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PRODUCAO CULTURAL Conformacées, Configuracdes e Paradoxos Rachel Gadelha Fortaleza - CE 2015 ARMAZEM DACULTURA Copyright ©2015 by Editora Armazém da Cultura Editora Albanisa Liicia Dummar Pontes. Administrative Aluisio Jucé Caué Rodrigues Manuh Monte Roberto Moura Veridiana Silva Projeto grafico, capa e editoragao eletronica Suzana Paz Assessora de Comunicacao Mariana Dummar Pontes Revisao Vessillo Monte (Proibida a reprodugao total ou parcial deste livro, por qualquer meio ou sistema, sem prévio consentimento da editora) ‘TEXTO ESTABELECIDO CONFORME O NOVO ACORDO ORTOGRAFICO DA LINGUA PORTUGUESA Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gadelha, Rachel Produgao cultural : conformacoes, configuracoes € paradoxos / Rachel Gadelha. ~ Fortaleza Armazém da Cultura, 2015. Bibliografia, 1. Cultura - Brasil |. Titulo. 15-07126 cD-306.0981, indices para catélogo sistematico: 1. Brasil : Producao cultural 306.0981 W ARMAzEM DACULTURA Todos os direitos desta edigdo reservados a Editora Armazém da Cultura Rua Jorge da Rocha, 154 - Aldeota Fortaleza ~ Ceard - Brasil CEP: 60150.080 Fone/Fax: (85) 3224.9780 Skype: armazem dacultura Site: wwwarmazemculturacom.br Email: armazemdacultura@armazemcultura.com.br {{pereuvnourua re questoue a es AMBENTAS e MOTEGO NATURA SUMARIO TL LS) 33 39 43 60 70 87 93) 104 120 147 159 198 225 233 PREFACIO - UMA ESPECIE DE AUTOANALISE DO CAMPO DA PRODUCAO CULTURAL. 1. INTRODUCAO 2, FINANCIAMENTO A CULTURA 2,1 HINANCIAMENTO A CULTURA NA SOCIEDADE CONTEMPORANEA: MODELOS PARADIGMATICOS 2.2 POLITICAS DE INCENTIVO A CULTURA NO BRASIL: LEIS & EDILAIS. 2.3 POLITICAS CULTURAIS E FINANCIAMENTO A CULTURA NO CEARA 2.4 BREVES CONSIDERACOES SOBRE O SISTEMA DE FINANCIAMENTO: A CULTURA NO BRASIL 3. 0 CAMPO DA PRODUCAO CULTURAL E AS POLITICAS PUBLICAS DE FINANCIAMENTO A CULTURA 3.1 COMPREENDENDO 0 LUGAR: PERCURSOS E NOMEACOES 3.2 PRODUCAO CULTURAL! UMA ATIVIDADE COMPLEXA E AINDA PM FORMAGAO 3.3 AS POLETICAS PCBLICAS E A PRODUGAO CULTURAL NO BRASIL. 4, 0 CAMPO DA PRODUCAO CULTURAL NO CEARA. 4,1 PERCURSOS E CONFORMACOES 4.2 CONEIGURAGOES E PARADOXOS 5 CONSIDERACOES FINAIS REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS PREFACIO UMA ESPECIE DE AUTOANALISE DO CAMPO DA PRODUCAO CULTURAL Alexandre Barbalho* O s estudos no Brasil sobre o campo da organizagio da cultu- ra, ou seja, sobre produgio, gestao e politica culturais, sio relativamente recentes se comparados realidade francesa ou me- xicana, por exemplo. Mas tém crescido de forma relevante nos tl- timos quinze anos, em grande parte, como resultado da retomada do papel do Estado na elaborag’o e implementagao de politicas publicas no setor. Tais estudos sio oriundos de diversas disciplinas, com destaque para a comunicacio ¢ a sociologia, ¢ assumem, no mais das vezes, uma perspectiva interdisciplinar, que é de fato a que melhor responde a complexidade desse objeto de reflexio. O trabalho desenvolvido por Rachel Gadelha, como resultado de seu mestrado em Politicas Ptiblicas e Sociedade da Universida- il de Estadual do Ceard, faz parte desse esforgo reflexivo ¢ traz uma contribuigio fundamental ao abordar um tema pouco explorado que é justamente o surgimento e a formagao do campo da produ- cdo cultural. O seu locus de pesquisa empirica 6 0 Ceard, mas arriscaria a dizer que as consideragées analiticas que levanta sobre esse contexto sao, em grande parte, validas para os demais estados da federagio, com excecio do Rio de Janeiro ¢ de Sao Paulo — estados que possuem uma economia cultural mais diversificada, mais pujante e, portan- to, diferenciada do restante do pais. O que nao implica dizer que sejam independentes dos instrumentos federais de politica cultural. Pelo contrdrio, exatamente por seus agentes ocuparem espagos pri- vilegiados no campo cultural brasileiro, acabam por canalizar mais capital cultural, econdmico e politico para esses estados. A pesquisa empreendida por Rachel Gadelha foi extensa ¢ en- volveu os produtores culturais de trés momentos distintos na con- formagio desse campo, segundo a sua periodizagio ¢ conceituacio: os “produtores-artistas” que comegaram a atuar no final da década de 1960 ¢ por toda a década de 1970; os “produtores-empreen- dedores” que iniciaram a atividade com a criagSo das politicas de financiamento 4 cultura - federais e estaduais — nas décadas de 1980 e 1990; e os “produtores-gestores” que ingressaram com as novas diretrizes politico-culturais estabelecidas a partir do governo Lula. Ao longo dessas décadas, a autora analisa como, em um mo- vimento de mititua influéncia, o campo da produgio cultural vai se constituindo nas suas relagdes com o Estado e suas politicas culturais, em especial com seus instrumentos de financiamento, onde ganham destaque as leis de incentivo e, mais recentemente, os editais. E esta, entre outras, umas das riquezas analiticas do livro de Rachel Gadelha, a disputa de interesses, mas também a convergéncia entre os agentes privados ¢ os govern. Disputa essa, volto a defender, que se apresenta em diversos com- textos brasileiros, seja no nivel estadual, seja no municipal. Assim, esta publicagiio torna-se uma referéncia obrigatoria tanto para os pesquisam sobre o campo da organizacio da cultura, quan- to para os que atuam como profissionais nesse campo. O que nao poderia ser diferente, posto que a autora, antrop6loga de formacao. trabalha h4 anos como produtora cultural, estando a frente de pro- jetos de repercussio nacional e internacional, Trata-se, em tiltima inst’ncia, de uma espécie de autoandlise disponibilizada ao publico, nio como um livro de autoajuda, mas como uma reflexao critica sobre o saber fazer da produgio cultural. * Possut licenciatura em Historia pela Universidade E ~iencias Sociais pela Universidade Federal do ¢ doutorado em Comunicacio ¢ Cultura Contempe (UFBA). Estdgio pés em Comunicagio na Universidade Nova de Lisboa. do curso de Historia ¢ do PPGs em Politicas Puiblicas da UECE e em Comuni 13, NTRODUCAO percepcao do potencial estratégico da cultura para o desen- volvimento humano, social e econdmico marcou o campo cultural nos tltimos anos. As politicas publicas passaram a ser ela- boradas a partir de uma visio transversal, abordando suas interfa- ces com demais setores — Economia, Politica, Turismo, Tecnolo- gia e Comércio —, requerendo atores mais qualificados e com visio multidisciplinar. As diretrizes estabelecidas durante a gest3o da cultura do gover- no Lufs Inacio Lula da Silva (2003-2010) possibilitaram a ampliagio de um mercado cultural, com gradativo deslocamento de estratégias e agdes dos centros urbanos nacionais para outras regides e peque- nos municipios do Pais. A possibil dade de dar vazio a essa imensa demanda represada, impdés uma maior organizagao do sistema, tor- nando cada vez mais complexas as relagGes de troca e de poder no campo social. O Ceard, cujo campo cultural escolhemos para retratar nessa pesquisa, viveu ¢ absorveu, a seu modo, todas as polfticas ptiblicas direcionadas A cultura no Pais nas tiltimas décadas. Sede da primei- ra Secretaria da Cultura do Brasil, criada em 1966, 0 estado possui um histérico de gestao publica da cultura que se funda no governo militar, perpassa o perfodo da democratizagio do Pais e a politica neoliberal de Fernando Henrique, até alcangar as diretrizes socio- culturais do governo do Partido dos Trabalhadores de Luis Inacio da Silva e de Dilma Rousseff. Nesse perfodo houve uma expressiva mudanga no campo cultu- ral no estado. As produgées amadoras observadas no trato com as expresses artisticas, a auséncia ¢/ou fragilidade das polfticas publi- cas ea dependéncia direta de recursos do Estado foram sendo gra- dativamente alteradas com a criacio dos mecanismos de incentivo a cultura, que introduziram novos agentes, procedimentos e priticas, o que contribuiu paraa criagdo de um. sistema cultural mais dinami- co. De uma fase, na qual a arte ea cultura tinham forte componente ideoldgico de resisténcia, passou-se a um regime, sob a égide das leis de incentivo, em que se valorizavam projetos com maior potencial de visibilidade e retorno para seus investidores, destacadamente na gest3io de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). Posteriormente, j4 no mandato do presidente Lula (2003-2011), propunha-se uma nova concep¢ao politica em que cada cidadao era, em potencial, um produtor de cultura. Novos valores eram atribuidos & cultura ¢ seu poder como recurso de inclusio era exaltado, assim como a acessibilidade, geracio de renda ¢ desenvolvimento social. Para atender essas diretrizes, as politicas ptiblicas investiram esforgos no langamento de editais, instrumentos ptiblicos de seleg3o de proje- tos culturais. Essa nova modalidade de financiamento também pro- yocou mudangas no campo, tanto pela sua capacidade de direcionar 0 apoio a segmentos especificos de interesse do Estado, como também pela possibilidade de acesso a imtimeros ag nntes, que no conseguiam. viabilizar seus projetos por meio das leis de incentivo. Atualmente, o sistema de financiamento 4 cultura no Brasil ¢ no Ceara tem como base principal esses dois recursos, que sustentam no s6 os projetos propostes pela sociedade civil, os produtores cul- turais ¢ a classe artistica, mas, muitas vezes, as proprias agdes de inte- resse ptiblico. Os dois mecanismos tém sido responsdveis por diversas iniciativas importantes na drea da cultura, mas também por intimeras 16 distorgSes, problemas e instabilidades no préprio campo, que a des- peito de vivenciar grandes mudangas, nao conseguiu produzir as alte- rac6es estruturais necessdrias para consolidar suas conquistas. Todas essas politicas repercutem, em maior ou menor grau, no sistema da cultura como um todo. Sistema, aqui, entendido tal qual proposto por Albino Rubim (2005 e atividades essenciais para o desenvolvimento da cultura, a saber: . Criag&o, inovacdo e invengio; 2. Transmissio, difusao e divul- p.16), que nomeia agdes gacao; 3. Preservacao e manutengao; 4. Administragio e gesto; 5. Organizagio; 6. Critica, reflex4o, estudo, pesquisa e investigacio e 7. Recepgio e consumo. Ou seja, um conjunto complexo, pulsante e interligado, que precisa funcionar de maneira sistémica, com a ativacao de todas as suas instancias. Conjunto que forma o ambiente onde se dé a correlacio de forcas entre a producio cultural ¢ as po- icas publicas de cultura, configurando-o como espago de tensdes, interatividade, transversalidade e dinamismo. Entre as intimeras mudangas que se processaram, ao longo des- se percurso, destacamos, na instancia da organizac3o da cultura, a criagio de uma nova categoria de trabalhadores: os produtores cul- turais. Atuando profissional ¢ diretamente no aspecto da adminis- tracdo da cultura, cabe a estes profissionais a responsabilidade de criar e/ou “tornar exequivel” uma ideia no campo das artes ou da cultura, cuidando de todas as etapas de que esta necessita para se tornar realidade, desde o planejamento até a administragao dos re- cursos humanos, técnicos ¢ financeiros. Sao intimeras providéncias para projetos diversos que demandam, de acordo com suas caracte- risticas singulares, reflexdes e respostas imediatas num ambiente de tensio e didlogo permanentes. Mesmo que essa fungio ja estivesse presente no campo da cul- cura, nao era considerada uma atividade profissional em si, mas um meio necessfrio A efetivacio dos projetos artisticos idealizados, realizada, portanto, de maneira informal, amadoristica ¢ precaria. As préprias mudangas na concepgao de cultura, a instauragdo de politicas ptiblicas e a criagio dos mecanismos de financiamento sao alguns dos responsdveis pelas alteragSes que vém se dando no campo da produgio cultural. O prestigio ¢ a distincSo social que a cultura adquiriu nesse pro- cesso, categorias utilizadas por Pierre Bourdieu, geraram o interesse de novos agentes que, em sua maioria, ingressaram no mercado sem formagio adequada, impelidos por aptiddes, qualidades empreen- dedoras ¢ afinidades pessoais. Sio diversos percursos individuais que se configuram como disposigGes incorporadas, que sugerem e in- duzem escolhas ¢ se traduzem no conceito de habitus, de Bourdieu, entendido como “conjunto de disposi¢Ses incorporadas e principio gerador de praticas”. (BOURDIEU, 2005, p.87). Conceito fun- damental para nortear as reflexGes acerca da formagao dos agentes, que atuam no interior do campo da producao cultural, no sentido de suas disposig6es internas ¢ construcao de praticas coletivas. E importante lembrar que 0 exercicio da produgio cultural apre- senta caracterfsticas complexas, inerentes 4 fung3o de dar forma e administrar bens materiais e imateriais, subjetividades, talentos in- dividuais, processos criativos e recursos escassos. Assim, é impres- cindivel que, ao analisarmos a organizagao da cultura, seja consi- derada a sua prépria natureza que se traduz num campo mutavel, plural e multifacetado. Esse agente, denominado aqui de produtor cultural, tem um pa- pel central no sistema da cultura, uma vez que cabe a ele agir como intermedidrio, conector e elemento que viabiliza e dé materialidade ¢ efetividade a diversos projetos ¢ iniciativas culturais. 6 aquele que pde em movimento os anseios culturais da sociedade e da classe ar- tica e cede materialidade As politicas culturais. Apesar de sua relevancia, observamos que nao hé ainda uma per- cepcao social e politica de sua funcio no sistema, 0 que repercute diretamente na pouca visibilidade da atividade, nas condigées pre- carias em que esta é realizada e também na formacio insuficiente e ainda sem um campo de conhecimento consolidado. Mas, tao grave quanto a auséncia de formagao especifica para © exercicio desta atividade, é a escassa bibliografia sobre o tema e 2 pouca compreensio do papel do produtor cultural e de sua im- portaéncia do momento organizativo no sistema da Cultura. Tor- -se, pois, importante aprofundar o estudo sobre esse lugar, suas possibilidades de contribuic4o efetiva no sistema cultural vigente © como essa instancia tem sido conformada pelas politicas ptblicas =m nosso Pais. Segundo Bourdieu (2005), a histéria da vida intelectual e ar- tstica de uma sociedade pode ser contada por meio da transfor- macio de seus bens simbélicos e da crescente autonomizac¢io do 4 a istema de relagSes de produgio, circulac4o e consumo de bens smbGlicos. Esse processo é construfdo por agentes num contexto ‘ecalizado social e politicamente, conforme aponta 0 autor: [...] as fungSes que cabem aos diferentes grupos de intelectuais ¢ ar- tistas, cm funcdo da posicio que ocupam no sistema relativamente auténomo das relagdes de produgio intelectual ou artistica, tendem cada vez mais a se tornar o principio um tanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de posigdes culturais e, também, o principio de suas transformagdes no curso do tempo. (BOURDIEU, 2005, p.99). ador e gerador (ce, por- 19 Trabalhamos numa perspectiva de que essas construgdes impli- caram na busca por legitimag3o cultural, com hierarquia entre Areas, obras e competéncias e que essa estrutura afetou e é afetada pelas rela- ces objetivas entre os produtores de bens simbélicos, as relagSes entre os produtores e as instancias de legitimacio, e as relagdes objetivas en- tre as diferentes instincias de legitimagio (BOURDIEU, 2005). Re- lagdes que repercutiram na crescente exigéncia de profissionalismo ¢ na necessidade de absorc3o de novos conhecimentos, perceptiveis no delineamento de linhas de atuacio profissional ¢ na feigao dos projetos realizados que, muitas vezes, acompanham, moldam-se ¢ atendem as politicas culturais vigentes. Compreendemos que ao mesmo tempo em que os produtores cul- turais tiveram sua atuacio moldadas pelas respectivas politicas publicas, também trouxeram novas conformagées ao campo da cultura, criando projetos culturais e demandando respostas ¢ posicionamentos do poder puiblico. Assim, um importante fluxo de forcas se estabeleceu no periodo recente do Brasil, em uma intensa relacao de troca e interdependéncia, nem sempre harmoniosa e convergente. Segundo Maria Helena Cunha: Existe uma relacio muito préxima entre as transformagdes socio- politicas e histéricas das sociedades com o fortalecimento do mer- cado cultural e com a expansio da capacidade de produgdo artistica. Associa-se a esse cendrio as transformagdes econémicas de ambito global, que criaram as condi¢ées para o surgimento de novos agen- tes que compéem as categorias profissionais do campo da cultura —nesse caso o gestor cultural —, o que, consequentemente, altera a estrutura desse campo profissional. (CUNHA, 2007, p-182). Todas essas configurages implicam na produgio de diferentes sabe- res, rotinas percep¢Ses sobre 0 proprio campo da produgio cultural, 20 © que repercute também na impossibilidade de uma classificacao tinica da categoria. Agentes que, na sua diversidade natural, com seus distin- s habitus, influenciaram e foram também influenciados pelas politicas ptiblicas e diferentes contextos sociais e politicos. Influéncias que geram tensdes em um processo de interac4o entre muiltiplos agentes em relagdes de poder e busca de espago em um cam- po social. Nesse espago relacional, diferentes saberes se incorporam e€ teragem dentro de um campo de forgas, onde atuam varios atores em disputas por espago, reconhecimento e posi¢des, com interesses con- vergentes ou nao, em constante mutagaio. Debatem-se no cotidiano do campo da producao cultural disputas por verbas, crescentes exigéncias de conhecimento e tecnologias, producSo de novos discursos, tensio € juta permanentes por prestigio, reconhecimento e apoio. A complexidade do campo pode ser também observada na atuago dos produtores culturais em diferentes dreas das linguagens artisticas, o gue reflete na heterogeneidade de contextos e percepgdes; nas diferentes Posi¢Ses que os produtores ocupam em um mesmo campo que abriga auténomos, prestadores de servi¢os, proprietérios de empresas culturais © gestores de organiza¢Ges nio-governamentais que atuam na drea cultu- ral, todos com demandas especificas e diferenciadas; ¢ ainda outra varie- dade que se configura na prépria forma de inserc4o no setor da cultura, gue abriga produtores terceirizados por projetos, produtores/gestores que se concentram na produgio de seus préprios projetos e uma terceira ca- tegoria, que realiza projetos para diversos clientes como forma de manter as empresas em atividade enquanto viabilizam suas prOprias iniciativas. Mesmo os que atuam nas 4reas afins, além de compartilharem afinidades e prdticas, disputam com os mesmos agentes politicos ¢ econdémicos a aprovagio de seus projetos, a viabilizagio de sua ativi- dade profissional e o reconhecimento e distingdo de suas realizacdes iniciativas culturais. Na maioria dos casos essas posi¢des sao cambiantes, sobrepostas € se agrupam, conforme os fluxos de trabalho e as diferentes solicitagdes ¢ contextos. Cada uma dessas subareas, apesar de compartilharem entre si processos semelhantes, demanda conhecimentos especificos. Segun- do Nadia Goncalves e Sandro Goncalves: Cada elemento do campo é um agente, € os agentes de um determi- nado campo partilham um conjunto de interesses ¢ capital comuns, mais fortes que os antagonismos que possam ter, a0 mesmo tempo em que se trava uma luta concorrencial decorrente de relagdes de poder internas ao campo. Todos os campos caracterizam-se por possuirem, caracteristicas proprias, com dinamicas, regras, capitais especfficos € por um polo dominante e outro dominado, com possfveis gradagSes intermedidrias ¢ conflitos constantes, ¢ definidos de acordo com seus valores internos. (GONGALVES, Nadia: GONGALV! 2011, p.48). Sandro, Cientes da complexidade ¢ amplitude da trama que se tece no cam- po da produgao cultural, utilizamos as teorias de Pierre Bourdieu para nortear esta reflexo e subsidiar nossos questionamentos com base na sociologia da cultura. Alguns de seus conceitos sio de fundamental im- portincia para a elaboragao tedrica desta pesquisa, destacando-se den- tre eles, as nogSes de campo e subcampo, entendidos como referido espaco social onde se desenham as trajet6rias dos produtores. O autor assim define espago: [...] € de fato diferenga, separacao, traco distintivo, resumindo, pro- priedade relacional que s6 existe em relacio a outras propriedades. Essa ideia de diferenga, de separag3o, esté no fundamento da prépria es distintas ¢ coexistentes, ex- teriores umas 3s outras, definidas umas em relagdo as outras por sua nogio de espago, conjunto de posi exterioridade miuitua e por relagdes de proximidade, de vizinhanca ou de distanciamento e, também, por relacdes de ordem, como aci- ma, abaixo e entre [...] (BOURDIEU, 2001, p.18). Nesse trabalho, investigaremos esse espago por meio de uma pers- pectiva que posiciona o produtor cultural como elemento central no campo, uma vez que consideramos que este impulsiona e cede materia- lidade As demais instancias. A escolha se justifica porque, apesar de sua centralidade, o produtor cultural ainda € um elo pouco percebido neste sistema, tanto pelo cardter recente da atividade, como pela escassez de instituigdes formativas e até pela pouca de compreensio dos processos singularidades da prépria atividade. a Procuramos, entio, compreender como as distintas polfticas cultu- s, destacadamente aquelas relacionadas ao financiamento da cultura, mfluenciaram as conformagées do campo da produgio cultural, usando como exemplo o caso do Cearf. O que nos motiva € 0 desejo de in- vestigar como estas politicas impactaram e ainda impactam a produ¢io cultural, nao s6 no aspecto do desenvolvimento da atividade e amplia- cao do campo, mas, também, na indugio de discursos, valores e fazeres. Interessa-nos identificar e revelar a multiplicidade e complexidade de relagdes que se estabelecem, especialmente nos aspectos que dizem Tespeito as tensdes e disputas no Ambito do financiamento 3 cultura, como se configuram e o que podem revelar sobre a propria categoria <0 campo da produgio cultural, pois acreditamos — como assegura Bourdieu — que: Nao é demais afirmar que a histéria do campo € a histéria da luta pelo monopélio da imposicio das categorias de percepgio ¢ aprecia- cio legitimas; é a prdpria luta que faz a histéria do campo; € pela luta que essa se temporaliza. (BOURDIEU, 2008, p.88). F, pois, essa luta e essa trajetéria que nos propomos dar a conhecer. Como 0 Ceard tem experiéncias relevantes na gestao publica da cultu- ra, bem como projetos culturais reconhecidos nacionalmente, acredita- mos que se faz necessaria e pertinente uma reflex3o acerca do processo de criacdo deste segmento profissional e da experiéncia acumulada por sneio de tentativas, acertos e falhas nos caminhos percorridos. Nesse sentido, consideramos extremamente importante aprofundar o conhecimento acerca dos frageis mecanismos em que essa profissao se sustenta, bem como sua complexa relagdo de interdependéncia com as politicas publicas de financiamento & cultura. Assim, esta pesquisa bus- ca trazer novos olhares sobre essa realidade profissional, focando mais diretamente em seus elementos constitutivos € suas interfaces com as po- Iiticas ptiblicas vigentes, colaborando para a compreensio € visibilidade do sistema cultural em seu aspecto organizativo. E esse cendrio sobre o qual nos debrugamos em busca de resposta para relevantes indagagdes: qual a influéncia das politicas puiblicas de financiamento 4 cultura no campo da producio cultural ? Quais os ele- mentos constitutivos desse novo campo ¢ de que forma se estabelecem essas relacdes de poder e (inter)dependéncia entre seus agentes, no caso, os produtores ¢ 0 poder piiblico? Quais as disputas e tensdes que ocor- rem no interior do campo? Essas sio indagagSes que ganham maior preméncia na medida em que nos consideramos intrinsecamente ne- cessitados dessas respostas, ndo s6 quanto pesquisadora, mas, também, como produtora cultural e participe de todo esse processo estudado. ‘Ao observarmos 0 campo da produgao cultural no Ceara, desde meados da década de 1980, temos acompanhado as distintas etapas descritas na pesquisa ¢ vivenciado, no exercfcio desta respectiva ativi- dade as novas ¢ crescentes demandas do mercado. Nesse cenério cul- tural temos sofrido um processo de “profissionalizagio” e sentimos os reflexos causados no exercicio dessa atividade pelas diferentes politicas culturais, assim como os principais momentos e desafios no campo da producio cultural. Estivemos 4 frente e/ou participamos de relevantes projetos culturais realizados no Ceard nesse periodo e pudemos perceber, em seu proprio anterior, o processo de complexificagio do campo, as disputas e ten- sSes, as crescentes exigéncias de aperfeigoamento técnico e a escassez conhecimentos teéricos, que nos impeliram na busca por novos es- cos de conhecimento e atuacio politica para fazer frente aos crescen- ces desafios do campo cultural. Dessa forma, essa pesquisa surge como uma necessidade de gerar conhecimento e reflexio sobre uma ampla experiéncia prdtica e existencial. A nossa experiéncia em produgio cul- sural facilita o processo de imersio ¢ a prépria navegacao no campo. E importante destacar alguns fatores que se apresentam como as miaiores dificuldades para a realizagio deste trabalho: a contempora- neidade dos acontecimentos estudados, 0 que torna mais dificil uma compreensio retrospectiva e objetivada; e a auséncia de instituigdes consolidadas na drea, principalmente no ambito da produgio de co- nhecimento cientifico do setor, o que repercute na escassez de produ- ‘© tedrica sobre o tema. Porém, nenhuma delas é tao relevante como © cardter amplo, multiforme e complexo, inerente ao campo da produ- c4o cultural, nosso objeto de estudo. Fizemos escolhas para configurar o campo estudado em um uni- verso de possibilidades e priorizamos recortes que atendessem nosso objeto de interesse. Adentrar no campo da produgio cultural nos en- volveu tal qual uma aventura no fundo do mar, com seus seres desco- nhecidos, diversos, com uma variedade incomensuravel de formas e cores. Em qualquer lugar que se penetre nas profundezas do oceano, 2 possibilidade de descoberta ser diferenciada, condicionada ao ins- tante, 4 profiindidade, a localizacao, as correntes, ao clima e a outros aspectos que nos fogem ao controle. Sera sempre uma aventura miste- ot riosa € enigmitica essa expedi¢ao submarina e, a cada investida, novos cenérios e seres se descortinario, bem como diferentes descobertas so- bre o que pulsa e vive sob as 4guas e, em nenhuma, a possibilidade do conhecimento pleno e definitivo. Essa analogia traduz nossa percep- cdo e posicionamento sobre a dificuldade metodolégica que se impde, quando nos propomos a compreender e¢ identificar os processos que se dio no campo da produgao cultural. Para isso, se faz necessdrio um. recorte, limitado, mas, nem por isso, menos revelador. Nosso recorte seria investigacio do campo tendo como referéncia 0 trabalho de profissionais que lidam com a cultura, propondo e realizando seus projetos no Cear, ou seja, atuam no campo criando e desenvolven- do iniciativas culturais, 0 que requer nao sé competéncia operacional, mas também capital cultural. Estes produtores necessitam de recursos financeiros para viabilizar seus projetos, colocando-os em interface per- manente com as politicas ptiblicas de financiamento @ cultura. Para a selegio desses agentes, como jé foi dito, utilizamos a defini- cao jé apresentada de produtor cultural, priorizando aqueles que criam, viabilizam € administram seus préprios projetos, estando, portanto, envolvido nas multiplas dinamicas do campo. Visio esta que vem so- mar-se 4 defini¢io de José Marcio Barros, ao trazer uma denominagio ampliada de gestiio para a atividade: O gestor cultural é um mediador entre a dimensio subjetiva e sen- sfvel da cultura € os seus desdobramentos e interfaces com os outros campos da experiéncia humana [...] € uma espécie de roteador de informages alternativas ¢ possibilidades dinamicas de construgio de cendrios provaveis, mas também de cenérios utdpicos. [..]éum profissional da complexidade da cultura. E isso significa habilida- des, grandes habilidades do ponto de vista da andlise conceitual, metodolégica e também titica. (BARROS, 2008, p.111). 26 Os entrevistados so agentes que se reconhecem como prod e/ou gestores culturais e que se encontrem no exercicio da pro: Residem em Fortaleza, apesar de atuarem em diferentes municipios do estado. Dirigem empresas ou instituigdes culturais e se responsa- bilizam pela proposicSo e/ou realizacgio de projetos culturais préprios. estando sujeitos 4s correlagées de forga do campo cultural e que tém 2 atividade cultural como fonte de renda prioritéria, ou seja, encarada como categoria profissional. Buscamos, pois, revelar as percep¢ées e aspectos da trajetéria dos agentes que faziam producio cultural no final da década de 1960 © por toda a década de 1970; dos que iniciaram a atividade com a criacio das politicas de financiamento 4 cultura — federais e estadu- ais — nas décadas de 1980 ¢1990; e daqueles que ingressaram na drea jéna vigéncia das novas diretrizes politicas do século XXI, que pro- poem a visio da cultura em um espectro mais ampliado, no sentido antropolégico do termo. Para tanto, foram selecionados 20 produtores culturais que estio em relagio permanente com as politicas ptiblicas estudadas, a fim de relatar seus depoimentos e reflexes sobre 0 préprio campo. Ape- sar de se identificarem com a produgio cultural, estes entrevistados ©cupam lugares distintos no campo, o que confere aos depoimentos wisGes diferenciadas e complementares, que possibilitam a recom- Posi¢ao da riqueza e da diversidade dos fluxos e redes estabelecidas no 4mbito da cultura, recordando, sempre, que o contetido, hora 2presentado, ser4 somente uma parte do campo ¢ em determinado momento apreendido. Esse livro contém trés capitulos distribuidos de forma a possibilitar =ma compreensao ampla do tema e a percepgao das especificidades 0 campo. Inicia com uma abordagem do sistema de financiamento 2 Cultura no Brasil, passando pelas repercuss6es das polfticas ptiblicas no campo da produgo cultural, até chegar ao estudo do campo no Cearf, com suas conformacées, configuragées ¢ paradoxos. © capitulo intitulado “Financiamento a Cultura” apresenta a forma como se estabelecem as relagdes que se dao entre os de- tentores dos recursos financeiros € 0 campo da Cultura no Pais, questo fundamental para compreensio das dinamicas ¢ relagdes processadas no campo da produgio cultural. Introduz como essas relagdes se davam nos governos autoritérios, apresenta a criagio das Icis de incentivos e editais, seus distintos contextos sociais ¢ politicos e a repercussdo desses diferentes momentos na gestao da cultura no Brasil. Esse capitulo se mostra relevante devido a inten- sa relagdo (de dependéncia e tensa) que existe entre a necessida- de de financiamento ¢ 0 desenvolvimento do campo da produgio cultural. A perspectiva ampliada do sistema de financiamento 4 cultura faz-se necessdria para o posterior entendimento de como esas politicas afetaram os modos de ser e fazer da produgio cultu- ral em suas distintas diretrizes e contextos. Para isso, dividiremos o capitulo em trés tépicos. O primeiro, denominado “Financiamento 4 Cultura na so- ciedade contemporinea: modelos paradigmiticos,” traz uma breve apresentagao de dois modelos de politicas ptiblicas no que tange 4 questio do financiamento 4 cultura, no caso dos Estados Unidos e Franga, que exerceram influéncias no sistema implan- tado no Brasil. O segundo, intitulado “Polfticas de incentivo 4 Cultura no Brasil: leis e editais”, trata dos distintos momentos histéricos do financiamento 4 cultura em nosso Pais e se apro- funda na cria¢io das leis de incentivo no Brasil ¢ os ideais que animaram a formulacgao desses mecanismos. Aborda, também, a criagdo dos editais ptiblicos de apoio a projetos culturais como reflexos dos novos contextos politicos e diretrizes para a cultura. O terceiro t6pico, intitulado “Politicas culturais e financiamento 2 Cultura no Ceara”, traz uma visio de como 0 processo de cria- cao dos mecanismos de incentivo 4 cultura se deu no estado, nio s6 como reflexo das politicas nacionais, mas também com carac- teristicas e peculiaridades locais. Por fim, o tiltimo tépico, inti- tulado “Breves considerages sobre o sistema de financiamento a Cultura no Brasil”, diferentemente dos anteriores, que retratam © processo de criag4o e funcionamento das leis e editais, propée 2tealizacao de uma anilise das principais conquistas obtidas pelo sistema de financiamento 4 cultura do Brasil, assim como a iden- tificagio de suas contradigdes, distorgdes e fragilidades. Todas essas questées sao relevantes para a compreensdo de como esses mecanismos atuam na conforma¢io do campo da producio cul- taral no Brasil e seu territdrio, particularmente no Cear, objeto dessa pesquisa. O capitulo seguinte tem como tema “O campo da produ- <40 cultural e as politicas publicas de financiamento 4 Cultura” e aborda mais diretamente as questSes centrais para a pesquisa, uma wez que é aqui que comega a se delinear a compreensio do campo da produgio cultural e as formas como este foi e continua sendo tetado pelo sistema de financiamento 4 cultura no Brasil. Dedica especial atengao 4 busca da compreensao da atividade da produ- =o cultural, sua fungio e relevancia para o sistema da cultura e do registro de suas prdticas e processos. Traz, também, reflexdes gue fornecem elementos para a percepgao das ocorréncias e flu- os que se estabeleceram nos tiltimos anos no campo da produgio cultural no Brasil, apresentando a multiplicidade de atores, suas namicas internas e as principais rotinas e atividades realizadas Por esses profissionais no exercicio de sua atividade. Sao elencadas, ainda, as diversas demandas e reas de conhecimento exigidas de 29 um produtor, que refletem a complexidade do campo da produgao cultural no Brasil contemporaneo. Organizado em trés t6picos, o primeiro tendo como subtitulo “Compreendendo 0 lugar: percursos ¢ nomeagées”, reflete sobre © processo de construgio da atividade ¢ o “lugar” conferido a es- ses agentes no campo cultural, além de apresentar suas inser¢des em distintos contextos ¢ nomeagées. O segundo tépico, intitulado “Producdo cultural: uma atividade complexa ¢ ainda em forma- 40”, trata da dificil classificagao da atividade, suas diversas formas de atuacio e suas priticas. Aborda as precdrias condigdes de trabalho ea incipiente regulamentagio dessa categoria profissional no Brasil. “Ag politicas ptiblicas ¢ a produgSo cultural no Brasil” ¢ 0 ultimo tdpico ¢ identifica os fatores que impulsionaram a profissionaliza- cio da producio no Brasil, relacionando-os com as diversas politicas piiblicas e criacdo dos mecanismos de financiamento 4 cultura. O capitulo final, intitulado “O campo da produgio cultural no Ceard” apresenta a pesquisa propriamente dita ¢ tem fundamental importincia, uma vez que traz a percep¢io dos préprios produtores que, por meio dos depoimentos, expSem suas trajetérias ¢ narrati- vas em torno de temas como 0 ingresso na atividade, a percepgao da producio cultural e do campo da cultura no Ceard, as conforma- gdes que as politicas piblicas de financiamento 3 cultura tém sobre a sua atividade e as formas de reinvengio e resisténcia, que encontram para lidar com estas. Organizado em dois tépicos, traz no primeiro, intitulado “Per- cursos e conformagées”, uma breve reconstitui¢io histérica de como se organizou o campo da producio, desde o periodo que antecede a criacio das leis de incentivo até os dias atuais. O t6pi- co confronta percursos individuais ¢ coletivos e busca identificar como as distintas polfticas agiram na conformagio do campo da produgio cultural no Cear4. O segundo tépico, “Configuragdes e paradoxos”, elucida as diferentes configuragSes no campo da produgio cultural hoje, apresentando suas relagdes de disputas, tens6es e paradoxos. Nossa intengao, nao é sé reproduzir acritica- mente os contetidos da fala dos produtores, mas refletir sobre eles, fazendo correlagdes com as disposic¢des do campo e inserindo-as no contexto das politicas publicas, do campo da produgio cultural no Brasil e da sociologia da cultura. 31

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