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EINSTEIN E A CRISE DA RAZÃO – MAURICE MERLEAU-PONTY

(Retirado de: MERLEAU-PONTY, Maurice. Einstein e a mundo é evidente, o espírito clássico, em


crise da razão. in Signos. 1ª edição. São Paulo: Martins Einstein, está portanto em seu limite extremo.
Fontes, 1991. pp. 213-219)
Sabe-se que ele nunca pôde se resolver a
considerar definitivas as formulações da mecânica
A ciência, no tempo de Auguste
ondulatória, que não se baseiam, como os
Comte, preparava-se para dominar teórica e
conceitos da física clássica, nas “propriedades”5
praticamente a existência. Quer se tratasse da
das coisas, dos indivíduos físicos, mas descrevem
ação técnica, quer da ação política, pensava-se
o comportamento e as probabilidades de certos
ter acesso às leis segundo as quais natureza e
fenômenos coletivos no interior da matéria.
sociedade são feitas, e governá-las de acordo
Nunca pôde aderir à idéia de uma “realidade” que,
com seus princípios. Foi algo totalmente
por si e em última análise, fosse um tecido de
diferente, quase o inverso, que ocorreu: longe
probabilidades. “Todavia, acrescentava ele, não
de, na ciência, luz e eficácia terem crescido
posso invocar nenhum argumento lógico para
juntas, aplicações que revolucionam o mundo
defender minhas convicções, a não ser meu
nasceram de uma ciência altamente
dedinho, única e fraca testemunha de uma
especulativa, sobre cujo sentido último não há
opinião profundamente arraigada na minha
acordo. E longe de a ciência ter-se submetido até
pele.”6 O humor não era uma pirueta para
à política, tivemos pelo contrário uma física
Einstein, ele o convertia num componente
repleta de debates filosóficos e quase políticos.
indispensável de sua concepção do mundo, quase
O próprio Einstein era um espírito
um meio de conhecimento. O humor era para ele
clássico. Por mais categoricamente que
o modo das certezas arriscadas. Seu “dedinho” era
reivindique o direito de construir, e sem respeito
a consciência, paradoxal e irreprimível no físico
algum pelas noções a priori que pretendem ser o
criador, de ter acesso a uma realidade mediante
arcabouço invariável do espírito1, ele nunca
uma invenção contudo livre. Para esconder-se tão
deixou de pensar que essa criação vai ao
bem, pensa Einstein, é preciso que Deus seja
encontro de uma verdade depositada no mundo.
“sofisticado” ou refinado. Mas não poderia haver
“Acredito num mundo em si, mundo regido por
Deus maldoso. Mantinha, pois, as duas
leis que tento apreender de uma maneira
extremidades da corrente — o ideal de
selvagemente especulativa.”2Mas, justamente,
conhecimento da física clássica e sua própria
ele não ousa fundamentar categoricamente esse
maneira “selvagemente especulativa”,
encontro da especulação e do real, de nossa
revolucionária. Os físicos da geração seguinte
imagem do mundo e do mundo, a que chama às
soltaram, em sua maioria, a primeira extremidade.
vezes “harmonia preestabelecida”3, numa infra-
O encontro da especulação e do real que
estrutura divina, como o grande racionalismo
Einstein postula, como um mistério límpido, é
cartesiano, nem, como o idealismo, no princípio
visto sem hesitação pelo público como um
de que para nós o real não poderia ser diferente
milagre. Uma ciência que confunde as evidências
daquilo que podemos pensar. Einstein refere-se
do senso comum, e é capaz ao mesmo tempo de
por vezes ao Deus de Spinoza, mas em geral
mudar o mundo, suscita inevitavelmente uma
descreve a racionalidade como um mistério e
espécie de superstição, mesmo entre as
como o tema de uma “religiosidade cósmica”4.
testemunhas mais cultas. Einstein protesta: não é
A coisa menos compreensível do mundo, dizia
um deus, esses elogios desmedidos não se dirigem
ele, é que o mundo seja compreensível.
a ele, mas “a meu homônimo mítico que me torna
Se denominamos clássico um
a vida singularmente dura”7. Não acreditam nele,
pensamento para o qual a racionalidade do
ou melhor, sua simplicidade aumenta-lhe ainda
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mais a lenda: já que está tão espantado com sua
A ci ência “ é uma criação do espírito humano por
meio de idéias e conceit os livremente inventados ”. glória, e a preza tão pouco, é porque seu gênio
EINSTEIN e INFELD, L'évolution dês idées en não é inteiramente ele. Einstein é antes o lugar
physique,
5
p. 286. EINSTEIN e INFELD, L'évolution des idées en physique,
2
Carta a Max Born, 7 de novembro de 1944, citada p. 289.
6
por T. Kahan, La philosophie d'Einstein. A Max Born, 3 de dezembro de 1947, citado por T. Kahan.
3 7
EINSTEIN, Comment je vois lê monde, p. 155. Resposta a Bernard Shaw, citada por Antonina
4
Ibid., p. 35. VALLENTIN, Le drame d'Albert Einstein, p. 9.
2
consagrado, o tabernáculo de alguma operação não lhe formular as perguntas que se
sobrenatural. “Esse desprendimento é tão formulavam à Pítia?
completo que às vezes é preciso, ao conviver Tais desvarios não são exclusivos do
com ele, lembrar-se de que estamos realmente jornalismo ocidental. Na outra extremidade do
com ele. Julgamos estar lidando com um sósia... mundo, as apreciações soviéticas sobre a obra de
Até ocorreu-me a inverossímil suspeita de que Einstein (antes da recente reabilitação) prendem-
ele se julga igual aos outros.”8 Luís XIV dizia se também ao ocultismo. Condenar como
tranquilamente: “Cumpre reconhecer que “idealista” ou “burguesa” uma física na qual não
Racine é bem talentoso”, e jamais Viète, se critica por outro lado nenhuma incoerência,
Descartes, Leibniz foram considerados super- nenhum desacordo com os fatos, é supor um
homens por seus contemporâneos. Numa época gênio maligno errante nas infra-estruturas do
em que se acreditava numa origem eterna de capitalismo que sopra a Einstein pensamentos
todos os nossos atos de expressão, o grande desta vez suspeitos — é, sob as aparências de uma
escritor ou o grande sábio não passava do doutrina social racional, renegar a razão
homem bastante engenhoso para captar algumas precisamente onde ela brilha com evidência.
das palavras ou das leis inscritas nas coisas. De um canto ao outro do mundo, quer a
Quando não há mais Razão universal, é preciso exaltem, quer a reprimam, a obra “selvagemente
que sejam taumaturgos. especulativa” de Einstein provoca um
Hoje, como outrora, só há contudo desenvolvimento da desrazão. Mais uma vez, ele
uma única maravilha — considerável, é verdade nada fez para colocar seu pensamento nessa luz,
—, que é o homem falar ou calcular, em outras permanecia um clássico. Mas não seria isso
palavras, que ele tenha constituído para si esses apenas o fado de um homem bem-nascido, a força
prodigiosos órgãos, o algoritmo, a linguagem, de uma boa tradição de cultura? E, quando estiver
que não se desgastam, mas ao contrário crescem esgotada essa tradição, não poderá a nova ciência
com o uso, capazes de um trabalho indefinido, ser, para aqueles que não são físicos, senão uma
capazes de produzir mais do que lhes foi lição de irracionalismo?
colocado, e no entanto não cessam de se reportar Em 6 de abril de 1922, Einstein
às coisas. Mas não possuímos teoria rigorosa do encontrava Bergson na Sociedade de Filosofia de
simbolismo. Prefere-se, pois, evocar uma Paris. Bergson fora “para ouvir”. Mas, como
potência animal qualquer que, em Einstein, acontece, a discussão esmorecia. Decidiu-se então
engendraria a teoria da relatividade como em a apresentar algumas das idéias que estava
nós produz a respiração. Einstein protesta em defendendo em Durée et simultanéité — e propôs
vão: ele precisa ser feito de um modo diferente em suma a Einstein um meio de desarmar a
de nós, precisa ter outro corpo, outras aparência paradoxal de sua teoria e de reconciliá-
percepções, e dentre elas, por sorte, a la com os homens simplesmente homens. Por
relatividade. Médicos americanos deitam-no exemplo, o famoso paradoxo dos tempos
numa cama, cobrem de detectores a fronte nobre múltiplos, cada um deles ligado ao ponto onde se
e ordenam: “Pense na relatividade”, como se encontra o observador. Bergson propunha
ordena “Faça a” ou “Conte vinte e um, vinte e distinguir aqui verdade física e verdade pura e
dois” — como se a relatividade fosse objeto de simples. Se, nas equações do físico, uma certa
um sexto sentido, de uma visão beatífica, como variável, que temos o hábito de chamar tempo
se não fosse necessária tanta energia nervosa, e porque marca tempos decorridos, aparece
conduzida por circuitos igualmente sutis, para solidária do sistema de referência em que nos
falar quando se é bebê quanto para pensar a colocamos, ninguém recusará ao físico o direito
relatividade quando se é Einstein. Isso está a um de dizer que o “tempo” se dilata ou se retrai
passo das extravagâncias dos jornalistas que conforme é considerado daqui ou dali, havendo
consultam o gênio sobre as questões mais portanto vários “tempos”. Mas falará ele então
alheias ao seu campo: afinal de contas, uma vez daquilo a que os outros homens dão esse nome?
que a ciência é taumaturgia, por que não faria Essa variável, essa entidade, essa expressão
ela um milagre a mais? E uma vez que Einstein matemática designaria ainda o tempo se nós lhe
mostrou justamente que, a grande distância, um atribuíssemos as propriedades de um outro tempo
presente é contemporâneo de um futuro, por que — o único que é sucessão, devir, duração, em
8
A. VALLENTIN, ibid.
suma, o único que é verdadeiramente tempo — do
qual temos experiência ou percepção antes de
3
toda a física? direito divino de uma ciência dogmática mas so-
No campo da nossa percepção, há bre a evidência pré-científica de que há um único
acontecimentos simultâneos. Por outro lado, mundo, sobre a razão antes da razão que está
vemos também nele outros observadores cujo contida em nossa existência, em nossa relação
campo invade o nosso, imaginamos ainda outros com o mundo percebido e com os outros. Falando
cujo campo invade o dos precedentes, e é assim assim, Bergson ia além do classicismo de
que acabamos por estender a nossa idéia do Einstein. Poderíamos reconciliar a relatividade
simultâneo a acontecimentos tão afastados com a razão de todos os homens, bastando para
quanto quisermos um do outro, e que não se tanto consentir em tratar os tempos múltiplos
prendem ao mesmo observador. E assim que há como expressões matemáticas, e em reconhecer,
um tempo único para todos, um único tempo aquém ou além da imagem físico-matemática do
universal. Esta certeza não é abalada, ela é mundo, uma visão filosófica do mundo, que é ao
mesmo subentendida, pelos cálculos do físico. mesmo tempo a dos homens existentes. Bastaria
Quando ele diz que o tempo de Pedro está aceitar reencontrar o mundo concreto de nossa
dilatado ou retraído no ponto onde se encontra percepção com seus horizontes, e situar nele as
Paulo, não expressa de modo algum o que é construções da física, para a física poder desen-
vivido por Paulo, que, por sua vez, percebe volver livremente seus paradoxos sem autorizar a
todas as coisas de seu ponto de vista e assim não desrazão.
tem nenhuma razão para sentir o tempo que se Que iria responder Einstein? Havia
escoa nele e à volta dele de forma diferente da escutado muito bem, como provam suas primeiras
que Pedro sente o seu. O físico atribui palavras: “A questão coloca-se então assim: o
abusivamente a Paulo a imagem que Pedro se tempo do filósofo é o mesmo que o do físico?”10
faz do tempo de Paulo. Leva ao absoluto os Porém não aprovou. Sem dúvida, admitia que o
pontos de vista de Pedro, com quem faz causa tempo cuja experiência temos, o tempo percebido,
comum. Supõe-se espectador do mundo inteiro. está no ponto inicial de nossas noções sobre o
Pratica o que tanto se censura aos filósofos. E tempo, e que ele nos conduz à idéia de um tempo
fala de um tempo que não é o de ninguém, de único de um canto ao outro do mundo. Mas a
um mito. Aqui, diz Bergson, é preciso ser mais competência desse tempo vivido restringia-se ao
einsteiniano do que Einstein. que cada um de nós vê, e não autorizava estender
“Sou pintor, e tenho de representar ao mundo inteiro a nossa noção intuitiva do
duas personagens, João e José; um deles está a simultâneo. “Logo, não há tempo dos filósofos.”
meu lado, enquanto o outro está a duzentos ou É apenas à ciência que se deve perguntar a
trezentos metros de mim. Desenharei o primeiro verdade sobre o tempo, assim como sobre todo o
em tamanho natural e reduzirei o outro à resto. E a experiência do mundo percebido com
dimensão de um anão. Um outro pintor, que suas evidências não passa de um balbucio antes da
estiver perto de José e quiser igualmente pintar clara palavra da ciência.
os dois, fará o inverso do que faço; mostrará Seja. Mas essa recusa volta a colocar-
João muito pequeno e José em tamanho natural. nos diante da crise da razão. O cientista não
Teremos ambos razão. Mas, pelo fato de nós consente em reconhecer outra razão além da razão
dois termos razão, ter-se-á o direito de concluir física, e é nela que confia, como no tempo da
que João e José não têm nem a estatura normal, ciência clássica. Ora, essa razão física, assim
nem a de um anão, ou que têm ambas ao mesmo revestida de uma dignidade filosófica, abunda em
tempo, ou que é como se quiser? Evidentemente paradoxos e destrói-se, por exemplo, quando
que não... A multiplicidade dos tempos que ensina que meu presente é simultâneo do futuro
obtenho assim não impede a unidade do tempo de um outro observador bastante afastado de mim,
real; antes a pressupõe, assim como a arruinando assim o próprio sentido do futuro...
diminuição do tamanho com a distância, numa Justamente por conservar o ideal
série de telas onde eu representaria José mais científico clássico e reivindicar para a física o
ou menos afastado, indicaria que José conserva valor não de uma expressão matemática e de uma
o mesmo tamanho.”9 linguagem, e sim o de uma notação direta do real,
Idéia profunda: a racionalidade, o Einstein como filósofo estava condenado ao
universal fundados de novo, e não sobre o paradoxo que nunca procurou como físico nem
10
Bulletin de Ia Société Française de Philosophie, 1922, p.
9
BERGSON, Durée et simultanéité, pp. 100-102. 107.
4
como homem. Não é reclamando para a ciência
um gênero de verdade metafísica ou absoluta
que protegeremos os valores da razão que a
ciência clássica nos ensinou. O mundo, além dos
neuróticos, conta com bom número de
“racionalistas” que são um perigo para a razão
viva. E, pelo contrário, o vigor da razão está
ligado ao renascimento de um sentido filosófico,
que, certamente, justifica a expressão científica
do mundo, porém em sua ordem, em seu lugar
no todo do mundo humano.

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