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ANDRADE, Manuel C. Caminhos e descaminhos
da geografia. Campinas: Papirus, 1989. ............................................................. 4
Território e desterritorialização nas ciências so- sem fronteiras, sociedade em rede) é, na verdade, a
ciais. Com a globalização via internet e o ciberespaço reconstrução do território em novas bases, isto porque
está destruindo a territorialidade das fronteiras dos o homem não vive sem território e que a sociedade
Estados e criando um único espaço virtual? O mundo não pode existir sem territorialidade. A questão é, se-
8 estaria se desterritorializando? A tese de Rogério gundo Haesbaert, enfocar o território numa perspecti-
Nº 18 Haesbaert é que o movimento de destruição de territó- va geográfica intrinsecamente integradora, ou seja, num
MAIO/2006 rios (com o mito da desterritorialização – um mundo sentido múltiplo e relacional, respeitando a diversidade
e a dinâmica temporal do mundo. Assim, a terri- minância de redes, completamente dissociadas de
torialização é vista para além do processo de domínio e/ou opostas a territórios, e como se crescente
político-econômico, ou de apropriação simbólico-cul- globalização e mobilidade fossem sempre sinôni-
tural do espaço pelos grupos humanos. Portanto, cada mos de desterritorialização.
ser humano precisa territorializar-se. Para Haesbaert, a Entender a Desterritorialização a partir da defi-
questão não é o fenômeno da desterritorialização, mas nição de Território. Trata-se de analisar as questões
o da multiterritorialização: experimentar diferentes ter- de como as diferentes concepções de território, ao longo
ritórios ao mesmo tempo. Entretanto, as relações ca- da tradição do pensamento geográfico e sociológico,
pitalistas relegaram a maior parte da humanidade à servem de pano de fundo para o debate sobre a
“exclusão aviltante ou às inclusões extremamente pre- desterritorialização. Território pode ser compreendido
cárias, no qual no lugar de partilharem múltiplos ter- em três vertentes básicas: a) política – referida às rela-
ritórios, vaguem em busca de um, o mais elementar ções espaço-poder ou jurídico-política – relativa a to-
território da sobrevivência cotidiana, como é o caso das as relações espaço-poder institucionalizadas. Ter-
dos múltiplos territórios precários que abrigam sem- ritório: espaço delimitado e controlado, no qual se exerce
tetos, sem terras e outros grupos minoritários que um determinado poder relacionado ao poder político
parecem não ter lugar numa desordem de ‘aglomera- do Estado. Trata-se do jogo entre os “macropoderes”
dos humanos’ (...) estigmatizados e separados”. Por- políticos institucionalizados e os “micropoderes” (Michel
tanto, “o sonho da multiterritorialidade generalizada, Foucault); b) cultural (culturalista) ou simbólico-cul-
dos ‘territórios-rede’ a conectar a humanidade intei- tural (Bourdieu): território como produto da apropria-
ra, parte (...) da territorialidade mínima, abriga e acon- ção/valorização simbólica de um grupo em relação ao
chego, condição indispensável para (...) estimular a seu espaço vivido; c) econômica (economicista): terri-
individualidade e promover o convício solidário das tório como fonte de recursos e incorporado no embate
multiplicidades – de todos e de cada um de nós”, diz entre duas classes sociais e na relação capital-traba-
Haesbaert. lho, como produto da divisão “territorial” do trabalho.
As questões sociológicas referentes ao espaço e Entretanto, segundo Haesbaert, há um entrecruzamento
território tiveram as contribuições de Michel Foucault de proposições teóricas, no qual é fundamental trazer
(emergência de uma era centrada no tempo e no es- uma outra postura teórica que seja mais ampla: terri-
paço com destaque para a questão do poder), Jameson tório numa perspectiva integradora e relacional, no
(sobre a questão da cultura e espaço), Deleuze e qual traz a idéia de território como um híbrido, seja
Guatarri (geofilosofia – no qual atentou para o perigo entre o mundo material e ideal, seja entre natureza e
do fascínio da desterritorialização: “inteiramente des- sociedade, em suas múltiplas esferas (econômica, po-
providos de territórios, nos fragilizamos até desman- lítica e cultural).
char irremediavelmente”). Já no Brasil há a contri-
buição de Otávio Ianni e, principalmente, Milton San- Haesbaert postula uma leitura integradora e
tos. Para este, a “desterritorialização é, freqüen- relacional do território. Hoje, a “experiência
temente, uma outra palavra para significar integradora” é possível somente se estivermos arti-
estranhamente, que é, também, desculturização” e culados (em rede) através de múltiplas escalas. Não
há, segundo ele, uma associação entre “ordem glo- há território sem uma estruturação em rede que
bal” que “desterritorializa” e “ordem local” que conecta diferentes pontos ou áreas. É o domínio dos
“reterritorializa”. Mas sobre o olhar geográfico, deve- “territórios-rede”, espacialmente descontínuos, mas
se compreender esta análise a partir da multerrito- intensamente conectados e articulados entre si. Tra-
rialidade. Portanto, para Haesbaert, sobre a desterrito- ta-se de uma leitura integrada do espaço social com
rialização: uma visão de território a partir da concepção de es-
paço como um híbrido na indissociação entre movi-
a) não há definição clara de territórios nos debates mento e (relativa) estabilidade. Território, neste sen-
que focalizam a desterritorialização; o território ora tido, pode ser concebido a partir da imbricação de
aparece como algo “dado”, um conceito implícito múltiplas relações de poder, do poder mais material
ou a priori referido a um espaço absoluto, oura das relações econômico-políticas ao poder mais sim-
ele é definido de forma negativa, isto é, a partir bólico das relações de ordem mais estritamente cul-
daquilo que ele não é; tural. Para além de uma leitura puramente materialis-
b) desterritorialização é focalizada quase sempre como ta do poder, na leitura relacional, o poder é com-
um processo genérico numa relação dicotômica e preendido “como relação, e não como coisa a qual
não intrinsecamente vinculada à sua contraparte, a possuímos ou da qual somos expropriados, envolve
(re)territorialização; este dualismo mais geral encon- não apenas as relações sociais concretas, mas tam-
tra-se ligado a vários outros, como as dissociações bém as representações que elas veiculam e, de certa
entre espaço e tempo, espaço e sociedade, materi- forma, também produzem. Assim, não há como se-
al e imaterial, fixação e mobilidade; parar o poder político nem sentido mais estrito do 9
c) desterritorialização significando “fim dos territóri- poder simbólico”.
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os” aparece associada, sobretudo, com a predo- Território e Desterritorialização em Deleuze e MAIO/2006
Guattari. Trata-se de uma concepção teoricamente mais espaço. No período da Revolução Industrial já mos-
elaborada sobre desterritorialização que vem da filoso- trava traços que estavam sendo gestados pela
fia, como um dos conceitos centrais do pós-estrutura- modernidade como “tudo que é sólido” tende a se
lismo de Guilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo eles, “desmanchar no ar” segundo Berman.
“não há território sem um vetor de saída do território, e Enquanto a modernidade passava pelo mito da
não há saída do território, ou seja, desterritorialização, Revolução, a pós-modernidade estaria ligada à repe-
sem, ao mesmo tempo, um esforço para se tição, ao anti-histórico, ao presente contínuo, enfim,
reterritorializar em outra parte”. Os territórios sempre na ótica severamente crítica. O projeto central da
comportam dentro de si vetores de desterritorialização e modernidade enfatizava o indivíduo-sujeito na esfera
de reterritorialização. Muito mais do que uma coisa ou da autonomia individual, levando como marco desta
objeto, diz Haesbaert, “o território é um ato, uma ação, época a reterritorialização, ou seja, o individuo sus-
uma relação, um movimento” (de territorialização e tentado pelo individualismo, faz com que indivíduo
desterritorialização), um ritmo, um movimento que se queira ultrapassar os diversos territórios, comunitári-
repete e sobre o qual se exerce um controle. Esta dialética os. Caracteriza-se sinteticamente o pós-modernismo
envolve a criação e a destruição de territórios, conforme aquele que desestabiliza a estrutura metonímica que
nos atestam Deleuze e Guattari: “o território pode se relaciona presença e ausência com proximidade e dis-
desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas tância, assim compreende-se que desreterritorialização
de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie está fortemente vinculada com o fenômeno da com-
humana está mergulhada num imenso movimento de pressão tempo-espaço onde a sociedade complexa
desterritorialização, no sentido de que seus territórios vive no paradoxo da desigualdade diferenciada.
‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divi- Múltiplas Dimensões da Desterritorialização:
são social do trabalho, com a ação dos deuses univer- perspectivas econômicas, política e cultural. A
sais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, desterritorialização é tratada em três grandes dimen-
com os sistemas maquínicos que a levam a atraves- sões sociais sendo elas: a econômica, a dimensão
sar, cada vez mais rapidamente, as estratificações política e a perspectiva simbólica ou cultural em sen-
materiais e mentais”. Para compreensão desta dialética tido mais restrito. A problemática destas dimensões
entre desterritorialização e reterritorialização, exemplifica- engloba a questão de território e a territorialização
se com a condição do bóia-fria morador de periferias sempre focados num sentido mais restrito, pelo qual
urbanas. Assim, como entender este universo para a ge- se busca responder problemáticas específicas ligadas
ografia? Segundo Deleuze, “a geografia não se conten- a questões econômicas, políticas ou culturais, mais
ta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para a do que a problemática social que envolveria uma no-
forma histórica. Ela não é somente humana e física, ção de território mais integradora implícita quando se
mas mental, como a paisagem. Ela arranca a história fala em processos de exclusão social, já que exclusão
do culto da necessidade, para fazer valer a será vista aqui como um fenômeno amplo e comple-
irredutibilidade da contingência, ela a arranca do cul- xo, ao mesmo tempo de natureza econômica, política
to das origens, para afirmar a potência de um ‘meio’ e cultural.
(...). Enfim, ela arranca a história de si mesma para Na dimensão da perspectiva econômica pode-
descobrir os devires, que não são a história mesmo mos observar que não é a maior tradição nos debates
quando nela recaem (...)”. Ora, se a Geografia menos- sobre território assim analisando três pontos de vista
prezou as dinâmicas desreterritorializadoras como cen- econômicos que afetam a desterritorialização:
tro de sua análise, trata-se de recuperar os estudos es- a) a desterritorialização é vista como sinônimo de
paciais em torno dos fenômenos de deslocamento e das globalização econômica, esta situação econômica
desconexões, especialmente diante da nossa nova ex- acontece quando se forma um mercado mundial
periência “pós-moderna” de espaço-tempo, diz com fluxos comercias e financeiros e de informa-
Haesbaert. ções cada vez mais independentes de base
Pós-modernidade e Geometrias do Poder. Ana- territoriais bem definidas, como a dos Estados
lisa-se desterritorialização, no sentindo de que não nações:
representa mais uma extinção de território, e sim uma
dificuldade de definir o novo tipo de território muito b) em um sentido mais complexo podemos dar ênfa-
mais múltiplo e descontínuo, que está surgindo. No se a um dos momentos do processo de globalização
âmbito da historicidade fica complexo analisar a con- ou ao mais típico, aquele chamado capitalismo pós-
cepção de desterritorialização, especialmente quan- fordista ou capitalismo de acumulação flexível, fle-
do relaciona a experiência entre espaço-tempo, xibilidade esta que seria responsável pelo enfraque-
modernidade e a pós-modernidade. Após rompimen- cimento das bases territoriais;
to com uma época, o pós-modernismo estabelece uma c) em um sentido mais específico citamos ainda a
nova sensibilidade, uma nova leitura e uma nova ex- desterritorialização como um processo vinculado
10 periência de mundo, diretamente vinculada aos no- pela economia globalizada, o setor financeiro, onde
Nº 18 vos paradigmas tecnológicos que balançam as anti- a tecnologia informacional tornaria mais evidente
MAIO/2006 gas certezas e os antigos laços da sociedade com o tanto a imaterialidade quanto a instantaneidade.
Dentro da perspectiva política pode-se delimitar Dentro da sociedade percebe-se o tamanho do valor
seus aspectos onde território é aquele que vincula dado à sociedade contemporânea, ou seja, não signi-
espaço e soberania estatal, ou seja, território como a ficando obrigatoriamente que a mobilidade social num
área ou espaço de exercício da soberania de um Esta- mundo onde o movimento é regra, a fixidez e a esta-
do. Através do aparecimento do Estado vê-se que ele bilidade podem acabar, de alguma forma, transfor-
é o primeiro responsável pelo primeiro grande movi- mando-se também numa espécie de triunfo ou de
mento de desterritorialização, na medida em que ele recurso.
imprime a divisão de terra pela organização adminis- Territórios, Redes e Aglomerados de Exclusão.
trativa, fundiária e residencial. Pode-se identificar território no movimento ou pelo
No quadro da desterritorialização numa perspec- movimento. Talvez esta seja a grande novidade da
tiva cultural, pode-se pensar o território ao longo da nossa experiência espaço-temporal dita pós-moder-
história do pensamento nas Ciências Sociais, especi- na, onde controlar o espaço indispensável à nossa
almente entre geógrafos e cientistas políticos. Partin- reprodução não significa apenas controlar áreas e
do do par História-mito e da herança helenística, en- definir fronteiras. Com a globalização a comunicação
quanto as “potências regem o mundo” produz histó- revoluciona a formação de territórios pela configura-
ria, as cidades e seus territórios produzem e se ali- ção de redes que podem mesmo prescindir de alguns
mentam de mitos. de seus componentes materiais fundamentais, como
Desterritorialização e Mobilidade. Os processos linhas de energia ou até mesmo cabos telefônicos. O
de territorialização classificam como fruto de interação território hoje, mais do que nunca, considera-se tam-
entre relações sociais e controle do/pelo espaço, rela- bém movimento, ritmo, fluxo, rede não se trata de
ções de poder em sentido amplo, ao mesmo tempo um movimento qualquer, ou de um movimento de
de forma mais concreta (dominação) e mais simbóli- feições meramente funcionais: ele é também um
ca (um tipo de apropriação). Em uma visão mais tra- movimento dotado de significado, de expressividade,
dicional desterritorializar significa então, diminuir ou isto é, que tem um significado determinado para quem
enfraquecer o controle das fronteiras, aumentando constrói ou dele usufrui. As redes participam de um
assim a dinâmica, a fluidez, em suma, em suma, a jogo ambivalente com os fluidos, ao mesmo tempo
mobilidade, seja ela de pessoas, bens materiais, capi- tentando canalizá-los e/ou sendo desestruturadas por
tal ou informações. A desterritorialização em conse- eles, cria-se então a noção de aglomerados que sur-
qüência do território torna-se assim discurso da mo- ge pela necessidade de dar conta de outros tipos de
bilidade tanto da mobilidade material quanto da mo- espaços que não se encaixavam claramente na lógi-
bilidade imaterial, especialmente aquele diretamente ca zonal, nem na lógica reticular.
ligado aos fenômenos de compressão tempo-espa- Esta noção de aglomerados de exclusão traduz a
ço, propagado pela informatização através do chamado dimensão geográfica ou espacial dos processos mais
ciberespaço. Os frutos da sociedade sem territoria- extremos de exclusão social porque ela parece expres-
lidade, sem local, torna a mobilidade generalizada, ou sar bem a condição de desterritorialização ou de
seja, os territórios são construídos a partir do movi- territorialização precária a que estamos nos referin-
mento e onde o local se fundamenta na diferença das do. Em um sentido mais amplo, podemos considerar
mobilidades. Em um ângulo mais complexo da que “aglomerados de exclusão” seriam o exemplo mais
desterritorialização vemos freqüentemente uma cres- representativo especificamente no caso dos aglome-
cente mobilidade das pessoas, seja como, novos nô- rados de massa impostos pela sociedade capitalista,
mades, vagabundos, viajantes, turistas, imigrantes presentes em maior ou menor grau praticamente em
refugiados ou como exilados – expressões cujo signi- todos os espaços do nosso tempo.
ficado costuma ir muito além de seu sentido literal. Da Desterritorialização à Multiterritorialidade. Aqui
No contexto geográfico, segundo o Haesbaert, Haesbaert defende a tese de que desterritorialização é,
“podemos definir mobilidade como uma relação so- na verdade, uma nova forma de territorialização, a que
cial ligada à mudança de lugar, isto é, como conjun- chamamos de “multiterritorialidade”: um processo
to de mobilidades pelas quais os membros de uma concomitante de destruição e construção de territóri-
sociedade tratam a possibilidade de eles próprios ou os mesclando diferentes modalidades territoriais, como
outros ocuparem sucessivamente vários lugares”. é o caso dos “territórios-zona” e os “territórios-rede”,
Busca-se através de uma análise níveis para a em múltiplas escalas e novas formas de articulação
desterritorialização para cada grupo ou classe social, territorial. Segundo Rogério Haesbaert, “o mundo ‘mo-
percebe-se claramente que aquilo que é denominado derno’ das territorialidades contínuas/contíguas regidas
desterritorialização para a elite planetária que se pelo princípio da exclusividade (...) estaria cedendo
locomove com facilidade nada tem a ver com o des- lugar hoje ao mundo das múltiplas territorialidades
locamento compulsório das classes mais pobres. Na ativadas de acordo com os interesses, o momento e o
classe que compõe os ricos a desterritorialização para lugar em que nos encontramos”. Trata-se então, de
os ricos, pode ser confundida com uma multiterrito- um “mosaico-padrão” de unidades territoriais em área, 11
rialidade segura, mergulhada na flexibilidade e em seu convívio com uma miríade de territórios-rede mar- Nº 18
experiências múltiplas de mobilidade. cados pela descontinuidade e pela fragmentação que MAIO/2006
os possibilita a passagem de um território a outro, num a) desmaterialização ou domínio de relações simbóli-
jogo que denomina-se multiterritorialidade humana. cas ou “virtuais”; b) “não-presença” ou desvinculação
Desterritorialização: é a reterritorialização complexa, do aqui e do agora; c) aceleração do movimento ou
em rede e com fortes conotações rizomáticas, ou seja, predomínio da fluidez sobre a estabilidade; d) enfra-
não-hierárquicas. quecimento dos controles espaciais através de limi-
Neste contexto, destaca-se a “globalização”, isto tes-fronteiras e áreas; e) aumento da hibridização cul-
é, a dialética entre o global e o local combinados, ao tural; f) justaposição e imbricação de territórios. As-
mesmo tempo: “o global e o local são processos, sim, a desterritorialização é um mito.
não localizações. Globalização e localização produ- Não obstante, muitas vezes, o pano de fundo dos
zem todos os espaços como híbridos, como sítios discursos sobre a desterritorialização é o movimento
‘globais’ tanto de diferenciação quanto de integração. neoliberal que prega o “fim das fronteiras” e o “fim
O local e o global não são entidades fixas, mas são do Estado” para a livre atuação das forças do merca-
produzidas de forma contingente, sempre em pro- do. Assim, desterritorialização, referida aí à elite pla-
cessos de re-produção, nunca completados”. Assim, netária, é um mito. Não passa, para Haesbaert, de
a presença de territórios-rede proporciona as condi- um rearranjo territorial sob condições de grande com-
ções para a existência da multiterritorialidade. Esta preensão do espaço-tempo, em que as transforma-
depende, sobretudo do contexto social, econômico, ções nas relações ligadas à distância e à presença-
político e cultural em que estamos situados. Multiter- ausência tornam-se ainda mais intensas as dinâmi-
ritorialidade contemporânea pode ser altamente com- cas de desigualdade e de diferenciação do espaço pla-
plexa e dotada de ampla flexibilidade, como também, netário. Trata-se, neste sentido, da forma “versátil de
ser ativada e desativada numa incrível velocidade. reterritorialização dos ‘de cima’ que se forja, por ou-
Portanto, segundo Haesbaert, quem tiver mais opções tro lado, grande parte da desterritorialização dos ‘de
para ativar e comandar a riqueza da multiterritorialidade baixo’, através do agravamento da desigualdade e
que potencialmente se encontre a seu dispor, seja atra- da exclusão pela concentração de renda, do capital
vés de movimentos progressistas (movimento Zapatista (dos investimentos) e da infra-estrutura, associada à
de Chiapas), seja através de movimentos retrógrados ausência de políticas efetivas de redistribuição, aos
ou conservadores (Al Qaeda), consegue maior poder investimentos mais na especulação financeira do que
para produzir mudanças sociais (“linhas de fuga”), no no setor produtivo gerador de empregos, e à
sentido de um movimento concomitante de desterrito- globalização da cultura do status e do valor contábil
rialização e reterritorialização. em uma sociedade de consumo estendida a todas
Desterritorialização como Mito. O discurso da as esferas da vida humana”.
desterritorialização se coloca, segundo Haesbaert, como Entretanto, para além de hierarquizar as pedras,
um “discurso eurocêntrico ou ‘primeiro-mundista’, plantas, animais, pessoas deve-se considerar o “par-
atento muito mais à realidade das elites efetivamente lamento das coisas” (Bruno Latour), no qual “não
globalizadas e alheio à ebulição da diversidade de admite nenhuma hierarquia ontológica entre as coi-
experiências e reconstruções do espaço em curso não sas existentes”. Portanto, deve-se ter “amor por tudo
só nas chamadas periferias do planeta como no inte- o que existe” (Gualandi). Este amor deve estar no cen-
rior das próprias metrópoles centrais. Com certeza, o tro de nossos processos de territorialização, pela “cons-
desprezo de algumas correntes filosóficas pela trução de territórios que não fossem simples territó-
materialidade do mundo (elaboradas em países ‘cen- rios funcionais de re-produção (exploração) econô-
trais’) contribuiu para essa difusão da idéia de um mica e dominação política, mas efetivamente espa-
mundo de extinção dos territórios ou mergulhado numa ços de apropriação e identificação social, em cuja
dinâmica crescente de desterritorialização”. transformação nos sentíssemos efetivamente identi-
O fenômeno da desterritorialização e reterritoria- ficados e comprometidos” (Haesbaert). É “o espaço
lização não é um fenômeno pós-moderno ou da soci- do prazer” (Lefevre). Mas, como “amar tudo o que
edade pós-industrial ou da sociedade informacional, existe”, num mundo de crescente e abominável desi-
visto que o próprio império romano, medieval e o pró- gualdade, exclusão, segregação, violência e insegu-
prio Marx como Durkheim já falavam destes fenôme- rança? Para tanto - para poder “amar tudo o que existe”
nos. Também o é de longa data a questão do espaço e construir territórios efetivamente/afetivamente apro-
como esfera de possibilidade da existência da priados - é necessário “acabar com toda exploração
multiplicidade. Assim, o espaço é a condição múltipla e indiferença dos homens entre si e dos homens para
de possibilidade tanto de desterritorialização e com a própria natureza”, diz Haesbaert.
reterritorialização, simultâneos. Não obstante, Haes- Para que os territórios não sejam mais instrumen-
baert acrescenta ainda o fenômeno da Multiterrito- tos de alienação, segregação, opressão e “in-seguran-
rialidade, para manter e enfatizar a idéia de processo, ça”, mas espaços estimuladores, ao mesmo tempo,
de permanente movimento e devir. Multiterrito- da diversidade e da igualdade sociais. O tempo denota
12 rialização: é a condensação de um processo que re- que, segundo Santos, “a força dos fracos é o seu tem-
Nº 18 presenta a territorialização através da própria po lento”. Mesmo que a corrente ideológica do capita-
MAIO/2006 desterritorialização. Desterritorialização não é apenas: lismo volátil tente destruir as referências territoriais ou
que constrói multiterritorialidades num sentido Antes de ser a desterritorialização a grande ques-
destabilizador fragmentador de falta de liberdade, da tão da passagem de século (como quer Virilo), o que
dinâmica do consumo desenfreado, do correr o risco está dominando, segundo Haesbaert, é a complexi-
de perder todos os nosso referenciais e fragilizarmos dade das reterritorializações, “numa multiplicidade
até “desmanchar irremediavelmente” (Guattari), por de territorialidades nunca antes vista, dos limites mais
outro lado, já no universo dos “espaços lentos” e do fechados e fixos da guetoficação e dos ‘neoterritórios’
“reenraizamento” cabe reconhecer e lutar por essa da globalização”.
unidade das coisas do mundo e do território no interior Portanto, conclui-se com singular maestria
dessa unidade, estimular o potencial “invencionático”, Haesbaert: “O grande dilema deste novo século será
criativo, de multiplicidade. Trata-se de lutar concreta- o da desigualdade entre as múltiplas velocidades,
mente para, segundo Haesbaert, construir uma socie- ritmos e níveis de des-re-territorialização, especial-
dade onde não só esteja muito mais democratizado o mente aquela entre a minoria que tem pleno acesso
acesso à mais ampla multiterritorialidade – e a convi- e usufrui dos territórios-rede capitalistas globais que
vência de múltiplas territorialidades, onde estejam sem- asseguram sua multiterritorialidade, e a massa ou
pre abertas, também, as possibilidades para a os ‘aglomerados’ crescentes de pessoas que vivem
reavaliação de nossas escolhas e a conseqüente cria- na mais precária territorialização ou, em outras pa-
ção de outras territorialidades ainda mais igualitárias e lavras, mais incisivas, na mais violenta exclusão e/
respeitadoras da diferença humana. ou reclusão socioespacial”.
SANTOS, Milton (org). Novos rumos da geografia brasileira. São Paulo: Hucitec, 1982.
Claudemir Lopes Bozzi
Filósofo, especialista em Filosofia Política e Jurídica – UEL
Num primeiro momento apontaremos as princi- superação. Esta cultura da crise se relaciona como o
pais contribuições brasileiras à teoria da geografia; em poder na medida em que questiona a ideologia do
seguida, veremos a geografia e o espaço brasileiro. poder e re-funda os fundamentos teóricos críticos da
própria geografia no sentido de explicar e transfor-
I – Contribuições brasileiras mar o real.
Num segundo momento, passar da crise da totali-
à teoria da geografia. dade aos espaços da geografia. Nem o progresso nem
Contribuição à crítica da crise da geografia, de as riquezas naturais são infinitos. Portanto o sonho do
Armando Corrêa da Silva. A crise da geografia se con- consumo infinito acabou. Que fazer? Há condições
figura como a crise da cultura que gerou a expansão materiais para realizar objetivos que a própria humani-
do capitalismo. Da idéia de espaço totalmente livre, dade se põe em seus vários espaços: da prática, da
planeta terra, passou-se para a noção de solo frag- técnica, da pesquisa, da ciência, do trabalho intelectu-
mentado. Compreender o espaço global é consciên- al, das opções possíveis e os espaços da geografia. O
cia de suas partes (unidades), como um todo de rela- espaço da prática é o mais imediato, empírico e coti-
ção. É tensão dialética entre o todo e a parte. Assim, diano. O espaço das soluções práticas do dia a dia. Já
a geografia atual é uma cultura em crise e na consci- o espaço da técnica faz a codificação e formalização
ência, cultura da crise. Como a cultura contemporâ- do empírico. É saber elaborado. O espaço da pesqui-
nea é a composição de um mosaico, também a geo- sa implica razão e técnica, imaginação ordenada e fa-
grafia atual é um mosaico (indivíduo e grupo social). zer metódico. É investigação analítica (hipótese, ob-
A crise da geografia é parte da cultura da crise. Sur- servação, análise de dados e generalização). Implica
gem, então, vários obstáculos: a) a crise da geogra- operações mentais mais complexas do que o homem
fia, a ideologia do fim das ideologias; b) crise dos prático e homem técnico. O espaço da ciência ultra-
geógrafos, renovação e multiplicidade de ideologias; passa a relação racionalismo-empirismo. É a elabora-
c) crise da universidade como lugar de produção da ção rigorosa de conexão interna de seus saberes, es-
geografia, abalo dos fundamentos empíricos das ide- paços da prática, técnica e pesquisa. O espaço do tra-
ologias; d) a crise do ensino, síntese e fim das ideolo- balho intelectual se depara com a contradição da divi-
gias. Portanto, é a crise efetivada como crise de con- são social do trabalho (intelectuais e técnicos versus
sumo e consumo de crise. O que fazer? No dia se- trabalhadores manuais) e diante desta fragmentação
guinte inquirir a liberdade da consciência da necessi- social põe-se como opção entre dicotomia social e
dade. A liberdade da consciência e consciência da li- unidade. O espaço das opções possíveis deve definir
berdade. Consciência da necessidade individual e so- os objetivos a serem alcançados e descobrir as condi-
cial. Consciência da sobre determinação. Vem o pro- ções reais de sua efetivação. Assim, os espaços da ge-
jeto! Efetivar a continuidade, mas com a técnica e a ografia se põem como espaços plurais. O espaço da
metodologia analítica a serviço da coletividade do tra- geografia, espaço: a) da ciência e ideologia que se re-
balho. Assim, a objetividade do real é posta sob o laciona com a interdisciplinaridade; b) de seu próprio
teleológico: serviço da humanidade. A metodologia espaço interno; c) referido ao segmento do real; d) do
16 analítica se instrumentaliza como libertação: põe a subespaço do real que remete à subtotalidade em seu
Nº 18 cultura da crise e se torna ciência da cultura em crise. conjunto; e) do discurso que extrapola a subtotalidade,
MAIO/2006 Pela contradição já possuem em si o germe de sua como consciência do real no todo e na parte.
Algumas considerações do espaço geográfico, faz o homem, pelo trabalho, e a ação da natureza so-
de Roberto Lobato Corrêa. Que é espaço? Para o bre o homem o faz sujeito natural. Segundo Moreira,
geógrafo é a superfície da terra vista enquanto mora- “é a estrutura econômica da formação econômico-
da, do homem e de sua história. Trata-se de pensar o social que determina a organização espacial, mas é
espaço-morada do homem. Qual a natureza do espa- a conjuntura política que comanda seus movimen-
ço geográfico? Como o geógrafo pensa este espaço e tos (processos e formas)”. Pensemos, por exemplo,
qual o conceito de processo espacial? O conceito de nas classes sociais e seus lugares geográficos: o ca-
espaço (Harvey) tem variado historicamente: espaço ráter de classe determina o caráter do lugar, seu ar-
absoluto, espaço relativo e espaço relacional. No con- ranjo espacial: a estética da moradia, a natureza dos
ceito de espaço absoluto: o espaço é uma coisa em serviços, a “política pública” de infra-estrutura espa-
si mesma e associado às idéias de áreas ou região e de cial, a geometria. O espaço geográfico, portanto é
unicidade, associado à geografia regional (Hartshorne). condição da reprodução econômico-social da socie-
Já o espaço relativo: entendido a partir de “relacio- dade. A organização do espaço, enquanto reprodu-
namentos entre objetos, só existe porque os objetos ção da produção capitalista, desempenha papel de
existem e se relacionam mutuamente. Assim, o movi- mediação de espaço enquanto arranjo: econômico
mento de pessoas, bens, serviços e informações veri- como uma formação de múltiplos espaços desiguais
ficam-se em um espaço relativo porque custa dinhei- (espaços industriais; instrumentos de trabalho; meios
ro, tempo, energia para se vencer a fricção da distân- de consumo individuais e coletivos;), jurídico-político
cia” (Harvey). Pode cair no perigo de geografia como (aparelhos ideológicos e repressivos do Estado), ide-
conexão, direção e distância sem referência com o so- ológico (aparelhos ideológicos de prescrição da ideo-
cial ou a serviço do “custo-benefício” do capitalismo. logia dominante: escola, igreja, quartel, tribunais).
Por fim, o espaço relacional: como existindo nos ob- Necessário desenvolver um método específico para a
jetos – “no sentido de que um objeto somente pode geografia: a partir do arranjo social, apreender a
existir na medida em que ele contenha e represente dialética social da formação econômico-social. Assim,
dentro de si relações com outros objetos” (Harvey). Mas a teoria crítica do espaço deve possui três facetas: a
porque três conceitos de espaço? Porque: a) espaço formação econômico-social, o modo de produção e
como valor de uso, no qual o homem valoriza a fertili- a formação sócio-espacial. Por fim, sobre a análise
dade e amenidades físicas; b) no mercado capitalista o geográfica deve-se argüir a direção das determinações
espaço possui valor de troca – espaço como extração e descobrir a essência da aparência. Portanto, o ca-
de renda (espaço é mercadoria), monopólio de classe; minho seguro do método é, segundo Moreira, o da
c) espaço como conteúdo relacional do qual extrai ren- imersão no arranjo espacial no jogo das suas deter-
da de monopólio. Portanto, trata-se de estudar o espa- minações múltiplas, sobretudo as determinações de
ço-morada a partir da formação social de uma deter- classe. Conhecer para transformar!
minada sociedade. O espaço-morada do homem é de Repensando a teoria das localidades centrais,
natureza social. Neste sentido, destaca Corrêa, a ação de Roberto Lobato Corrêa. Repensar a teoria da loca-
humana tem papel fundamental na organização do lidade criticando-a e recuperá-la em um nível mais
espaço. Pensa-se nos atores que monopolizam os meios elevado. Primeiro: a rede hierarquizada de localida-
de produção e o Estado. De um lado, a acumulação des centrais constitui-se em uma forma de organiza-
do capital e, de outro, a reprodução da força-de-traba- ção do espaço vinculado ao capitalismo, sendo de
lho. Os processos espaciais são efetivados para res- natureza histórica. Segundo: a rede de localidades
ponder, numa sociedade de mercado, estas duas for- centrais cumpre simultaneamente dois papéis que são
ças antagônicas. Por elas ocorrem a concentração e complementares: de um lado, constitui-se em um meio
dispersão da ação humana-tempo-espaço-mudança. para o processo de acumulação capitalista, e de ou-
Assim, o espaço reflete valores socialmente enraizados tro, constitui-se em um meio para a reprodução das
na comunidade. Portanto, trata-se de pensar o espa- classes sociais. Isto significa que a rede de localida-
ço-morada do homem em suas conexões com tempo des centrais constitui-se em um meio através do qual
e espaço, pois são experiências humanas. a reprodução do modo de produção capitalista se ve-
Repensando a geografia, de Ruy Moreira. O pro- rifica. Terceiro: as redes de localidades centrais apre-
cesso de socialização na natureza pelo trabalho soci- sentam-se caracterizadas por arranjos estruturais e
al, i. é, a transformação da história natural em histó- espaciais diversos, isto porque o capitalismo se verifi-
ria dos homens implica uma estrutura de relações sob ca de modo desigual. Quarto: a rede de localidades
determinação do social. É esta estrutura complexa e centrais constitui-se em uma estrutura territorial cuja
em perpétuo movimento dialético que conhecemos análise possibilita a compreensão do sistema urbano
sob a designação de espaço geográfico. História dos de países não industrializados ou onde a industrializa-
homens e história da natureza são inseparáveis. Há ção se verifica espacialmente concentrada. Quinto:
múltiplas determinações na relação dialética entre o possibilidade da conexão entre rede de localidades
homem e a natureza na qual, pela ação do trabalho centrais e capitalismo monopolítico. A emergência de 17
humano sobre a forma-natureza, gera a forma-socie- outro arranjo estrutural e espacial da distribuição de Nº 18
dade. Portanto, o modo de socialização da natureza bens e serviços caracterizados pela especialização dos MAIO/2006
centros de mercado, tanto no nível intra-urbano como ado, valor-de-uso, riqueza natural, etc., à luz deste
regional, onde tais centros oferecem uma gama de arsenal metodológico analisar a categoria território e
bens e serviços altamente associados entre si em ter- valor, concentração territorial do capital, entre outros.
mos de complementaridade. Por fim, trata-se de ana- Portanto, trata-se de destacar a valorização do territó-
lisar a questão da teoria das localidades centrais e de rio (urbano e rural, questão agrária) como objeto da
repensar em uma outra teoria geográfica que esteja geografia marxista.
fundada nas relações entre sociedades historicamen- Alguns problemas atuais da contribuição mar-
te determinadas e o espaço. xista, de Milton Santos. Santos cita algumas atitudes
Espaço e tempo: compreensão materialista e para desenvolver uma geografia marxista. Primeira: a
dialética, de Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Espaço necessidade do trabalho teórico-empírico (recolher o
e tempo configuram-se no embate entre o materialis- real); segunda: a teorização como incorporação reno-
mo dialético e o idealismo. Para este, espaço e tempo vadora (sem ter medo de conhecer, de forma crítica,
são figuras de representação idealista da subjetivida- outras teorias); terceira atitude: contra o dogmatismo
de (Kant). Para o materialismo espaço e tempo são (autocrítica); quarta: agir contra o congelamento dos
formas essenciais da existência da matéria movente conceitos (o real é dinâmico, tudo flui). Por fim, a no-
(Fataliev). Afirma-se também, para o materialismo, a ção do real deve abarcar a totalidade, ou real-total como
extensão como essência do espaço. Este espaço tam- categoria essencial do fazer do geógrafo. E, por outro
bém configura a ordem das coisas (ou desordem), lado, há necessidade de renovação do discurso cientí-
como também os princípios e as leis dos fenômenos, fico. Visto que o real está penetrado pela história e pelo
mas também graças ao tempo, é nele que se configu- tempo corrente e concreto.
ra a luta dos contrários e a possibilidade objetiva de
mudar o curso dos fenômenos sociais, históricos e II – Estudando a geografia e o espaço brasileiro.
econômicos – no tempo e no espaço. Assim, o tempo Estrutura agrária e dominação do campo – no-
pode ser “lei” de mutação dos fenômenos. Para a con- tas para um debate, de Carlos Walter Porto Gonçal-
cepção materialista dialética de espaço e tempo como ves. Em síntese pode-se dizer que: “1) o desenvolvi-
formas peculiares de existência da matéria em movi- mento do capitalismo é desigual e combinado e, des-
mento. Espaço: forma de ser da matéria, visto que de a sua gênese, se apóia numa divisão do trabalho
toda matéria ocupa um espaço. Portanto há uma uni- em escala mundial; 2) por isso, o desenvolvimento de-
dade indissolúvel par a matéria: movimento, espaço e sigual e combinado, cada Estado nacional acaba por
tempo. Convém frisar, segundo Ariovaldo, que a uni- se constituir numa articulação contraditória, particu-
dade, a diversidade e a interdependência do espaço e lar, de classes que, no entanto, significa um elemento
tempo consistem, pois em uma das noções funda- da configuração imperialista mundial; 3) a “questão
mentais que fazem parte da concepção materialista- agrária” não pode se compreendida em si mesma, posto
dialético do espaço e tempo. Por fim, convém ressal- que o significado próprio às diversas formas de organi-
tar que espaço e tempo possuem uma unidade na zação deste ramo da produção social é dado pelas
diversidade. Tempo e espaço são duas formas injunções da produção e reprodução ampliada do ca-
intercondicionadas de ser da matéria. Espaço é movi- pital; 4) nos países de desenvolvimento capitalista re-
mento e transformação da matéria. Portanto, confor- tardatário a questão agrária assume um caráter parti-
me Ariovaldo, “Tempo e espaço se acham, pois, cular, dada a articulação do grande capital com a pro-
indissoluvelmente unidos ao movimento da maté- priedade fundiária; 5) no Brasil essa articulação come-
ria, ao movimento concebido no sentido materialis- ça por se delinear na segunda metade do século XIX, é
ta dialético, não como estados particulares de coi- redefinida nos anos 30 e cristalizada no golpe militar
sas ou fenômenos particulares, mas como forma de 1964; 6) ao “fundir quimicamente” o grande capital
universal de ser da matéria; acha-se igualmente unido com o grande proprietário de terras, o desenvolvimen-
ao movimento concebido como transformação, como to retardatário do capitalismo cumpriu uma das tare-
desenvolvimento que inclui o nascimento do novo”. fas da revolução burguesa, i. é, a constituição da uni-
A geografia como valorização do espaço, de dade nacional; 7) ao fazer isto, unificou a luta de clas-
Antonio Carlos Robert Moraes e Wanderley Messias ses em todo o território nacional – a luta indígena, dos
da Costa. Afirmam a tese de se passar de uma teoria posseiros, do bóia-fria com a luta dos operários do ABC;
crítica, como superação do paradigma positivista e 8) que o Estado – órgão centralizador do grande capi-
funcionalista, para uma teoria marxista da e na geo- tal e da grande propriedade fundiária não pode, en-
grafia. Aqui é fundamental o método do materialismo quanto tiver esta composição de classe, realizar a re-
histórico dialético aplicado ao objeto da geografia. forma agrária; 9) resta a dúvida: até que ponto um es-
Como método de interpretar o real. Trata-se de ado- tado de compromisso que busque incorporar parte das
tar o materialismo histórico e dialético enquanto um aspirações das classes dominadas seria capaz de reali-
método revolucionário que funde ciência e história, zar tal tarefa, considerando-se o atual estágio da eco-
18 do qual emergem categorias como modo de produ- nomia mundial?”, diz.
Nº 18 ção, formação econômico-social, relações de produ- Crise econômico-social no Brasil e o limite do
MAIO/2006 ção etc., e conceitos como capital, trabalho assalari- espaço, de Manoel Fernando Gonçalves Seabra. Tra-
ta-se, sinteticamente, que a crise tenha componentes no. 2) As relações das cidades com sua interlância agrá-
político-ideológicos, possui fundamento econômico, ria; crises de abastecimento de mercado interno (do
i.é, crise de acumulação capitalista. O Brasil está in- leite, por ex.); cidades e renda fundiárias; estudos so-
serido como capitalismo periférico e dependente bre a classificação territorial : que é o rural e o urbano.
(tecnológica e financeira) do imperialismo (america- Novos rumos da geografia brasileira, de Milton
no), conforme a década de 50 e o golpe militar de Santos. A geografia (fundação, estatuto teórico e pro-
1964 o demonstram. Com a homogeneização deste dução) está situada às grandes crises da própria hu-
modelo de capital irradiado pelo Brasil possibilita manidade (veja a 2ª Grande Guerra Mundial e o fenô-
fissuras para sua crise e a possibilidade do novo. meno das migrações). Herdeira do embate entre
O pensamento geográfico e a realidade brasilei- empirismo (positivismo) e idealismo, triunfou, no sé-
ra, de Manuel Correia de Andrade. Segundo Andrade, culo XIX, a geografia como ciência positiva. Pós 2ª
é hora de descolonizar a teoria da geografia de seu Guerra, com a bipolaridade mundial, recebe o peso
peso histórico: francês, americano, entre outros. Sua da ideologia americana (imperialista) – instrumento
proposta é a construção de uma teoria da geografia hegemônico do capital. Entretanto, com nova crise
genuinamente brasileira, sem desprezar, é claro, a con- do quantitativismo surge a possibilidade de repensar
tribuição externa. Cita alguns autores brasileiros que o homem e seu espaço e, com isso, de renovação da
falam de alguma forma de geografia e de sua geografia. É o contexto geopolítico da ditadura mili-
cosmovisão: os cronistas viajantes e aventureiros, e os tar no Brasil e da resistência de parte dos intelectuais
estudos de: Capristano de Abreu, Euclides da Cunha, (caso exemplar foi a publicação da Associação dos
Joaquim Nabuco, Caio Prado Jr., Raimundo Faoro, Geógrafos Brasileira), movimentos sociais, OAB, ABI,
Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Djacir entre outros. Outro problema é o boicote e censura
Menezes, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Antonio da imprensa em relação às publicações que questio-
Candido, Amélia Cohn, Nelson Werneck Sodré, Josué nam o poder estabelecido. Há também o obstáculo
de Castro, Milton Santos, Manoel Seabra, Lea Goldstein, do monopólio das fontes, veja o caso do IBGE, que
Armando Corrêa da Silva, entre outros. Portanto, criar se fecha perante os geógrafos críticos. Impera a fonte
uma identidade teórica de nossa diversidade. e divulgação de cópias dóceis dos estrangeirismos.
Notas sobre a geografia urbana brasileira, de Entretanto, é imperioso, segundo Milton Santos, a
Armen Mamigonian. Seu destaque para duas linhas de construção de uma geografia brasileira descolo-
pesquisa para os estudos urbanos: 1) o processo de nizada: elaboração de trabalhos autônomos, auto-
industrialização continua despertando interesse entre gerados e auto-sustentados. Trata-se de aprender nos-
economistas, historiadores e sociólogos com poucas so lugar no mundo e nossa localização específica neste
contribuições dos geógrafos. Apesar disso, destacam- mundo. Para tanto, se faz premente romper com a
se os temas: bloqueios dos ramos industriais desen- tradição empirista e desenvolver uma fundamentação
volvidos em São Paulo; a desnacionalização de inúme- e práxis comprometida com a teoria da geografia que
ros ramos industriais; a industrialização das metrópo- reflita nosso mundo real, com a formação do geógrafo,
les regionais num processo de substituição de impor- com o compromisso intelectual e político no sentido
tações (mercado regional), mas sob o controle exter- de reconstrução nacional, salienta Milton Santos.
SIMIELLI, Maria Elena R. Cartografia no ensino fundamental e médio. In: CARLOS, Ana Fani A.
(Org.). A geografia na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1999. p. 92-108.
Resenha elaborada pelo Professor Auro Moreno Romero
Mestre em geografia pela USP
Uma das grandes preocupações da autora neste ao observador a possibilidade de construir várias ima-
texto consiste em como realizar a transposição das gens. É a partir desse saber universitário que um sa-
informações da cartografia, enquanto disciplina uni- ber ensinado deve ser elaborado, reconstruído, reor-
versitária, para o ensino de geografia no ensino fun- ganizado. É necessário destacar que os saberes de-
damental e médio. É fundamental desenvolver méto- senvolvidos nos ensino fundamental e médio não se
dos que permitam essa transposição sem que se constituem em um resumo do saber universitário.
desconfigure, desvalorize ou empobreça o ensino uni- Assim, mais do que uma transposição didática,
versitário da cartografia. trata-se de reconstruir o saber geográfico sobre ba-
O saber universitário se apresenta sob forma de ses parcialmente diferentes já que os objetivos e os 19
peças de um quebra-cabeça sem uma imagem coe- meios da prática de geografia não são os mesmos na Nº 18
rente na qual ele é multiplicado, separado, deixando universidade e no ensino fundamental e médio. MAIO/2006
A RECONSTRUÇÃO DEVE SER da 6a à 8a séries os alunos já possuirão condições de
estar trabalhando com análise, localização e com a
FEITA EM VÁRIOS NÍVEIS correlação. Já no ensino médio juntamente com a
análise, localização, correlação, também se insere a
1. Reconstrução no nível dos programas oficiais
síntese.
Apenas uma parte da temática universitária deve Assim, a cartografia, além de constituir um recur-
ser implementada para determinar os conteúdos do so visual, oferece aos professores a possibilidade de
ensino fundamental e médio, levando-se em conta os se trabalhar em três níveis:
objetivos da formação geral do educando. No que diz
1) Localização e análise – cartas de análise, distribui-
respeito ao método de ensino é muito mais interes-
ção ou repartição, que analisam o fenômeno iso-
sante, no ensino fundamental e médio, partir do mé-
ladamente.
todo indutivo – do particular para o geral – do concre-
to para o abstrato. Os modos de raciocínio, os instru- 2) Correlação – permite a combinação de duas ou
mentos metodológicos, os temas de pesquisa, mui- mais cartas de análise.
tas vezes devem ser colocados de lado. 3) Síntese – mostra as relações entre várias cartas de
análise, apresentando-se em uma carta síntese.
2. Reconstrução no nível do professor
Diferentes professores elaboram cursos e lições Dentro dessa proposta de localização, análise, cor-
muito diversas. Cada professor reconstrói a geografia relação e síntese - aplicadas para a alfabetização
à sua maneira. O professor retém apenas uma parte cartográfica - devemos oferecer às crianças de 1a à 4a
do programa oficial seja devido: ao tempo, aos seus séries subsídios que favoreçam a compreensão dos
objetivos, à sua capacidade de interpretação pessoal, elementos presentes nas representações gráficas, so-
suas necessidades ou ainda, em função dos interes- bretudo os mapas. Em outras palavras, a idéia é edu-
ses dos seus alunos. car o aluno para uma visão cartográfica.
Para que possamos educar nossos alunos para a
3. Reconstrução no nível da lição cartografia é necessário, em primeiro lugar, aprovei-
À medida que as lições prosseguem e os alunos tar-se do interesse natural das crianças pelas imagens
adquirem novas competências, o conteúdo dos cur- utilizando-se de inúmeros recursos visuais tais como:
sos e métodos de ensino previstos são modificados e desenhos, figuras, tabelas, jogos e representações
reconstruídos. feitas por crianças.
A cartografia, para as séries iniciais, deve iniciar
4. Reconstrução no nível do aluno seu trabalho com o estudo do espaço concreto dos
O aluno, por sua vez, constrói ele mesmo seu sa- alunos, o mais próximo deles, ou seja, o espaço da
ber, retendo apenas uma parte dos conteúdos, inte- sala de aula, o espaço da escola, espaço do bairro
grando-a à sua maneira nos esquemas de pensamento para somente, nos dois últimos anos, se falar em es-
e ação. paços maiores.
Do ensino fundamental para o médio os conteú- O que importa é desenvolver a capacidade de lei-
dos e métodos se modificam e o problema principal a tura e para que a alfabetização alcance bons resulta-
ser administrado pelo professor é evitar o desvirtua- dos se faz necessário o de desenvolvimento de no-
mento total do projeto geográfico ou ainda, que sur- ções de:
jam contradições entre o saber ensinado e o saber
• Visão oblíqua e visão vertical;
universitário. A cada lição o professor deve realizar
• Imagem tridimensional, imagem bidimensional;
uma triagem e classificar os fatos propostos pelo sa-
• Alfabeto cartográfico: ponto, linha e área;
ber universitário propondo uma adaptação coerente
• Construção da noção de legenda;
para os objetivos e capacidades dos alunos do ensino
• Proporção e escala;
fundamental e médio, com o objetivo de evitar gran-
• Lateralidade/referências, orientação
des desvios.
Quanto à cartografia para 5a e 8a séries pode ser
A CARTOGRAFIA NO ENSINO DA GEOGRAFIA trabalhada a partir de dois eixos:
Os mapas nos permitem ter domínio espacial e No primeiro eixo, trabalha-se com o produto
realizar sínteses dos fenômenos que ocorrem num cartográfico já elaborado, tendo um aluno leitor críti-
determinado espaço. Os mapas nos auxiliam no dia- co no final do processo.
a-dia ou ainda pode-se ter diferentes produtos repre- No segundo eixo, o aluno é participante do pro-
sentando deferentes informações para diferentes fi- cesso ou participante efetivo, resultando deste segundo
nalidades: mapas de turismo, de planejamento, ro- eixo um aluno mapeador consciente. Esses dois eixos
doviários, minerais, geológicos, entre outros. têm como objetivo básico eliminar a situação do alu-
É importante destacar que cada aluno tem um no copiador de mapas. A cartografia-cópia e a carto-
20 potencial diferente para leitura e interpretação de grafia-desenho são atividades que não devem ser con-
Nº 18 mapas. Sendo assim, alunos de 1a à 6a séries, traba- sideradas como possibilidades efetivas de trabalho em
MAIO/2006 lhariam basicamente com alfabetização cartográfica, sala de aula.
No primeiro eixo devemos considerar como pro- o aluno confeccione a maquete, deve servir também para
dutos cartográficos os mapas, as cartas e as plantas, correlações, na medida em que a maquete, por ser um
partido de uma escala menor para uma maior. Os alu- produto tridimensional, estará dando ao aluno a opor-
nos – usuários do mapa – trabalharão com esses pro- tunidade de ver diferentes formas topográficas.
dutos em três níveis propostos: Além da maquete, neste eixo, o professor pode tra-
1- Localização e análise; balhar com croquis, que são representações bidimen-
2- Correlação; sionais. Os croquis tratam-se de uma representação
3- Síntese. esquemática, que simplificam mantendo a localiza-
ção da ocorrência dos fatos e evidenciam os detalhes
Esses três níveis de atividade da cartografia podem significativos, portanto, um importante elemento de
começar a ser trabalhados com o aluno desde a 4a e 5a localização e análise. Um segundo tipo de croqui é
série. Na medida em que o aluno evolui na compreen- aquele que permite a correlação, de duas ou mais
são do mapa ele será conduzido para relações mais variáveis que ocorrem no mesmo espaço.
complexas. Começa-se a trabalhar com um número No terceiro nível – síntese – o aluno estará partici-
menor de variáveis e vai-se aumentando esse número. pando efetivamente do processo de produção do mapa
Um dos grandes problemas que encontramos no (croqui), porque quem estará selecionando e
primeiro eixo (mapas já elaborados) é que a maioria correlacionando as informações é o próprio aluno e
dos professores trabalha com seus alunos apenas no essa correlação, desenhada por ele, obriga-o a ir sis-
nível localização e análise – o primeiro e mais elementar tematizando e estruturando essas informações.
dos níveis, ou ainda, estabelecem apenas correlações Cada cidadão tem uma idéia sobre a organização
do ponto de vista físico. Somente quando o professor do espaço em um determinado território; a essa idéia
conseguir desenvolver os três níveis é que conseguirá corresponde uma imagem – um mapa mental. O mapa
formar um aluno leitor crítico, que saberá usar corre- mental permite observar se o aluno tem uma percep-
tamente os mapas, cartas e as plantas. ção efetiva da ocorrência de um fenômeno no espaço
No segundo eixo, os alunos trabalharam com ima- e a condição de fazer sua transposição para o papel.
gem tridimensionais/bidimensional, utilizando-se ba- O mapa mental dever ser avaliado de acordo com as
sicamente de maquetes (tridimensional) e com cro- diferentes faixas etárias.
quis (bidimensional). Esse segundo eixo terá como Em síntese, devemos e podemos usar cada vez mais
resultante um aluno mapeador consciente. Nesse eixo a cartografia em nossas aulas, pois ela facilita a leitu-
o aluno participa efetivamente do processo de ra de informações para os alunos e permite um domí-
mapeamento, o aluno será confeccionador do mapa. nio do espaço de que só os alfabetizados cartogra-
A maquete, todavia, não pode servir apenas para que ficamente podem usufruir.
O livro é composto por uma coletânea de textos – da importância da escola para o cidadão do século
que procuram traçar um perfil do ensino da Geogra- XXI – a pergunta que devemos fazer é se o ensino da
fia, no ensino fundamental e médio em alguns países geografia vai conseguir sobreviver ou até mesmo se
tais como: Estados Unidos, México, Portugal, Espanha, fortalecer com essas mudanças em curso no sistema
França, Brasil incluindo, ainda um texto sobre o con- escolar.
ceito de estudo do meio. Não há dúvida que um sistema escolar renovado e
Para o autor, um dos grandes desafios neste novo apropriado aos desafios do século XXI deve levar em
século diz respeito ao papel da escola na sociedade: conta a “compressão do espaço/tempo”, a valoriza-
as suas relações com a cidadania – que também se ção das escalas global e local, a expansão dos direi- 21
redefine com a globalização e com a criação/expan- tos humanos, a necessidade do educando de apren- Nº 18
são de novos direitos. Assim dentro desta perspectiva der a conviver com os outros e a questão ambiental. MAIO/2006
O ENSINO DE GEOGRAFIA NOS ESTADOS UNIDOS sos de colocação adiantada em geografia – curso pre-
paratório para o ensino superior – e maior incentivo à
Susan W. Hardwick formação de professores habilitados em geografia, o
que agregou status e honra a disciplina.
Após quase ter sido extinta do currículo do ensino
fundamental e médio em meados da década de 1980, a
Geografia norte-americana ganhou uma nova esperan-
O ENSINO DE GEOGRAFIA NO MÉXICO:
ça com o lançamento de um programa de âmbito na- EDUCAÇÃO BÁSICA (PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA)
cional em prol da disciplina. A Sociedade Geográfica Na-
cional lançou um programa intitulado “Aliança Geográ- Javier Castañeda Rincón
fica” objetivando resgatar a necessidade do ensino da
Geografia nas escolas de ensino fundamental e médio. Este artigo pretende mostrar a situação atual do
Em 1989 foi criada a lei federal “Goals 2000” que ensino de geografia na educação básica no México.
elegeu a geografia como uma das cinco disciplinas Ou seja, o que é ensinado, como é ensinado, porque
essenciais para o ensino fundamental e médio. Em- é ensinado e para que a geografia é ensinada.
bora a lei tenha dado um impulso significativo para o Recentes pesquisas mostram que o ensino da ge-
ensino da geografia, existe uma pressão muito gran- ografia no México se processa mais por memorização
de para que o currículo escolar se volte para a melhoria que por compreensão o que coloca os Mexicanos muito
do ensino de outras disciplinas consideradas mais abaixo da média internacional em termos de conheci-
importantes como a leitura, matemática e ciências. mento da geografia.
Nos últimos 15 anos ocorreu uma redescoberta Para a maioria dos professores mexicanos a geo-
do ensino da geografia nos Estados Unidos. Ocorreu grafia vive um atraso total. O ensino de geografia tem
uma verdadeira “revolução” na reforma da geografia sido posto em segundo plano em comparação com o
escolar que envolveu professores, administradores ensino de matemática ou de espanhol. Isto se deve
escolares e associações profissionais. Depois de mui- em primeiro lugar, por ter sido colocada no âmbito
tas décadas de interpretações incorretas do significa- das ciências sociais e das ciências naturais - foi só a
do e importância da geografia já é possível ver algu- partir de 1993 que a geografia no México ganhou status
ma melhora no nível médio. de disciplina independente.
Essa reformulação deve-se em grande parte ao fato Percebe-se que a geografia no México tem tido
de que o conhecimento que os norte-americanos têm uma importância secundária no ensino fundamental.
da geografia mundial compara-se desfavoravelmente com Sua imagem e identidade como disciplina escolar fo-
seus conterrâneos 40 anos atrás, bem como com o de ram construídas com base em uma geografia descri-
seus contemporâneos em outros países industrializados. tiva e cartográfica.
Os estudantes americanos não dominam concei- Entre os erros detectados nos programas de geo-
tos básicos de geografia nem topônimos em conseqüên- grafia das escolas primária e secundária poderíamos
cia das negligencias em relação ao currículo de geo- destacar: falta de seqüência lógica nos temas; erros
grafia na educação básica. Em exames realizados, 70% conceituais; conceitos obsoletos; temas e subtemas
dos alunos, em cada série, estavam no nível básico de básicos ausentes; duplicidade temática; falta de rela-
conhecimento no que se refere aos conteúdos da geo- ção entre os temas, imprecisão temática.
grafia. A partir desta constatação foram definidos cin- Quanto aos conteúdos esses são definidos por
co temas fundamentais os quais os alunos deveriam categorias, a saber: espaço geográfico; temporalidade
ter domínio: Localização, Lugar, Relações nos lugares, e mudança; localização; representação; distribuição;
Movimento e Região. No começo da década de 1990 relação e interação.
foram criados parâmetros nacionais para o ensino da
geografia onde se definiu que os estudantes deveriam A EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA EM PORTUGAL
possuir o domínio das seguintes categorias geográfi- O sistema educativo português se divide em duas
cas: Visão espacial do mundo; lugares e regiões; siste- grandes etapas: ensino básico (quatro anos), segun-
mas físicos; sistemas humanos; meio ambiente e so- do ciclo (dois anos), terceiro ciclo (três anos) e o ensi-
ciedade e aplicação da geografia. A geografia deveria no secundário (três anos).
ainda, superar o ensino baseado na localização/ A aquisição das competências relacionada com o
memorização de informações. A nova geografia deve espaço faz-se ao longo desses 12 anos de escolarida-
dar ênfase nas relações espaciais, incentivo à resolu- de, em diversas disciplinas e por intermédio de pro-
ção de problemas, conexão com o pensamento críti- fessores com formação diversa.
co, substituição da amplitude pela profundidade, es- Segundo o atual currículo nacional, as competên-
tratégias coletivas de aprendizagem, fundamentação cias a serem desenvolvidas pela geografia ao longo
em pesquisa, adaptação às novas tecnologias, traba- da escolaridade de três ciclos possuem as seguintes
22 lho de campo e ênfase na interação homem-meio. organizações temáticas:
Nº 18 Aliado a uma renovação dos conteúdos foi reali- 1o ciclo – A descoberta do mundo local – Escala
MAIO/2006 zado um amplo trabalho de avaliação, criação de cur- de análise local e regional (ambiente natural, inter-
relações entre espaços, inter-relações entre a nature- mundo dividido entre a competitividade e a falsa idéia
za e a sociedade). de que vivemos em plena democratização do saber
2o ciclo – A descoberta de Portugal e da Península por meio dos mitos das novas tecnologias. No tercei-
Ibérica – Escala de análise local, regional e peninsular ro tópico o autor aponta os desafios educacionais (na
(a Península Ibérica na Europa e no Mundo, O territó- geografia) que devemos enfrentar em um mundo cada
rio Português) vez mais globalizado.
3o ciclo – A descoberta de Portugal, da Europa e
do Mundo – Diferentes escalas de análise (meio am-
Tópico um
biente e sociedade, o meio natural, a terra: estudos e O ensino da geografia até metade do século XX
representações, atividades econômicas, população e constituía-se como um conjunto de saberes eruditos
povoamento, contrates de desenvolvimento). que procuravam ilustrar as elites; que, em forma de
É só no terceiro ciclo que a disciplina de geografia estereótipos pátrios, serviam para doutrinar os demais
é autônoma. Os alunos deverão abordar seis temas estratos sociais; trata-se de conteúdos que contempla-
tendo como obrigatoriedade o ensino relativo à Terra vam basicamente a descrição da paisagem e dos pro-
– estudos e representações – ser ministrado no início dutos derivados da atividade humana; um ensino
do 7o ano. patrimonial do território que se enquadra em diferen-
No ensino, secundário, a geografia é opcional para tes unidades político-administrativas: municípios, pro-
os alunos de cursos voltados para a área de exatas. A víncias, comunidades autônomas e Espanha. Durante
geografia no ensino médio tem como principal finali- todo o período do franquismo o conhecimento geo-
dade desenvolver competências que tornem os alu- gráfico ficou relegado a uma espécie de enciclopedismo
nos capazes de: reconhecer a existência de diferentes cultural o que acabou, até os dias atuais, atribuindo
padrões de distribuição de fenômenos geográficos no uma certa vulgaridade no ensino da geografia.
espaço nacional; relacionar a existência de conflitos Assim, segundo o autor, se realizarmos uma avali-
no uso do espaço e na gestão de recurso; desenvol- ação do ensino de geografia até a segunda metade
ver a percepção espacial; interessar-se pela concilia- do século XX o resultado não será positivo. As pro-
ção entre crescimento econômico e melhoria na qua- postas de educação geográfica não levaram em con-
lidade de vida; e participar na resolução de proble- ta as grandes transformações vividas pela humanida-
mas que se expressam no espaço. de e, mais especificamente, as mudanças que ocor-
Em síntese, segundo o autor, os principais problemas reram Espanha.
do ensino de geografia em Portal constituem-se em: Tópico dois
• Deficiência na formação dos professores do primei- De um modo geral o ensino de geografia, nas es-
ro grau; colas primárias e secundárias na Espanha, pouco mu-
• Programas centrados na aprendizagem de concei- dou desde a sua implantação até os dias atuais. Ocorre
tos nem sempre relevantes; uma reorganização dos conteúdos de geografia que
• Impossibilidade da freqüência da disciplina para os se caracteriza por uma volta a um enciclopedismo
estudantes dos cursos de exata. próprio da cultura espanhola do século XIX, com o
acréscimo de referências a feitos específicos das Co-
Como aspectos favoráveis no ensino da geografia munidades Autônomas. Sem dúvida a impressão que
o autor destaca: temos é que estamos diante da imposição de um de-
• Formação superior específica para os professores terminado modo de entender a cultura, distante dos
de geografia; parâmetros fixados nos debates educativos do anos
• Existência de uma disciplina de geografia autôno- 80 na Espanha.
ma, no terceiro ciclo; Tópico três
• Existência de cursos e ações de formação contínua A geografia, neste terceiro milênio, deve facilitar
para professores de geografia. ao alunado a compreensão do mundo em que vive,
explicando adequadamente os problemas mais rele-
vantes, pois a didática não consiste na formulação
UMA PROPOSTA PARA O ENSINO técnica de alguns conteúdos, mas em uma
DA GEOGRAFIA NA ESPANHA metodologia que possui finalidades educativas.
Para tanto, é preciso repensar as finalidades do
Xosé Manuel Souto Gonzáles ensino de geografia no início do século XXI, para que,
como professores, tenhamos a oportunidade de dis-
O autor organiza este artigo em três tópicos fun- cordar ou não do conjunto de conteúdos didáticos
damentais. No primeiro, esboça a evolução didática que nos é proposto pelos editores dos manuais esco-
da geografia na segunda metade do século XX. No lares, pois certamente todos aceitamos os grandes
segundo tópico é proposto um estudo das mudanças princípios educacionais da legislação escolar e o marco 23
que aconteceram nos anos finais do segundo milênio constitucional. Nº 18
e que incidem no estudo geográfico do mundo. Um A geografia que se ensina nas escolas deve cola- MAIO/2006
borar no sentido de permitir que os alunos possam dagem da ciência geográfica. Nesse sentido, desta-
adotar posições críticas em relação às informações ca-se o livro didático: Compêndios de geografia ele-
que lhes chegam, é preciso que analisem os códigos mentar, de autoria de Manuel Said Ali Ida (professor
e filtros que se interpõem entre a realidade visível e as do colégio Pedro II) onde propõe, pela primeira, vez
redes invisíveis que a transformam a cada dia. estudar o Brasil em regiões.
Delgado de Carvalho representou um nítido avan-
ço em relação à proposta de divisão regional de Ma-
O ENSINO DE GEOGRAFIA NA FRANÇA nuel Said Ali Ida. É D. de Carvalho quem confere ao
Isabelle Lefort ensino de geografia uma grande importância ao ligá-
lo a uma certa ideologia nacionalista, onde a geogra-
A geografia na França faz parte da tradição escolar, fia deveria fornecer ao aluno os fundamentos lógicos,
principalmente de verificarmos o importante papel que com o fim de atingir um patriotismo verdadeiro.
a geografia francesa desempenhou em momentos de Além desses dois precursores da geografia brasilei-
conflitos durante o decorrer do século XIX e meados ra é necessário destacar as contribuições de Everardo
do século XX. Assim, o ensino da geografia na França, Adolpho Backheuser que inseriu na perspectiva da edu-
de maneira como funciona hoje no sistema escolar, só cação e do ensino da geografia a questão da unidade
pode ser compreendido por meio dos laços necessári- político-territorial do Estado brasileiro e as contribui-
os e originais que ele tem com a política. ções de Aroldo de Azevedo que tem uma participação
O ensino de geografia na França, colocando seu indissociável no processo de institucionalização univer-
nascimento a partir de 1870, apresenta uma sitária da ciência geográfica no Brasil. Por meio de seus
periodização em três momentos distintos. O primeiro livros poderíamos dizer que Aroldo de Azevedo “implan-
refere-se ao período entre 1870 e 1902 (instalação) o tou” um modelo de geografia que compartimentou a
segundo, de 1902 a 1977 (período do paradigma realidade sob o paradigma “a terra e o homem”.
vidalino) caracterizado por notável estabilidade e, o O fato de os primeiros professores de geografia
terceiro, de 1977 até os dias atuais, caracterizados do curso de geografia e história da USP terem sido
pelo retorno às hesitações, passando por múltiplas Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig atribuíram à geo-
reformas e releitura de programas. grafia brasileira um caráter muito semelhante à geo-
Podemos dizer que o ensino de geografia no siste- grafia praticada na França.
ma educacional francês caracteriza-se fundamental- O modelo francês perdurou no Brasil até aproxi-
mente pela repetição. Uma disciplina que ativa essen- madamente os anos 60 quando alguns professores –
cialmente o trabalho da memória. Essa repetição con- estimulados pelas mudanças que aconteciam no ce-
duz o aluno a aprender pelo menos três vezes os mes- nário nacional e internacional – procuraram alternati-
mos conteúdos. vas para um ensino da geografia que levasse em con-
Essa repetição se funda sobre o princípio de uma ta essas mudanças.
acumulação progressiva de saberes, na qual se passa
de um nível de generalidades elementares para níveis REALIDADES E PERSPECTIVAS DO
progressivamente mais detalhados de informação.
A geografia na França é tida como uma disciplina
ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL
claramente “mal-amada”. Todas as pesquisas con- José William Vesentini
duzidas durante as últimas décadas evidenciaram que
se tem uma imagem negativa da disciplina. A repre- O ensino de geografia no Brasil vive uma fase de-
sentação social da geografia é essencialmente de uma cisiva, um momento de redefinições impostas tanto
disciplina fastidiosa sem real interesse, demandando, pela sociedade em geral como também pelas modifi-
um esforço muito grande de memorização e prepara- cações que ocorrem na ciência geográfica. Ou a geo-
ção para exames. grafia muda radicalmente e mostra que pode contri-
buir para formar cidadãos ativos ou ela vai acabar vi-
rando uma peça de museu.
O ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL: Podemos dizer que existe quase um consenso en-
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA tre os professores de geografia que atualmente
estamos vivenciando uma transição de uma geogra-
Vânia Rubia Farias Vlach fia tradicional para uma(s) crítica(s). Enquanto a pri-
meira seria descritiva, alicerçada no paradigma “ter-
A geografia que se ensinava, no Brasil, principal- ra-homem” a segunda, consiste na criticidade e no
mente após 1930 era inspirada na obra do padre engajamento.
Manoel Aires de Casal – Corografia Brasílica - em Podemos dizer que o ensino da geografia no Brasil
outras palavras, uma geografia que não podia sequer reflete a própria condição do ensino de maneira ge-
24 ser classificada como descritiva. ral, com todas as dificuldades que já conhecemos.
Nº 18 É no âmbito da escola (primária superior e secun- É preciso ter claro que a geografia escolar não pode
MAIO/2006 dária) que surgem propostas de mudanças na abor- consistir na mera reprodução daquilo que foi anteri-
ormente produzido nas universidades. O fundamen- pudessem refletir sobre desigualdades, injustiças e
tal é levar em conta a realidade dos alunos e os pro- promover mudanças na sociedade. Com o fim das
blemas de sua época e lugar. escolas anarquistas o estudo do meio foi resgatado
Sem dúvida, a geografia deve assumir, no Brasil o pelos escolanovistas, embora com outros objetivos: o
compromisso de contribuir para a cidadania plena, de integrar o aluno ao seu meio.
em levar o educando a conhecer o mundo em que Foi somente a partir de 1992 que professores reu-
vivemos, desde a escala local até a global, sem ne- nidos na SE da cidade de São Paulo elaboraram uma
nhuma preocupação com conceitos petrificados e publicação sobre o assunto. No estudo do meio na
sempre levando em conta o fato de que o mundo está geografia, passou-se a não mais separar o espaço e o
sempre em processo de mudanças e transformações tempo, pois as observações sensíveis permitem uma
que não possuem uma causa simples nem constan- aproximação concreta com problemas estudados pela
te, mas, pelo contrário, resultam do entrecruzamento história e pela geografia.
de inúmeros fatores que variam muito de acordo com O contato direto com um local, seja da realidade
a escala geográfica e com determinações culturais, do aluno, seja de outras realidades, e as reflexões so-
econômico-sociais e até mesmo ambientais. bre ele permitem que se formem referenciais para
entender que o meio não é estático, é dinâmico. Ele
foi e será transformado.
O CONCEITO DE ESTUDO DO MEIO A construção e a reconstrução de um espaço po-
TRANSFORMA-SE...EM TEMPOS DIFERENTES, dem mobilizar os agentes sociais envolvidos no pro-
EM ESCOLAS, COM PROFESSORES DIFERENTES. cesso, porque com ritmo e intensidade diferentes in-
terferem na vida das pessoas. O jogo desses interes-
Nídia Nacib Pontuschka ses vai definir a maneira da construção e reconstru-
ção do espaço.
As escolas anarquistas foram as primeiras no Bra- Os conflitos sociais podem estar materializados no
sil introduzir atividades semelhantes ao estudo do meio espaço visível. No entanto, nem sempre isso ocorre,
– nas escolas que seguiam a pedagogia Ferrer – com havendo necessidade de ir ao encontro das explica-
o objetivo de que os alunos, observando, descreven- ções junto com os moradores do local, por meio da
do o meio dito natural e o social do qual eram parte, memória oral e das contradições reveladas.
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Nº 18
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