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Histórias do vinho

O encontro do novo
e do velho mundo
Nasceu incógnito, cresceu discreto, amadureceu poderoso. Mas em nenhum momento
deixou de ser o mais improvável dos vinhos portugueses. José Manuel Fernandes (texto)
e Enric Vives-Rubio (fotos) foram conhecê-lo a Cortes de Cima, concelho da Vidigueira
Hans é dinamarquês e estudou porque conforme vamos entrando
engenharia mecânica. Carrie veio naquele pequeno universo o Da Malásia
ao mundo na Califórnia e pensou
ser economista. Conheceram-se
menos estranho de tudo ainda será
descobrirmos que um dos bisavós
para o Alentejo
na Malásia mas os seus dois filhos, de Carrie nasceu na ilha Graciosa,
Thomas e Anna, falam “alentejano”. Açores e, quando emigrou, no Mesmo assim sobra a dúvida: como
Foi num veleiro que descobriram século XIX, para o velho Oeste, foi que aqui vieram parar?
uma herdade no interior de ainda lá chegou a tempo de ser “Depois de 23 anos a trabalhar
Portugal, um lugar que quando lá barbeiro e cortar o cabelo a um dos em plant ações na Malásia, e de ter
chegamos e percorremos a álea de pistoleiros do famoso tiroteio de Ok junto algum dinheiro, não me via
ciprestes por entre colinas cobertas Curral. reformado aos 45 anos a dar voltas
de vinhas diríamos pertencer à Esses antecedentes explicam a ao mundo num veleiro”, conta-nos
Toscana. Só que ali não nasce velha fotografia de uma povoação Hans sob o bonito alpendre da casa
nenhum Chianti, antes vinhos do à beira-mar que encontráramos onde hoje vive. Carrie abre sobre a
“novo mundo” que incorporam a no escritório da herdade, único mesa onde depois almoçaremos um
tradição do “velho mundo”. sinal dissonante numas paredes moderno i-book para nos mostrar,
Confusos? É caso para isso. O que que os inúmeros diplomas dos no site da empresa, a imagem do
encontramos quando, na estrada prémios conquistados pelos vinhos veleiro e a do “monte” tal como
que liga Vidigueira a Moura, nos da casa cobrem por completo. eram utilizadas para as tradicionais bom vinho. Porque, como se diz em o encontraram em 1988. “Está
surge o sinal de Cortes de Cima Tal como explicam o facto de culturas de sequeiro das planuras Cortes de Cima, se “a vida é muito irreconhecível, não está?” Está
não vem em nenhum manual Carrie sentir que, afinal, já algo alentejanas — terras secas e de baixa curta para beber mau vinho”, para mesmo.
de enologia nem se encontrará a ligava a Portugal antes de aqui produtividade. um produtor “a vida é ainda mais “Podíamos ter escolhido um
facilmente um lugar parecido no aportar em 1988. Foi nesse ano Hans, no entanto, viu ali a curta para fazer mau vinho”. terreno na Austrália, tivemos boas
Alentejo. Não pela paisagem, mas que os Jorgensen compraram a oportunidade que buscava: a de ofertas, ou na Califórnia, a norte de
uns agricultores dinamarqueses encontrar um terroir para fazer um São Francisco, onde vive a minha
os 350 hectares da Herdade de família, mas acabámos por nos
Cortes de Cima, terras que à época apaixonar pela gente e pelo clima

34 • Sábado 1 Maio 2010 • Fugas


Nem sempre as coisas correram
bem. Hans tinha sido aconselhado A nova herdade
a utilizar as castas tradicionais,
mas rapidamente percebeu que em Milfontes
nunca faria o vinho que desejava
com Periquita ou com Moreto. Sentados sob o alpendre deixamos
Apreciador das qualidades do que a vista descanse nos horizontes
Aragonês, gostou muito dos largos da planura alentejana. O
resultados que, na Quinta do chilrear dos pássaros quase se
Carmo, perto de Estremoz, tinham sobrepõe às palavras de Carrie, que
dado os ensaios com Syrah. Quis aponta para os limites da herdade,
também experimentar Touriga para as diferentes vinhas, para o
Nacional e Trincadeira. Com charco este ano adoptado por um
o apoio de Richard Smart, um bando de patos bravos, para os
viticultor com provas dadas, a olivais que já plantaram. “A nossa
experiência e as características barragem fica por trás, não se vê
do terroir foram-no ajudando a daqui”, explica-nos.
escolher o que lhe parecia mais “Nunca poderíamos fazer aqui
adequado. Até que… bom vinho sem dispormos de
água em abundância”, interrompe
As “pérolas” Hans. “O Verão é tórrido, com
temperaturas muitas vezes acima
e o Chaminé dos 40 graus. Foi por isso que
tivemos de construir uma pequena
Foi em 1998 que os Jorgensen barragem”.
deixaramw de vender as suas uvas Uma barragem? Então Alqueva
à cooperativa e se aventuraram não fica a um par de quilómetros,
no seu primeiro tinto. Chamaram- ali ao fundo da estrada que corre
lhe, de forma quase provocatória, para Moura?
Incógnito. Carrie sorri. Se os Jorgensen
Porquê? “Porque o fizemos sempre tiveram cuidado para não
com uvas Syrah, e nessa época ficarem nas mãos dos bancos,
era proibido plantar essa casta também não parecem gostar
no Alentejo”, recorda Carrie, de depender do Estado. Por
para quem muita da legislação isso, como a água recolhida na
em vigor é absurda. Absurda mas barragem já é pouca para as vinhas
não impossível de tornear, como e para os olivais, agora vão buscá-
o Incógnito provou: o vinho, cujo la directamente ao Guadiana,
contra-rótulo indicava de forma utilizando condutas e um sistema
quase cabalística a casta que lhe de bombagem que eles mesmos
dera origem, foi um sucesso e levou construíram. Se estivessem à espera
as autoridades do sector a mudarem de Alqueva, esperariam sentados, e
as regras do jogo. isso não está no seu feitio.
de Portugal”, recorda Carrie. E isso tisnado pelo sol alentejano quando de inox para as quais desenvolveu Hoje já todos sabem que o Preferiram investir sempre com
sucedeu apesar de aqui terem vindo recorda, por exemplo, as últimas um isolamento especial, outras Incógnito é um Syrah que só o cuidado de não dar um passo
parar quase por acaso, num Outono classificações da Wine Spectator, na capacidade de seguir o que de sai de Cortes de Cima em anos maior do que a perna, apesar de
ventoso em que o mar os fez entrar que colocavam muitos vinhos melhor a inovação tem oferecido excepcionais, o mesmo sucedendo se poder pensar que Hans cede à
em todos os portos da nossa costa do Douro acima dos 90 pontos e nos últimos anos. com o Touriga Nacional e com extravagância quando sobe para
em busca de abrigo quando se nenhum alentejano. “Preferem Basta percorrer as vinhas o Reserva. “São pérolas, e como o seu pequeno Cessna, acelera
dirigiam para o Mediterrâneo. um estilo mais tradicional, mais para o perceber. Entre as linhas as pérolas são raras”, diz-nos na pista de terra e sobrevoa as
A coincidência seguinte foi parecido com o dos vinhos de formadas pelas vides, os ramos Hamilton. “Desde 2004 que não vinhas para avaliar o seu estado de
encontrarem estas terras na Bordéus, em que o vinho vem com cuidadosamente arrumados ao saía nenhuma, mas em 2009 maturação através da fotografia no
propriedade de dinamarqueses muitos taninos e, depois, tem de longo dos arames para manter voltámos a ter uma excelente espectro dos infravermelhos. Até
que estavam vendedores. O resto passar muito tempo em barrica e os futuros cachos mais longe do colheita”. porque o pequeno avião também
veio a seguir, com muita prudência ganha aromas intensos a madeira. chão e mais expostos ao Sol do Nas caves frescas onde repousam lhe permite acompanhar de perto
— “nunca fizemos investimentos Não acredito que sejam esses os que é habitual, cresce, nesta altura as barricas de carvalho e o vinho o mais recente investimento da
que nos deixassem nas mãos dos vinhos que os consumidores gostam do ano, cevada para proteger estagia, este enólogo vai-nos Herdade que está a ser feito a mais
bancos” — e também muito arrojo. mais…” o solo e amenizar os extremos explicando como a grande arte de uma centena de quilómetros,
Só assim se explica o Incógnito. climatéricos. Há tubos de plástico não está apenas em conseguir nuns terrenos comprados a sul de
Mas lá chegaremos — primeiro
vamos à adega.
Winemaker? preto preparados para deixar cair,
nos dias de mais calor, água gota
encher algumas dezenas de milhar
de garrafas com esses vinhos
Vila Nova de Milfontes. Hans voa
para lá com frequência para avaliar
Hamilton Reis é português, Não: winegrover a gota junto à base das videiras. de excepção: “O nosso desafio a forma como estão a crescer as
enólogo, nasceu no Porto, adoptou Uns aparelhos de origem israelita permanente é conseguir manter vinhas que aí plantou. Castas?
este Alentejo e é ele que nos guia Por isso, na adega, tudo foi sendo medem a largura das cepas, assim o nível elevado do Chaminé, um Chardonnay, Sauvignon Blanc e
pelos labirintos dos barracões e feito de acordo com o tipo de permitindo detectar as situações de vinho mais acessível mas de que Alvarinho. Todas brancas.
caves com um entusiasmo quase vinho que Hans idealizou produzir. stress hídrico. Nada ali é deixado ao enchemos, todos os anos, mais “Aqui nunca conseguiríamos
infantil. “Prove aqui este vinho”, Erguida a pouco e pouco, sala acaso. de um milhão de garrafas. O fazer um grande vinho branco,
desafia, enquanto abre a torneira acrescentada a sala, nada nela “Andei por todo o lado a importante é o consumidor saber é muito quente”, explica-nos.
de uma cuba. “Ainda só o provaram lembra o design sofisticado de aprender”, recorda Hans. “Comecei que tem ali um valor seguro com “Naquela herdade, situada
meia dúzia de pessoas além de nós. algumas das adegas construídas por estar na Universidade de um perfil que não se altera de ano entre o rio Mira e o oceano, com
Não pode é falar dele….” nos últimos anos, até porque a Davis, na Califórnia, com quem me para ano, faça mais chuva ou faça temperaturas mais amenas e mais
Não falamos, ficamos com a sabedoria do engenheiro mecânico mantenho em contacto, depois falei mais sol. Isso sim, é muito difícil”. humidade, espero conseguir fazer
experiência para nós e com o se misturou mais de uma vez com com os meus vizinhos e iniciei o Mas, ao mesmo tempo, é o que crescer as uvas nas melhores
registo da colheita para quando o savoir-faire do winegrover, como plantio das vinhas de forma faseada dá dimensão a uma empresa que, condições”.
chegar às lojas, mas comprovamos Hans gosta de se definir, já que e com cuidado”. Tanto cuidado com 66 trabalhadores, é o segundo Poucos duvidam que isso
aquilo que, horas antes, Hans nos planeia um vinho desde o plantio da que o primeiro vinho só sairia para maior empregador do concelho sucederá. Para os Jorgensen
tinha explicado: que aqui os vinhos vinha ao detalhe dos dias que há-de o mercado com a marca Cortes da Vidigueira. E o que permite representará também uma
se fazem intensos e encorpados, passar nas cubas ou nas barricas. de Cima ao fim de dez anos. Até rentabilizar os investimentos que reaproximação ao mar que um
com os aromas a fruta bem “Às vezes estamos a falar com ele lá, e para conseguirem financiar os Jorgensen fizeram e continuam dia os trouxe até Portugal, um
presentes e taninos arredondados. e não percebemos logo o que nos os investimentos na vinha e nos a fazer. país onde nunca tinham pensado
“Eu sei que não estão na moda, quer dizer”, conta-nos Hamilton primeiros módulos da adega, os fixar-se, mas que adoptaram.
que os críticos não os classificam enquanto nos conduz por entre as Jorgensen continuaram a plantar Mesmo não havendo dúvidas que a
tão bem como os do Douro”, cubas e… os voos das andorinhas girassol e, sobretudo, conseguiram “torre” de cabelos louros que nos
lamenta este dinamarquês de rosto que esta Primavera adoptaram a lucros importantes em sucessivas cumprimenta em “alentejano” — o
adega. “Hans vê mais longe…” Por safras de melão. filho mais velho, Thomas — nunca
vezes isso traduz-se na capacidade passará despercebido nas ruas de
de adaptar às suas necessidades Beja…
produtos industriais, como as cubas

Fugas • Sábado 1 Maio 2010 • 35

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