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A cano dentro

Domingo. Janelas fechadas. O inverno chuvoso permeia os dias. Sozinho dentro de casa.
Dentro da cabea ressoa uma cano h muito no ouvida. No consegue se lembrar do refro ou de
qualquer parte da letra, tem apenas um ritmo, uma espcie de toada. Concentra-se, olha os cds na
busca por um esclarecimento. Tenta cantar. Nada acontece. Apenas a melodia acariciando sua
cabea. Apenas um resqucio de som. Resolve usar a tcnica do esquecer para de repente lembrar.
Ouve outras canes, l alguns poemas, toma um caf, ri de algum vdeo estpido na internet, liga a
televiso, desliga. Abre as janelas, inicia uma faxina, volta a viajar na internet. Nada acontece. A
tcnica do esquecimento no funciona, a cano est l, ressoando, pulsando, pedindo para ser
liberta. Quando ser que ouviu? Quando ser que ouviu pela primeira vez? Por que essa cano
ressurge agora como um fantasma, um pedao de sombra e som dentro de sua cabea, fazendo seu
domingo montono se tornar uma busca, um rastreamento atrs de uma cano. O pior que no
pode nem pedir ajuda, chamar algum, tentar repetir a melodia, aquele lalai que se faz quando no
se conhece a letra. Nada, ser um domingo de investigao. Ser um domingo de busca por algo
que no quer ser buscado, que quer apenas estar dentro da cabea, envolvendo memrias e
esquecimentos, deveneios e sonhos. Talvez tenha apenas sonhado uma cano e agora fique assim,
tolo, perdido, fechado num domingo fechado em busca de uma cano. Tenta desistir, retorna
faxina, mas a casa pequena demais para que se ocupe por mais tempo. Fome no tem. Liga
novamente a televiso. Mais do mesmo. Resolve dormir. Talvez sonhe realmente com essa msica,
talvez saiba do que se trata. No consegue. Pensa em sair. Duela com a preguia e com a chuva,
duas coisas que insistem para ele: fique em casa, tente mais um pouco, logo voc se lembrar, se
libertar disso, logo tudo voltar ao normal, logo ser segunda-feira. Obedece preguia e
chuva. Fica em casa. Deita-se no sofa, fecha os olhos, o que era melodia torna-se uma frase: estrela
de cinco pontas. Conseguiu, uma pista, um pedao da cano. O resto do domingo foi pleno pois ele
era um menino brasileiro que atravessava o imenso vu de brilhos e escurides.
Rubens da Cunha

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