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2007
Ilustração da Capa:
Black Novais
Gilson Santos
Digitação:
Edvando Souza Santos
Revisão:
Edmundo Peixe
Helvécio Meira
Carla de Quadros
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ISBN 978-85-907173-0-0
CDD 869-3B
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Preâmbulo
Era noite, eu estava sentado num canto do quarto, lendo anotações feitas no caderno
que me fora entregue por aquele rapaz, que muito me ensinou. Folheava-o, quando me
deparei com um de seus profundos pensamentos: “Quero acreditar que irei acordar amanhã
e as nuvens negras que pairam sobre minha cabeça não mais existirão; e amanhã será um
novo dia, porque ainda pinto dentro de mim, na tela dos meus sentimentos, um coração
abstrato, embriagado de paixão pela vida. Lúcido, caminho dentro da noite, em meio à
escuridão dos inconscientes, buscando encontrar, entre densas neblinas, a fonte de água
límpida, para saciar a sede dos meus pesadelos, na água viva dos sonhos de Deus”. Ao
terminar de ler o pensamento, lembrei-me das palavras do mestre Sédrik, que em mim
ficaram guardadas: “A minha missão é encontrar a Luz em meio à escuridão”. Pude
observar, neste pensamento, a ansiedade da busca e a necessidade de encontrar a Luz. Eu
acredito que esta é a razão primária de todo ser: encontrar a Luz em meio à escuridão de
sua consciência. Este é o caminho que arduamente todos nós temos que trilhar: tocar a
infinita cortina escura de nossa cegueira e rasgá-la para ver de outro lado, dentro de nós
mesmos, o clarão da Luz que nos leva à eternidade. Passaram-se sete meses após ter o
privilégio de conhecer um ser tão notável como Sédrik. Aprendi a ver valores nas coisas
simples e construir personalidade edificada numa filosofia de vida. Passei a me relacionar
de maneira mais intensa comigo mesmo. Abri portas dentro de mim e naveguei num
profundo sentimento. Lá, encontrei liberdade para observar e aprender a dar o melhor de
mim a cada dia ou, pelo menos, tentar tornar-me melhor. Voltei a folhear o caderno,
parando em outro pensamento que me chamou a atenção: “Sou matéria lançada ao fogo;
sou fumaça, apenas fumaça; folha, a natureza me esculpiu com sentimentos, formas e cores;
o tempo me queima e tornar-me-ei cinzas; refletirei, na fumaça, a força que eleva a minha
imaginação. Estou em meio da noite e não há lua nem estrelas; só vejo o sol conspirando,
com a escuridão, o nascimento de um novo dia. Eu, um simples mortal, receio cair ao chão
e acordar, no outro dia, temendo a lucidez que me cobra a lógica e a razão. Que razão? A
vida? Eu preciso de uma razão para viver.” E, naquele momento, ouvi os galos cantarem e
percebi que já era muito tarde, dirigi-me ao meu quarto, deitei-me sobre as almofadas e
adormeci segurando o caderno. Envolvi-me em um sonho, no qual eu estava numa
carruagem em companhia de dois homens com vestes brancas, tendo suas cabeças envoltas
por capuzes. Um deles estirou-me uma das mãos, passando-me um manuscrito. Enquanto
observava vilarejos e planícies por onde passávamos, numa carruagem imprimindo bastante
velocidade, percebi que me encontrava num século por volta da Idade Média e que também
usava túnicas. Ao chegarmos ao nosso destino, pude observar que era um mosteiro. Dois
monges aproximaram-se e nos saudaram com gestos de reverência. Convidaram-nos a
entrar. Caminhamos por um longo corredor iluminado por tochas. Ao chegarmos a uma
grande porta, encontramos outro monge: um guardião, que nos pediu para pronunciar a
palavra secreta. Um dos monges, que me acompanhava, pronunciou enigmática palavra – a
qual não posso revelar. Aquela grande porta abriu-se e adentramos um grande salão, onde
muitos monges aguardavam o início de um evento. Sentando-me com aqueles que me
acompanhavam, pude observar a sombria claridade das luzes das tochas, dispostas em
lugares estratégicos. Soou, então, o gongo e entrou no salão um monge subindo a um lugar
de destaque; tinha nas mãos um manuscrito, que desenrolou e começou a ler em voz alta:
“Meus caminhos não são vossos caminhos; meus pensamentos não são vossos
pensamentos; Deus é perfeito e nós somos uma cópia imperfeita”.
Dirigindo-se a uma tocha, apanhou-a e nos mostrou, dizendo:
– Há quanto tempo o fogo aquece nossos corpos e conforta nossas almas? Quem de
nós pode decifrar a sua fórmula? Os alquimistas levaram metais inferiores várias vezes ao
fogo, em suas experiências, com o sonho de transformá-los na quinta essência – o ouro. O
Cosmo, alquimista da vida, nos tem levado ao fogo das várias existências para transformar-
nos, não no amor, mas na própria essência.
E, mais uma vez reverenciando-nos, assentou-se em meio aos outros monges.
Naquele momento, alguém me convidou, acenando. De posse dos manuscritos, dirigi-me à
parte de destaque do salão. Saudando a todos, abri um dos manuscritos e comecei a ler: “A
clausura condena, o amor liberta. Subestimei os meus desejos e me enclausurei, negando-
me a compartilhar as minhas carências com a carência dos lábios de uma mulher; ser que
sana o vazio desta existência. Neguei-me aos meus desejos. Somos, por acaso, fortes ou são
as nossas fraquezas que fortalecem a nossa continuação?”
De repente, uma grande mudança no sonho subestimou o tempo e o espaço. Já não
mais estava no mosteiro. Tudo aconteceu muito rápido. Encontrei-me numa planície em
meio a muitas árvores. Senti que era primavera, pela suavidade do clima. Caminhava,
trazendo em uma das mãos uma rosa. Logo notei, à distância, alguém aproximar-se. Ao
chegar mais perto, percebi que era Helen, com trajes que remontavam a séculos passados.
Logo estávamos próximos. Olhando em seus olhos, dei-lhe a rosa e, envolvendo-a num
cálido abraço, pude ouvir o murmurar de sua voz, clamando por meu corpo. Beijamo-nos
com muita ansiedade. Com carinho, comecei a desnudá-la. Eu era só sede e ela a fonte de
água límpida que saciaria meu ser sequioso pela vida. Beijando seu corpo, ultrapassei todos
os limites. Como abelha, acariciei as pétalas da flor do seu sexo, e molhado no néctar dos
seus desejos, percebi que já não éramos dois, mas apenas um. Éramos a fome e o próprio
saciar. Nós nos encaixávamos perfeitamente em nossas ansiedades. Na busca de saciar as
nossas carências, ouvi a sua voz trêmula e ofegante contar-me uma história:
– As tuas mãos, que acariciam a minha face, esculpirão no tempo a continuação do
nosso sentimento, subestimando a transformação dos vendavais do destino, que a tudo
separa.
E naquele momento começou a ventar muito forte. Uma ventania tão agressiva que
chegou a separar os nossos corpos, como se todos os acontecimentos de uma vida
estivessem resumidos apenas naquele nefasto vendaval. Tentamos segurar-nos pelas mãos.
Gritamos, mas nada pôde impedir a separação, pois tudo se separa. Num grito, acordei no
meio da noite:
– Não!...
Assustado, fiquei em claro, observando a madrugada passar. As lágrimas escorriam
pela minha face. Em dado momento, levantei-me sufocado, questionando-me com
perguntas que gritavam em meu ser, mas não havia respostas. Dirigi-me à porta; ao abri-la,
olhei para a escuridão da noite e comecei a caminhar a esmo. Fazia muito frio. O orvalho
molhava-me, e a brisa forte soprava em minha face, trazendo som suave e misterioso que
impregnava os meus ouvidos. Ao me dar conta, já estava bem distante de casa, quando fui
surpreendido por uma luz à distância, em área bastante isolada. Sem pensar, fui
aproximando-me e logo percebi que era uma fogueira. Um homem que se aquecia,
segurando uma caneca, me ofereceu um pouco de chá, passando a falar em seguida:
– Vem e senta-te ao lado da fogueira. Ela aquecerá o teu corpo e confortará a tua
alma.
Eu então lhe disse:
– Só um observador do céu noturno conhece o mistério do fogo e o enigma da noite.
Ele respondeu:
– Tudo que sei, aprendi com a noite.
– Com a noite?
– Ela é a minha amante, a minha única companhia. É preciso que te harmonizes com
seu silêncio. Sente sua quietude e ela te responderá a todas as tuas dúvidas; revelará todos
os segredos do mistério dos teus sonhos, pois a noite é eterna e nela estão registrados os
acontecimentos mais sutis desta existência. Nela estão marcadas as lágrimas dos esmagados
pela solidão; nela ecoam os gritos dos torturados que foram e são vítimas da ignorância.
Sim, nela eu também posso ouvir os gemidos de prazer daqueles que se amam e, sem
perceber, trilham caminhos da transformação. Nela ainda posso ver aqueles que estão em
claro, acariciados pela saudade da distância com que o destino os separou. Aprendi, com
seu silêncio, que tudo se separa. Fascino-me com a lua, sua nudez de luz, excita o uivo dos
lobos que contemplam a majestade do silêncio.
De repente, os primeiros raios de luz do dia começaram a surgir. A fogueira se apagou
em cinzas e o homem se levantou, apanhou a viola e uma grande mochila, dizendo-me:
– Tenho que ir, meu amigo, observar as ansiedades da coletividade em mais um dia.
Eu fiquei parado ali, sem conseguir me mexer, olhando a imensidão do céu, vivendo o
sentido das cores da luz do novo dia. Podia ver a face de Deus preparando mais um cenário
que formava sons e vida, como um artista que expande eterna aquarela nesta tela, palco da
nossa continuação, em que seremos atores de histórias que virão. As nossas lembranças são
filmes que nos ensinarão a folhear as páginas dos livros esquecidos, onde encontraremos
respostas para as incógnitas dos obstáculos que virão no amanhã. E o dia aconteceu. Depois
de contemplar o amanhecer, comecei a caminhar lentamente. Ao atravessar algumas ruas,
notei uma barraca de frutas. Aproximei-me, comprei uma maçã e passei a comê-la ao lado
da barraca. O barraqueiro, surpreendido pela presença matutina de um comprador faminto,
perguntou-me:
– Tu conheces a história de um rio que secou, depois que os moradores de um
povoado, à sua margem, o deixaram, em busca de novos sonhos na cidade grande?
Respondi-lhe que não, e perguntei-lhe:
– O que tem a ver a vida da nascente de um rio com aqueles que lhe cercavam?
O barraqueiro me disse:
– Ele transbordou várias vezes. Podíamos sentir que ele chorava e, quando a nascente
secou as suas lágrimas, a vida daquele rio se esgotou. Acredito que aqueles, que da pesca
saciavam sua fome, eram a razão da vida da nascente daquelas águas. Sinto-me como
aquele rio: sem vida. Pois é preciso ter uma razão, um objetivo para estar vivo e eu não sei
se estou. Meus amigos morreram; meus irmãos já não mais estão aqui. Eu sou apenas um
velho, sufocado pelas lembranças, semelhante àquele rio: sem razão para estar aqui. –
Olhando nos seus olhos abatidos, falei:
– Tu viveste até agora para saciar minha fome com esta maçã. E tantos outros que
aqui chegarem terão as tuas frutas; saciarão as suas almas vazias com a tua experiência e as
tuas lembranças.
Trêmulo, ele pegou em minhas mãos, dizendo:
– É bom poder estar vivo e ouvir estas palavras. Digo-te que aprendi muito, hoje.
Naquele momento, chegou uma criança para comprar frutas. Eu a coloquei no colo e
disse-lhe:
– Existe um velho homem que saciou a minha fome e ainda viverá muito para saciar a
tua e a de muitas outras pessoas.
E da face daquele homem, marcada pelo tempo, nasceu um sorriso. Deixando a
criança a sorrir, retirei-me lentamente. Sem notar, já caminhava há quase uma hora em
direção à montanha, denominada “Luzes da Cidade”, localizada a alguns quilômetros de
distância. Nesse ínterim, passaram-se alguns dias que eu encontrara o “observador
noturno”. Lembrei-me de vários acontecimentos e, principalmente, de que ele havia me
ensinado a escutar o silêncio da noite e dele poder obter respostas para meus sonhos e para
todas as minhas perguntas. Contemplei o amanhecer como se o tivesse visto pela primeira
vez e descobri o verdadeiro sentido da formação do cenário de um novo dia. Vi, com a
visão da observação, as cores e as formas do amanhecer. Sim, eu vi a face de Deus.
Caminhei em direção àquela montanha para observar o dia, esperar o pôr-do-sol e, em seu
crepúsculo, contemplar o nascer da noite para sentir a plenitude dos seus mistérios. Como
fazia muito calor, retirei a camisa e amarrei-a na cintura. Estava com sede, com muita sede.
Por sorte, avistei de longe um riacho que ficava fora da estrada. Desci um pequeno
despenhadeiro e atirei-me naquelas águas cristalinas que ali estavam, como um presente do
Cosmo, sem me importar que molhassem todas as minhas vestes. Mergulhei minhas mãos e
bebi, saciando, assim, a minha sede. Agradeci ao Deus do Universo por aquela nascente ter
rebentado o solo e brotado esse riacho, com a única razão: servir. Naquele instante, um sutil
pensamento invadiu-me, deixando-me paralisado a observar as águas do riacho que, como
um espelho, o seu brilho refletia a imensidão dos céus. Lembrei-me então das palavras do
mestre Jesus: “Eu sou a água da vida e aquele que beber de mim nunca mais terá sede”. De
repente, fui despertado por um barulho. Era uma carroça que ia passando na estrada
imprimindo grande velocidade. Depois de algum tempo, ouvi o som de um tombo que
chamou a minha atenção. Subi correndo a encosta em meio aos arbustos do despenhadeiro.
Chegando à estrada, vi uma carroça sem uma das rodas e quase tombada, havia um homem
ao seu lado tentando erguê-la. Ao ver-me, fez sinais de forma apreensiva. Notando seu
desespero, corri em sua direção. Ele me falou:
– Jovem rapaz, por Deus, ajude-me!
Sem hesitar, passei a ajudá-lo. Apanhamos a roda que se havia soltado. Em seguida,
começamos a colocá-la no eixo com muita dificuldade, conseguindo consertá-la. E ele me
disse:
– Minha mulher está grávida. Eu a estou levando para o acampamento de sua família,
em uma fazenda muito distante.
Logo notei pelo seu sotaque, que ele era cigano. Subindo na carroça apressadamente,
ele falou-me que sua esposa daria à luz naquele dia. Por esse motivo, deveria apressar-se,
pois a sua primeira mulher morreu de parto e ele temia que o mesmo viesse a acontecer
com a sua nova companheira. Desejei-lhe, então, boa sorte. Ele prosseguiu sua viagem e eu
continuei a minha solitária caminhada. Por volta de quinhentos metros de distância, a
carroça parou. Aproximei-me rapidamente e o cigano, com a expressão tensa, desceu da
carroça desesperado e falou-me:
– É inacreditável, meu amigo. A roda deu um grande estalo. Tenho que tentar
consertá-la novamente.
Naquele momento, ouvimos o gemido de sua esposa. Imediatamente ele aproximou-
se dela, notou que as dores aumentavam e que ela já estava entrando em trabalho de parto.
Assustado, ele voltou-se para mim:
– Ajude-me! Ela não pode ir mais longe e pode vir a ter a criança aqui mesmo.
Atônito, perguntei-lhe em que poderia ajudar.
– Consiga água neste caldeirão, enquanto apanho lenha para acender uma fogueira.
Enquanto a água aquecia, os gemidos e os gritos daquela jovem mulher aumentavam.
Ele, desesperado, me chamou:
– Venha, entre na carroça. Iremos precisar de sua ajuda, pois já deve estar chegando a
hora.
Olhei para a face agonizante daquela mulher, quando me perguntou:
– Quem és tu?
– Sou um amigo. Estou aqui para ajudá-los. Nós vamos conseguir.
Ela, então, segurou minha mão com firmeza, enquanto seus gritos ecoavam,
demonstrando-se fragilizada pelas dores. Enquanto isso, seu marido se preparou para fazer
o parto, que logo se iniciou. Segurei-a pelos ombros, enquanto ela agarrou-se com muita
força em meus braços, procurando seguir o ritmo das contrações. Naquele momento, eu
tentava passar-lhe toda a energia. Logo, ouvi o grito daquele que se encontrava dividido
pela tensão e emoção, no momento da chegada do seu rebento:
– Está nascendo!
E da face daquela mulher escorreram lágrimas que transbordaram dos seus olhos. Seu
rosto, contraído de dor, logo se desfez num sorriso, ao ver aquele ser tão esperado nas mãos
do pai. Com leves palmadas, ele tentou despertá-lo para a vida, mas, sem conseguir,
começou a sua aflição. A mãe, ao perceber que seu filho não reagia, passou a chorar de
forma desesperadora. Não sabendo o que fazer, fui tomado de pavor. Por intuição, tomei a
criança nos braços levando imediatamente os lábios às suas narinas, soprando-as, sem
poder conter minhas lágrimas, que molhavam toda sua face. Naquele momento, um choro
forte rebentou do seu ser, rompendo o silêncio de nossas angústias, em um grito para a
vida. Envolvido pela emoção daquele momento, entreguei a criança nas mãos do pai que,
tomado por lágrimas, ergueu-a para o alto, dizendo:
– Este é meu filho! A minha continuação!
Subitamente, invadiu-me a lembrança das palavras do monge que esteve em meu
sonho: “As fraquezas dos nossos desejos fortalecem a nossa continuação”. Enquanto isso, o
pai preparava a criança, entregando-a à mãe que, ansiosa, esperava-a para acolhê-la em seus
braços. Em seguida, amamentou-a, saciando assim, sua primeira necessidade. Era evidente
o seu sorriso e o seu olhar de satisfação por estar cumprindo sua missão: ser mulher e
tornar-se o portal cósmico desta existência. Aquele homem colocou uma das mãos no meu
ombro, fitando-me, com os olhos brilhando de satisfação, enquanto falava:
– Reforçaremos a roda da carroça e você virá conosco, pois faço questão que
compartilhe comigo de um vinho fresco que nos espera no acampamento.
Após ter consertado a carroça, partimos estrada a fora. Percorremos quase todo o
caminho sem palavras. De repente, ele quebrou o silêncio, dizendo:
– Senti medo de que os vendavais da vida separassem, de mim, a mulher que mais
amo, e este filho que é uma dádiva de Deus.
Com leve sorriso, acrescentou:
– Nessa estrada da vida há muitos mistérios. Na noite anterior tive um sonho, no qual
encontrei na estrada um monge que ajudou minha mulher a dar à luz e, também, soprou nas
narinas da criança, despertando-a para a vida. Acredito que você, meu amigo, não é um
monge, mas é alguém que Deus enviou para ajudar-nos.
E complementou:
– A vida é mesmo um grande mistério!
Já perto do acampamento, aproximaram-se de nós dois homens montados a cavalo.
Ao chegarem até a carroça, um deles perguntou:
– Quem é o estranho que está contigo?
O cigano respondeu:
– É um amigo. Vão e preparem aquele vinho fresco, pois nasceu mais um homem em
nosso povo.
Os dois ciganos saíram em disparada gritando de alegria. E ao entrarmos no
acampamento, fomos recebidos com festa. Aquele povo de costume estranho me
cumprimentava cheio de alegria. Um deles se aproximou de nós com canecas
transbordando de vinho e nos serviu, dizendo:
– Brindemos o nascimento de teu filho, Nicolas.
Com a caneca cheia, Nicolas a ergueu em um brinde a mim, dizendo:
– Este rapaz me ajudou em um momento difícil. Salvou meu filho. Ele agora é um
irmão entre nosso povo e será sempre bem-vindo em nosso meio.
Um deles gritou:
– Brindemos à vida!
E todos gritaram, num coro eufórico:
– Viva! Viva! Viva!...
Nicolas convidou-me até sua barraca, ofereceu-me algumas frutas, passas e mel,
passando-me a contar a sua história. Logo descobri que ele era o líder de seu povo. Depois
de ouvi-lo atentamente, levantei-me e disse-lhe:
– Gostaria de ficar mais tempo contigo e com teu povo, mas tenho que ir.
Nicolas colocou as mãos nos meus ombros:
– Não sei qual o teu destino, mas te desejo boa sorte e te dou um dos meus melhores
cavalos para que sigas a tua caminhada.
Saímos a caminhar pelo acampamento, ele me mostrou os seus cultivos e suas
criações, quando se aproximou de nós um velho, com um cajado, que pegou em minha
mão, dizendo:
– Apressa-te, pois logo o sol começará a se pôr e a montanha fica um pouco distante.
Assustado, questionei-o:
– Como sabes que estou indo para a montanha contemplar o pôr-do-sol?
O velho me respondeu:
– Quem aprende a linguagem do silêncio da noite, nunca mais é o mesmo. Aquele que
nasceu hoje em nosso povo foi batizado com tuas lágrimas, pois ele veio para libertar essa
gente da clausura da inconsciência, trazendo no futuro, uma visão maior. Quanto a teus
sonhos não são simples sonhos; são lampejos de tuas vidas passadas. O Cosmo, eterno
alquimista desta existência, nos dosou com a porção certa, no tempo e espaço, para que nos
encontrássemos.
Sem poder conter as lágrimas, ele me abraçou, dizendo:
– Acompanhar-te-ei até a montanha.
Despedi-me de Nicolas e de seu povo. E cavalgamos em direção ao pôr-do-sol.
Capítulo IV
Depois de algum tempo, olhei em minha volta e tudo pareceu muito confuso.
Naquele instante, percebi que me encontrava em uma tenda e notei no seu interior uma
decoração com luxuosos tapetes. Em meio a observação, senti a aproximação de uma
mulher, ao chegar mais perto, abriu-me um sorriso de contentamento por eu ter despertado,
servindo-me algo para beber:
– Beba um pouco desta porção, vai ajudar a recuperar-te.
Tomei das suas mãos aquele cálice e, enquanto bebia, olhei para a sua face, fitando
seus olhos e os mesmos brilhavam como um cristal lapidado pelo tempo, forçando-me a
questioná-la, de súbito:
– Quem és tu? E o que faço aqui nesta tenda?
Ela sorriu, indagando-me:
– E quanto a ti, estranho, que fizeste para ter sido tão açoitado assim?
Eu lhe respondi:
– Não é preciso fazer nada aos homens para que eles agridam, pois são como
escorpiões: o seu ódio semeia a dor; está em sua natureza. Eu acredito que só o tempo
poderá transformá-los. Quanto a mim, sou apenas um viajante procurando uma caravana,
para entregar algo que me foi confiado, e poder selar parte do meu destino.
Então ela tomou uma de minhas mãos, falando-me:
– O meu destino é ver o destino de outros. Deixe-me ver o mapa das linhas de tuas
mãos.
Enquanto segurava as minhas mãos, ela começou a tremer, dizendo:
– Eu vejo fogueiras e chamas; também vejo muitas perseguições e vejo mais...
Inclinando sua face inundada de lágrimas, ela olhou para mim, questionando:
– Dize-me quem tu és. E por que o meu destino está junto ao teu?
– Engana-te, mulher. Meu destino não está ligado a ninguém; só à minha missão.
Ao dizer isso, levantei-me apressadamente e apanhei o meu alforje que estava ao meu
lado. Ela também levantou-se. Naquele momento, toquei em sua face, enxuguei-lhe as
lágrimas dizendo-lhe que tinha de partir, pois os caminhos da minha vida já estavam
traçados, quando entrou alguém em total desespero, dizendo:
– Zanir, ajuda-me! Vem comigo, pois minha mãe está morrendo.
Ela saiu acompanhando o rapaz apressadamente. Eu os segui.
Ao sair do interior daquela tenda, percebi que estava em meio a um grande
acampamento, onde inúmeras pessoas demonstravam temor em suas faces.
Percebendo o desaparecimento de Zanir no meio do povo, comecei a procurá-la,
quando me deparei com uma mulher caída ao chão, cercada de muitas pessoas tentando
reanimá-la. Ao aproximar-me, vi Zanir tomar a mulher em seus braços. Ajoelhei-me perto
dela e pedi-lhe que a colocasse nos meus. Com olhares tensos, Zanir fitava-me. Já
segurando aquela mulher, pedi a Zanir que me trouxesse um pouco de água e logo alguém
me trouxe em um odre. Tomei-o em uma das mãos, ergui-o aos céus, em seguida molhei a
face da mulher enferma. Logo, ela começou a tossir despertando aos poucos. Ao terminar
de molhar todo o seu corpo, ela despertou completamente. Olhando-a nos olhos, disse-lhe:
– Quando o sol secar a água com que molhei a tua face e o teu corpo, tu estarás
curada.
Então, peguei em suas mãos e ajudei-a a levantar-se. Chorando, ela me agradeceu. Eu
a deixei, caminhando entre os olhares do povo que murmurava entre si, espantado com o
que havia presenciado. Zanir aproximou-se de mim, falando:
– Não te vás. Sou a vidente deste povo; eles precisam de mim e eu preciso conhecer o
teu dom de curar. Ensina-me!
– O dom não pertence a mim, mas à Vida. Esta é a ciência que um dia todos
dominarão.
– Fala-me deste raro conhecimento.
– Esta é a ciência da Alma... A renúncia de si mesmo é o caminho que leva ao seu
domínio.
– Por favor, peço-te que não vás, ensina-me a dominar este precioso dom e ajudar-te-
ei a ver o futuro, a prever as pragas que virão no amanhã.
– O futuro é como uma colheita. É preciso saber plantar agora, para colher amanhã. E
o meu amanhã está traçado na minha missão.
– Também se encontra traçado nos astros – ela fala. – E a caravana que tu buscas está
com o caminho entrelaçado com o do meu povo. Fica e a encontrarás.
Ela tomou as minhas mãos e eu, sem palavras, fiquei a olhá-la.
Passaram-se dias, semanas, meses... E eu aprendi os costumes e os hábitos daquele
povo que defendia uma única pátria: a Liberdade. Eram fugitivos das cercas que os
impediam de serem cidadãos de um só país e de uma só nação – buscadores que têm como
único destino serem totalmente livres. Igualmente, tornei-me um fugitivo condenado por
amar e por ter a liberdade como única razão na vida. A liberdade que tem tantas faces e
tantas expressões! O dia-a-dia com Zanir ensinou-me a ver a liberdade com a face da
simplicidade. Enquanto isso, eu lhe mostrava a beleza de ser livre, profundamente livre na
meditação. Com simplicidade, em um dia, ela me falou:
– Vem que te mostrarei as borboletas, pois nos campos, elas mostram o que é ser
realmente livre. Tu verás as cores com as quais o Universo pintou nas suas asas, sem
pincel, confundindo a imaginação dos artistas e inspirando poetas. E elas ainda voam! É o
universo falando da liberdade sem usar palavras.
Naquele momento, ela puxou-me pelo braço, apontou para o céu e disse:
– Vê os pássaros. Não sei quem são mais livres: eles ou os astros. Os astros me falam
do amanhã e no amanhã eu buscarei a liberdade. A coreografia do vôo dos pássaros me diz
que no amanhã poderemos voar. Eu imagino um dia poder tocar o céu e lá plantar uma
semente; uma semente de vida. E ser livre, subestimando até mesmo a imensidão.
Mais uma noite estava por vir como tantas outras que passei com aquele povo e,
enquanto retornávamos ao acampamento, Zanir me falava de quão especial seria aquela
noite:
– Hoje, a noite tentará cobrir a nudez da lua, na tentativa de ofuscar o seu corpo de
luz. O nosso povo irá cantar e dançar diante da fogueira para que nossos ritmos e o entoar
dos nossos cantos emanem expressão de liberdade para a Senhora da noite.
Surpreso, questionei-a na tentativa de encontrar esclarecimento para os preparativos
daqueles ritos tão enigmáticos. Logo, ela passou a explicar-me:
– Existe uma tradição herdada de nossos antepassados e que se tornou uma de nossas
crenças mais populares: nós não devemos deixar que a liberdade seja ofuscada, pois se um
dia um dos elementos da natureza perder a sua expressão de liberdade, todo o nosso povo
passará a viver em vão e não mais guardará o tesouro da liberdade, mas será escravo
simplesmente, sem nenhuma razão.
Naquele instante, segurei em seus braços, olhando dentro de seus olhos, como se eu
estivesse vendo toda a sua alma, dizendo-lhe:
– Toda esta crença é um labirinto e você se encontra em meio aos seus corredores.
Assustada, ela perguntou-me:
– Qual é a razão do labirinto?
– A razão é a de nos aprisionar e nos confundir.
– Não, a razão do labirinto é desafiar-nos a encontrar uma saída. Não notas que
estamos presos num labirinto e que adentramos o seu interior, assim que nos conhecemos?
E também não percebes que precisamos encontrar uma saída no labirinto de nós mesmos?
Não sentes que a razão maior do meu destino era a de cruzar com o teu, para vivermos com
liberdade o amor que Deus nos doou, mas que os homens, com suas leis, condenam e
chamam de pecado?
– Os meus caminhos não são iguais aos teus caminhos. Tu não entendes Zanir?
Voltando a face para mim, ela falou:
– Eu só entendo que somos semelhantes e que nossa busca é a liberdade.
Sem palavras, soltei os seus braços e ela seguiu caminhando em minha frente. Após
algum tempo, ela parou e virou-se falando com o olhar carregado de sentimento:
– Quando a noite tiver caído sobre nós, estarei te esperando ao lado da luz da
fogueira.
Após dizer isto, ela seguiu, deixando-me só com os meus conflitos, pois dentro de
mim uma razão me condenava enquanto a outra me excitava a querer viver a sua liberdade.
A noite se curvou sobre a terra, e ao chegar ao acampamento, percebi que aquele povo
estava preparando-se para dar início a uma festividade. Enquanto isso, dirigi-me até a tenda
e a adentrei, à procura de Zanir, mas não a encontrei. Apanhei uma fruta num cesto e saí
comendo enquanto a procurava. A noite já estava em seu ponto máximo, quando olhei para
o céu, vi a lua sendo tomada por um eclipse. Naquele instante, procurei compreender o
porquê das palavras enigmáticas de Zanir; percebi que ela se referia simplesmente a um
eclipse.
Por alguns minutos, fiquei a observar aquele fenômeno celeste e me perdi nas
palavras de Zanir falando-me da liberdade, tomando por empréstimo a inspiração daquele
fenômeno da lua que, por horas, levou-me a pensar: se não fossemos livres, que razão
haveria para querermos continuar pela espera do amanhã?
Continuei a procurá-la em meio ao povo. Chegando ao centro do acampamento
deparei-me com uma fogueira cujas chamas criavam uma coreografia de luz. À sua volta, o
povo dançava, tocava e cantava. O entoar dos cânticos deixava a todos hipnotizados
naquele ritmo que parecia até mesmo afetar a lua.
Ao ver Zanir, movimentando todo seu corpo, numa sedutora coreografia, atraiu a
minha atenção a ponto de sentir-me hipnotizado. Então ela veio em minha direção e,
quando me dei conta, já estava ao seu lado. Em meio àquele ritmo, ela pegou minhas mãos
e, com gestos, convidou-me a compartilhar dos seus movimentos ritmados, deixando-me
envolvido pela sua energia e expressão. Logo, eu estava bailando, segurando o seu corpo e
seguindo seu ritmo. Neste momento, não sabia se dançava ou se voava ao seu lado. Só sei
que estava com ela e nela eu via a liberdade ganhar forma, subestimando o tempo.
De repente, os ritmos pararam, todos ficaram em silêncio e ergueram suas faces para
o céu em direção à lua, que já estava livre, na sua nudez total. E, em meio àquele silêncio,
um ancião daquele povo ergueu a voz, dizendo:
– Enquanto um de nós for livre, dançará e cantará pela liberdade.
E todos gritaram:
– Liberdade! Liberdade!
Aos poucos, aquele povo começou a se afastar da fogueira. Zanir buscou-me,
convidando-me para fora do acampamento. Então, começamos a caminhar entre as árvores,
sem conseguirmos soltar as mãos e sem termos coragem para dizer uma só palavra. Depois
de algum tempo, Zanir arriscou-se a falar com voz trêmula:
– O que tu sentiste?
– Senti algo muito forte que ainda está em mim.
Sem percebermos, esbarramo-nos num tronco de árvore. Ela ia caindo quando
apressei-me na tentativa de segurá-la e acabamos por tombar ao chão. Em meio aos risos,
percebemos que os nossos lábios estavam muito próximos. Logo, surgiu um silêncio entre
nós, levando nossos olhos a se fitarem. Sem conseguirmos evitar, nossos lábios tocaram-se
num ardente beijo, em seguida me afastei um pouco e pedi-lhe perdão, pois não era minha
intenção. Ela respondeu-me:
– Eu não te perdoaria, se não me tivesses beijado.
Confuso, eu lhe disse:
– Vejo em ti caminhos que eu nunca trilhei.
– Tu vês trevas nesse caminho?
– Não! Não vejo trevas nesse caminho. Vejo trevas em trilhar por esse caminho e ter
que te deixar.
Ela se aproximou de mim olhando com ternura em meus olhos. Toquei em sua face,
falando-lhe:
– Zanir, o fogo de teus olhos me consome. Pulsa em meu Ser a lei de minha renúncia
que se confronta com a lei desta liberdade, fazendo vibrar o meu corpo quando estou diante
de ti.
– Por que tu te negas? Não vês que estás negando a mim e à nossa continuação?
– Deixar uma continuação de mim não está em minha missão de vida. Pois eu, Zanir,
enclausurei-me num mosteiro e só saí por uma única razão: a de pregar o amor e a paz.
– E o que estamos pregando aqui senão o amor? Pois te digo: esse amor só irá
continuar no Ser que der continuidade ao nosso amanhã, pregando a continuação da
profundidade de tua filosofia de vida e vivendo a simplicidade de minha liberdade. Este Ser
terá capacidade de até ver o futuro.
Afastei-me um pouco, ficando de costas para ela, que veio em minha direção
colocando uma das mãos em meu ombro, quando lhe falei:
– Zanir, os meus sonhos estão além dos meus desejos e do meu amor. A minha
missão está além do meu querer.
Foi quando ela me interrompeu, dizendo:
– Mas o amor maior tu só conhecerás quando conheceres o amor dos mortais. Deixa
que a lei que está além de todas – a lei da vida – nos conduza, pois, só assim, todas as leis
conspirarão para vivermos o que está em nosso ser, queimando as nossas almas: o amor.
Por alguns momentos ficamos em silêncio. Só prevalecia o som natural da floresta,
onde animais noturnos cultuavam a noite. Logo, as palavras forçaram-me a quebrar o
silêncio que estava entre nós:
– Zanir, em toda a minha vida fui preparado para renunciar às minhas ansiedades e
aos meus desejos, pois o corpo é o templo dos desejos, sendo a dor a realidade última.
Ao ouvir isto, Zanir afastou-se de mim e virou-se falando:
– Esta vida é para os fortes. Só consegue ser livre quem vai além de seus limites. É lá
que está a liberdade. Quanto a dor, sabe que é efeito da causa: a Vida. E tu sabes que a
nossa busca é superá-la.
Aproximei-me dela, coloquei as mãos sobre seus ombros e fitamo-nos com olhares
tensos, quando eu lhe falei:
– Compreenda-me! Preciso ficar só.
Logo a deixei, caminhando pela floresta, tentando achar algum sentido no conflito
que estava dentro de mim. As palavras de Zanir ecoavam em meu ser, quebrando o silêncio
da clausura de minha missão. As árvores, os arbustos, o vento e todos os elementos da
floresta pareciam falar a mesma linguagem de Zanir. Até mesmo a liberdade do morcego
não parecia ser mais tão livre diante da cobrança de liberdade sem limites. Naquele
momento, caí de joelhos curvando-me, buscando na meditação uma resposta. Mas, o
silêncio parecia querer devorar-me. Levantei-me e comecei a caminhar em direção ao rio,
pois precisava molhar a minha face. Ao chegar à margem, abaixei-me entre as pedras e
passei a me molhar. Ao erguer a cabeça, deparei-me com algo que congelou todo o meu
ser, estremecendo o meu corpo. A lua, naquele instante, parecia conspirar com a noite,
criando com sua luz um véu dourado sobre aquelas águas. A nudez do corpo de Zanir se
misturou com a cor dourada da lua, deixando-me perplexo, sem palavras. Então, ela ergueu
as mãos para o alto, convidando-me:
– Vem, pois as águas, sem nenhuma palavra, molham o meu corpo, falando-me de
liberdade. O vento, mestre da liberdade, sopra em meus ouvidos, acariciando o meu corpo e
dizendo que somos livres.
O céu e a imensidão da noite nos mostravam que tudo passa, pois tudo é a eternidade.
Zanir estirou os braços para mim, dizendo:
– Vem! Para que neste momento possamos conhecer a eternidade.
E sem pronunciar uma palavra, comecei a caminhar para dentro do rio. Era uma força
desconhecida conduzindo-me a té Zanir. Seu corpo nu, todo dourado, fazia pulsar dentro de
mim a vida, encontrando no seu corpo uma razão para a vida que eu desconhecia. Nossos
corpos se encontraram. Entregamo-nos em um sentimento e desejo que nos tornou apenas
um. E sem limites, nos sentimos livres... Depois, deitamos na relva da margem do rio, onde
ficamos a contemplar a lua. Entre tantas coisas que conversamos, Zanir me questionou:
– Por que os monges se enclausuram?
Eu lhe respondi:
– Existe uma lenda sobre uma civilização que evoluiu em todos os sentidos e em
todas as áreas. Eles dominavam todas as coisas à sua volta. Não precisavam mais do som
das palavras para se comunicarem, pois usavam a mente, por meio de telepatia, mas eles
não conseguiram dominar a ansiedade dos seus desejos por suas companheiras. Achavam
que os seus desejos lhes impediam de atingir o cume de sua evolução. Resolveram, em um
conselho, superar-se, esvaziando-se dos seus desejos. Então, entregaram-se às suas
mulheres em dias e noites a fio para tentar saciar as suas carências sexuais. Muitos não
suportaram, esvaziaram-se e morreram. Os que sobreviveram, descobriram que tudo na
matéria é dor. E até mesmo o prazer do orgasmo arrebenta dentro de nós uma dor sutil e
viciosa, que tem como uma única razão: a continuação de nossa espécie. Eles se dividiram,
construíram mosteiros e se enclausuraram para tentar superar seus desejos, e assim
encontrar o verdadeiro prazer: o prazer da alma. Estava próximo o amanhecer, quando
Zanir e eu retornamos ao acampamento, aproveitando a claridade dos primeiros raios de um
novo dia. Percorremos todo aquele caminho de mãos dadas, entrelaçadas por uma força que
nos unia, testificando que a profundidade da liberdade está na simplicidade de ser livre,
deixando-me cativo e responsável por este sentimento que faz de nós, metades opostas,
tornar-nos uma unidade.
Ao chegarmos ao acampamento, deparamo-nos com a caravana que havia chegado
recentemente, e todos ali se preparavam para levantar acampamento. Notei que Zanir tinha
certa familiaridade com os recém-chegados, pois todos eles a abraçavam, cumprimentando-
a. Logo, ela me apresentou a todos. Um ancião de insólita aparência aproximou-se,
chamando minha atenção. Ele pegou em uma de minhas mãos, olhou-me profundamente
nos olhos e falou-me:
– Luz!
E eu lhe respondi:
– Há muita luz!
Enquanto isso, Zanir, tensa, nos observava. Ainda segurando a minha mão, o ancião
continuou:
– Em uma noite fria, enquanto dormia nas estradas, eu tive um sonho que encontraria
um homem com uma grande missão, e o sentido maior de sua missão seria entregue em
minhas mãos. E eu o reconheceria pelo brilho e pelo mistério que haveria nos seus olhos.
Então, eu o questionei:
– Onde o teu destino te levará?
– Até a Índia, onde serei preparado e lapidado como ouro que vai ao fogo para ser
refinado. E lá serei iniciado. Agora, convido-te a acompanhar-me até a tenda de Zanir.
Já no interior daquela tenda, enquanto Zanir nos servia frutas e vinho fresco, apanhei
o alforje que estava guardado no meio de suas tecelagens. Após algum tempo, em meio ao
degustar daquele raro vinho, o ancião começou a me contar a sua história; falou-me de seus
difíceis momentos e de suas alegrias, passando-nos força e sabedoria. Logo, eu também lhe
relatei todos os acontecimentos passados que me trouxeram até aquele exato momento.
Apanhando os manuscritos de dentro do meu alforje, entreguei-os aos seus cuidados,
enquanto ele me falava:
– Eu os protegerei como à minha própria vida.
– Tu sabes, no futuro, a fome e a sede de ouvir uma palavra que cure a alma serão
muito grandes. E esses manuscritos serão como bálsamo para úlceras da alma da
humanidade, e em tuas mãos confio esta missão.
Então, ele fitou-me com o olhar tenso, levantou-se e abraçou-me, falando com voz
trêmula, tomada por forte emoção: – A Luz não deixará que se apaguem as trilhas dos
passos daqueles que doaram as suas próprias vidas, para que a Luz da semente da sabedoria
alimentasse os sábios, que são e serão pontos de luz no amanhã. Naquele momento, alguém
gritou alertando que a caravana estava partindo. Ele abraçou Zanir, enquanto falava:
– Filha, nas linhas das mãos do destino há transformações e muitos vezes não
conseguimos perceber. Só te peço para tomares cuidado, pois nos caminhos por onde passei
havia rumores de que os inquisidores vinham para estas terras trazendo o fogo como
condenação.
Ela respondeu:
– Não te preocupes, pois amanhã partiremos para um lugar seguro.
Dizendo-lhe isso, Zanir o acompanhou até a caravana para despedir-se de seu povo
que já estava partindo. Enquanto isso, apanhei minhas vestes de monge. Foi quando meus
pensamentos levaram-me ao passado, deixando-me ver as trilhas daqueles que lutaram por
esta mesma missão: a missão de servir. Naquele instante, Zanir retornou à tenda e
encontrando-me com as vestes nas mãos, questionou-me:
– Tu ainda a vestirás ou deixarás de ser monge?
Eu lhe respondi:
– O monge nunca deixa de ser monge.
Estirei-lhe os braços, falando:
– Entrego estas vestes em tuas mãos. Nelas está registrada toda a minha vida e só a
você eu posso confiá-las. Pois minha alma despiu-se e, desnuda, vestiu-se com a tua
liberdade.
Zanir recebeu das minhas mãos aquelas vestes e curvou a cabeça com os olhos
úmidos de lágrimas. Eu me aproximei dela e a abracei. Os seus olhos envolveram-me,
dizendo:
– Vem comigo ao povoado mais próximo. Lá, nós venderemos tapetes e tecelagens ou
os trocaremos por alimentos, pois teremos que fazer uma longa viagem para outras terras.
Enquanto Zanir arrumava os tapetes e as tecelagens, fui pegar os cavalos e preparar a
carruagem. Arrumamos tudo e logo partimos. Fizemos longa viagem. No caminho,
contemplávamos a floresta e suas grandes árvores. Surpreendíamo-nos com cada animal,
cada pássaro que cruzava o nosso caminho. Em alguns momentos, Zanir me olhava com
brilho intenso nos olhos. Tudo mostrava ter uma grande unidade: Zanir, a floresta, os
pássaros e a sutileza de cada momento com que a vida nos presenteava. E eu estava ali,
conhecendo uma parte da vida que eu sabia que existia, mas que nunca tinha vivido.
Logo, lembrei-me das palavras do mestre Cefas, quando disse que, um dia, conheceria
a outra metade de mim. Também lembrei-me, com pesar, de quando ele me falou que eu
sentiria a dor da separação de mim mesmo. Os olhos de Zanir e a sua força faziam com que
estivéssemos tão próximos, a ponto de não acreditar e não aceitar que algo nesta vida
pudesse separar-nos.
Após árdua caminhada,percebemos estar chegando a um povoado e seguimos em
direção à feira. Ao chegar, começamos a retirar os tapetes e as tecelagens chamando a
atenção de todos que, por ali, circulavam. Zanir pegou algumas peças e dirigiu-se a outras
barracas oferecendo-as em troca de frutos. E eu falava com voz alta, chamando a atenção
daqueles que trafegavam, para comprar os tapetes e as tecelagens. As pessoas começaram a
comprar e a trocar por frutas, roupas, peças de couro e provisões necessárias para o nosso
sustento. E em meio àquela multidão que nos cercava, aproximou-se de mim uma garota
aparentando ter, aproximadamente, sete anos de idade, cujos olhos eram negros como a
noite e com um sorriso que chamou a minha atenção. Eu a convidei a aproximar-se e ela
veio até mim. Abaixei-me um pouco, perguntando-lhe:
– Aceitas uma fruta?
Ela balançou a cabeça com sinal afirmativo. Eu a tomei no colo e a levei até a
carruagem. Enquanto ela comia a fruta, perguntei-lhe o seu nome:
– Meu nome é Luz da Manhã, pois nasci nos primeiros raios da luz do dia.
Então eu lhe disse:
– Tu és tão bela quanto o teu nome.
Ela sorriu. Enquanto isso, eu vendia tapetes e tecelagens. Gesticulando com uma das
mãos, Luz da Manhã pediu que eu me agachasse, quando ela me falou, baixinho:
– Ontem à noite eu tive um sonho. Eu não quero contar a mais ninguém, só a você.
Sorrindo, falei-lhe:
– Então, conta-me!
– Sonhei que eu estava em uma floresta e vi uma rosa azul. Ela era a mais bela de
todas as rosas daquela floresta. Mas a floresta foi invadida por alguns homens maus e eles
com suas espadas, golpearam a rosa, cortando o seu talo e ela tombou ao solo, sem vida. O
homem que cuidava dela correu em sua direção e a apanhou do chão, chorando, pois aquela
rosa era a única razão de sua vida. Os homens maus o pegaram e o lançaram ao fogo. Ele
morreu. Então houve uma grande tristeza na floresta. Tudo que era livre ficou triste, porque
aquela rosa azul simbolizava a liberdade.
Quando ela terminou de contar o sonho, escorriam lágrimas de seus olhos. Ela me
pediu para não contar a ninguém. Naquele momento, surgiu uma mulher, chamando-a:
– Luz, onde estás? O que fazes nessa carroça de estranhos? – ela respondeu:
– Não são estranhos, mamãe; são meus amigos. O moço me deu frutas e eu lhe contei
o meu sonho.
A mulher a apanhou, dizendo-lhe:
– Não contes teus sonhos a ninguém, filha!
Agradeceu-me pela fruta, e logo mãe e filha somem em meio do povo. Eu tentei
pará-las, mas não me derão atenção. Tomado de pavor e assustado com o sonho contado
pela garota, saí no meio da multidão à procura de Zanir e logo a encontrei, lendo a mão de
uma mulher. Peguei-a pelo braço, dizendo-lhe:
– Por favor, vem comigo!
– Espera um pouco. Não vês que estou olhando o futuro desta senhora?
Eu insisti:
– Vem comigo, agora, pois é justamente sobre o futuro que quero te falar.
Eu a puxei pelo braço, mas a mulher, a qual ela estava lendo a mão, segurou-a e
pediu-lhe para falar sobre o amanhã. E antes de Zanir lhe dizer algo, eu lhe falei:
– O amanhã será devorado pelas ansiedades do agora!
Saí com Zanir em direção à carruagem. Apanhamos os restantes tapetes e tecelagens,
os mantimentos que havíamos trocado, e retornamos com a carruagem de volta ao
acampamento.
No meio do caminho, Zanir, com o olhar e a voz demonstrando aflição, questionou-
me querendo saber o porquê de tanta pressa, o que estava acontecendo. Então passei a
contar-lhe sobre a garota e sobre o seu sonho. Ela me pediu para parar a carruagem. Tomou
uma das minhas mãos, juntou com as suas e ficou a olhar as linhas das palmas de nossas
mãos. Não conseguindo conter-se, ela começou a chorar, dizendo que aquilo não poderia
acontecer. Com desespero no olhar, falou-me:
– Efraim, não deixes que isso aconteça!
Sem conseguir mais conter-me, eu a abracei e, chorando, disse-lhe:
– Não tenhas medo, pois não vou deixar que nada nos separe; nem a vida e nem
mesmo a morte irão separar-nos.
Seguimos viagem pela estrada. O vento batia em nossos rostos secando as lágrimas de
nossas faces que insistiam em escorrer. Ao chegarmos ao acampamento, começamos a
desarmar a tenda e Zanir se deu conta de que as minhas vestes de monge haviam sumido.
Procuramos na barraca, mas não a encontramos. Ela percebeu que seus aparatos de
astrologia também haviam desaparecido. Desesperados, saímos da tenda e quando
erguemos nossas cabeças, estavam à nossa frente alguns homens montados a cavalo. Um
deles tinha as minhas vestes de monge, atravessadas em sua lança; outro jogou aos nossos
pés os aparatos de astrologia de Zanir. Eu peguei firmemente numa das mãos de Zanir,
puxei-a e saímos correndo pela floresta. Atrás de nós, vinham os cavaleiros em seus cavalos
que galopavam com fúria. Zanir chorava. Eu já não temia mais pela minha vida e sim pela
dela. Em meio a essa fuga desesperada, senti Zanir tombar ao chão, golpeada pela frieza do
cavaleiro que se aproximava. Caí sobre Zanir, abraçando-a. Em meio aos gritos, saíram
palavras desesperadas de meu peito:
– Não vás! Não morras!
Ainda restando-lhe algumas forças, ela colocou as mãos em minha face e falou-me
com a voz trêmula e baixa:
– O aço que rompe a minha vida e cala a minha voz não impedirá o amanhã, pois o
amanhã pertence à liberdade e eu estarei contigo.
Após pronunciar tais palavras, sua face curvou-se sobre o seu corpo. Eu a apertei em
meu peito, não acreditando no que estava acontecendo. De repente, senti duas cordas, uma
entrelaçou o meu pescoço e outra, o meio do corpo. Fui puxado pela agressividade dos
cavalos em meio a pedras, árvores e arbustos daquela floresta. Tocos de árvores rasgaram a
minha boca, pedras cortaram a minha pele. Subitamente, os cavaleiros pararam os seus
cavalos e um deles se aproximou com uma tocha em uma das mãos. Um outro ergueu a
minha cabeça, puxando-me pelos cabelos. E a tocha fora trazida até a minha face com uma
chama flamejante sobre os meus olhos. Quando eles começaram a queimá-la, perdi a
consciência e comecei a seguir a luz de um fogo que me guiava no tempo e espaço,
levando-me a percorrer uma trajetória entre o sonho e a realidade. Despertei-me numa
caverna, olhando para uma tocha que estava na parede. Quando tentei levantar-me
desesperadamente, um homem que estava ao meu lado, falou-me:
– Calma, filho! Tu estás de volta à realidade.
Depois de algum tempo, tomei consciência de que havia feito uma viagem no tempo.
Capítulo VI
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