You are on page 1of 15

A REVOLTA DO ESPÍRITO

A RACIONALIDADE COMO QUESTÃO


A máquina e o indivíduo são considerados como dados adquiridos
pela sociedade ocidental: é a revelação bíblica que permitiu que isso
acontecesse1. A Bíblia rejeita as magias cósmicas porque Deus criou tudo: a
criatura existe somente pela vontade divina que lhe dá consistência e
transparência. O mundo não é uma ilusão, um túmulo: é uma realidade boa,
uma linguagem entre Deus e o homem. O homem percebe a essência
espiritual das coisas, percebe nelas uma palavra divina e essa palavra ela a
retribui a Deus depois de ter feito ela sua, marcando-a com o próprio gênio. A
meditação da Igreja antiga – que sintetiza a regra de fé elaborada pelos sete
grandes concílios ecumênicos – tornou possível o desenvolvimento da ciência
e da técnica “ocidentais”. Os mártires destruíram a sacralização opaca do
poder, a divinização do estado. Os monges destruíram a sacralização opaca do
eros, da terra e dos astros. A historia e o cosmos foram arrancados aos deuses
e entregues ao homem, na medida em que o homem se reconhece criatura,
onde sua técnica permanece ao serviço da celebração. Os tempos da
cristandade elaboraram os sinais de um divino-humanismo.
Ao mesmo tempo, os concílios ecumênicos elaboraram para uma
melhor aproximação, primeiro do mistério divino e, depois, em Cristo, do
mistério aparentado do homem, a noção de pessoa da qual não temos quase
mais idéia hoje porque a confundimos com a de indivíduo. Em Deus, a pessoa
é um “modo de subsistência” única da insondável “supra-essência” divina: isso
quer dizer que a pessoa existe somente na relação. No Corpo “crístico”, pelas
chamas do Espírito, o homem recebe a possibilidade de participar dessa
existência trinitária: enquanto pessoa chamada por Deus e suscitada por essa
chamada, ele ultrapassa radicalmente o mundo, não é um fragmento da
humanidade e do universo mas as carrega dentro de si para comunicar-lhes a
vida verdadeira. Revelação imensa que supera ao mesmo tempo a solidão
ocidental, a do indivíduo, e a fusão oriental, a do divino impessoal, de um

1
CLÉMENT, Olivier, La révolte de l’Esprit, Paris, Stock/Monde Ouvert, 1979 cap. 1
cosmos sagrado. Os temas inseparáveis da pessoa e da comunhão tornaram-
se o motor segredo da história.
A separação do Ocidente e do Oriente cristãos, durante a segunda
metade da Idade Média, modificou profundamente o contexto espiritual onde se
desenvolveu a civilização da técnica e da pessoal. Bizâncio elaborava, no
século XII, uma teologia das energias divinas que, do Ressuscitado, penetram
o corpo do homem, a terra e as obras da cultura. Bizâncio foi atingida pelo
duplo ataque do Ocidente latino e do Oriente muçulmano: quer dizer, numa
esquematização extrema, de um mundo onde o humano ia tornar-se
maciçamente, inacessível ao divino e de um mundo onde o divino
permaneceria maciçamente inacessível ao humano. Significativamente
transmitido pelo Islã, quer dizer um universo espiritual que ignora a
encarnação, o substancialismo de Aristóteles, que fecha os homens e as
coisas na sua substância própria, quase proibiu pensar a comunhão dos
homens com Deus e entre eles em termos de participação real. A relação do
criado para o não criado não foi mais de possível transparência mas
unicamente de causalidade.
A partir daí, o cristianismo tende na direção de um pietismo em
relação ao mundo, seja a uma ética implicando dominação sobre um mundo
aparentemente “neutro”. A experiência mística, dissociada da especulação
teológica, não fecundou mais o pensamento cristão e achou-se marginalizada.
Simultaneamente, desapareceu a noção de uma “consubstancialidade” real de
todos os homens, membros uns dos outros. Apesar do esforço de Tomas de
Aquino para desengajar o ser existencial da substancia, a escolástica retomou
a definição filosófica da pessoa como indivíduo – substancia individualizada –
de uma natureza razoável2. A comunhão das pessoas tornou-se então um
acordo puramente moral, uma similitude e não mais uma identidade no ser. A
pessoa não é mais esse absoluto que engloba o “todo” da humanidade e do
universo e lhe dá seu rosto; é uma parte da humanidade, um indivíduo
caracterizado pela mais altas faculdades de sua natureza, o conhecimento e a
vontade (ainda que todo esse conhecimento é inteiramente tirado do sensível).
Somente as noções de “alma” e de “coração”, na mística, salvaguardaram a

2
Ver a esse respeito a análise DE LIMA VAZ, Henrique C., Raízes da modernidade, escritos de
filosofia VII, São Paulo, Edições Loyola, 2002
concepção original de “imagem de Deus”. Assim passamos da pessoa
espiritual, que engloba o mundo, para o individuo que o mundo engloba e
explica. A comunhão se expressa na antinomia do ser e das pessoas, da
unidade e da diversidade. Os dois pólos da antinomia começaram a ser
dissociados no Ocidente quando a ruptura com o Oriente tornaram fatais a
Reforma e a Contra-Reforma.
O quinto concilio ecumênico, celebrado em Calcedônia em 451,
lembrou que o próprio Deus “sofreu a morte na carne”. É o Verbo encarnado,
“Um da Santa Trindade”, que, na cruz, conhece humanamente a angústia da
solidão e do abandono. Tal é a “loucura de amor”, segundo os padres gregos,
que é o único meio de convencer, sem constranger, portanto, sem anular,
nossa liberdade. A criação implica como se fosse uma retirada de Deus cuja
onipotência se expressa na fraqueza voluntária do amor. A teologia ocidental
teve dificuldade em expressar a limitação voluntária da onipotência divina e lhe
deu uma desumana supra-humanidade. Desse Deus pensado contra o homem
nasceu a afirmação do homem contra Deus. Saberes e técnicas constituem-se,
na política, na medicina ou na psicologia, para lutar contra a angústia
fundamental, reduzir as conseqüências destruidoras do acaso e da
necessidade. O concilio de Calcedônia pode ser, talvez, considerado como o
maior dos concílios ecumênicos porque celebrou no Cristo a união do humano
e do divino sem separação nem confusão.

A NEUROSE ESPIRITUAL DO OCIDENTE


O cristianismo ensina que a pessoa, segunda a medida de sua fé, é
apanhada num grande movimento de ressurreição3. No coração eucarístico da
Igreja como no “coração” espiritual de cada homem, o Cristo não cessa de
vencer a morte. A humanidade e o universo são engajados numa imensa
metamorfose que a santidade antecipa e cujo desfecho ela apressa. O ocidente
aprendeu do cristianismo que a pessoa é única, mas a ressurreição foi
esquecida. Desde o fim da Idade Média, o cristianismo ocidental colocou frisou
o “julgamento particular”, como se tudo fosse jogado na morte do indivíduo.
Tornou-se a religião da “alma”, no seu sentido dualista oposto ao corpo, e não

3
CLÉMENT, ibid. cap.2
da pessoa na sua inteira encarnação. Estamos longe da concepção dinâmica e
de comunhão da Igreja indivisa que orava (como o faz ainda a Igreja ortodoxa
nas vésperas do Pentecostes) para todos os mortos, incluindo os que estão
“nos infernos”, concepção segundo a qual os santos e o Cristo esperam e
preparam a vitória definitiva e universal sobre a morte. No Ocidente, somente a
oração para as almas do purgatório conservou um pouco dessa visão original,
mas mesclando ela com considerações jurídicas e exigências financeiras que
levaram à sua rejeição pela Reforma.
No fim da Idade Média,e em certas correntes da Contra-Reforma,
uma predicação centrada na ameaça do inferno, a multiplicação na arte das
“danças macabras” e uma teologia que parece ignorar a descida do Cristo nos
infernos, tudo contribuiu a fazer do cristianismo a religião da tragédia e da
imortalidade da alma muito mais do que da jubilosa ressurreição dos corpos.
Enquanto os corpos ressuscitam assim mesmo nas estatuas antigas exumadas
pelos humanistas, o cristianismo se justapõe à cultura sem vivificá-la. Os
movimentos de pauperismo evangélico encontram no Apocalipse a promessa
de um reino de mil anos, na terra, para os justos ressuscitados. Contudo esse
reino não suscita uma santidade criadora e se anuncia no ferro e no fogo de
revoluções sangrentas e cegamente reprimidas. O humanismo das utopias com
horizonte puramente terrestre levam hoje à vontade de esquecer a morte.
Do cristianismo, o Ocidente guardou a certeza do caráter único da
pessoa ou, mais exatamente, do indivíduo, mas não a mensagem da
ressurreição. As respostas arcaicas ao enigma da morte tornaram-se
impossíveis para quem sabe que é único. Não se consegue mais fundir-se na
imensidão (fusão testemunhada pela culturas de cremação dos cadáveres),
como se o indivíduo fosse simplesmente um agregado de elementos
emprestados do grande jogo cósmico. Não se pode mais acreditar na
transmigração de um dublado, transmigração onde, para os espirituais da Índia,
ninguém transmigra em definitivo, a não ser o absoluto, o Si mesmo único de
todas as existências. Por isso, a morte nunca esteve tão nua, uma morte no
seu estado bruto, poderíamos dizer, e, portanto, impensável. Essa morte
impensável e bruta, é a angústia pura, é o inferno. A angústia envenena tudo,
provoca uma verdadeira neurose espiritual. O desejo do homem acaba
investido e invertido no consumo neurótico. Pode-se também enganar a
angústia pela espera, lírica ou violenta, de uma sociedade perfeita. O erotismo,
as drogas propriamente ditas, um certo uso da música ou da velocidade,
técnicas de êxtase desenraizadas em relação ao seu lugar de origem, os
grandes medos e os grandes ódios abstratos da política: quer se dar para a
vida uma tal intensidade que não teria mais sombra nem morte. Contudo a
morte tem sempre a última palavra. Sobra a possibilidade do suicídio. Quantos
jovens se matam hoje porque nada mais tem sentido? Quantas depressões
nervosas não se explicam por essa ausência de sentido? O crescimento do
niilismo torna possível um suicídio da espécie.
Hoje o silencio foi rompido. O tema da morte reaparece com força no
pensamento filosófico, histórico e médico. Denuncia-se o escândalo de tantas
mortes solitárias e inconscientes, de tantos velhos abandonados. Assim está se
preparando uma metamorfose do ateísmo. Parece que vem o tempo de uma
ternura atenta e triste, sem esperança descrita assim por Dostoievski:

“Após as maldições, os lançamentos de lama e os apitos, chegou a calma


e os homens ficaram sós, como eles queriam: a grande idéia de outrora os
deixou; a grande fonte de energia que até aqui os alimentou e aqueceu se
retirou, como o sol majestoso e sedutor do quadro de Claude Lorrain, mas
agora era o último dia da humanidade. E de repente os homens
compreenderam que tinham ficado completamente sós, sentindo
bruscamente um grande abandono de órfãos. Meu caro menino, eu jamais
pude ver os homens como ingratos e abobalhados. Os homens tornados
órfãos se apertariam subitamente uns contra os outros, mais estreita e
afetuosamente; eles se tomariam as mãos, compreendendo que dali em
diante eles seriam todos uns pelos outros. Então desapareceria a grande
idéia da imortalidade e seria preciso substituí-la; todo esse grande excesso
de amor por aquele que era a imortalidade se voltaria para a natureza, o
mundo, os homens, cada folhinha de relva. Eles se apaixonariam pela
terra e pela vida irresistivelmente e à medida que fossem tomando
consciência de sua condição passageira e finita, de um amor particular,
que não seria mais o de antigamente. Eles notariam e descobririam na
natureza fenômenos e mistérios até então insuspeitados, pois eles a
olhariam com novos olhos, com o mesmo olhar de um apaixonado para
sua bem-amada. Eles acordariam e se apressariam a se beijar e a se amar
uns aos outros, sabendo que seus dias efêmeros é tudo que lhes resta.
Eles trabalhariam pelo outro, dando tudo a todos e com isso seriam
felizes. Cada criança saberia e sentiria que todo homem sobre a terra era
para ela um pai e uma mãe. “Que amanhã seja meu último dia, se diriam
todos olhando o sol poente; eu morrerei, mas pouco importa: eles
continuarão, todos, e depois deles, seus filhos” – e este pensamento de
que permanecerão, continuando a se amar e a se preocupar com uns com
os outros, substituirá a idéia do encontro no além-túmulo. Oh! Como eles
buscariam se amar, para sufocar o grande desgosto em seus corações.
Eles seriam orgulhosos e arrojados para si mesmos, mas tímidos para os
outros; cada um se empenharia pela vida e pela felicidade do outro. Eles
se tornariam ternos para com os outros sem se envergonhar, como hoje,
eles se acariciariam como se fossem crianças. Ao se encontrarem se
olhariam com um olhar profundo e cheio de inteligência, e em, seus
olhares haveria amor e tristeza.”4
Nessa perspectiva, pressentimos que a angústia ocidental que se
torna planetária constitui propriamente hoje o inferno onde desce o Cristo. É aí,
a partir daí e em nenhum outro lugar que o Ressuscitado nos ressuscita. A
Igreja nada mais é do que o “cálice eucarístico” onde sobre-abundam as
energias divinas para a vida do mundo.

A PESSOA E O MUNDO
Na tradição cristã, a pessoa e o absoluto coincidem como coincidem
o conhecimento e o amor5. O amor cristão, contrariamente ao bhakti hindu, não
é uma etapa em direção da “não dualidade” onde são abolidos Deus e o
homem. No Deus vivo, a plenitude de sua Unidade não engole a diferença
pessoal: acha-se em tensão com ela. Em Deus, cada pessoa só contem a
unidade pela sua relação com os outros. O abismo é inesgotável somente
porque ele se abre no “seio” de uma Pessoa, o Pai, “fonte” da divindade. O
abismo evoca um amor, uma iniciativa, uma intenção pessoal. O Verbo do Pai,
sua Sabedoria que carrega os mundos, tende para ele, é Um com ele, e,
contudo, um Outro, o arquétipo eterno do homem. E o Espírito, o Sopro do Pai,
enuncia o Verbo, repousa sobre Ele, atrai todos os seres em direção de sua
realização, no Verbo, “para o seio do Pai”. Ora o Verbo se fez carne, e revelou
que o homem é também, na imagem de Deus, uma pessoa espiritual.
Ninguém é desse mundo, diz a revolta do Espírito. A pessoa
espiritual não é desse mundo. Mas ela faz existir nela, numa imensa circulação
eucarística, a natureza criada inteira, ela é essa natureza e portanto a
ultrapassa. Porque ela mesma não poderia ser pensada em termos de ser ( o
“ser pessoal” dos escolásticos é uma contradição nos termos). Não mais do
que Deus, ela não poderia simplesmente ser pensada. A pessoa é um segredo,
uma distancia, ela se revela nas suas “energias”, sua presença, seu estilo, seu

4
DOSTOIEVSKI, Feodor, L’adolescent, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, 1956, p.
511-512. O trecho foi traduzido do francês por Heloisa G. Bartoli
5
CLÉMENT, ibid. cap. 3
amor, sem cessar de permanecer escondida. É por isso que a relação da
pessoa com a pessoa, do homem com Deus, do homem com seu próximo, é
um “não conhecimento” dinâmico: mais somos um com o outro, mais ele nos
enche da sua presença, da sua revelação, da sua graça, e mais a distância se
afirma, mais ele aparece maravilhosamente além. Não tem passagem até o
limite, de coincidência, de absorção, de nirvana, mas a tensão sempre viva do
amor pessoal. O verdadeiro lugar da pessoa não é o sujeito filosófico, o eu
psicológico: é esse chamado para a comunhão e este movimento para a
comunhão. O símbolo chave da mística judeu-cristã não se acha na êxtase
erótica mas sim no amor paciente e fiel, não no instante descontínuo, mas na
duração que a verdadeira eternidade invade aos poucos. O Novo Testamento
designa a Igreja (quer dizer a humanidade, o cosmos e cada alma engajada
nos caminhos da deificação) as vezes como o “corpo” e as vezes como a
“esposa” do Verbo.
Seria uma longa e difícil história contar, nas teologias dominantes no
Ocidente, desde o fim do século XIII, o desbotamento, senão do mistério da
pessoa, pelo menos de suas expressões. Nas especulações escolásticas, as
Pessoas divinas não contêm a essência: elas se inscrevem nela por um jogo
de “oposição de relações”, de modo que se torna impossível, a menos de cair
no panteísmo, de afirmar que Deus torna-se realmente participável através de
sua distância. Aos poucos, a pessoa humana foi pensada como um indivíduo
cuja relação com os outros é puramente moral, intencional. Indivíduo do qual a
Reforma afirma de novo o caráter absoluto na decisão da fé, mas em poder
mais sugerir a transfiguração de sua natureza. Por isso, ela opõe ágape, amor
que vem de cima, ao eros brotando de baixo, e o irracionalismo à racionalidade
excessiva, ou mais exatamente em via de autonomia, da escolástica, sem
poder reencontrar a inteligência contemplativa do cristianismo original, do qual
São Tomás, comentador do Areopagito, conservava ainda muitas coisas.
Instaurou-se assim entre Deus e o homem, e principalmente entre o Cristo e o
cristão, uma relação de indivíduo para indivíduo. A imitação do Cristo não se
cumpriu mais numa integração, o encontro indispensável com Jesus não se
tornou mais “vida em Cristo”. O Corpo do Cristo não foi mais ressentido como
um corpo cósmico onde superabundam as energias do Espírito, o poder da
Ressurreição.
Hoje cresce em reação o desejo de Deus desconhecido, segredo,
inocente, de um Deus que seja o “Sopro do homem”. Crescem, na implosão do
aristotelismo, a atenção ao mistério dos seres e das coisas, o gosto pelo
silêncio e a interioridade e a espera de um sagrado inseparável da terra. Daí,
por um lado, a voga das espiritualidades orientais, que guardam o sentido
arcaico do mundo como teofania, que se apresentam ao Ocidente das técnicas
não como uma fé, com sua ruptura e seu risco, mas como outras técnicas,
orientadas para o “espaço de dentro”. Por isso, o discernimento espiritual do
fim do século deverá considerar o significado cristão dessas experiências. Não
oporá mais o cristianismo e as espiritualidades orientais na sua inocência
original, ao mesmo tempo crepuscular porque o paraíso se vela cada vez mais.
Oporá certamente o cristianismo e a utilização, mais exatamente a inversão
dessas experiências pelo niilismo. A “morte do homem” significará a superação
do eu em direção da comunhão, ou a regressão aquém do eu em direção de
um funcionamento impessoal, fluxos e cortes de fluxos, das “máquinas que
desejam”, segundo a expressão de Deleuze e Guattari no Anti-Édipo? As
espiritualidades orientais conseguirão sua realização no cumprimento da união
crística do divino e do humano, sem separação nem confusão, ou servirão a
vontade de poder dos novos gnósticos? Permitirão, no salto da fé, ultrapassar
este mundo e suas técnicas, ou virão alargar no pseudo-infinito as técnicas
ocidentais do psiquismo para absolutizar esse mundo numa plenitude
indiferenciada, por isso mesmo indiferente às escolhas éticas?

DA TERRA DESFIGURADA AO AMOR SEM ROSTO


Existe a necessidade de uma reflexão espiritual sobre a “natureza da
natureza” e sobre a relação que a humanidade estabelece com ela. A técnica
não representa um destino inelutável: um certo uso da técnica pode significa
vontade de poder, de lucro, de posse carregadora de morte. Na sua Filosofia
da economia, Serge Boulgakov afirmava que a humanidade, na sua relação
com a natureza, devia escolher entre um processo de vampirismo, finalmente
destruidora, e uma atitude de respeito, de transfiguração inspirada pela
eucaristia6. O pensamento ecológico extremista, que denuncia ao mesmo
tempo a técnica e a racionalidade, gostaria de voltar para uma Terra-mãe na
qual desapareceria. Nostalgia que alcança a moda das espiritualidades
orientais onde o homem se funde na imensidão, no impessoal, pela mediação
do cosmos sagrado.
Entre a civilização do consumo e o pensamento ecológico
irresponsável, a concepção cristã das relações do homem com a terra poderia
constituir uma inspiração. Segundo essa concepção, o homem é uma pessoa
que não é desse mundo e a terra lhe é entregue para que ela se torne oferenda
e partilha, linguagem de amizade e de beleza entre Deus e o homem e entre os
próprios homens. As sociedades tradicionais ignoram o caráter absoluto da
pessoa. Não é abolindo o indivíduo, afogando ele na matriz térrea que se
assume a herança das sociedades tradicionais, a herança do mito, mas numa
poética da comunhão das pessoas e da santificação das coisas. Nesse sentido,
é preciso sublinhar a positividade da ciência e da técnica que libertaram o
homem das fusões sociais e cósmicas, quase sempre seladas pelo assassinato
ritual. O drama é que a civilização técnica aconteceu num momento em que o
cristianismo, machucado pela separação do Oriente e do Ocidente, perdia sua
capacidade de transfiguração e esquecia o chamado a santificar a terra. Cabe
a nos superar esse grande cisma para mostrar que a indispensável
dessacralização do cosmos realizada pelo judeu-cristianismo é somente uma
etapa: se o homem em Cristo é ao mesmo tempo a imagem de Deus e a
síntese do universo, ele achará a força para introduzir na civilização técnica o
fermento sacramental, e transformá-la num ponto de vivificação da terra.

CRISE DO CRISTIANISMO OCIDENTAL


O que impressiona na cristandade indivisa do primeiro milênio,
nesse período patrístico, fechado muito rapidamente no Ocidente pelas
grandes invasões mas que durou no Oriente até o século VIII, ou talvez até o
século XIV, é o poder de síntese e de fidelidade criadora que manifestam o
pensamento e a cultura cristã. O Espírito de vida circula livremente, vinculando
sempre uma leitura litúrgica e monástica que extraem o sentido profundo das

6
BOULGAKOV, Serge, Philosophie de l’économie, Lausanne, Éditions l’Age d’Homme S. A.,
1987
Escrituras, a celebração dos “mistérios”, uma mística onde se concentra uma
experiência comum, uma teologia contemplativa que faz da linguagem um
instrumento da adoração, uma sociologia inspirada por uma visão “trinitária” da
humanidade, uma criação de beleza propriamente divino-humana unindo numa
vasta liturgia ao redor da liturgia as artes do espaço e do tempo. De concílio em
concílio, afirma-se e afina-se um pensamento cristão original, uma ontologia do
mistério e da pessoa, transcrição intelectual, sem complacência com a
especulação, da experiência eclesial, “vida em Cristo” e “comunhão no
Espírito”. O homem eclesial encontra na graça que o chama e lhe dá seu ser a
“consubstancialidade” com todos os homens. Une seu sopro ao Sopro
vivificante enunciando com Ele o Nome de Jesus. Reconstitui, nas energias
divinas, a unidade de sua inteligência e do seu coração, reconstitui o “coração-
espírito” transparente na luz da transfiguração, da ressurreição, já da segunda
vinda do Senhor. A última Bizâncio aprofunde essas perspectivas com as obras
de Gregório Palamas e Nicolas Cabasilas.
A partir do século XIII, o Ocidente, envolvido no renascimento do
Aristotelismo, tentou constituir a teologia como ciência, colocando a razão
supostamente natural ao serviço da revelação. O tomismo no seu inicio em
continuidade com a patrística, conserva um belo equilíbrio entre uma reflexão
que se pode chamar de filosófica, uma leitura quase litúrgica da Escritura e
uma “sensibilidade” contemplativa que frisa a transformação da alma pela
forma caritatis. Contudo, São Tomás demitologiza o tema da deificação que ele
considera como uma metáfora, a expressão de uma comunhão moral,
intencional sem a participação real do homem inteiro (incluindo seu corpo) a
Deus inteiro. A baixa escolástica não consegue mais dar conta da grande
antinomia do Abismo e da Cruz, do Inacessível que se torna participável sem
cessar de ser inacessível, porque ela fecha o Deus vivo numa essência
intelectual. Ela se compromete sem volta com uma filosofia demasiadamente
humana, uma ontologia que não designa mais o inesgotável da pessoa e o
conteúdo da comunhão, e ela pretende constituir-se em ciência racional das
coisas. Assim, a natureza, supostamente “neutra”, foi entregue a uma
racionalidade e, portanto, a uma técnica que a graça não iluminava mais.
Assim a unidade da Escritura, do sacramento, da teologia e da espiritualidade
estava perdida.
No fim da Idade Média, no jogo fatal dos desequilíbrios
desencadeado pelo cisma com o Oriente, tudo estava pronto para que, à
racionalização do mistério, fosse oposta uma “irracionalidade” pelo
nominalismo e a Reforma. Esquematizando, o Ocidente cristão acaba entrando
numa dialética sem saída entre duas concepções da Igreja, que predominam,
uma no catolicismo romano e a outra nas comunidades oriundas da Reforma,
mas se cruzam em cada uma das correntes. Uma dessas concepções preserva
o realismo dos sacramentos, mas não consegue bem dar conta da comunhão
das pessoas e de sua liberdade no Espírito. A outra que leva a termo a
“demitologização” tem dificuldade em levar a sério a encarnação da Palavra:
teria uma “co-carnação” mais do que uma “en-carnação”, porque o divino
permanece exterior ao humano, e que os meios da graça são entendidos mais
como uma confirmação da fé. Essa, na sua primeira aceitação, significa adesão
a um conteúdo intelectual; na segunda colocação, uma coloração existencial.
Não mais esse encontro eclesial de Pessoa para pessoa que metamorfoseia o
tudo do homem, inclusive seu pensamento. Mesmo a piedade eucarística
católica não teve a teologia que merecia: a “transubstanciação” permanece, no
mundo das substancias closes, um golpe de estado metafísico que não se
prolonga numa transparência do universo para as energias divinas.
Daí vem um certo desaparecimento da pessoa e do papel do
Espírito na teologia ocidental. O Espírito “procede do Pai”, diz Jesus no
Evangelho de João. Os Padres gregos, elaborando uma teologia ao mesmo
tempo bíblica e mística, notaram que o Espírito repousa de toda eternidade
sobre o Filho, manifesta-se por ele, mas também, assim como o Sopro para a
Palavra, o enuncia e o manifesta. Existe entre o Filho e o Espírito uma
misteriosa reciprocidade: juntos, segundo João Damasceno, eles vêm do Pai,
juntos eles voltam para Ele, levando a criação inteira em direção à sua
plenitude. Essa reciprocidade, esse serviço mútuo inscrevem-se na Igreja por
uma relação análoga entre a ação do Cristo e a do Espírito. A ação do Cristo, a
integração sacramental que acontece nele, a plenitude objetiva que funda a
Igreja, são atestadas pelo testemunho apostólico dos bispos e, por eles, dos
padres. A ação do Espírito confirma as liberdades pessoais em comunhão e
multiplica os carismas. O Espírito, segundo Gregório de Nissa, constitui a
unção eterna do Filho; ele constitui a unção messiânica do Filho encarnado,
Jesus, o “Cristo”, quer dizer o Ungido pelo Espírito; ele repousa, enfim, sobre o
corpo sacramental da Igreja, para fazer de todos os crentes “pneumatóforos”:
“carregadores” do Espírito que os torna, na livre unidade da fé e do amor, reis,
sacerdotes e profetas.
A especulação escolástica vai endurecer a formula “filioque” dando
ao Espírito uma espécie de passividade quase impessoal porque o Espírito,
enquanto Pessoa, não é somente o vínculo de amor: é também quem suscita o
amor. E o risco, na sensibilidade popular, foi reduzir a Trindade à dupla Pai e
Filho “em suspiro de amor”, do Pai e do Filho que, como “um único princípio”,
fazem existir o Espírito. Essas formulas estabeleceram principalmente uma
espécie de dependência unilateral do Espírito em relação ao Filho. Esta é
reencontrada na Igreja onde a ação do Espírito se encontrou submissa à
hierarquia, as vezes abafada por ela. O corpo do Cristo não foi mais percebido
como o lugar de um Pentecoste continuado, mas como uma sociedade
piramidal, cada vez mais centralizada, onde a última palavra pertence ao
“vigário de Cristo”.
Aqui se coloca a tragédia do papado. É impressionante que duas
das palavras que definem no Evangelho a vocação de Pedro sejam quase
imediatamente seguidas de terríveis advertências (Mt. 16, 23 e Lc. 22, 32. 34).
Se couber aos católicos aprofundar as promessas que fundam sem
contestação um ministério de unidade na Igreja universal, pertence aos
ortodoxos (e aos protestantes) de lembrar as advertências, não para rejeitar o
ministério de Pedro, mas para que Pedro “se converta” e se torne o pecador
perdoado (Jo. 21, 15-17). A primazia encontra-se desde o início na comunhão
do colégio apostólico: Pedro é o primeiro, mas, se ele é chamado a
“firmar”seus irmãos, não é ele que funda e justifica seu apostolado; este vem
diretamente do Cristo; isto é claramente manifestado pela vocação de Paulo,
reconhecida por Pedro, confirmada por ele mas não determinada por ele, assim
como o destino de João escapa dele (Jo., 21, 23). As três palavras do Cristo
que precisam o ministério de Pedro (Mt. 16, 16-18; Lc 22, 32; Jo. 21, 15-17)
estão todas situadas num contexto de ressurreição e eucarístico. Ora é a
celebração da eucaristia e não o vínculo com Roma que, para a Tradição
antiga, funda a ecclesialidade de uma comunidade local. Entre o povo, os
bispos e o papa, o vínculo não é de subordinação crescente mas de tensão
viva, de cooperação sinfônica: a igreja está no bispo e o bispo está na igreja, o
primeiro bispo faz parte do colégio apostólico de todos os bispos para o qual
cada um é chamado pelo Cristo, chamado confirmado pela eleição do seu povo
e pela consagração que realizam três bispos vizinhos. A última palavra, nessa
vasta sinfonia, pertence ao Espírito Santo.
De 1049 a 1073, produziu se a revolução onde o Oriente cristão ia
ver a traição da fé de Pedro pelo sucessor dele; os dictatus papae de Gregório
VII afirmam que “somente o pontífice romano merece ser chamado universal”,
“sozinho ele pode depor os bispos” e que “a igreja romana nunca errou e não
poderá jamais errar”. Essa plenitudo potestatis faz das igrejas locais as
províncias de uma espécie de Estado eclesiástico universal. Ela vem seguida
de uma semelhante reivindicação de poder sobre o conjunto da sociedade.
Uma forma jurídica, a pretensão de um poder absoluto, acha-se superposta à
realidade sacramental e espiritual da Igreja: a das comunidades eucarísticas e
dos seus bispos, a das consciências pessoais unidas pela fé e o amor.

A PESSOA E A LIBERDADE
A dimensão histórica caracteriza o mundo marcado pela revelação
bíblica, finalmente pelo cristianismo7. Agora existe conscientemente um único
gênero humano que procura junto seu caminho. As civilizações arcaicas, os
grandes impérios do Oriente e, de um certo modo, também a Grécia antiga
permaneciam alheios à história: viviam uma experiência de duração ao mesmo
tempo cíclica e nostálgica voltada para a suposta transparência das origens.
Sociedades impregnadas pelo sagrado – um sagrado impessoal – pela adesão
aos ritmos cósmicos, numa ordem onde divino, o universo e as coisas
humanas se confundiam. Ordem sacrifical selada pela morte do desviando
transformado em bode expiatório.
Somente o Deus da Bíblia é um Deus pessoal, ultimamente e
absolutamente pessoal, e esse Deus vivo coloca o homem, dizendo Tu para
ele, como uma pessoa espiritual além da natureza e da sociedade. Deus entra
realmente no diálogo, quer dizer no imprevisto. Ele intervém mas não pode
constranger a resposta. A história é inventada como um drama de amor onde

7
CLÉMENT, ibid. Deuxième partie, cap. 1
Deus se faz vulnerável até a cruz. A revelação do Deus pessoal explode a
unidade sacra do divino, do mundo e do homem. O apelo e a distância de Deus
abrem para o homem o espaço da fé e da liberdade. O homem deve
responder: ele é responsável. Responsável diante de Deus, responsável pelo
seu irmão e pela terra que o Gênesis tem o cuidado de dessacralizar. O sentido
da história, assim como o significado do humano, encontra-se além dos limites
do mundo mas um além que, pela Encarnação, tornou-se interiorizado pela
história e pelo humano. A morte e a ressurreição do Deus feito homem
constituem propriamente o Fim da história, que a julga nas suas pretensões
totalitárias, suas ilusões e suas hipnoses.
Somente a vocação de Abraão, o encontro do Deus vivo com
Moisés, a descida vitoriosa do Cristo nos porões do horror e a morte desse
mundo abrem para a duração um outro caminho: a da história onde a
esperança faz amadurecer o amor se alguns homens permanecem fiéis. O que
recebe um valor absoluto nessa perspectiva é a pessoa espiritual chamada
para a comunhão, é a aliança do Espírito e da liberdade. A contribuição
definitiva do cristianismo parece ser, de fato, a instauração de – e o convite a –
uma existência pessoal como superação de toda determinação natural e social,
como superação do “eu” para a união com Deus e a abertura para a unidade
humana. O cristianismo trouxe a revelação de que todos os homens em Cristo
são “membros uns dos outros”. O homem é imagem de Deus, chamado a uma
semelhança e participação. E, assim como existe um único Deus em três
Pessoas (Três simbolizando a diversidade absoluta na unidade absoluta),
assim existe em Cristo um Homem único numa multidão de pessoas. Ora essa
“consubstancialidade” humana que nos é dada em Cristo, é no Espírito que
devemos vivê-la, marcá-la com nossa diferença, descobri-la e inventá-la. A
história, desde a Encarnação e o Pentecoste, é o tempo do Espírito, do Sopro
que trabalha os homens para levá-los a uma consciência simultânea do
singular e do universal.
A LUTA COM O ANJO
Desde a cruz e Páscoa, desde a vinda plena do Espírito no
Pentecoste, a natureza do tempo mudou8. O tempo é penetrado pela
eternidade, não vai para a morte mas vai para a morte-ressurreição. A história
não pode ser considerada por um cristão simplesmente como uma realidade
puramente humana: é um drama divino-humano, uma luta com o anjo, onde de
vez em quando o homem colabora com Deus, torna-se plenamente sua
imagem e consegue colocar essa imagem, de um modo vivificante, sobre a
sociedade e a natureza. As vezes, ele se fecha para Deus, tenta deificar-se
pela suas próprias forças e coloca essa imagem negativa sobre a cultura e o
universo. A linha de demarcação entre Deus e a imagem da Besta passa pelo
coração de cada um. Por isso não existe uma explicação puramente racional
para a história: só vemos o lado reverso dela. O critério não pode ser a
eficácia, inclusive porque não conhecemos o critérios da verdadeira eficácia. O
mistério pascal mostra que a maior vitória pode nascer de um grande fracasso.
O critério é uma humilde e tenaz fidelidade: estamos engajados num combate
contra a violência e a mentira que, na história, nunca terá fim.

8
CLÉMENT, ibid. cap. 4

You might also like