eleições populares – escolher as prioridades da sociedade. Aí o velho princípio
da separação e harmonia dos Poderes, dos freios e contrapesos.

Como lembrado no início do presente trabalho, juridicamente a


discricionariedade não se confunde com o arbítrio. Numa democracia, o poder
discricionário da Administração, devidamente delimitado pela legislação, é
necessário, útil e, com os seus devidos contornos, deve ser preservado.

VI. Conclusões
Conforme anotado ao longo do texto, a discricionariedade da
Administração é sempre limitada pelo princípio da legalidade. Quando
exercido o poder discricionário da Administração, dentro dos seus contornos
legais, não deve o Judiciário intervir para questionar o juízo de conveniência
e oportunidade manifestado pelo Executivo, sob pena de violação ao princípio
da separação e harmonia dos poderes.
66
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 261.144-
SP, da 2ª Turma. Relator: Min. Paulo Medina. DJU, 10 mar. 2003. Disponível em: <http://www.
stj.gov.br>.

82 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004


Embora a evolução da doutrina venha restringindo cada vez mais o âmbito
da discricionariedade administrativa, ainda se faz presente a necessidade de
ser preservado algum grau de flexibilidade para o administrador público, a ser
concretizado através do exercício de poderes discricionários.

O que deve ser combatido é o abuso, o desvio, o uso deturpado ou ilegítimo


da discricionariedade para, de forma mascarada, violar a lei, praticar o arbítrio e o
favorecimento. Daí a importância de um controle efetivo dos atos administrativos,
mesmo quando em princípio sejam discricionários, pelo Poder Judiciário.

Como em quase tudo, a virtude está no meio termo. Nem tanto ao mar,
nem tanto à terra.

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______. Acórdão no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 261.144-SP,


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