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O cotidiano de trabalho do agente comunitário


de saúde no PSF em Porto Alegre

Daily activities by community health workers


in the Family Health Program in Porto Alegre, Brazil

Lucimare Ferraz 1
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts 2

Abstract This research aimed to study the daily Resumo Esta pesquisa teve como objetivo estu-
work of the communitarian health agent (CHA) dar o cotidiano de trabalho do agente comunitá-
in the Family Health Program (FHP) of Porto rio de saúde (ACS) no Programa Saúde da Famí-
Alegre. The outline used was the series of cases, lia (PSF) de Porto Alegre. O delineamento utili-
being the population under studies composed by zado foi o de série de casos, sendo a população em
114 CHAs and 46 FHP professionals of the teams. estudo 114 ACS e 46 profissionais das equipes do
The teams that had participated in this stage of PSF. As equipes que participaram dessa etapa da
the research had been selected in a stratified sam- pesquisa foram selecionadas em uma amostra-
pling of about 50% of the services of the FHP in gem estratificada de cerca de 50% dos serviços do
each Sanitary District of Porto Alegre. The data PSF presentes em cada Distrito Sanitário de Por-
collecting happened through half-structuralized to Alegre. Para a obtenção dos dados foram utili-
questionnaires and the technique of the focal zados questionários semi-estruturados e a técnica
group. The main activity of the communitarian do grupo focal. A principal atividade do agente
health agent is the home visit, mentioned by 2/3 comunitário de saúde é a visita domiciliar, desta-
of the professionals. The health education is the cada por 2/3 dos profissionais. A educação em
second most developed one done by agents. An- saúde é a segunda mais desenvolvida pelos agen-
other activity of the agent is the support work to tes. Outra atividade do agente é o trabalho de
the teams, assisting in the reception of patients, apoio às equipes, auxiliando na recepção de pa-
handbook searches; phoning and organization ciente, busca de prontuários; telefonia e organiza-
and control of the warehouse. Despite of being the ção e controle do almoxarifado. Apesar de a visita
communitarian agent’s main activity, the home domiciliar ser a principal atividade do agente co-
1 Centro de Ciências da visits weren’t carried through with total effective- munitário, a pesquisa revela que esta não é reali-
Saúde, UNOChapecó. ness, once part of its time is dedicated to the ad- zada com total efetividade, uma vez que parte de
Av. Senador Atílio Fontana
591-E, Bloco G, ministrative activities – not fitting, then, with its seu tempo é dedicada a atividades administrati-
89809-000, Chapecó SC. role. Moreover, the schedule designed for the visits vas o que descaracteriza sua função. Além disso, o
lferraz@unochapeco.edu.br is not adjusted to the local reality. The study horário destinado para as visitas não está ade-
2 Programa de
Pós-Graduação em Saúde shows strategies to maximize the agent’s work po- quado à realidade local. O estudo aponta estraté-
Coletiva, ULBRA. tential in the FHP in Porto Alegre. gias para potencializar o trabalho do agente no
Equipe de Informação, Key words Communitarian Health Agent, Fam- PSF em Porto Alegre.
Coordenadoria Geral
de Vigilância em Saúde, ily Health Program, Daily activities Palavras-chave Agente Comunitário, Programa
SMS-POA-RS. Saúde da Família, Cotidiano de trabalho
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Introdução cerca de 77% da população brasileira (Brasil,


2004).
O agente comunitário de saúde (ACS) é um Considerando esse vertiginoso crescimento
trabalhador que atua em dois importantes pro- do Programa Saúde da Família, foi desenvolvi-
gramas do Ministério da Saúde: o Programa da a presente pesquisa, com objetivo de investi-
Agente Comunitário de Saúde (PACS) e o Pro- gar o cotidiano de trabalho do agente comuni-
grama Saúde da Família (PSF). Atualmente, es- tário de saúde na cidade de Porto Alegre. Acre-
ses programas consolidam-se no contexto da dita-se ser importante conhecer como se pro-
municipalização e descentralização das ações cessa seu universo de trabalho de forma a sub-
de atenção primária à saúde no Brasil. sidiar políticas públicas de saúde e estratégias
Para o Ministério da Saúde, o agente comu- que potencializem as ações desse trabalhador,
nitário de saúde é um trabalhador que faz par- gerando um impacto positivo na saúde da po-
te da equipe de saúde da comunidade onde pulação.
mora. É uma pessoa preparada para orientar
famílias sobre cuidados com sua própria saúde
e também com a saúde da comunidade (Brasil, Metodologia
1999). Sem dúvida, esse trabalhador apresenta
características especiais, uma vez que atua na O estudo foi desenvolvido em 29 unidades do
mesma comunidade onde vive, tornando mais PSF de Porto Alegre, no período entre julho e
forte a relação entre trabalho e vida social. dezembro de 2000. O delineamento utilizado
Na América Latina, a inserção dos agentes foi o de série de casos, composta por dois gru-
nos serviços de saúde ganhou impulso nos úl- pos: 1) todos os ACS do PSF, totalizando 114
timos anos, quando Ministérios da Saúde da sujeitos; e 2) três integrantes (um médico, um
América do Sul receberam apoio financeiro de enfermeiro e um auxiliar de enfermagem) de
agências internacionais para que começassem a cada uma das 16 equipes de saúde sorteadas,
capacitar e utilizar esses trabalhadores. Outro totalizando 46 sujeitos. Essas 16 equipes foram
fator que contribuiu para sua inserção nos ser- selecionadas por amostragem estratificada de
viços de saúde foi que médicos e enfermeiros, cerca de 50% dos serviços do PSF presentes em
além de serem profissionais caros para o siste- cada um dos 11 Distritos Sanitários do muni-
ma, não se dispunham a trabalhar nas perife- cípio.
rias e zonas rurais, sendo que um agente bem Para a obtenção dos dados, foram utiliza-
preparado poderia desenvolver cuidados bási- dos questionários semi-estruturados com per-
cos em saúde (Corrêa, 1995). guntas abertas e fechadas. As entrevistas com
No Brasil, desde 1943, o Ministério da Saú- os agentes foram realizadas nas unidades de
de, através da Fundação de Serviço Especial de saúde, onde também foram entregues os ques-
Saúde Pública (SESP), passou a formar pessoal tionários auto-aplicáveis aos profissionais par-
auxiliar com o objetivo de ampliar as ativida- ticipantes do estudo.
des das unidades de saúde para áreas desassis- Além dessa etapa individual de coleta dos
tidas. Esses eram conhecidos como visitadores dados, foi realizado um grupo focal, utilizan-
sanitários, guardas da malária e auxiliares de do-se um roteiro com os temas selecionados.
saneamento (Bastos, 1966). Fizeram parte do grupo focal 11 agentes sele-
Mais recentemente, evidencia-se um au- cionados, um moderador e um redator.
mento importante do número de agentes co- O tratamento dos dados de natureza quali-
munitários vinculados ao programa PSF que tativa foi feito por meio de Análise de Conteú-
tem contribuído para uma profunda mudan- do Temática que permitiu a identificação das
ça no conceito de cuidados de saúde no País. categorias. Para a análise quantitativa, foi utili-
Aproximadamente um quinto da população zada a estatística descritiva com distribuição
brasileira está em contato com as equipes de absoluta e relativa das respostas nas categorias
saúde do PSF (Unicef, 2001). Existem, atual- investigadas.
mente, 17.608 equipes do Programa atuando O projeto de pesquisa foi submetido ao Co-
em cerca de quatro mil municípios brasileiros, mitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Muni-
assistindo em torno de 57 milhões pessoas. A cipal de Saúde de Porto Alegre. Os participan-
meta do governo federal é de que, até o ano de tes do estudo foram orientados em relação aos
2006, estejam atuando 32 mil equipes no aten- objetivos e procedimentos da pesquisa, tendo
dimento de 100 milhões de pessoas, ou seja, assinado o termo de consentimento livre e es-
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clarecido. Esta pesquisa atendeu a todas as ori- Tabela 1


entações da Resolução 196/96 do Conselho Na- Distribuição dos agentes comunitários de saúde segundo suas
cional de Saúde. características sociodemográficas, Porto Alegre, RS, 2000.
Variáveis n %

Resultados Sexo
feminino 101 88,6
masculino 13 11,4
O Programa Saúde da Família de Porto Alegre,
no momento da coleta de dados, contava com Faixa Etária (anos)
114 agentes comunitários de saúde, em sua 19 a 29 26 22,8
maioria mulheres, na faixa etária entre 30 e 49 30 a 39 38 33,3
anos (71%), possuindo entre 9 e 11 anos de es- 40 a 49 43 37,7
50 a 59 6 5,3
tudo, católicos, que viviam com companheiro,
>60 1 0,9
tinham um ou dois filhos e uma renda per ca-
pita entre 1,0 e 1,9 salários mínimos (Tabela 1). Escolaridade (anos)
Em relação ao tempo de moradia na região, <4 4 3,5
cerca de 73% eram moradores há mais de 10 5a8 51 44,7
anos na comunidade em que trabalham, sendo 9 a 11 57 50,0
> 12 2 1,8
que o tempo de permanência no PSF também
era alto, apresentando baixa rotatividade no Religião
programa: 64,8% trabalhavam há mais de três católica 84 73,7
anos e somente 8,8% não haviam completado espírita 11 9,6
um ano de trabalho (Tabela 2). evangélica 6 5,3
O agente comunitário de saúde desenvolve protestante 1 0,9
outras 3 2,6
várias atividades no Programa Saúde da Famí-
não tem religião 9 7,9
lia em Porto Alegre (Tabela 3).
A principal atividade é a visita domiciliar, Companheiro
seguida da educação em saúde. De acordo com sim 76 66,7
os agentes, nas atividades educativas, as orien- não 38 33,3
tações que mais costumam prestar às famílias Filhos (número)
referem-se à higiene; ao calendário vacinal; aos não tem 15 13,1
cuidados com recém-nascidos, puérperas, ges- 1 24 21,1
tantes; e uso correto das medicações. 2 33 28,9
Outra atividade bastante destacada pelos 3 23 20,2
profissionais das equipes foi o acompanhamen- >4 19 16,7
to de idosos, crianças, gestantes, puérperas e Renda per capita (sm*)
grupos de risco. Alguns profissionais (21,7%) < 1,0 16 14,0
relataram que os agentes também interagem 1,0 a 1,9 53 46,5
com a equipe na formação de grupos dos pro- 2,0 a 2,9 24 21,0
gramas de saúde. Para 19,6% dos profissionais 3,0 a 3,9 13 11,4
das equipes de saúde, o agente participa no 4,0 a 4,9 2 1,8
controle vacinal e no cadastramento das famí- > 5,0 6 5,3
lias da comunidade. A busca ativa de faltosos Total 114 100,0
acompanhados pelos programas também foi
* Salário mínimo federal.
citada por 15,2% dos profissionais como ati-
vidade importante desenvolvida pelos agentes
do PSF.
Um dado interessante é que, em 13% dos
relatos feitos pela equipe, uma das atividades
do agente em sua unidade é o trabalho de
apoio à equipe, isso é, trabalho administrativo.
Em contrapartida, no grupo focal essas ativi-
dades foram as mais discutidas.
Com relação à principal atividade do agen-
te, a “visita domiciliar”, investigaram-se algu-
350

Tabela 2 mas das características desta atividade (Tabela


Distribuição dos agentes comunitários de saúde segundo 4). O número de visitas domiciliares realizadas
tempo de trabalho no PSF e de moradia na comunidade, por dia é em média de sete a nove, sendo que
Porto Alegre, RS, 2000. 18,4% ficaram abaixo da média recomendada
Variáveis n % pelo Ministério da Saúde, que é de no mínimo
oito visitas diárias. No entanto, a maioria dos
Tempo de moradia
agentes tem um número elevado de famílias
na comunidade (anos)
sob sua responsabilidade. Segundo os depoi-
4a9 26 22,8
10 a 19 44 38,6 mentos dos agentes, o período do dia mais fa-
20 a 29 28 24,6 vorável para desenvolver essa atividade é o tur-
30 a 39 11 9,6 no da tarde.
> 40 5 4,4 Foi também de interesse deste estudo inves-
tigar quais as atividades que o agente mais gos-
Tempo de trabalho
ta e quais as que menos gosta de desenvolver
no PSF (anos)
< de 1 10 8,8 em seu cotidiano. Entre as atividades mais apre-
1 a 1,9 11 9,7 ciadas encontra-se a visita domiciliar, seguida
2 a 2,9 19 16,7 por trabalhar com bebês e crianças. Os idosos
3 a 3,9 69 60,5 também foram referidos como um grupo de
> 4,0 5 4,3 pessoas com boa receptividade ao trabalho do
agente em suas casas.
Total 114 100,0
Em relação às atividades menos apreciadas,
as atividades administrativas foram as mais des-
tacadas. Essas consistem em atuar na recepção
da unidade de saúde, realizar o agendamento
de consultas, organizar pastas e prontuários,
Tabela 3 controlar materiais e almoxarifado. O preen-
Distribuição das principais atividades desenvolvidas chimento das fichas do Sistema de Informação
pelos agentes comunitários de saúde segundo a equipe de Atenção Básica (SIAB), que é uma atividade
de saúde do PSF, Porto Alegre, RS, 2000.
própria do agente, também foi considerado
Atividades Desenvolvidas n % uma atividade desagradável.
visita domiciliar 31 67,4
educação em saúde 15 32,6
acompanhamento 11 23,9 Discussão
de grupos de risco
incentivo e participação 10 21,7 Todos os indivíduos selecionados aceitaram
na formação dos grupos participar do estudo; não houve recusas. Com
controle vacinal 9 19,6 isso, foi possível que se conhecesse o cotidia-
cadastramento 9 19,6 no de trabalho dos agentes comunitários de
busca ativa de faltosos 7 15,2 saúde no Programa Saúde da Família em Porto
trabalho comunitário 6 13,0 Alegre.
controle e participação 6 13,0
A imensa maioria dos agentes entrevistados
nos programas de saúde
era composta por mulheres, assim como em
atividades burocráticas do posto 6 13,0
outros municípios brasileiros (Martins et al.,
Nesta tabela, a soma dos percentuais excede 100% em função 1996). Essa tendência também é observada en-
dos Agentes Comunitários de Saúde terem mencionado mais
de uma atividade.
tre os profissionais da saúde, como enfermei-
ros, que é uma categoria profissional formada
basicamente por mulheres (Machado, 2000).
Esse fato pode estar intimamente ligado ao pa-
pel de cuidador que a mulher desempenha na
sociedade, sendo as principais responsáveis pe-
la educação e pela alimentação das crianças e
pelos cuidados prestados aos membros idosos
da família (Ellis et al., 1998).
Um dos pré-requisitos do Ministério da Saú-
de é que tenham idade acima de 18 anos, não
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sendo estabelecido um limite máximo (Brasil, Tabela 4


2001b). A faixa etária que mais concentrou Distribuição dos agentes comunitários de saúde segundo
agentes foi entre 30 e 49, isto é, adultos jovens. variáveis referentes à prática de visitas domiciliares (VD)
Acredita-se que os agentes comunitários de no PSF, Porto Alegre, RS, 2000.
saúde com mais idade tendem a conhecer me- Variáveis n %
lhor a comunidade, ter mais vínculos e laços de
Período do dia mais
amizades, porém podem ter algumas inimiza-
favorável para VD
des ou conflitos com outros moradores. Eles
manhã 15 13,1
também têm seus próprios conceitos sobre o tarde 72 63,2
processo saúde-doença, advindos de experiên- ambos os turnos 27 23,7
cias próprias ou alheias, podendo ser mais re-
sistentes a novos conceitos relacionados à pro- Média de VD por
dia de trabalho
moção da saúde em sua comunidade. Por ou-
4a6 21 18,4
tro lado, os agentes mais jovens não conhecem
7a9 67 58,8
tão bem a comunidade, seu envolvimento pode 10 a 12 20 17,5
ser menor; entretanto, poderão não ter inimi- 14 a 16 6 5,3
zades, seus conceitos de saúde e doença pode-
rão não ser muito arraigados, estando mais Total 114 100,0
abertos às mudanças e às novidades. Número de famílias
Em outros estudos (Andrade, 1998; Silva & por ACS
Dalmaso, 2002), os autores também encontra- 120 a 169 12 10,6
ram uma concentração de indivíduos entre 30 170 a 219* 33 29,2
a 45 anos, sendo que Silva e Dalmaso (2002) 220 a 269 32 28,3
destacam que, para muitos, ser agente comuni- 270 a 319 22 19,5
320 a 369 8 7,1
tário de saúde foi uma oportunidade de rein-
> 370 6 5,3
gresso no mercado de trabalho e que, para ou-
tros, ser agente representou reconhecimento e Total 113** 100,0
remuneração do trabalho já desenvolvido co- *Faixa na qual se inclui a média de famílias por ACS preconizada
mo voluntários na comunidade. pelo Ministério da Saúde.
Em novembro de 1996, quando foram im- ** Uma ACS não informou esses dados porque era nova no programa
e o cadastramento das suas famílias ainda não estava concluído.
plantadas as primeiras oito equipes do PSF em
Porto Alegre, esse trabalho ainda era uma no-
vidade para a comunidade, sendo que os pri-
meiros a se candidatarem para o cargo foram
pessoas com mais idade. Segundo o relato de Os critérios de seleção variam para cada
alguns, eles foram convidados para participar município, no entanto, a realização de entre-
das seleções pelos presidentes da associação de vistas permite verificar o grau de conhecimen-
moradores e líderes comunitários, pois já de- to do candidato, assim como identificar os que
senvolviam atividades em prol da comunidade. apresentam um perfil mais adequado para o
A situação etária encontrada já deve, possi- trabalho com as comunidades. Para que isso de
velmente, ter sofrido algumas mudanças, pois se fato ocorra, esse método de seleção deve ser
percebe que os agentes que ingressaram mais re- bem elaborado e desenvolvido por pessoas com-
centemente no Programa eram os mais jovens. petentes para tal função, possibilitando a sele-
O crescimento dos programas em que o ção de candidatos mais aptos. Infelizmente, ain-
agente está inserido abre em todo o País opor- da em alguns municípios brasileiros, a contra-
tunidades de emprego às populações mais ca- tação desses trabalhadores é feita por escolha
rentes, tendo em vista que a implantação do pessoal ou partidária (Corbo et al., 2000).
programa tem como prioridade as comunida- Em Porto Alegre, todos os agentes comuni-
des de baixa renda. Como não exige grau de es- tários passaram por um processo seletivo, o
colaridade, todos que sabem ler e escrever po- que acaba se refletindo no nível de escolarida-
dem candidatar-se ao processo seletivo, que de, pois a maioria apresentava o ensino funda-
acaba selecionando os “mais qualificados” para mental completo. O Ministério da Saúde não
tal função. Sabe-se que nessas comunidades os exige grau de escolaridade para a função de
mais jovens geralmente têm maior escolarida- agente, somente que saiba ler e escrever (Brasil,
de, sendo melhores classificados. 1999). No entanto, quanto maior o grau de es-
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colaridade mais condições terá o agente de in- por seu trabalho um salário que correspondia
corporar novos conhecimentos e orientar as fa- na época da pesquisa a dois salários mínimos
mílias sob sua responsabilidade. federais.
É importante conhecer a religião dos ACS, Segundo o Ministério da Saúde, um agente
pois as crenças pessoais podem influenciar em comunitário deve ganhar pelo menos um salá-
sua relação com a comunidade e no papel que rio mínimo por mês. Os recursos para efetuar
devem desempenhar. Além disso, é sabido que o pagamento do seu salário provêm em parte
o estado de saúde é determinado também por do governo federal, do governo municipal e,
valores culturais e religiosos (Waldman, 1999). em menor proporção, do governo estadual
Para alguns, a doença é considerada uma puni- (Brasil, 2001b). Outro ponto importante em
ção de Deus ou vinda de um mal feito por es- relação aos trabalhadores do PSF é que, nesse
píritos. Muitos aceitam a doença como uma programa, os recursos humanos não são con-
vontade divina ou destino (Helman, 1994). É tratados como funcionários públicos e podem
por essa razão que a forma como as pessoas ser remunerados por uma combinação de pro-
promovem ou preservam sua saúde está inti- cedimentos e produtividade, isto é, remunera-
mamente ligada ao modo como acreditam ad- dos por desempenho (Viana et al., 1998).
quirir as doenças (Waldman, 1999). Assim, res- A maioria dos agentes morava na mesma
salta-se a importância de capacitar os profis- comunidade em que trabalhava por um perío-
sionais para o reconhecimento dos fatores cul- do entre 10 a 19 anos, sendo que o tempo mí-
turais e religiosos que possam influenciar no nimo relatado foi de quatro anos. Preenchem,
comportamento dos indivíduos com relação à portanto, o pré-requisito do Ministério da Saú-
sua saúde. É certo que isso não significa para o de que estabelece que o agente deve estar mo-
trabalhador da saúde abdicar de suas crenças e rando, no mínimo, há dois anos no local onde
valores, mas sim a possibilidade de uma me- trabalhará, ressaltando que são os únicos tra-
lhor articulação entre os saberes técnicos e po- balhadores da atenção primária à saúde que
pulares. devem obrigatoriamente residir na área de
Tendo em vista que o agente vai assistir pes- atuação (Brasil, 1994a).
soas de outras crenças, é imprescindível prepa- Esse tempo de dois anos é solicitado como
rá-lo para lidar com as questões religiosas da uma condição necessária para que o agente co-
comunidade, inclusive com a sua, para que pos- nheça a comunidade. Por outro lado, é impor-
sa tratar com habilidade de assuntos como os tante considerar que a qualidade da relação en-
que estão ligados à sexualidade, por exemplo. tre agente e comunidade é apenas em parte de-
Quanto à família, dois terços dos agentes terminada pelo tempo de sua residência no lo-
viviam com companheiro(a), sendo que o res- cal, pois a sua empatia com a comunidade e vi-
tante morava sozinho, com amigos ou paren- ce-versa são fatores importantes para a integra-
tes. A grande maioria desses trabalhadores já ção desse trabalhador.
havia passado pelo exercício da maternidade Quanto ao tempo de trabalho no PSF, en-
ou paternidade, trazendo consigo vivências so- controu-se uma baixa rotatividade desses tra-
bre saúde infantil geradas por suas experiên- balhadores, sendo que alguns dos que estão há
cias no cuidado de seus filhos. Se por um la- menos tempo iniciaram suas atividades em ser-
do essas experiências podem facilitar o traba- viços recém implantados. O tempo de perma-
lho junto das famílias; por outro, o que deu nência no Programa é importante para o en-
certo em suas experiências pessoais pode não tendimento do papel do agente, que é construí-
ser o adequado para a população por eles assis- do nas suas práticas cotidianas.
tida. Mais uma vez, torna-se fundamental a A visita domiciliar é uma das principais ati-
educação permanente dos agentes e a supervi- vidades preconizadas pelo Ministério da Saúde
são constante desse trabalhador pela equipe de para o agente comunitário (Brasil, 2001b) e
saúde. também foi a mais referida no presente estudo.
A renda per capita dos agentes caracteriza- É por meio dela que o agente melhor conhece
os como população de baixa renda, tendo uma as necessidades das famílias e, principalmente,
inserção econômica muito semelhante a da po- desenvolve o trabalho educativo, citado como a
pulação por eles assistida. Esse resultado mos- segunda atividade mais realizada.
tra também que muitos deles têm um papel A maioria dos agentes comunitários de saú-
importante na sustentação econômica de suas de, quando perguntados nas entrevistas indivi-
famílias, uma vez que têm como remuneração duais sobre qual era o período do dia de maior
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rendimento para as visitas domiciliares, res- sim, considerando essas dificuldades, o agente
pondeu ser o período da tarde. Segundo eles, age coerentemente ao selecionar as famílias a
na parte da manhã é mais difícil a realização serem visitadas, garantindo que as que mais
das visitas, pois as pessoas dormem até tarde e necessitem não fiquem sem acompanhamento
as donas de casa estão mais ocupadas com os adequado.
afazeres domésticos, não dispondo de muito Evidencia-se, assim, a necessidade de rea-
tempo para atendê-los. Sobre isso, um agente dequação da atividade de visitas domiciliares,
referiu: “saímos pra rua às 9-9:30h e eles ainda de acordo com as características da população
estão dormindo”. de cada local, assim como o resgate junto às
Constata-se, entretanto, uma divergência equipes de saúde do significado e da importân-
entre o período mais favorável para a realiza- cia dessa prática para o Programa. É possível
ção das visitas domiciliares (tarde) e o período que, com a carga de doenças e de necessidades
em que os agentes estão desenvolvendo tal ati- desses grupos populacionais, o número de fa-
vidade (manhã). No turno da tarde, a maior mílias sob responsabilidade de cada equipe ex-
parte do tempo é utilizada em atividades den- trapole sua capacidade de resposta, necessitan-
tro da unidade de saúde. Com isso, está ocor- do talvez de um redimensionamento do núme-
rendo uma perda da eficiência dessas visitas. ro de profissionais que atuam em cada unidade
A visita domiciliar é o instrumento ideal do PSF.
para a educação em saúde, pois a troca de in- Com relação ao trabalho educativo presta-
formações se dá no contexto de vida do indiví- do pelo agente, Martins e colaboradores (1996)
duo e de sua família. As orientações não estão ressaltam que a participação desse em ações
prontas, pois cada casa apresenta uma realida- pontuais e simplificadas parece produzir im-
de e é baseada nessa realidade que acontece a pacto significativo e relevante em termos de
troca de informações. Saúde Coletiva, como, por exemplo, a orienta-
Segundo o relato de um dos agentes, mui- ção de uso do soro caseiro para a redução da
tas vezes as pessoas não percebem seus proble- mortalidade infantil e a cloração na água para
mas. No entanto, durante uma visita domici- a prevenção da cólera.
liar é possível observar as condições do pátio, Outra atividade do agente em sua unidade
da casa e iniciar uma conversa de “comadre” é o trabalho de apoio à equipe, referido como
sobre questões de saúde. Nessas ocasiões, o “trabalho burocrático”. Esse tipo de trabalho,
agente tem a oportunidade de identificar pro- apesar de ser citado em uma freqüência relati-
blemas e orientar, “trocar idéias”, no mesmo vamente baixa pelos profissionais das equipes
“papo” sobre cuidados em saúde. Como rela- (13%), foi intensamente relatado e discutido
tou um agente durante a entrevista: não basta pelos agentes, ficando claro que desenvolvem,
só bater na porta e perguntar se tem um proble- além das atividades inerentes a sua função, o
ma de saúde, tem que sentar e conversar. apoio administrativo às equipes do PSF.
O agente é responsável por 750 pessoas de O trabalho de apoio a que se referem são
sua comunidade, sendo esse número flexível, atividades como atender na recepção, entre-
pois depende das necessidades locais, e deve vi- gando fichas para consultas médicas; procurar
sitar cada domicílio pelo menos uma vez por prontuários de pacientes; atender ao telefone;
mês (Brasil, 2001b). No entanto, para a maio- entregar medicação na farmácia e marcar con-
ria dos agentes, não é possível visitar todas as sultas especializadas para a comunidade, por
famílias mensalmente, pois o número é mui- solicitação médica, na Central de Marcação de
to elevado. Essa situação foi evidenciada no Consultas na SMS. Segundo relatos de alguns
presente estudo, o que determina, segundo os agentes, a contabilidade da farmácia e o pedido
agentes entrevistados, priorizarem as famílias de materiais para a Secretaria Municipal de
que necessitam de um maior acompanhamen- Saúde também eram tarefas suas.
to, como aquelas com pessoas em tratamento Constatamos que na maioria dos serviços
médico, com tuberculose, AIDS, doença men- do PSF em Porto Alegre existe uma rotina pre-
tal, gestantes, puérperas e crianças em risco nu- estabelecida em relação ao trabalho do agente
tricional. na unidade de saúde. Em algumas, há uma es-
Além do excesso do número de famílias, o cala diária ou semanal do agente que ficará na
número de horas dispensadas para essa ativi- unidade para auxiliar a equipe. Outros serviços
dade é insuficiente e há a inadequação já referi- não possuem uma escala fixa, sendo solicitado
da do horário em que realizam as visitas. As- conforme as necessidades diárias.
354

Os agentes referiram que permanecem boa sob sua responsabilidade (Brasil, 2001b). O es-
parte do seu tempo, na maioria das vezes no tudo mostrou que o agente vem desenvolvendo
período da tarde, auxiliando a equipe de saúde algumas atividades que descaracterizam o seu
em trabalhos burocráticos. Vale lembrar que o papel, uma vez que não estão preconizadas pe-
tempo que o agente permanece nas unidades lo Ministério da Saúde.
de saúde diminui sua disponibilidade para as Diante dos resultados obtidos, sugere-se al-
visitas. Outra ressalva é de que em alguns casos gumas ações que talvez possam potencializar o
as visitas podem estar sendo realizadas muito trabalho do ACS como, incorporar um auxiliar
rapidamente, comprometendo a qualidade da administrativo nas equipes do PSF; diminuir o
atenção à população assistida. número de famílias por ACS; e oferecer mais
O trabalho de suporte que o agente vem capacitações e educação permanente no Pro-
prestando às equipes de saúde sinaliza que, grama.
além de ser sobrecarregado com tarefas de sua Por fim, é importante ressaltar que, apesar
atribuição, passa a ser um “tapa-buraco” da ca- de os agentes atenderem às equipes nos aspec-
rência de outros profissionais nos serviços de tos práticos do funcionamento dos serviços de
saúde (Vasconcelos, 1997). Sobre isso, um agen- saúde, eles vêm também desenvolvendo impor-
te externou o que segue: Diz que chamaram o tante trabalho na vigilância da saúde da popu-
agente lá em Tramandaí (cidade do litoral do lação.
RS) de bombril: mil e uma utilidades. O agente é uma peça importante para o de-
Cabe aqui lembrar que o agente comunitá- senvolvimento do PSF, assim sendo, cuidar desse
rio de saúde tem como função identificar pro- trabalhador e valorizá-lo é de fundamental im-
blemas, orientar, encaminhar e acompanhar a portância, pois “aqueles que atuam e promovem
realização dos procedimentos necessários à saúde, ou seja, trabalhadores, são um bem públi-
proteção, à promoção, à recuperação e à reabi- co, uma utilidade pública” (Machado, 1995).
litação da saúde dos moradores de cada casa

Colaboradores

LF trabalhou no delineamento do estudo, coleta, análise


e interpretação dos dados, na redação do artigo e revisão
da versão final. DRGCA trabalhou no delineamento do
estudo, análise e interpretação dos resultados, redação do
artigo e revisão da versão final.
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