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2 PATRICIOS E PLEBEUS As circunstincias miserdveis deste pats esto agora de tal forma que, em suma, se isso continuar, os pobres vaio dominar os ricos ¢ os servos vao governar os senhores, os Plebeij quase assaltaramn os Patricij[...] numa palavra, a ordem estd inver- tida, ndo hd subordinagiio, eo mundo parece estar de cabeca para baixo. Daniel Defoe, The great law of subordination considered; or the insolence and insufferable behaviour of seRvANTS in England duly enquired into (1724) Arelacio que desejo examinar neste capitulo é aquela entre “a gentry” e “os trabathadores pobres”, Ambos 08 termos sio vagos, mas temos algu- ma nogao sobre o que representam. Nas primeiras seis décadas do século xvill, a tendéncia era associar a gentry com a terra. A terra continuava a ser 0 indice de influéncia, o plinto sobre o qual se erigia o poder. Se acrescen- tarmos ao status ¢ riqueza fundidrios propriamente ditos aquela parte da industria que servia diretamente ao interesse agricola (transporte, selaria, construgdo de carrogas etc.) ou que processava os produtos agricolas (fa- bricagio de cerveja, curtume, moagem, a grande indtistria da ld ete.), pode- remos ver para que lado pendia a balanga da riqueza. De modo que, apesar do imenso crescimento de Londres e do desenvolvimento de Liverpool, Manchester, Bristol, Birmingham, Norwich, Leeds etc., a Inglaterra con servava um perfil agrario até a década de 1760, e muitos dos que fizeram fortuna com ocupagées urbanas ¢ comerciais ainda procuravam converter 25 a sua riqueza em status de gentry ao transformé-la em terra. William Hut- ton, o negociante de papel de Birmingham, descreve nas suas memérias a sua primeira compra de terras (1766): “desde que cu tinha oito anos, jé demonstrava um gosto por terras [...] e desejava possuir alguma. Esse de- sejo ardente de terra nunca me abandonou”’! Todavia, tanto “fidalgos” como “os pobres” so “termos criados pela gen- try" ¢ ambos tém uma carga normativa que pode ser assimilada acriticamen- te pelos historiadores. Dizem-nos (por exemplo) que “honra, dignidade, inte- gtidade, consideracio, cortesia ¢ cavalheirismo eram virtudes essenciais a0 carater de um fidalgo, e todas derivavam em parte da natureza da vida no cam- po” Tsso sugere uma visio um tanto distanciada da “vida no campo”, da qual assim como de grande parte das imagens rurais do século xv1ir — os traba- Thadores foram subtraidos. Quanto a “os pobres”, esse termo inteiramente in- discriminado contém a sugestio de que o grosso da populagio trabalhadora merecia a condescendéncia da genmry, e talvez sua catidade (como se fossem de alguma forma sustentados por cla, ¢ niio exatamente o contrdrio). E 0 termo agrupa, numa mesma categoria criada pela gentry, miseréveis, pequenos fa- zendeitos vigorosamente independentes, pequenos camponeses, criados da fazenda, artesfios rurais ¢ assim por diante. Por mais vagos que sejam os dois termos. este capitulo vai girar ao re- dor desses polos ¢ de sua relaco mtitua. Vou passar por cima de grande parte do que existe no espaco intermediario: comércio, manufatura, o merca- do de luxo de Londres, o império do além-mar. E minhas énfases no serao aquelas que gozam de popularidade entre a maioria dos historiadores off- ciais. Talvez haja uma razio para isso. Ninguém é mais suscetivel aos encan- tos da vida da gentry do que o historiador do século xvii. Suas fontes prin- cipais estfio nos arquivos da gentry ou da aristocracia. Talvez ele até encontre algumas de suas fontes ainda na sala de documentos de uma antiga proprie- dade rural. O historiador pode se identificar facilmente com suas fontes: ele se vé cavalgando atrés dos cdes de caga, comparecendo a uma sessao trimes- tral do tribunal, ou (se for menos ambicioso) se imagina pelo menos sentado Ai mesa tesmungona do péroco Woouforde. Os “trabalhadores pobres” niio deixaram os seus asilos repletos de documentos para os historiadores exami- narem, nem é convidativa a identificag&o com sua dura Jabuta. Ainda assim, para a maioria da populagio, a forma de encarar a vida nio era a da gentry Eu poderia dizé-lo com palavras mais fortes, mas devemos prestar ateng’o as palavras tranquilas de M. K. Ashby: “A casa-grande a mim parece ter guardado as melhores coisas para si, io concedendo, com raras excegdes, nem dignidade nem lideranga as aldeias, mas, na verdade, depreciando 0 seu valor ea sua cultura” > 26 Quando eu e alguns colegas apresentamos, hé alguns anos, uma visio um tanto cética das virtudes da alta gentry whig' ¢ de seus defensores, parte dos historiadores profissionais ficou escandalizada.* A nossa ameaca foi repelida, ¢ tem-se reconstitufdo uma visio da Inglaterra do século xvii que, em poucas palavras, passa por cima das profundas contradigées da sociedade. Dizem-nos que era uma préspera “sociedade de consumidores” (0 que quer que isso sig- nifique) habitada por “um povo cortés e comerciante”? Nao nos lembram vi- vamente que esse foi 0 século em que os commoners por fim perderam a sua terra, em que se multiplicou 0 ntimero de crimes punidos com a pena capital, em que milhares de criminosos foram degredados, e em que se perderam mi- Ihares de vidas nas guerras imperiais. Um século que terminou, apesar da “te- volugio” agricola ¢ do crescente rol de rendimentos, em grave pauperismo rural. Nesse meio-tempo, os historiadores profissionais mantém uma visio branda dos acontecimentos: os simpésios histéricos sobre questées do século Xvi tendem a ser um espago em que os brandos guiam os brandos. Tentare~ mos realizar uma reconstrugo um pouco menos tranquilizadora. E uma queixa comum que os termos “feudal”, “capitalista” ou “burgués” sejam demasiado imprecisos para serem iiteis numa andlise séria, abrangendo fendmenos demasiado vastos ¢ dispares. Entretanto, agora encontramos cons- tantemente o emprego de novos termos, como “pré-industrial”, “tradicional”, “patemnalismo” e “modernizag&o”, que parecem estar sujeitos praticamente as mesmas objecées, ¢ cuja patemidade tedrica é menos precisa, ‘Talvez seja interessante observar que, enquanto o primeiro conjunto de termos chama a atengiio para o conflito ou tensio dentro do processo social, 0 segundo parece cutucar-nos para que vejamos a sociedade em termos de uma ordem sociolégica autorreguladora. Com um cientificismo enganador, esses termos se apresentam como se no contivessem julgamentos de valor. Tam- bém possuem uma estranha falta de temporalidade. Desgosto particularmente de “pré-industrial”, uma tenda cujas pregas espagosas acolhem lado a lado os fabricantes de roupas do Oeste da Inglaterra, os ourives persas, os pastores guatemaltecos ¢ 0s bandoleiras corsos® i) Partido surgide apss a Revolugdo Gloriosa (1688) que objetivava subordinar a Coroa 20 Parlamento, © termo foi aplicado aos nnembros do Country Party (ver, a seguir, nota na p. 37) Esteve no poder até 0 reinado de George mt, quando os fories assumiram. Apés 1830, novamente no governo, introduziu uma legislagdo reformista. Em meados do século xix, transformou-se no Partido Liberal. (N.R.) 27 Entretanto, vamos deixé-los felizes em seu bazar, trocando os seus sur~ prendentes produtos culturais, ¢ examinar mais de perto o “paternalismo”. Em alguns autores, “patriareal” e “paternal” aparecem como termos intercambid- veis, um contendo uma impplicacéio mais severa, 0 outro uma implicagzo um tanto suavizada. Na verdade, os dois podem colidir tanto nos fatos como na teoria. Na descri¢do de Weber das sociedades “tradicionais", 0 locus para a anilise é situado nas relagdes familiares da unidade tribal ou doméstica, ¢ des- sas sifo extrapoladas relagdes de dominagio e dependéncia que vao caracterizar uma sociedade patriarcal como um todo — o que ele relaciona especificamente com formas antigas e feudais da ordem social. Laslett, que nos Iembrou tio insistentemente a importincia social da unidade doméstica de produgiio no sé- culo xvi, sugere que isso contribuiu para a reprodugao das atitudes e relagdes paternalistas ou patriarcais que permeavam toda a sociedade — e que talvez tenham continuado a permed-la até o momento da “industrializagiio”.’ Marx, é verdade, inclinara-se a ver as atitudes patriarcais como proprias do sistema de guildas da Idade Média, quando s oficiais diaristas e os aprendizes eram organizados em cada oficio da maneira mais conveniente aos interesses dos mestres. A relacio filial que mantinham com seus mestres dava aos tiltimos um duplo poder — por um lado, porque influfam sobre toda a vida dos oficiais e, por outro lado, porque, para os que trabalhavam com @ mesmo mestre, isso representava um lago real que os mantinha unidos contra os oficiais diaristas de outros mestres ¢ os separava desses outros. Marx afirmava que na “manufutura” essas relagdes foram substitufdas pela “relagfio monetiria entre operdtio e capitalista”; mas essa relagiio “no campo € em pequenas cidades ainda conservava um tom patriarcal”” E uma grande con- cessio, especialmente quando lembramos que, em qualquer perfodo antes de mais ou menos 1840, 0 grosso da populacdo briténica vivia nessas condigdes. E assim podemos substituir o “tom patriarcal” pelo termo mais fraco, “pater nalismo”. Pode parecer que esse quantwn social magico, reabastecido todos os dias nas indimeras fontes da pequena oficina, da unidade doméstica e da proprie- dade rural, foi bastante forte para inibir (exceto aqui e ali, em episddios breves) 0 confronto das classes, até que a industrializacdo o trouxesse no seu séquito. Antes disso, ndo havia classe trabalhadora com consciéncia de classe, nenhum conflito de classe desse tipo, mas apenas fragmentos de protoconilito. Como agente histé- rico, a classe trabalhadora no existia, e, sendo assim, a tarefa extremamente di- ficil de tentar descobrir qual era a real consciGncia dos trabalhadores pobres inar- ‘iculados seria tediosa e desnecesséria. Somos convidados a pensar na consciéncia de um oficio,e nfio na de uma classe; nas divisGes verticais, nfo nas horizontais. Podemos até falar de uma sociedade de “uma sé classe”. 28 Varnos examinar as seguintes descri¢des do fidalgo proprietario de terras do século xvi. A prime’ A Vida de uma aldeia, um vilarejo, uma pardquia, uma cidade-mercade e seu interior, um condade inteiro, podia girar em torno da casa-grande dentro do seu parque. As salas de recepefo, jardins, estébulos e canis eram o centro da vida social local; o escritério da propriedade, o local de troca de arrendamentos de fa- zendas, contratos de minerago e construgao, e um banco para pequenas poupan- {gas ¢ investimentos; a casa da fazenda, uma exposicéo permanente dos melhores métodos agricolas existentes [...]; a sala da lei (...] 0 principal baluarte da lei e da ordem; a galeria de retratos, a sala de miisica e a biblioteca, o quartel-general da cultura local; a sala de jantar, o fulcro da politica local. Eis a segunda: Na tarefa de administrar sua propriedade para satisfazer seus préprios interesses, ele desempenhava muitas das funcdes do Estado. Era o juiz: resolvia as disputas entre seus seguidores. Era a policia: mantinha a ordem entre um grande ntimero de pessoas [...] Era a Igreja: nomeava o capeléo, em geral um parente préximo com ou sem treinamento religioso, para cuidar de seu povo. Era uma agéncia de assisténcia social: cuidava dos doentes, dos idosos, dos drftios. Era 0 Exército: em caso de levantes |... armava seus parentes e servidores e formava uma milicia privada, Além do mais, pelo que se tornou um intricado sistema de casamentos, parentesco e apadrinhamento [...] podia pedir apoio, se necessério, a um grande mimero de parentes, no campo ou nas cidades, que possufam propriedades e po- deres semelhantes aos seus. Sido duas descri¢des aceitéveis do fidalgo proprietario de terra do século xvi. Entretanto, acontece que uma descreve a aristocracia ou a alta gentry da Inglaterra e a outra, os senhores de escravos do Brasil colonial.’ Ambas tam- bém poderiam, ¢ com um minimo de revisdo, descrever um patricio na cam- pagna da antiga Roma, um dos proprietarios de terra de Almas mortas de Go- gol, um sevhor de escravos na Virginia.” ou os proprietirios de terra de qualquer sociedade em que a autoridade econémica e social, os poderes judi- cidrios sumérios etc. estavam concentrados num tinico lugar. Mas ainda permanecem algumas dificuldades. Se quisermos, podemos chamar de “paternalismo” uma concentragio de autoridade econémica e cul- tural. Mas se admitimos o termo, devemos também admitir que € demasiado amplo para uma andlise detalhada. © termo pouco nos diz sobre a natureza do poder e do Estado, sobre as formas de posse de propriedade, sobre a ideologia € a cultura, e é mesmo por demais ineficiente para distinguir entre modos de exploracdo, entre o trabalho escravo e 0 livre. Além disso, € uma descricdo de relagGes sociais vistas de cima. Isso ndo 0 invalida, mas devemos ter consciéncia de que uma descricdo desse tipo pode ser 29 demasiado persuasiva. Se nos é apresentada apenas a primeira de nossas descri- Ges, torna-se excessivamente facil passar desse quadro para a vistio de uma “sociedade de uma sé classe”. A casa-grande esti no dpice, e todas as linhas de comtunicago convergem para a sua sala de jantar, o escritério da propriedade ou os canis, Essa é, na verdade, uma impressao facilmente adquirida pelo estudioso que trabalha no meio dos documentos da propriedade, dos registros das sessdes trimestrais dos tribunais ou da correspondéncia do duque de Newcastle. Mas talvez haja outras maneiras de descrever a sociedade além da apre- sentada por Harold Perkin no primeiro de nossos dois excertos. A vida de uma pardquia podia igualmente girar em toro do mercado semanal,, dos festivais € feiras de vero e inverno, da festa anual do vilarejo, tanto quanto ao redor das atividades da casa-grande. Os boatos sobre roubo de caca, furtos, escdndalos sexuais e 0 comportamento dos inspetores dos pobres podiam ocupar a mente das pessoas muito mais do que as remotas idas ¢ vindas no parque. A maioria na vila tinha poucas oportunidades de fazer poupanca ou investimentos, ou de contribuir para o desenvolvimento agricola: talvez se incomodassem mais com o acesso a lenha, turfas € pasto nas terras comunais do que com a rotati- vidade das culturas.” A lei poderia ndo se assemelhar a um “bastifio”, mas a um valentéo. Acima de tudo, podia haver uma dissociagao radical — ¢ &s ve- zes umn antagonismo — entre a cultura, até mesmo a “politica”, dos pobres ¢ a dos poderosos. Poucos contestariam tal coisa. Mas as descrig&es da ordem social no pri- meiro sentido, vistas de cima, so muito mais comuns do que as tentativas de reconstruir a visio a partir de baixo. E sempre que se introduz a nogio de “pa- temalismo”, é 0 primeiro modelo que ela invoca. Além disso, 0 termo no consegue escapar de implicagdes normativas: sugere calor humano, numa re- lac&io mutuamente consentida; o pai tem consciéncia dos deveres ¢ responsa- bilidades para com o filho, o filho é submisso ou complacente na sua posigio filial. Até 0 modelo da unidade de produgiio doméstica contém (apesar das negacGes) um sentido de aconchego familiar: “houve tempo”, escreveu Laslett ceria vez, “em que toda a vida se passava no meio da familia, num citculo de rostos familiares ¢ amados, objetos conhecidos e estimados, tudo de tamanho humano”." Seria injusto opor essa afirmagio & lembranga de que O morro dos ventos uivantes € apresentado exatamente numa situagdo familiar desse tipo. Laslett estava nos lembrando um aspecto relevante das relagdes econdmicas de pequena escala, mesmo que o calor humano pudesse frequentemente provir tanto de uma revolta impotente contra uma dependéncia abjeta como do res- peito mtituo. Nos primeiros anos da Revolugio Industrial, os trabalhadores muitas vezes retornavam aos valores paternalistas perdidos. Cobbett e Oastler estenderam-se sobre o sentido de perda, e Engels endossou a queixa. 30 Mas isso traz outro problema. O paternalismo como mito ou como ideo- logia tem quase sempre uma viséo retrospectiva. Na histéria inglesa, apresen- ta-se menos como realidade que como modelo de uma era de ouro antiga, de passado recente, da qual os modos ¢ maneiras atuais sio uma degeneracio. Assim temos “Country justice”, de Langhorne (1774): Quando teu bom pai possuta este vasto dominio, A vox da tristeza nunca se lamentava em vdo, Aliviados por sua compaixto, nutridos por sua generosidade, Os doentes encontravam remédio e os idosos, pao. Ele nao os deixava aos cuidados da pardquia, O meirinho ndo procurava impor seu pequeno império, O tirano da aldeia néo os matava de fome, nem os oprimia, De todos ele conhecia as necessidades e as satisfazia Ll Os pobres tinhant sempre & mdo seus patronos naturais, E08 legistadores eram suplementos da lei!" E assim por diante, até a negagdo de que tais relagdes fossem uma reali- dade presente: [..1 0 ilimitado vaivém dos tempos Levou embora o magistrado protetor. Exceto nas ruas de Augusta, nas praias da Gélia, Jé néio se vé o senhor rural [..."" Mas podemos tirar nossas fontes literdrias de onde desejarmos. Podemos retroceder uns sessenta ou setenta anos até Sir Roger de Coverley, um sobre- vivente tardio, um homem antiquado ¢ excéntrico. ridicuto e amavel por ser assim. Podemos retroceder outros cem anos até Rei Lear, ou até 0 “bom velho” Adao de Shakespeare. Mais uma vez, os valores paternalistas so vistos como “reliquias”, esto desmoronando diante do individualismo competitive do homem natural do jovem capitalismo, no qual “o lago [esta] rompido entre 0 filho e © pai” e os deuses defendem os patifes. Ov podemos retroceder outros cem anos até Sir Thomas More. A realidade paternalista parece estar sempre (s) When thy good father held this wide domain The voice of sorrow never mourn'“d in vain/ Soothd by bis pity, by his bounty fed, The sick found medicine, and the aged bread.’ He left their interest to no parish care/ No bailiff urged his little empire there;/ No village tytant starved them, or oppress“d:/ He learn“ their wants, and he those wants redress"d [...]/ The poor at hand their natural patrons save /And lawgivers were supplements of law! (ai) (..] Fashions boundtess sway/ Has borne the guardian magistrate away/ Save in Augusta's streets, on Gallia“s shores,/ The rural patron is beheld no more [.~] at recuando a um passado cada vez, mais primitivo e idealizado.* E 0 termo nos forga a confundir atributos reais ¢ ideolégicos. Em suma, o paternalismo é um termo descritivo frouxo. Tem uma especi- ficidade histérica consideravelmente menor do que termos como feudalismo ow capitalismo. Tende a apresentar um modelo da ordem social visto de cima. ‘Tem implicagdes de calor humano e relagdes préximas que subentendem no- Ges de valor. Confunde o real ¢ o ideal. Isso no significa que o termo deva ser abandonado por ser totalmente intitil. Tem tanto ou tio pouco valor quanto outros termos generalizantes — autoritério, democritico, igualitario — que, em sie sem adigées substanciais, no podem ser empregados para caracte- rizar um sistema de relagdes sociais. Nenhum historiador sensato deve carac- terizar toda uma sociedade como paternalista ou patriarcal. Mas o paternalis- mo pode ser, como na Riissia czarista, no Japiio do periodo Meiji ou em certas sociedades escravocratas, um componente profundamente importante, nao s6 da ideologia, mas da real mediago institucional das relagdes sociais. Qual era asituacdo na Inglaterra do século xv? Ir ‘Vamos afastar imediatamente uma linha de investigagao tentadora, mas in- teiramente inaproveitdvel: a de tentar adivinhar a importincia especifica desse fiuido misterioso, o “tom patriarcal”, neste ou naquele contexto ¢ em diferentes momentos do século. Comegamos com impresses, omamentamos nossos pal- pites com citagdes elegantes ou adequadas, finalizamos com impress6es. Se, em vez disso, examinamos a expressiio institucional das relagdes so- ciais, essa sociedade parece apresentar poucas caracteristicas paternalistas ge~ nuinas. © que se observa em primeiro lugar é a importancia do dinheiro. A gentry proprictiria de terra é classificada menos pelo nascimento, ou outras marcas de status, que pelos rendimentos: elas valem tantas mil libras por ano. Entre a aristocracia e a gentry ambiciosa, os namoros sio conduzidos pelos pais e por seus advogados, que os orientam cuidadosamente para a sua consu- magi, 0 arranjo de casamento bem planejado. Os postos € os cargos podiam ser comprados ¢ vendidos (desde que a venda nfo entrasse em sério conflito com as linhas de interesse politico), assim como as incumbéncias no Exército eas cadeiras no Parlamento. Direitos de uso, privilégios, liberdades, servigos — tudo podia ser traduzide num equivalente em dinheiro: votos, direitos de propriedade nos burgos, a imunidade dos cargos da pardquia ou do servigo das milfcias, a liberdade dos burgos, os portdes nas terras comunais. Este € 0 sécu- Jo em que 0 dinbeiro “dé as cartas”, em que as liberdades se tornam proprieda- 32 : ce des e 08 direitos de uso sao reificados. Um pombal no sitio de uma antiga propriedade no burgo podia ser vendido, e com ele se vendia o direito de votar; as ruinas de uma antiga casa com suas dependéncias podiam ser compradas para apoiar uma reivindicagao de direito nas terras comunais e, com isso, uma distribuicdo extra dessas terras por ocasiéo dos cercamentos. Se os direitos de uso, os servigos etc. transformavam-se em proprieda- des avaliadas em tantas libras, nem sempre, entretanto, se tornavam merca- dorias disponfveis a qualquer comprador no mercado livre. Na maioria das vezes, a propriedade s6 assumia o seu valor dentro de uma estrutura particu- lar de poder politico, infiuéncia, interesse e dependéncia, a qual Namier™ nos dew a conhecer. Os cargos titulares de prestigio (como os guardas dos Pparques reais, os couteiros, os policiais) ¢ os emolumentos que os acompa- nhavam podiam ser comprados ¢ vendidos, mas néio podiam ser comprados ou vendidos por qualquer um (durante o governo de Walpole, os nobres to- ries ou jacobitas* no tinham muitas chances de sucesso nesse mercado), ¢ 0 detentor de um cargo opulento que incorresse no desagrado de politicos ou da Corte podia se ver ameagado de expulsiio por um proceso legal.” As promogées aos cargos mais altos e lucrativos na Igreja, na Justiga e no Exér- cito estavam numa posicao semelhante. Os cargos eram distribufdos por in- fluéncia politica, mas, uma vez obtidos, valiam normalmente para toda a vida, ¢ 0 seu detentor devia extrair deles toda a renda possivel, enquanto pudesse. A posse de sinecuras na Corte e de altos cargos politicos era muito mais incerta, embora de modo algum menos lucrativa: 0 conde de Ranclagh, © duque de Chandos, Walpole e Henry Fox estavam entre os que fizeram fortunas quando ocuparam por um breve perfodo o cargo de pagador-geral. Por outro lado, a posse de grandes propriedades rurais, como propriedade absoluta, era inteiramente segura ¢ hereditaria. Bra nfo sé 0 trampolim para © poder e 0 cargo, como o ponto ao qual retornavam 0 poder e 0 cargo. Os rendimentos podiam ser aumentados por uma administracio inteligente e por desenvolvimentos agricolas. mas nfo ofereciam os ganhos inesperados da sinecura, do cargo, da especulacao comercial ou de um casamento vanta- joso. A influéncia politica podia contribuir mais para maximizar os luctos do que a rotag&o de quatro culturas ~~ por exemplo, aplainando o caminho para leis de iniciativa privada como no caso de cercamentos, ou aportando uma renda imerecida de sinecura a propricdades rurais hipotecadas, ou facilitan- (ev) Historiador inglés (1878-1960) cujas importantes obras sobre a historia do séeulo xvii cnfatizaram as relagies pessoais da classe dominante, negando a relevancia de questdes politicas mais amples. (N.R.) {v) Seguidores de James 11. (N. R.) 33 do o caminho para um casamento de interesse, ou ganhando acesso preferen- cial a uma nova prole das familias de estirpe. Foi uma fase predatéria de capitalismo agrario e comercial, e © préprio Estado estava entre os principais objetos da rapina. A vit6ria na alta politica era seguida pelos despojos da guerra, assim como a vit6ria na guerra era frequen- temente seguida pelos despojos da politica. Os bem-sucedidos comandantes das guerras de Marlborough nao s6 ganharam recompensas ptiblicas, como também enormes somas provenientes de subcontratos militares para 0 forneci- mento de forragem, transporte, material bélico. Marlborough ganhou o palacio Blenheim; Cobham e Cadogan ficaram com os minipalacios de Stowe e Caver- sham. A sucessiio dos Hanover trouxe um novo grupo de salteadores cortesdos a0 seu séquito. Mas os grandes interesses financeiros e comerciais também re- queriam acesso a0 Estado, para a oblenciio de concessies, privilégios, contra- tos, bern como para o uso da forca diplomatica, militar e naval necesséria para abrir o caminho para o comércio.”’ A diplomacia ganhou para a Companhia dos Mares do Sul o assiento, isto é, a licenga para traficar escravos na América es- panhola. E foi com base nas expectativas de grandes lucros com essa concess0 que se inflou a Bolha dos Mares do Sul. Mas nao se pode soprar uma bolha sem cuspir, ¢ 0 cuspe nesse caso assumiu a forma de subornos, nao s6 de ministros e amantes do rei, mas também (¢ provavel) do proprio rei. Estamos habituados a pensar na exploragdio como algo que ocorre em ni- vel rasteiro, no estégio da produgao. No infcio do século xvut, a riqueza era criada nesse nivel inferior, mas logo se elevou para regides mais altas, acumu- lada em grandes nacos, e os grandes lucros seriam obtidos na distribuico, monopolizagiio e venda de mercadorias ou matérias-primas (14, grdos, carne, agticar, tecido, cha, tabaco, escravos), na manipulacio do crédito € na capaci- dade de apoderar-se dos cargos do Estado. Patricios banditti brigavam pelos despojos do poder, ¢ s6 isso explica as grandes somas de dinheiro que esta- vam dispostos a gastar na compra de assentos no Parlamento. Visto a partir desse aspecto, o Estado era menos um drgio efetivo de qualquer classe que um parasita da propria classe vitoriosa em 1688 (a gentry). E, na primeira metade do século, era assim que o Estado era visto, ¢ considerado intolerdvel, por muitos membros da pequena gentry tory. cujo imposto territorial era transfe- rido pelos meios mais patentes para os bolsos dos cortesiios ¢ dos politicos whigs — para aquela mesma elite aristocritica cujas grandes propriedades ru- (v1) Grapo politico surgida no final do século xvu, Apds a Revolugio Gloriosa (1688), apoia 1s rebeldes jacobitas, sendo excluido do poder até o reinado de George a. Com Pitt, 0 joven, aleanga o poder e governa ininterruptamente entre 1783 ¢ 1830. Na década de 1830 passa a deno- minar-se Partido Conservador. (N.R.) 34 rais estavam sendo consolidadas, durante aqueles anos, em oposi¢ao as peque- nas. Na época do conde de Sunderland, essa oligarquia até fez uma tentativa de se tornar institucionalmente estabelecida ¢ perpétua. por meio da Peerage Bill e do Septennial Act. Que as defesas constitucionais contra essa oligarquia tenham sobrevivido a essas décadas, deve-se em grande parte resisténcia obstinada da gentry rural independente, na sua maior parte fory, As vezes jaco- bita, apoiada repetidas vezes pela multidao turbulenta e vociferante. ‘Tudo isso se fazia em nome do rei. Era em nome do rei que os bem-sucedi- dos ministros podiam afastar até o funciondrio mais submisso do Estado que nao se submetia inteiramente aos seus interesses. “Nao poupamos esforgos para des- cobrir os perniciosos,¢ afastamos todos aqueles de quem tinhamos a mais infima prova de seu comportamento presente ou passado”, escreveram os trés servis comissdrios da aduana em Dublin para o conde de Sunderland, em agosto de 1715. E “nosso dever nao tolerar que alguém a nds subordinado coma o pio de Sua Majestade se néo demonstra ter todo o zelo ¢ afeigao imaginaveis pelo seu servigo e governo”.* Mas era de interesse capital entre os predadores politicos confinar a influéncia do rei a do primus interpretadores. Quando George 1, a0 subir ao trono, parecia prestes a afastar Walpole, descobriu-se que o rei podia ser comprado como qualquer politico whig, s6 que a um prego mais alto: Walpole sabia 0 seu dever. Nunca um soberano fora tratado com mais generosi- dade. O rei-— 800 mil libras por ano vista, ¢ o excedente de todos os impostos destinados a lista civil, estimados por Hervey em mais 100 mil libras; a rainha -~- 100 mil libras por ano. Correu o boato de que Pulteney oferecia mais. Se fosse verdade, a sua inabilidade politica era espantosa. Ninguém a nfo ser Walpole podia esperar conseguir essas diidivas na Camara dos Comuns [...] um pomto que © seu soberano néo tardou em compreender [...} “Considere, Sir Robert”, disse 0 rei, cheio de gratidaio enquanto seu ministro partia para a Camara dos Comuns, “o que me deixa tranquilo nessa questo vai também contribuir para a sua tranquilidade. E pela minha vida que a questfo deve. ser resolvida, mas também pela sua vida.” Assim, 0 “dever” de Walpole vem a ser o respeito miituo de dois arrombadores saqueando os cofres do mesmo banco. Nessas décadas, a jd observada “inveja” whig da Coroa néo provinha de nenhum receio de que os monarcas Hanover dessem um coup d’Etat ¢ esmagassem as liberdades dos stiditos assumindo 0 poder absolute ~— essa retérica era estritamente para a tribuna. Provinha do receio mais realista de que um monarca esclarecido enconirasse meios de exal- tar a si mesmo como a personificago de um poder de Estado “imparcial”, ra~ cionalizado ¢ burocratico, acima e fora do jogo predatério. O apelo de um monarca patriota desse tipo teria sido imenso, nao apenas entre as camadas mais baixas da gentry, mas também entre grandes faixas da populaca: foi exa- 35 tamente 0 apelo de sua imagem de patriota incorrupto que levou ao poder William Pitt, o mais velho, numa onda de aclamagao popular, apesar da hosti- lidade dos politicos ¢ da Corte” “Os sucessores dos antigos cavaliers [realistas] tinham se tornado dema- gogos, os sucessores dos antigos roundheads [puritanos] tinham se tornado cortesdos”, conforme Macaulay. E ele continua: “Durante muitos anos, uma geragio de whigs, a quem Sidney teria desprezado como escravos, continuou a travar uma guerra mortal com uma geragio de tories, a quem Jeffreys teria enforcado por serem republicanos”.”! Essa caracterizagao nao sobrevive por muito tempo, a metade do século. A briga entre os whigs ¢ os tories fora muito suavizada dez anos antes da as- censtio de George 1 ao poder e do subsequente “massacre dos inocentes pelha- mitas”. Os tories ainda existentes entre a grande gentry voltaram a ingressar na comissio de paz, recuperaram sua presenca politica nos condados, tinham es- perangas de algum quinh&o dos despojos do poder. Quando a manufatura su- biu na balanga da riqueza em detrimento do comércio e da especulago, certas formas de privilégio e corrupgao se tornaram odiosas aos endinheirados, que se acomodavam na arena “imparcial” racionalizada do livre mercado: os gran- des luctos podiam ser obtidos sem nenhuma compra politica anterior no inte- rior dos drgdos do Estado. A ascensio de George uti ao trono mudou de muitas maneiras os termos do jogo politico --- a oposig&o sacou e lustrou sua antiga retGrica libertéria, ¢ para alguns (como na City de Londres) ela chegou a assu- mir um contetido teal e revigorado, Mas o rei infelizmente estragou toda e qualquer tentativa de se apresentar como um monarca esclarecido, o dpice imperial para uma burocracia desinteressada. As fungdes parasitas do Estado passavam por um crescente escrutinio e ataques pontuais (a reforma do impos- to de consumo, os ataques 4 Companhia das Indias Orientais, aos postos e si- necuras, 1 apropriagao indevida das terras piiblicas etc.), mas, apesar de ter um. eficiente servigo de receita e uma Marinha e um Exéreito em bom estado, 0 papel parasita do Estado sobreviveu. “A Yelha Corrupgdo” € um termo mais sério de andlise politica do que frequentemente se supie, pois se deve compreender o poder politico durante a maior parte do século xvur nfo como um érgio direto de qualquer classe ou interesse, mas como uma formagio politica secundaria, um ponto de compra a partir do qual outras formas de poder econdmico e social podiam ser obtidas ou ampliadas. Em suas fungGes primérias, era dispendioso, excessivamente inefi- ciente, ¢ s6 sobreviveu ao século porque nao inibia seriamente as agGes daque- les que tinham de facto poder econémico ou politico (local). Sua maior fonte de forga se encontrava precisamente na fraqueza do proprio Estado, no desuso de seus poderes paternais, burocraticos ¢ protecionistas, na permissdo que conferia 36 a0 capitalisme agrério, mercantile manufatureiro para levar adiante sua prépria autorreprodugao, no solo fértil que oferecia ao laissec-faire” No entanto, no parece ser um solo fértil para o patemalismo. Nés nos acostumamos a uma visio um tanto diferente da politica do século xvin, apre- sentada por historiadores que se habituaram a ver essa época em termos da apologia de seus principais atores. Se a corrupedo ¢ percebida, faz-se vista grossa com a mengo a um precedente; se os whigs foram predadores, 0s tories eram igualmente predadores. Nada é inusitado, tudo esté incluido nos “pa- drdes aceitos da época”. Mas a visio alternativa que tenho apresentado nao deveria ser surpresa. Afinal, ¢ a critica da alta politica apresentada nas Viagens de Gulliver ¢ em Jonathan Wild; em parte nas satiras de Pope, em parte em Humphrey Clinker; em “Vanity of human wishes” e “London” de Johnson; e em “Traveller” de Goldsmith. Aparece, como teoria politica, em Fable of the bees [Fabula das abelhas} de Mandeville; na polémica do “Country Party”, com um verniz tory, no pensamento de Bolingbroke; ¢ reaparece, de forma mais fragmentada, e com um verniz whig, em Political disquisitions, de Bur- gh Nas primeiras décadas do século, a comparaciio entre a alta politica e 0 submundo dos criminosos era uma figura satirica comum: Sei que, se alguém quiser agradar os homens de alta posigio social. deve estudar para imité-los,¢ sei de que modo eles conseguem o seu dinheiro ¢ os seus cargos. ‘Nao me admira que os talentos indispensaveis a um grande estadista sejam uo escassos no mundo, pois muitos daqueles que os possuem s&o todos os meses eliminados na flor da idade no Old-Baily. Assim escreveu John Gay, numa carta particular, em 1723. O pensamen- to era a semente para a Opera dos trés vinténs. Os historiadores tém comu- mente rejeitado essa figura como hipérbole. Nao deveriam. Sem diivida, hd ressalvas a serem feitas. Entretanto, uma ressalva que n@o pode ser feita ¢ que esse parasitismo fosse controlado, ou invejosamente vigia- do, por uma crescente classe média coesa e decidida, composta de profissio- nais e da classe média manufatureira.* Certo, todos os elementos dessa classe estavam se reunindo, ¢ a pesquisa histérica recente tem enfatizado o cresci- mento, cm riqueza, mimeros e presenca cultural, dos setores comercial, profis- sional, agricola e mercantil da sociedade;” a ocasional afirmago de indepen- déncia na politica urbana;** o grande crescimento de centros e recursos de lazer que serviam principalmente as “camadas médias”.” Se nas primeiras décadas do século esses grupos podiam ser mantidos no seu lugar por medidas palpaveis de clientela ¢ dependéncia,” na metade do século ja eram bastante (v1) 0 Country Party (Partido do Campo). em comtraste com o Court Party (Partido da “Cor te”), fazia oposigao as politicas da realeza no final do século xvi e inicio do xvi. (N.R) 37 numerosos — certamente em Londres e também em algumas cidades grandes -—- para niio serem mais dependentes de uns poucos patronos, ¢ por terem ad- quirido a independéncia do mereado mais anénimo, Num certo sentido, a classe média estava criando a sua propria obscura sociedade civil ou esfera publica. Ainda assim, tudo isso ficava muito aquém de uma classe com suas pr6- prias instituigdes e objetivos, e com bastante autoconfianga para desafiar os ad- ministradores da Velha Corrup¢iio. Essa classe s6 comegou a se descobrir (exce- to, talvez,em Londres) nas titimas décadas do século. Durante a maior parte do século, os seus potenciais membros se contentaram em se submeter a una con- digo de dependéncia abjeta. Faziam pouco esforgo (até o Movimento da Asso- ciag&o do final da década de 1770) para se livrar das cadeias do suborno e in- fluéncia cleitorais. Consentiam na sua prépria corrupgao. Depois de duas décadas de ligacio servil com Walpole, os Dissidentes receberam a sua recompensa: quinhentas libras por ano a serem distribuidas as vitvas dos clérigos merecedo- res. Cinquenta anos mais tarde, ainda ndo tinham assegurado a revogagio do ‘Test Act e do Corporation Act. Como eclesidsticos, a maioria bajulava os pode- rosos para conseguir promogées, jantava e brincava (sua presenga era apenas tolerada) as mesas de seus senhores,e, como 0 vigdrio Woodforde, nao se ofen- dia em aceitar uma gorjeta do fidalgo num casamento ou batizado.! Como fis- cais, advogados, tutores, administradores. negociantes ete., eles eram contidos dentro dos limites da dependéncia. Suas cartas deferentes, solicitando cargos ou favores, esto guardadas nas colec&es de manuscritos dos poderosos.** (Sendo assim, as fontes tém o viés historiografico de enfatizar exageradamente 0 ele- mento deferente na sociedade do século xvm — um homem que se acha, por forea, na posigéo de solicitar favores néio revelard o que realmente pensa.) Em geral, a classe média se submetia a uma relagio de clientela. Aqui e ali homens de personalidade forte podiam se libertar, mas até as artes continuavam matiza- das pela dependéncia da generosidade dos mecenas.* O candidato a profissional ‘ou negociante procurava remediar o seu senso de injusti¢a menos pela organiza- io social que pela mobilidade social (ou mobilidade geografica, indo para Ben- gala ou para aquele “Oeste” da Europa —- 0 Novo Mundo). Procurava comprar imunidade contra a deferéncia adquirindo a riqueza que the daria “independén- cia”, ov terras € o status de geniry.* Os profundos ressentimentos gerados por essa condigdo de cliente, com suas consequentes humilhages € seus obstéculos uma carreira aberta a talentos, alimentaram grande parte do radicalismo inte- Jectual do inicio da década de 1790. Suas brasas ainda chamuscam os pés até nas calmas frases racionalistas da prosa de Godwin. ‘Assim, pelo menos durante as primeiras sete décadas do século, nao en- contramos uma classe média profissional ou industrial que pusesse um freio eficaz as operagdes do poder oligirquico predatério. Mas se ni tivesse havido 38 nenhum freio, nenhuma restrigo 2 regra parasita, a consequéncia teria sido a anarquia, uma faccHo explorando sem limites a outra. Foram quatro as princi- pais restrigGes a essa regra. Primeiro, jf observamos a tradigio “Country”, em grande parte tory, da pe- quena gentry independente. Essa tradig&o € a tinica a emergir com grandes honras da primeira metade do século. Ela reaparece, sob um manto whig,com 0 Movimento da Associagdo na década de 1770."* Em segundo lugar, temos a imprensa: ela propria uma espécie de presenga da classe média, a frente de outras expressdes articuladas — uma presenga que ampliava o seu aleance, & medida que se difundia a alfabetizacdo ¢ a propria imprensa aprendia a ampliar e manter suas liberdades.** Em terceiro lugar, temos “a lei”, promovida duran- te esse século a um papel mais proeminente que em qualquer outro periodo de nossa histdria, e servindo como a autoridade “imparcial” e arbitradora no lu- gar de uma monarquia fraca e nfo esclarecida, de uma burocracia corrupta e de uma democracia que oferecia 4s reais usurpagées de poder pouco mais que ret6rica a respeito de sua ascendéncia. A lei civil fornecia aos interesses em disputa uma série de defesas para as suas propriedades, bem como aquelas regras do jogo sem as quais tudo teria cafdo na anarguia. As instituicdes mais elevadas da lei ndo estavam livres da influencia e corrupedo, mas eram mais livres desses males do que qualquer outra profissiio. Para manter a sua credibi- lidade, os tribunais deviam as vezes julgar a favor do pequeno contra o grande, do stidito contra o rei. Em termos de estilo, o desempenho era soberbo: sereno, sem a macula da influéncia, distanciado do tumuito dos negécios, hicido, com- binando a reveréncia aos precedentes de antiguidade com uma assimilagao fiexivel do presente. O dinheiro, claro, podia comprar os melhores atores, ea bolsa mais rica podia frequentemente esvaziar a de menos posses. Mas 0 di- nbeiro nunca podia comprar abertamente um julgamento e, de vez em quando, era visivelmente derrotado. A lei civil fornecia uma estrutura justa dentro da qual os predadores podiam lutar por alguns tipos de despojos — dizimos, rei- vindicagdes de florestas ¢ terras comunais, heraneas e vinculagiio de bens de raiz —, as vezes suas vitimas de menos importancia podiam se defender com ‘0s mesmos meios. Mas o direito penal, que se dirigia em geral as pessoas dis- solutas € desordeiras, tinha um aspecto completamente diferente. Além disso, a lei do século xvii se interessava menos pelas relagdes entre as pessoas do que pelas relagGes entre as propriedades, ou reivindicagdes de propriedade, 0 que Blackstone chamava “o direito das coisas” (ver a seguir, pp. 112-3). Em quarto e iiltimo hugar, hé a resisténcia sempre presente da multidao, uma multidao que as vezes se estendia da pequena gentry e dos profissionais até os pobres (¢ no meio da qual os dois primeiros grupos procuravam as vezes combinar a oposico ao sistema com 0 anonimato). Porém, para os poderosos, 39 que a viam através da névoa verde ao redor de seus parques, parecia composta de “dissolutos e desordeiros”. A telacdo entre a genrry ¢ a multidiio é 0 interes- se especifico desta discussio. Tt Ninguém esperaria que as responsabilidades paterpais ou a deferéncia fi- lial fossem vigorosas no regime predat6rio por mim apontado. Mas é certa- mente possivel que uma sociedade esteja rachada e barbaramente facciondria no topo, mas conserve a sua coestio na camada inferior. As juntas militares se envolvem em golpes € contragolpes, os pretendentes ao trono trocam de lugar, os senhores da guerra realizam marchas e contramarchas, mas na base da so- ciedade os camponeses ou os trabalhadores nas plantations permanecem pas- sivos, submetendo-se as vezes a uma troca de senhores, contidos pela forga das instituigdes paternais locais, obrigados a se sujeitar pela auséncia de hori- zontes sociais alternativos. Qualquer que tenha sido o parasitismo que infes: tasse o Estado do século xvill, a gentry, segura nos seus condados, néo teria Iangado sobre toda a sociedade uma rede paternalista? Nao seria dificil encontrar exemplos de grandes propriedades rurais ou de aldeias senhoriais fechadas onde isso parece se confirmar, Retornaremos a es- ses exemplos, Seria igualmente facil encontrar regiGes de pastagem e florestas com industria doméstica em expansio onde isso é evidentemente falso. A troca de exemplos nao vai nos levar muito longe. A pergunta que devemos fazer & a seguinte: quais eram as instituigées, no século xvi, que permitiam aos gover~ nantes obter, direta ou indiretamente, o controle sobre a vida inteira do traba- Ihador, em oposic#o & compra, seriatim, de sua forga de trabalho? fato mais substancial est no outro lado da pergunta. Esse € 0 século que presencia a erosdo das formas semilivres de trabalho, o declinio da modalidade de morar no local de trabalho, a extingdo final dos servigos prestados em paga pelo arrendamento e o avango do trabalho livre, mével e assalariado. Nao foi uma transigao facil ou répida. Christopher Hill nos lembrou a longa resisténcia oferecida pelo inglés livre de nascimento & sopa do trabalho livre assalariado. Deve-se notar igualmente a longa resisténcia que os senhores ofereciam a algu- mas de suas consequéncias. Eles desejavam ardentemente ficar com o melhor do mundo antigo e do novo, sem as desvantagens de nenhum dos dois. Agarra- vam-se @ imagem do trabalhador como um homem ado livre, um “servo”: um, servo na lavoura, na oficina, na casa. (Agarravam-se simultaneamente & ima- gem do homem livre ou sem senhor como um yagabundo, a ser disciplinado, chicoteado e compelido a trabalhar.) Mas a safta nio podia ser colhida; 0 teci- 40 do, manufaturado; os bens, transportados; as casas, construfdas; nem os par- ques, ampliados, sem uma mio de obra disponivel e mével, para a qual seria inconveniente ou imposstvel aceitar as reciprocidades da relago senhor-servo. Os senhores rejeitavam suas responsabilidades paternais, mas, a0 longo de muitas décadas, no paravam de se queixar do rompimento da “grande lei da subordinacdo”, da diminuico da deferéncia resultante dessa recusa: Os trabathadores pobres, apesar da paga em dobro, Sao atrevidos, rebeldes ¢ miserdveis.” A queixa mais caracteristica, durante a maior parte do século, era quanto 2 indisciplina dos trabalhadores, sua irregularidade de emprego, sua falta de sujeigdo econdmica e sua insubordinagao social. Defoe, que nao foi um tedrico convencional dos “baixos saldrios”,¢ que 4s vezes via mérito nos salarios mais altos que aumentariam o poder consumidor dos “manufatores” ou dos “artifi- ces”, apresentou toda a argumentagio em seu Great law of subordination consider'd; or, the insolence and insufferable behaviour of servanis in En- gland duly enquir’d into [Consideragdes sobre a grande lei da subordinagio; ou a devida investigacao sobre a insoléneia e o comportamento intoleravel dos criados na Inglaterra] (1724). Afirmava que pela insubordinagao dos criados: Os agricultores sdio arruinados; os fazendeiros, desmantelados; os manufatores e artifices, endividados com a consequente destruigto do comércio [...] e nin- guém que empregue um contingente de pobres no curso dos seus negévios pode depender de qualquer contrato por eles ajustado, nem realizar qualquer coisa de que se encarregam, pois nao hd lei, nem poder... que obrigue os pobres a realizar honestamente 0 que so contratados para fazer. Sob a suspensiio do comércio, e na falta geral de trabalho, sio ruidosos e re- beldes, fogem das familias, Jota as pardquias com as mulheres ¢ 0s filhos [...] € | tornam-se dispastos a qualquer tipo de dano, seja a insurreicao piiblica, seja ‘o saque privado. Numa superabundancia de comércio, tomam-se atrevidos, preguigosos, ovio- sos ¢ devassos [...] s6 querem trabalhar dois ou trés dias na semana O controle paternalista sobre a vida inteira do trabalhador estava de fato sendo desfeito. A fixagio do salério™” cafa em desuso, a mobilidade da mio de obra é manifesta, 0 vigor das feiras de contratac’io, statutes ou statties, pro- clama o direito do trabalhador rural (bem como do urbano) de reivindicar, se assim o desejar, uma troca de patrao.*' Além disso, hd cvidéncias (na propria recusa dos trabalhadores a se submeter a disciplina de trabalho deles exigida) (vin) Desde o reino de Blizebeth 1 (1558-1603), os salirios eram flxados loeaimente pelos Juizes de paz (geralmente membros da gemiry) dos condados. (N.T.) 41 que atestam 0 desenvolvimento de uma recém-adquirida psicologia do traba- Ihador livre. Numa das anedotas moralistas de Defoe, o juiz de paz intima roupeiro por causa de uma queixa de seu empregador, que afirmava que o tra- balho estava sendo negligenciado: sure, Entre, Edmund, falei com o seu senhor. EDMUND Nao com o meu senhor, Vossa Exceléncia, espero ser 0 meu proprio senor, nu Bem, com o seu empregador, o Sr. E... 0 fabricante de roupas. Serve a palavra empregador? EDMUND Sim, sim, Vossa Exceléncia, qualquer coisa que nao seja senhor.” Isso é uma grande mudanga nos termos das relagSes: a subordinagHo esta se tomando objeto de negociaciio (embora entre partes gritantemente desiguais). O século xvit testemunhou uma mudanca qualitativa nas relagdes de tra- balho. mas sua natareza fica obscurecida se a consideramos apenas em termos de um aumenio na escala e no volume da manufatura e do comércio. Isso ocor- reu, sem chivida. Todavia, ocorreu de tal maneira que uma proporcéo substan- cial da forga de trabalho se tornou realmente mais livre da disciplina no traba- Iho didrio, mais livre para escolher entre empregadores e entre 0 trabalho e 0 lazer, ficando todo o seu modo de vida menos marcado por uma posigao de dependéncia do que tinha sido até entiio ou do que viria a ser nas primeiras décadas da disciplina da fibrica e do reldgio. Foi uma fase de transigao. Uma caracteristica importante foi a perda de usos ou direitos ndio monetarios, ou a sta conversio em pagamentos em di- nheiro. Esses usos ainda eram extraordinariamente difundidos no inicio do século xvitt. Favoreciam 0 controle social paternalista, porque pareciam a0 mesmo tempo relagGes econdmicas e relagGes sociais, relagdes entre pessoas, ¢ ndo pagamentos por servicos e coisas. Sem diivida nenhuma, comer 4 mesa do empregador, morar no seu celeiro ou acima de sua oficina, era submeter-se A sua supervisiio. Na casa-grande, os criados que dependiam dos “trocados* dos visitantes, das roupas da senhora, das sobras clandestinas da despensa, passavam toda a vida granjeando favores. Até os ganhos extras multiformes dentro da indiistria, cada vez mais redefinidos como “roubo”, tinham mais probabilidade de sobreviver nos lugares em que os trabathadores os aceitavam. como favores ¢ se submetiam a uma dependéneia filial. De vez em quando, vislumbra-se a extingdo de um emolumento ou servi- co que deve ter induzido no controle paternalista um choque desproporcional a0 ganho econémico do empregador. Assim, guando Sir Jonathan Trelawney, como bispo de Winchester, estava procurando aumentar a renda de sua sede episcopal, empregou como administrador um certo Heron, um homem forte- 42 mente comprometido com uma racionalizagao econémica impiedosa. Entre as acusagOes que arrendatdrios e funcionarios subordinados dos tribunais do bis- po apresentaram contra Heron, em 1707, constavam as seguinte: Ele infringe antigos costumes |...] em quest@es pequenas ¢ diminutas, que sfo de pouco valor para Vossa Exceléneia [...] tem se negado a dar cinco xelins em Waltham para o juiri no tribunal [...] beber satide de Vossa Exceléncia, um cos- tume que vigora desde tempos imemoriais [...] tem negado ao intendente e fin- cionétios de Vossa Exceléncia o pequeno favor de terem os cavalos ferrados em Waltham, de acordo com um antigo costume que jamais passou de seis ou sete xelins [...] negou aos arrendatdrios de Vossa Exceléncia madeira para consertar varias pontes € currais nas terras comunais. A essas acusagies, Heron respondeu um tanto irado: Confess que gosto as vezes de interromper esses costumes diminutos, como ele os chama, porque observo que os favores de vosso predecessor so prescri- tos contra Vossa Fixceléncia, exigidos como direitos. ¢ depois os beneficiados nem sequer agradecem a Vossa Exceléneia. Além disso, embora sejam diminutos, muitas despesas diminutas (...J resultam em alguma soma no final.” Desse modo a racionalizagdo econdmica mordiscava (e hi muito tem- po andava mordiscando) os lagos do paternalismo. A outra caracteristica dominante desse perfodo de transigao foi a ampliag&o daquele setor da econo- mia que era independente de uma relagio de clientela com a gentry. A eco- nomia “dependente” continuava imensa: ndo eram apenas os criados diretos da casa-grande, as camareiras e os lacaios, 08 cocheiros, os cavalarigos e 0s jardi- neiros, Os coutciros € as lavadeiras, mas também os demais circulos concéntri- cos da clientela econdmica — 0 comércio equestre ¢ de artigos de luxo, as costureiras, os pasteleiros e os negociantes de vinho, os construtores de carrua- ‘gens, 0s estalajadeiros ¢ os mocos da estrebaria. Mas o século testemunhou uma crescente drea de independéncia, na qual os pequenos empregadores e trabalhadores sentiam muito pouco, ou absolutamente nao sentiam, a sua relagdo de clientela com a gentry. Essas eram as pessoas a quem a gentry via como “ociosas e desordeiras”, afastadas de seu controle so- cial. Desses grupos —- ronpeiros, artesiios urbanos, carvoeiros, barqueiros e por- tciros, trabalhadores ¢ pequenos negociantes no coméreio de alimentos — safam provavelmente os rebeldes sociais. os participantes dos motins da fome e das barreiras de pedagio. Eles conservavam muitos dos atributos comumente atri- buidos 4 “mio de obra pré-industrial”! Trabalhando frequentemente nas suas proprias choupanas, possuindo ou alugando suas ferramentas, trabalhando nor malmente para pequenos empregadores, trabalhando muitas vezes em horas ir- B regulares e em mais de um emprego, tinham escapado dos controles sociais da aldeia senhorial e ainda nao estavam sujeitos & disciplina do trabalho fabril. Muitas de suas transagdes econdmicas podiam se dar com homens e mu- Theres situados um pouco mais acima na hierarquia econémica. Nao faziam “suas compras” em empérios, mas em tendas de mercado. O estado precério das estradas tornava necesséria uma grande quantidade de mercados locais, nos quais as trocas de artigos entre produtores primarios podiam ser inusitada- mente diretas. Na década de 1760, Carvoeiros que trabalhavam pesado, homens e mulheres de Somersetshire e Gloucestershire, viajavam para varias cidades vizinhas com bandos de cavalos [..J levando cargas de carvao [...] Bra comum ver esses carvoeiros carregarem ou encherem um saco de carvao de dois alqueires [72,8 litos] com provisGes [...] carne de boi, carne de cameiro, grandes ossos de boi meio descarnados, piies dormidos e pedagos de queijo? Esses mercados e, ainda mais, as feiras sazonais nfo s6 propiciavam um nexo econémico, mas também um nexo cultural, além de um grande centro para informagGes e troca de novidades e boatos. Em muitas regides, as pessoas nao tinham sido completamente despojadas de alguma posse da terra. Como grande parte do crescimento industrial nZo as- sumiu a forma de uma concentracéio em grandes unidades de produgao, mas de uma dispersio de pequenas unidades e subempregos (especialmente a fiagio), havia recursos adicionais para “independéncia”. Para muitos. essa independén- cia nunca ficava longe da mera subsisténcia: uma colheita farta podia trazer uma riqueza momentinea, uma longa estagio de chuvas podia obrigar as pessoas a recorrer a assisténcia social. Mas muitos conseguiam tirar essa subsisténcia das terras comunais, dos ganhos da colheita e de trabalhos manuais ocasionais, de subempregos nas choupanas, do expediente de empregar as filhas, da assisténcia aos pobres ou da caridade. E, sem diivida, alguns dos pobres tinham a sua pré- pria economia predatéria, como “a enorme quantidade de devassos, vagabundos e desordeiros” que, segundo se alegava, viviam as margens de Enfield Chase nos tempos de George m1, que “infestam a drea, invadindo 0 terreno nas noites escu- ras, com machados, serras. podGes, carrocas ¢ cavalos,roubando nas suas idas ¢ vindas as ovelhas, os cordeiros e as galinhas de gente honesta [...1’.!* Essas pes soas aparecem repetidamente nos registros criminais, na correspondéncia admi- nistrativa das grandes propriedades, nos folhetos ¢ na imprensa. Ainda apare- cem, na década de 1790, nos levantamentos agricolas dos condados. Nao podem ter sido inteiramente invengiio da classe dominante. Assim, a independéncia da mao de obra (e do pequeno empregador) em relago ao clientelismo foi alimentada, de um lado, pela conversio de “favores” ndo monetérios em pagamentos e, de outro, pela ampliagio do comércio e da 44 indtistria com base na multiplicag&o de muitas pequenas unidades, com muito subemprego (especialmente a fiagdio) coincidindo com a manutengaio de muitas formas de pequena propriedade de terra (ou de direitos das terras comunais) e com muitas demandas casuais de trabalho manual. Este é um quadro indiscrimi- nado, ¢ assim foi deliberadamente tragado. Os historiadores econdmicos tém feito muitas diferenciagdes cuidadosas entre diversos grapos de trabalhadores. Mas elas naio siio relevantes para nossa presente investigagdo. Nem eram comu- mente feitas pelos comentadores da gentry, quando consideravam o problema geral da “insubordinaciio”. Ao contréio, para além dos portes do parque e das grades da manstio londrina, esses viam uma mancha de indisciplina — “os vaga- bundos ¢ os desordeiros”, “a turba”, “os pobres”, “o populacho” -—- ¢ deptora- vam “as suas chacotas perante toda disciplina, tanto religiosa como civil: 0 seu desprezo pela ordem, a sua ameaca frequente a qualquer justiga ¢ a sua extrema prontidio a participar de levantes tumultuosos pelos menores motives” Como sempre, € uma queixa indiscriminada contra a gente comum. O trabalho livre trouxera consigo um enfraquecimento dos antigos meios de dis- ciplina social. Assim, longe de uma sociedade patriarcal segura de si, 0 que 0 século xvur presencia é o velho paternalismo prestes a entrar em crise. Vv No entanto, considera-se que “crise” é um termo demasiadamente forte. Se continua por todo 0 século a queixa de que os pobres eram indisciplinados, criminosos, inclinados ao tumulto e ao motim, nunca se tem a impressdo, antes da Revolucdo Francesa, de que os governantes da Inglaterra imaginas- sema que toda a sua ordem social estivesse em perigo. A insubordinagiio dos pobres era uma inconveniéncia, niio uma ameaca. Os estilos de politica e de arquitetura, a retorica da gentry e suas artes decorativas, tudo parece procla- mar a estabilidade, a autoconfianga, o habito de contornar todas as ameagas & sua hegemonia. E claro, podemos ter exagerado a crise do paternalismo. Ao voltarmos nossa atengio para 0 parasitismo do Bstado no topo, e, embaixo, para a erosio das relagdes tradicionais pelo trabalho livre e por uma economia monetaria, deixamos de examinar os niveis intermediarios, em que continuavam fortes os. comtroles econémicos domésticos mais antigos, e é possivel que tenhamos su- bestimado o alcance das areas de “dependéncia” ou “clientela” da economia. O controle que os homens de poder e dinheiro ainda exerciam sobre toda a vida ¢ as expectativas de seus inferiores continuava enorme, ¢ se o paternalis- mo estava em crise, a Revolugéio Industrial devia mostrar que sua crise ainda 45 devia passar por varias etapas — até chegar a Peterloo e aos motins de Swing —antes que ele perdesse toda a credibilidade. ‘Ainda assim, a andlise nos permite ver que 0 controle da classe dominan- teno século xvurse localizava primordialmente numa hegemonia cultural. ¢ sé. secundariamente numa expressiio de poder econdmico ou fisico (militar). Di- zer que era “cultural” néo € dizer que fosse imaterial, demasiado frégil para anilise, insubstancial. Definir 0 controle em termos de hegemonia cultural nao € desistir das tentativas de andlise, mas se preparar para a anélise nos pontos em que deveria ser feita: nas imagens de poder ¢ autoridade, nas mentalidades populares da subordinacio. O roupeiro ficticio de Defoe, intimado a comparecer perante 0 magistrado para prestar contas de suas faltas, oferece uma pista: “nao. meu senhor, Vossa Exceléncia, espero ser meu préprio senhor”. A deferéncia que recusa ao seu empregador transborda na expresso calculadamente obsequiosa “Vossa Exce- Iéncia”, Ele quer se ver livre das humilhagdes imediatas e didrias da dependén- cia. Mas as linhas mais amplas do poder, a posigdo social na vida ¢ a autorida- de politica parecem ser tio inevitaveis ¢ irreversfveis quanto 0 céu e a terra. Uma hegemonia cultural desse tipo induz exatamente aquele estado de espirito ‘em que as estruturas estabelecidas da autoridade ¢ os modos de exploragio parecem fazer parte do préprio curse da natureza. Isso nfo impede o ressenti- mento, nem mesmo os atos sub-repticios de protesto ou vinganga. Impede a rebelido afirmativa. A gentry na Inglaterra do século xvin exercia esse tipo de hegemonia. E a exercia tanto mais eficazmente, porque a relac&o entre dominante e dominado nao cra em geral face a face, mas indireta. Isso sem contar a auséneia dos proprietarios de terra e a mediacaio sempre presente de administradores ¢ intendentes. O apare- cimento do sistema de trés camadas — proprietério de terra, agricultor arrendaté- rio e trabalhador sem terra — significava que os trabalhadores rurais, em massa, nao se confrontavam com a gentry na sua qualidade de empregadores, nem era a gentry vista como responsavel em qualquer sentido direto pelas suas condigées de. vida. Ter um filho ou uma filha trabalhando na casa-grande niio era visto como uma necessidade, mas como um favor. Eeles ficavam igualmente afastados das polaridades do antagonismo so- cial © econémico por outras maneiras. Quando o prego dos alimentos subia, a firia popular nao recafa sobre os proprietarios de terra, mas sobre os interme- didrios, os agambarcadores, os moleiros. A gentry podia lucrar com a venda da 1d, mas ningném achava que tivesse uma relaciio exploradora direta com os roupeiros.* Nas regides industriais em expansao, os fidalgos jufzes de paz viviam na sua jurisdigao rural, afastados frequentemente dos principais centros indus- 46 triais, e tinham dificuldades em preservar minimamente sua imagem de drbi- tros, mediadores ou até de protetores dos pobres. Era comum a opiniao de que “sempre que um negociante se torna juiz, cria-se um tirano”* As leis de assis- téncia aos pobres, caso fossem duras, no eram administradas diretamente pe- la gentry; nos casos em que havia culpa, as acusagdes podiam voltar-se contra 0s fazendeiros ¢ os negociantes que prejudicavam as taxas da assisténcia aos pobres, e era de seu meio que provinham os inspetores da Lei dos Pobres. Langhorne apresenta a imagem paternalista idealizada, exortando o juiz rural a [..] inelinar a fronte severa Sobre o inspetor cruel, ladriio, velhaco, O fazendeiro cheio de evasivas, pouco confidvel, Inflexivel como a rocha, insacidvel como a terra, Quando o pobre camponés, curvado com o passar dos anos, Apoia-se fraco na sua outrora infatigevel pa, Esquecido do servico de seus dias mais capazes, Sua labuta tucrativa, e sua gloria honesta, Este escravo, que punha a mesa com o seu trabatho! 8? E, mais uma vez, podia-se manter uma imagem pelo menos espectral das res- ponsabilidades paternais com muito pouco dispéndio de esforco. O mesmo juiz de paz que, na sua pardquia fechada, agravava os problemas de pobreza em outros lugares, 20 recusar licenga de residéncia ¢ derrubar choupanas nas terras comunais, podia, nas sessGes trimestrais, a0 atender o apelo ocasional contra inspetores de outras paréquias abertas, ou ao chamar a ordem o mestre corrupto da oficina, colocar-se acima das linhas da batalha, Temos 0 paradoxo de que a credibilidade da gentry como paternalista provinha da alta visibilidade de certas de suas fungGes, bem como da baixa visibilidade de outras. Uma grande parte da apropriagio do valor do trabalho dos “pobres” pela gentry era mediada pelos seus arrendatarios, pelo comércio ou pela tributagio. Fisicamente, eles se afastavam cada vez mais das relagdes. face a face com as pessoas na aldeia e na cidade. A moda dos parques de cer- vos €a ameaca dos ladrdes de caga acarretavam o fim dos direitos de passagem pelos seus parques e 0 cercamento dos terrenos com altas paligadas ou muros; © ajardinamento da paisagem, com fontes ornamentais ¢ lagos de peixes, bi- chos enjaulados ¢ estatuas valiosas, acentuava a sua segregacdo ¢ as defesas de seus terrenos, onde s6 se podia entrar pelos altos portées de ferro forjado, vi- (ix) [..] bend the brow severe/ On the sly, pilfering, cruel overseers! The shuffling former, faithful to no trusty Ruthless as cocks, insatiate 2s the dust When the poor hiad, with length of years decay"d, Leans feebly on his ance subduing spade Forgot the service of his abler days,’ His profitable toil, and honest praise / This stave, whose board his former labours spread! 47 giados a partir da casa do porteiro. A alta gentry se defendia de seus arrendaté- ios por meio dos meirinhos, ¢ dos encontros casuais por meio de seus cochei- ros. Eles se encontravam com as camadas mais baixas da sociedade nos seus priprios termos, e quando essas dependiam de seus favores; nas formalidades das cortes de justica ou em calculadas ocasides de clientelismo popular. No entanto, ao desempenhar essas fungdes, a sua visibilidade era formida- vel, assim como as formidaveis mansGes impunham sua presenga, afastadas da aldeia ou da cidade, mas vigiando-as. Suas aparicées em ptiblico tinham muito da estudada representagiio teatral. A espada era posta de lado, exceto para fins de cerimonial. Mas a elaboragio das perucas, as roupas omamentadas ¢ as benga- las, ¢ até os gestos patricios ensaiados e a arrogancia da postura e da expressiio, tudo se destinava a exibir a autoridade aos plebeus ¢ a extrair deles a deferéncia. E isso se fazia acompanhar de certas caracteristicas rituais significativas: o ritual da cagada, a pompa das cortes (¢ todo o estilo teatrab das cortes de justiga), os bancos apartados na igreja (onde entravam mais tarde e de onde saiam mais cedo que 0 resto dos mortais). E, de vez em quando, havia a oportunidads de um ce- rimonial mais amplo, que tinha fungGes infeiramente paternalistas: a celebragZo de um casamento, uma festa de maioridade, um festival nacional (coroagao, ju- bilen ou vitéria naval), as esmolas aos pobres num funeral" Temos aqui um estilo hegeménico estudado ¢ elaborado, um papel teatral que 0s poderosos aprendiam na infincia e desempenhavam até a morte, E se falamos desse desempenho como teatro, néo & para diminuir sua importdncia. ‘Uma grande parte da politica c da Ici é sempre teatro. Uma vez “estabelecido” um sistema social, ele nao precisa ser endossado diariamente por exibigdes de poder (embora pontuagées ocasionais de forga sejam feitas para definir os li- mites de tolerdncia do sistema). O que mais importa ¢ um continuado estilo teatral. O que se observa no século xvitt é a elaboragdo desse estilo e a artifi- cialidade com que era apresentado. A gentry e (em quest&es de relagGes sociais) as suas damas sabiam julgar com preciso os tipos de ostentago apropriados para cada posigdo social: 0 tipo de carruagem, a quantidade de lacaios, o tipo de mesa, até a reputagdo adequada de “liberalidade”. espetculo era tio convincente que chega a de- sorientar historiadores. Nota-se um crescente mimero de referéncias as “res ponsabilidades paternais” da aristocracia, sobre as quais “repousava todo 0 sistema”. Mas até agora observamos antes gestos ¢ posturas que responsabili- dades reais. O teatro dos poderosos nao dependia do cuidado constante ¢ didrio dessas responsabilidades (exceto nos cargos supremos do Estado, considera- va-se quase toda fungiio da aristocracia no século xvi, e muitas das fungées da gentry ¢ do clero mais elevados, quase uma sinecura, cujos deveres eram repassados a um subordinado), mas de intervengdes dramaticas ocasionais: 0 45 boi assado, os prémios oferecidos para alguma corrida ou esporte, as doagdes generosas para a caridade em tempos de escassez, o pedido de cleméncia, a proclamagao contra os agambarcadores. E como se a ilusdo do paternalismo fosse demasiado frégil para se correr o risco de uma exposicaio mais demorada. As ocasiGes de patronagem da aristocracia e da gentry certamente mere- cem ateneao: esse lubrificante social dos gestos podia, com bastante facilida- de, fazer os mecanismos de poder e exploragdo girarem mais suavemente. Os pobres, habituados a sua posigdo irrevogavel, cram frequentemente transfor mados, pela sua propria boa indole, em ctimplices de sua prdpria opressiio: um ano de provisdes escassas podia ser compensado por uma generosa doacio no Natal. Os govermantes tinham consciéncia disso. Um colaborador de London Magazine comentava: As dangas no gramado nas festas paroquiais e em ocasives alegres no sé deveriam, ser toleradas como encorajadas. E pequenos prémios distribufdos 4s mocas que melhor dangassem uma giga ou uma horapipe fariam com que retornassem a seu abalho didtio de coragio leve e com uma obedigncia grata a seus superiores."” Mas esses gestos eram calculados para receber uma retribuigo em defe- réneia muito desproporcional ao esforgo despendido, e certamente niio mere- cem a desctig&o de “responsabilidades”. Esses grandes burgueses agrarios demonstrayam ter pouco senso de responsabilidade pablica ou até corporativa. O século no é famoso pela escala de seus prédios ptiblicos, mas pela de suas mansdes privadas. Além disso, & conhecido tanto pela malversagao das insti- tuigGes de caridade de séculos anteriores como pela fundagiio de novas. Uma fungao piiblica que a gentry assumia inteframente como sua era a ad- minjstragio da justiga, a manutengdio da ordem pdiblica em tempos de crise. Nesse ponto, tornava-se magistral e portentosamente visivel. Era sem dtivida uma responsabilidade, embora o fosse, em primeiro e segundo lugares, para com a sua propria propriedade e autoridade. Com regularidade ¢ terrivel solenidade, os limites de tolerncia do sistema social eram ressaltados pelos dias de enforea- mento em Londres, pelo cadaver apodrecendo no patibulo ao lado da estrada, pelo processional das cortes. Por mais indesejaveis que fossem os efeitos colate- rais (0 aprendizes e os criados faltando ao trabalho, o festival de punguistas, a aclamagao do condenado), 0 ritual da execu¢do publica era um acessério neces- sdrio a um sistema de disciplina social dependente, em grande parte, do teatro. Na administracio da justiga, havia igualmente gestos que participavam desse estilo patemnalista artificial, Em particular, no exerefcio da prerrogativa da cleméncia, a aristocracia a alta geniry podiam evidenciar o seu grau de interesse, patrocinando ou recusando-se a patrocinar a intercessio pelo conde- nado, E, como mostrou Douglas Hay, tomar parte, ainda que indiretamente, dos poderes de vida e morte aumentava enormemente o seu carisma hegem6nico.” 49 De vez em quando, 0 exereicio do poder de vida e morte podia ser planejado até ‘ tltimo detalhe. Em 1728, 0 duque de Montagu escreveu ao duque de Neweas- tle a respeito de “meu homem John Potter”, que fora condenado por roubar ta- pegarias do duque, Montagu desejava que Potier fosse condenado ao degredo perpétuo em vez de ser executado: “Falei com o escrivao a respeito, e quando se fizer amanhi o registro dos malfeitores condenados no conselho, ele vai propor que Potter seja inserido no mandado das execugdes, mas ao mesmo tempo € possivel que haja uma suspensio da sua pena, s6 que disso ele nada deve saber até a manhi da execugao”. ‘Trds dias mais tarde, Montagu escrevia ansiosamente para certificar-se de que a carta da suspensio da pena chegaria a tempo, pois se Newcastle a esque- cesse, “ele serd enforcado. e se isso acontecer, € melhor que eu seja enforcado com ele, pois as damas da minha familia nfio me deixam em paz querendo salvé-lo [..J”. © papel do rei nesse exercicio da prerrogativa da cleméncia parece ter sido ficticio." De qualquer modo, no se sabe ao certo até que ponto € ttil descrever essa fungio de proteger a propria propriedade e a ordem social como “paterna- lista”. Sem diivida, é uma fungdo que arranca poucas mostras de lealdade filial, quer de suas vitimas, quer das multiddes ao redor dos patibulos.** O século que acrescentou mais de cem novos crimes capitais aos livros da lei tinha uma vi- sao severa (ou leviana) da paternidade. v Se os poderosos ficavam téo afastados dos olhos pablicos, dentro de seus parques e mansdes, também os plebeus, em muitas de suas atividades. ficavam afastados deles. O dominio paternal efetivo ndo sé requer autoridade temporal, ‘mas também autoridade espiritual e psiquica. E-nesse ponto que encontramos, a0 que parece, 0 clo mais fraco do sistema. Niio seria diffcil descobrir, nesta ou naquela pardquia, o clero do século xvut cumprindo, com dedicagao, funedes paternalistas. Mas sabemos muito bem que nao cram homens tipicos. O retrato do pastor Adams niio € tragado para exempli- ficar as préticas do clero, mas para criticé-las. Ele pode ser visto como 0 Dom Quixote da Igreja Anglicana do século xvm. A Igreja era profundamente erastia- na Se tivesse desempenhado um papel patemnalista efetivo, psicologicamente convincente, o movimento metodista ndo teria sido necessario, nem posstvel. (®) Refere-se & doutrina de Thomar Liber, chamado “Erasto", médico tedlogo suigo do século xvr que negou a autonomia administrativa ¢ disciplinar da Tgreja perante o Estado. (N. R.) 50 Sem dtivida, todas essas afirmagdes poderiam softer restrigdes. Mas 0 ponto central para nosso objetivo é que 0 dominio “mégico” da Igrejae de seus rituais sobre a populaca, embora ainda fosse presente, estava se tomando mui- to fraco. Nos séculos xvi e xvit, 0 puritanismo decidira destruir os lacos de idolatria e superstig&io — as capelas 4 beira da estrada, as igrejas pomposas, 03 cultos milagrosos locais. as praticas supersticiosas, o clero confessional — que, como ainda hoje se pode ver na Irlanda ou em parte da Europa meridio- nal, so capazes de infundir no povo um temor reverente. A Restauracdo n&io conseguiu recuperar o tecido da idolatria papista, que, de qualquer modo, nun- ca despertara grande entusiasmo na Inglaterra. Mas a Restaurac3o realmente afrouxou os novos lagos de disciplina que © puritanismo introduzira em seu lugar. Quase nio ha dtivida de que o infcio do século xvi presenciou um gran- de recuo do puritanismo, bem como a diminuigtio do mimero de seguidores puritanos populares até mesmo naqueles centros de artesios que tinham ali- mentado as facgdes da Guerra Civil. Como resultado, os pobres tiveram acesso a alguma liberdade, ainda que de tipo negative — libertaram-se da disciplina psiquica e da supervisio moral do clero ou dos presbiteros. Em geral, o clero que exerce suas fungées pastorais com desvelo sempre encontra maneiras de coexistir com as superstigées pagis ¢ heréticas de seu rebanho. Por mais deplordveis que essas solucdes de compromisso paregam a0s tedlogos, o padre aprende que muitas das crengas e préticas do “folclore” siio inofensivas. Se anexadas ao calendério religioso anual, podem ser assim cristianizadas, servindo para reforcar a autoridade da Igreja. Os forjadores dos grilhdes da Santa Igreja, observava Brand, 0 pioneiro do folclore, “tinham conseguido com bastante astticia que os figis se sentissem a vontade trancando flores a seu redor [...] Uma profusiio de ritos, espetéculos e cerim@nias infantis desviava a atencfio do povo de suas verdadeiras condigdes, mantendo-os satis feitos [...]”."* O mais importante é que a Igreja devia, nos seus rituais, controlar os ritos de passagem da vida pessoal ¢ anexar os festivais populares a seu pro- prio calendatio. A Igreja Anglicana do século xvn nao era uma instituigdo desse tipo. NEo tinha padres a seu servico, mas pastores. Exceto em circunstancias incomuns, abandonara a prética da confissio. Recratava poucos filhos dos pobres para 0 seu clero. Quando tantos clérigos serviam como magistrados temporais e ofi- ciavam a mesma lei que a gentry, ndio podiam se apresentar convincentemente como agentes de uma autoridade espiritual alternativa. Quando os bispos eram fruto de nomeagdes politicas, ¢ quando os parentes da gentry recebiam benef{- cios eclesidsticos no campo, onde aumentavam 0 seu vicariato e adotavam o estilo de vida da gentry, era demasiado evidente de que fonte provinha a auto- ridade da Igreja. at Acima de tudo, a Igreja perdia o controle sobre 0 “lazer” dos pobres, suas festas ¢ festivais, e, com isso. sobre uma grande direa da cultura plebeia. O termo “lazer”, evidentemente, é em si anacrénico. Na sociedade rural em que persis- tiam a pequena lavoura e a economia doméstica, bem como em grandes direas da indtistria manufatureira, a organizacdo do trabalho era tio variada e irregular que é ilus6rio tragar uma distingio nitida entre “trabalho” e “lazer”. Por um lado. as reunides sociais mesclavam-se ao trabalho 0 mercado, a tosa das ovelhas ¢ a colheita, 0 ato de buscar ¢ carregar os materiais de trabatho, e assim por diante, durante © ano todo. Por outro lado, investia-se um enorme capital emocional, no aos poucos numa sequéncia de noites de sfbado e manhas de segunda-feira, ‘mas em ocasiGes festivas e nos dias de festivais especiais. Muitas semanas de trabalho pesado e dieta escassa eram compensadas pela expectativa (ou lem- branga) dessas ocasides, quando a comida e a bebida eram abundantes, flores: ciam os namoros e todo tipo de relagdio social e esquecia-se a dureza da vida. Para os jovens, 0 ciclo sexual do ano girava em tomo desses festivais. Significa- tivamente, era para essas ocasides que os homens ¢ as mulheres viviam. E se a Igteja tinha uma participacao pouco significativa na organizago dessas festas, € porque deixara bastante de se envolver com o calendério emocional dos pobres. Pode-se ver tudo isso num sentido literal. Embora os antigos dias dos santos se espalhassem abundantemente pela folhinha, o calendario ritual da Igreja concentrava os eventos nos meses de trabalho mais leve, do inverno até a primavera, do Natal até a Péscoa. Embora as pessoas ainda prestassem tribu- to a essas duas tiltimas datas, que continuavam a ser os dias de maxima comu- nhao, 0 calendatio das festividades populares do século xvi coincide aproxi- madamente com o calendério agririo. As festas das aldeias e cidades para a sagragio das igrejas- - as wakes —— néio s6 tinham passado dos dias dos santos para o domingo mais préximo, como, na maioria dos casos, também haviam lo removidas (quando necessirio) do solsticio de inverno para o de verio. Por volta de 1730, 0 antiquaério Thomas Heame anotou o dia de festa de 132 aldcias ou cidades em Oxfordshire e arredores. Todas ocorriam entre maio & dezembro; 84 (ou mais que trés quintos) cafam em agosto e setembro; nada menos que 43 (ov quase um tergo) caiam na ultima semana de agosto ¢ na primeira semana de setembro (calendario antigo). Fora um grupo significativo de umas vinte, que caiam entre o fim de junho e o fim de julho, e que num ano normal provavelmente cairiam entre o término da colheita do feno e 6 comego da colheita dos cereais, a maior parte do calendario festive emocional situava- -se nas semanas logo depois do fim da colheita:* O dr. Malcolmson reconstruiu 0 calenddrio das festas de Northamptonshi- re mais para o final do século xvm, que mostra quase a mesma incidéncia.* A secularizacio do calendario € acompanhada de uma secularizacto do estilo ¢ 32 da fungiio das festas. Se a festa ndo fosse pag, novas fungdes seculares eram acrescentadas ao antigo ritual. Com suas numerosas tendas, os taverneiros, 0s vendedores ambulanies ¢ os artistas estimulavam as festas quando seus clientes tinham nos bolsos ganhos extraordinarios da colheita. Em Whitsuntide, a insti- tuig&o de caridade do vilarejo e os clubes de beneficéncia assumiam as antigas festas da cerveja na igreja. Em Bampton, a festa do clube na segunda-feira depois do domingo de Pentecostes inclufa uma procissdo com tambores e flau- tistas (ou rabequistas), dangarinos morris,* um palhago com uma bexiga carre- gando 0 “tesouro” (a caixa de dinheiro para as contribuigdes), um portador de espada com um bolo. E claro, no havia crucifixo, nem padres, nem freiras, nem imagens da Virgem ou dos santos: a sua auséncia talvez seja pouco notada. Nenhuma das dezessete cangdes ou melodias registradas tinha a menor asso- ciagdo religiosa: Oh meu Billy, meu fiet Billy, Quando vou ver 0 meu Billy de novo? Quando os peixes voarem sobre @ montanha, Entizo voce vai ver 0 seu Billy de novo. Bampion, esse museu vivo do folelore, nao era uma aldeia rural isolada, mas um vigoroso centro da indtistria do couro, assim como a Middleton ¢ a Ashton da infancia de Bamford eram centros da industria doméstica. O que se evidencia, em muitos desses distritos e em muitas regides rurais também no sé- culo xvi, é que nem por um momento se poderia defender a opiniéo que (por exemplo) Paull Bois é capaz de declarar sobre 0 camponés francés do Oeste no século xvitt, segundo a qual “c’était l’église, A lombre de laquelle se nouaient toutes les relations” [era a igreja, 2 sombra da qual se entrelacavam todas as re- laces]. Claro, o religioso e o secular tinham coexistide com dificuldade ou em meio a conflitos durante séculos, Os puritanos se preocupavam em manter os dangarinos morris fora da igreja e as tendas dos vendedores fora de seu patio. Reclamavam que as festas da cerveja na igreja eram maculadas pelo agulamento de animais, dangas ¢ toda sorte de “indecéncia”. Mas, num certo sentido, a Igre- Ja continuava a ser 0 eixo em torno do qual giravamn o§ raios da roda dessa tradi- $40 popular, ¢ o Stuart book of sports (Livro Stuart da recreagao] procurou con firmar essa relacdo contra 0 ataque puritano, No século xvi, ocalendéirio savonal agrario era 0 eixo, ¢ a Tgreja nao fornecia forga propulsora alguma. Trata-se de uma mudanga dificil de definir, mas que foi, sem diivida, bem grande. (Ga) Danea ingless medieval em que os figurantes, com fitas e sinos, represemtavam persona- gens lendétios. (N.T.) (su) Oh, my Billy, my constant Billy’ When stall { see my Billy again’ When the fishes fly ‘over the mountsinJ Then you'll see your Billy again, a A experiéncia dupla da Reforma e do declinio da presenga puritana dei- sou uma extraordinéria dissociac%o entre a cultura de elite e a cultura plebeia na Inglaterra p6s-Restauracio. Tampouco devemos subestimar 0 processo criativo de formagao de cultura a partir de baixo. Nao s6 os elementos mais dbvios — as cangées foleléricas, os clubes dos offcios e as bonecas de sabugo —eram ali criados, mas também interpretagées da vida, satisfagGes e ritual ‘Aseu modo mude e talvez exdtico, a venda da esposa desempenhava a fungio de um divércio ritual mais acessivel e mais civilizado que qualquer alternativa que a cultura de elite pudesse oferecer. Os rituais da rough music, por mais crugis que as vezes fossem, néio eram mais vingativos nem mais exéticos que os rituais de uma comissto especial de julgamento. ‘Alenda do renascimento da “alegre Inglaterra” depois da Restauragio é um dado que os historiadores talvez. nfo tenham tido bastante paciéncia para exami- nar. Mesmo se descontarmos algumas das afirmagSes mais sensacionais (como bom contador, Defoe nos assegura que 6325 mastros de maio*" foram levanta- dos durante os cinco anos depois da Restauracao),* nao ha ditvida de que ocor- reu um renascimento geral c as vezes exubcrante das diversies populares, festas de sagracio das igrejas, festivais em que se cobria o chiio da igreja com juncos € outros rituais. “Socorro, Senhor!”, exclamou 0 reverendo Oliver Heywood, 0 pastor expulso, a0 relatar as brigas de galo, as corridas de cavalo e as partidas de stool-ball [jogo inglés antigo semelhante ao eriquete] endémicas no distrito de Halifax na década de 1680: “Oh, quantas pragas proferidas! Quantas maldades cometidas!”. E ao relatar as celebracdes do May Day de 1680, ele lamentara: “Nunca houve nada igual em Halifax nos tltimos cinquenta anos. E 0 caos": Estamos mais acostumados a analisar a época em temos de sua histéria inte- ectual ¢ a pensar no declinio do caos. Mas esse caos da cultura plebeia, bem além do seu controle, era o pesadelo dos puritanos remanescentes como Heywood e Baxter. Os festivais pagdos que a Tgreja tinha incluido em seu calendario na Idade Média (embora sem total sucesso) reverteram a festividades puramente seculares no século Xviu. As noites de vigilia acabaram, mas as festas do dia ou da semana seguintes se tomavam mais robustas a cada década, A ceriménia de espalliar jun- cos nas igrejas ainda continuava aqui e ali, mas as festividades que acompanhavam, essa ceriménia ganhavam cada vez mais fora. Novamente perto de Halifax, 0 beneficiado (um certo reverendo Witier) tentou impedir essas festas em 1682, pois nesses festivais (queixava-se Heywood) as pessoas se munem de uma grande quantidade de came e cerveja, vém de todas as partes ¢ “comem, bebem ¢ berram de um modo birbaro e pagiio”. O povo arrombou as portas do sr. Witter, ¢ ele foi xingado de “remendiio” A cerimdnia dos juncos espalhados na igreja continuou (xm) Mastros decorados com flores ¢ fitas para as dangas do May Day. (N.R.) 54 nesse distrito durante pelo menos outros 150 anos. Mas, como na maiotia dos distritos, perdera todo significado sacro, Os simbolos nas carrocas ricamente deco- radas se tomavam sinos e potes pintados. As vestimentas pitorescas dos homens, os vestidos brancos ¢ as grinaldas das mulheres pareciam cada vez mais pagtios. Os carros alegéricos fariam uma homenagem apenas passageira ao simbolismo cristaio: Adiio ¢ Eva, sao Jorge eo Dragio, as virtudes, os vicios, Robin Hood e a donzela Marian, cavalinhos de pau, corridas em porcos, dangarinos morris. As festividades terminavam com agulamento de animais, lutas, dangas e bebidas, ¢ as. vezes com uma visita as casas da gentry e das familias ricas a procura de bebidas, comida e dinheiro. “Nao consegui acabar com essas bacanais”, escreveu o reve- rendo John William de La Flechere sobre as vigilias festivas de Shropshire: “o dique impotente que levantei contra elas s6 fez. a torrente crescer e espumar, sem. interromper o fluxo”, Além disso, o povo encontrara defensores fora da Igreja: se La Plechere pregava contra a bebedeira, os espeticulos e © aculamento de touros, “os taverneiros e 08 cervejeiras niio vio me perdoar. Acham que pregar contra a bebedeira e roubar a sua bolsa € a mesma coisa”.** Mas o ressurgimento dessa cultura nao pode ser atribuido apenas i comercia- lizagdo promovida pelos tavemeiros. Se desejasse, a gentry tinha meios, nas ses- ses trimestrais dos tribunais, de reprimir a desordem do povo. Essa florescéncia de festividades dificilmente teria ocorrido sem uma atitude permissiva da parte de muitos membros da gentry. Num certo sentido, isso nao era mais do que a légica dos tempos. O materialismo do século xvit ¢ 6 erastianismo de sua Igreja se uniam a0 materialismo dos pobres. Os espetéculos de corridas dos ricos se tornavam os feriados populares dos pobres. A tolerincia permissiva da gentry era solicitada pelas muitas tavemas que — como as tabuletas das estalagens ainda proclamam, —procurayam se colocar sob a proteciio dos poderosos. A gentry no podia fazer campanhas missiondrias convincentes para reformar os costumes e a moral dos pobres se niio estava disposta a reformar seus vicios agradaveis e pompasos, Como explicacdo, isso estd, contudo, longe de ser a palavra final. Somen- te uma classe dominante que se sente ameagada teme ostentar um padrio du- plo. Mandeville & apenas singular ao levar ao ponto de sétira 0 argumento de que os vicios privados eram beneficios piiblicos. De forma mais suavizada, 0 mesmo argumento — -a funcio valiosa do luxo era oferecer emprego e espeté- culo aos pobres — fazia parte do repert6rio econdmico convencional da épo- ca. Henry Fielding podia dizer 0 mesmo sem intengdo satirica: “Nascer para nenhum outro fim senao o de consumir os frutos da terra é privilégio [...] de bem poucos. A maior parte da humanidade deve suar para produzi-los, de ou- tra forma a sociedade deixard de cumprir os fins para os quais foi instituida”’ Na verdade, vimos que a ostentagio do luxo e da “generosidade” fazia par- te do teatro dos poderosos. Em algumas dreas (a teoria dos saldrios, as leis de 55. asistencia aos pobres, 0 cédigo penal), o materialismo dos ricos se casava sem dificuldade com um controle disciplinar dos pobres. Mas em outras éreas — a atitude permissiva para com a robusta cultura popular nao crista, uma certa cau- tela ¢ até delicadeza no trato dos distirbios populares, uma certa adulagao dos pobres no que se referia as suas liberdades e direitos — defrontamo-nos com um problema que exige andlise mais sutil. Sugere-se alguma reciprocidade nas rela Ses entre os ricos & os pobres; uma inibigdo do uso da forga contra a indiscipli- na c 0s disttirbios; uma cautela (da parte dos ticos) em tomar medidas que indis- poriam demais os pobres, e (da parte daquele grupo de pobres que de tempos em tempos formava fileiras atrés do grito de “Igrejae Rei”) uma consciéncia de que havia vantagens palpdveis em solicitar 0 auxilio dos ricos. Claro, ninguém no século xvii teria pensado em descrever a sua socieda- de como uma “sociedade de uma s6 classe”. Havia os governantes ¢ os gover- nados, os de alta ¢ os de baixa posigao social, pessoas ricas com bens indepen- dentes ¢ 0 grupo dos desagregados ¢ desordeiros. No meio, no lugar que seria das classes médias, dos profissionais ¢ dos pequenos proprietérios abastados, as relagdes de clientela e dependéncia cram tio fortes que, pelo menos até a década de 1760, esses grupos parecem oferecer pouco desvio das polaridades essenciais. Apenas se poderia atribuir uma identidade politica plena a alguém que fosse “independente” da necessidade de se submeter a benfeitores: tudo isso € um ponto a favor da visio da sociedade de “uma sé classe”. Mas a clas- se nao se define apenas pela identidade politica. Para Fielding, a evidente divi- sdo entre 0s de alta e os de baixa posig&o social, os bem-nascidos e os sem bergo, estendia-se como uma fissura culral por todo o pats: enquanto os bem-nascidos se apoderavam de varios lugares para seu proprio uso, como tvibunais, assembleias, peras, bailes ete., os sem bergo, além de um lugar régio chamado o Jardim dos Ursos de Sua Majestade, sempre foram os donos de todas as dangas, feiras, folias etc. [...] Assim, longe de se considerar irmios na linguagem crist, eles mal parecem se considerar membros da mesma espécie. Esse é um mundo de patricios e de plebeus. Nao 6 por acaso que os gover- nantes procuraram na antiga Roma o modelo de sua propria ordem sociolégica. Mas essa polarizacio das relages de classe niio priva os plebeus de toda e téncia politica. Fles esti num dos lados da equaciio necesséria da res publica. ‘A plebe niio é, talvez, uma classe trabalhadora. Os plebeus talvez nllo te- nham uma definigao consistente de si mesmos no que diz. respeito & consciéncia, (xiv) Motins populares predominantemente urbanos de apoio & causa real, Em geral era insuflados pelos setores conservadores ¢ membros da Igreja Anglicana, Foram espectaimente in- rensos pa década de 1790, quando fizeram acirrada oposicao aos grupos inspirados nos ideais da Revolugia Francesa. (N. R) 56 a clareza de objetivos, & estruturacdo da organizagiio de classe. Mas a presenga politica da plebe, “turba” ou “multidao” & manifesta. Ela colidiu com a alta po- litica em varias ocasides criticas - .- os tumultos de Sacheverell, a agitagéo do imposto de consumo, o imposto da cidra, as ebuligées patristicas e chauvinistas que apoiaram a carreira do Pitt mais velho, mais tarde Wilkes e os motins de Gordon, ¢ ainda mais além. Mesmo quando a besta parecia estar adormecida, as sensibilidades irritaveis de uma multidiio libertéria definiam, no mais amplo sen- ido, 0s limites do que era politicamente possivel. Num certo sentido, os gover- nantes ¢ a multidao precisavam um do outro, vigiavam-se mutuamente, repre- sentavam © teatro e 0 contrateatro um no auditdrio do outro, moderavam o comportamento politico miituo. E uma relag&o mais ativa e recfproca do que a normalmente lembrada sob a formula “paternalismo e deferéneia”. E igualmente necessdrio ir além da visio de que os trabalhadores, nessa época, estavam confinados as lealdades fraternais ¢ A consciéncia “vertical” dos oficios especificos, de que isso inibia solidariedades mais amplas ¢ a cons- cigncia de classe “horizontal”. Hd um pouco de verdade nisso, certamente, O artestio urbano conservava algo do modo de ver da guilda. Cada oficio tinha as suas cangées (com os instrumentos do oficio minuciosamente descritos), seus livrinhos de baladas e lendas. Assim, 0 aprendiz de sapateiro podia receber de seu mestre The delightful, princely and entertaining history of the gentle-craft [A deliciosa, magnifica ¢ divertida histéria do nobre oficio] e ali ler: {...] munca ninguém ainda vin Um sapateiro mendigar. Séio bondosos uns com 08 outros, Traiando 0 estranho como irmio* Ele lia esses versos em 1725, mas teria lido quase a mesma coisa no tempo de Dekker. As vezes as diferengas dos oficios eram levadas para os festivais e a vida social. Bristol, no inicio do século xvur, presenciava na quarta-feira de cinzas uma luta de boxe anual entre os ferreiros ¢ os tanoeiros, carpinteiros e marinheiros, os teceldes engajando-se as vezes ao lado dos ferreiros. E de modo mais substancial, ao definir seus interesses econdmicos como produtores, arte- siios ¢ trabathadores — os carregadores de carvdo a beira do Tamisa, os portei- tos de Londres, os teceldes de seda de Spitalfields, os roupeiros do Oeste da Inglaterra, os teeeldes de algodao de Lancashire, os barqueiros de Newcastle — organizavam-se compactamente em seus oficios e solicitavam ao Estado ou 4s autoridades corporativas seus jé enfraquecidos favores patemalistas, (sy) LL never yet did any know/ A Shooemaker a Begging go// Kind they are one to another,’ Using each Stranger as his Brother. oF Na verdade, hé evidéncias substanciais a esse respeito. E 0 grau da contri- buigdio que a visio de guilda ou “oficio” e mesmo vestigios de uma continuidade organizativa deu para os primeiros sindicatos foi subestimado pelos Webb. Em 1870, Brentano tinha explorado a possibilidade da continuidade de organizagio e de tradigdes entre as guildas, 2s companbias ¢ os primeiros sindicatos.Mas os Webb, no seu importante History of trade unionism (1894), posicionaram-se decisivamente contra Brentano. Tomaram essa posigdo em parte ao insistir no carter nitidamente novo do sindicalismo (em consequéncia de uma divisio cla- ra cntre os interesses dos mestres e os dos oficiais diaristas), e em parte ao impor definigdes que tomnaram grande parte dos dados do século suspeitos ou inrele- por exemplo, a exigéncia de que a organizagio deva ser continua e ter dimensées nacionais.* Essas definigdes desencorajaram por muito tempo outras igagdes sistemiiticas, quer sobre a negociagiio coletiva por meio da ago direta quer sobre a organizagio local ¢ regional, como a dos barqueiros de Newcastle ou a dos roupeiros do Oeste da Inglaterra. Esses estudos tm se multiplicado nos titimos anos, ¢ agora jd esta claro que — se no ha registro de organizaco continua de sindicatos nacionais — houve certamente uma tradigao continua de atividade sindical durante todo © século, e muito provavelmente (nos distritos téxteis) uma organizagao local con- tinua e uma Iideranca reconhecida para ages que ora se disfargavam de rough +5" ora assumiam as mascaras protetoras das sociedades de socorro mtituo. Hssas tradigdes sindicalistas remontam ao século xvit, ¢ lamento que varios es- tudos recentes muito proveitosos deem urta impressdo contréria* Hé alguns anos, encontrei no Public Record Office 0 que talvez seja um dos mais antigos cartes de filiago numa associagdio de trabalhadores jé descobertos (até agora): irata-se do cartio de um ramo de oficiais cardadores na pequena cidade de Alton (Hants) em 1725, embora tenha sido impresso em Londres ¢ a data da formagao do clube ou “Fundo de Caridade” seja dada como 1700 (ver ilustragdo n® 1). Os cardadores estavam sendo processados (no Tribunal Superior de Justiga) em consequéncia de uma longa disputa que se estendia por varios anos. Edward ¢ Richard Palmer, fabricantes de roupas, empregavam 150 trabalhadores na ma- nufatura da Id. Sens cardadores tinham formado um Clube dos Cardadores, ¢ quinze ou vinte deles se reuniam numa taverna, a Five Bells. Fora declarada uma reve (de sete cardadores) para impor a regulamentacao do aprendizado e (tam- bém, na realidade) para impor um closed shop.*“" Outros cardadores foram tra- zidos para furar a greve, mas a oficina foi arrombada duas vezes, tendo sido queimados as cardas e os materiais. Pouco antes desses acontecimentos, o selo vantes {xv1) Forma pela qual uma associagio de trabalhadores controla a contratacio de milo de obra, impondo, no local de trabalho, a filiacio de todos. (N.R.) 58 comum usado até entZo fora substituido por um cartio ou “bilhete”, que dava a0 membro 0 direito “a ser empregado ¢ a receber beneficios em todas as cidades téxteis em que os cardadores tivessem se organizado em chibes”. O pagamento ou beneficio de greve por abandonar o empregador que estivesse pagando abai- xo do prego (abaixo dos “Regulamentos e Ordens” do clube) era de cinco xelins, com os quais 0 membro devia se transferir para outra cidade. Um cardador fura- -greve, trazido de Wokingham (Berks) pelos Palmer, depés que foi “frequente- mente insultado e maltratado” nas ruas de Alton, até que por fim deixou o em- prego dos Palmer. Oito dos cardadores foram devidamente condenados,¢ 0 ¢aso alcangou uma pequena notoriedade nacional.” Isso parece fazer a data do sindicalismo recuar pelo menos até 1700, ¢ todas as caracteristicas reconhecidas da sociedade dos oficios ja ali se encon- tram — a tentativa de manter um closed shop, o controle do aprendizado, 0 fundo de greve, o sistema de circular pelas cidades. Afinal, as elaboradas procissGes de cardadores, sapateiros, chapeleiros, teceldes etc, nas grandes ocasides civicas (como a coroagdo de George m) no surgiram do nada. Esta era 2 ordem da procissdo em Manchester: A PROCISSAO DOS CARDADORES Dois intendentes com basties brancos. —Um homem de branco a cavalo, com uma peruca de Id ¢ faixa, batendo duas chaleiras. — Uma banda de musica. —As armas do bispo Blaize exibidas mama bandeira. — O tesoureiro e secretério... Um pajem real, com um bastio branco. —O bispo Blaize sobre um cavalo, assistide por dez pajens a pé.— -Os membros, dois a dois, com penteas de Ii, faixas e rosetas no cha- péu igualmente de Id. —- Dois jovens intendentes cada urn com um bastio branco. Supunha-se que o bispo Blaize, o samo padroeiro dos cardadores, teria inven- tado © processo de cardar a Hi, e que fora despedacado pelas “cardas” de dentes afiados, Naquela ocasido, a sociedade dos cardadores recitou os seguintes versos Oh, espectadores que para nés dirigis vosso olhar, Consemplai mais wna ve; 0s filhos do bispo Blaize, Que aqui se reuniram nesta associagdo Para celebrar a coroagdo do rei e da rainha. Que a feliz Gra-Bretanha logo desfrute a paz, Que a alegria, a fartura e nosso oficio prosperem. Deus salve o rei George Ill! Que a virtude brithe Através de todos os ramos de sua linhagem real. *" (xvi) Spectators all that on us now do gaze/ Behold once more the sons of Bishop Blaize Who here are met ia this association/ To celebrate the King and Queen's C“onation [..1) May ha py Britain soon enjoy a peace:/ May joy and plenty and our trade increase:/ God save King George the Third; lei virtue shine/ Through all the branches of his Royal line. 59 A procissiio do bispo Blaize ainda era celebrada com vigor em Bradford (Yorkshire) em 1825. O bispo Blaize ainda se encontra no centro do cartéo dos cardadores de Kidderminster de 1838 (ver ilustracao n? 3). Essa iconografia enfatiza o apelo a tradico por parte dos primeiros sindicalistas, bem como a tentativa do clube ou associagio dos oficiais de tomar da guilda ou companhia dos mestres a representagio dos interesses do “oticio”. De vez em quando, os oficiais diaristas realmente se separavam da companhia dos mestres, como fizeram os fabricantes de martelos de Glasgow em 1748, que formaram a sua prépria sociedade, arrecadavam contribuigdes e elegiam um decano e mestres, conforme o padrio da Com- panhia dos Mestres. Ha também varios casos interessantes de organizagdes de trabalhadores que surgiram de uma relacdo bem préxima — ainda que antagonista — com outras companhias mais antigas. O grupo talvez mais coerentemente militante de trabalhadores do século xvii — os barquciros de Neweastle- conhecia sem dtivida muito bem as priticas da Companhia dos Estalajadeiros, contra os quais na realidade lutavam para conseguir 0 controle de suas préprias instituigdes de caridade. Os barqueiros combina- vam duas caracteristicas que em geral n&o andam juntas: de um lado, eram numerosos, sujeitos a um vinculo anual, € estavam em boa posigao para empregar as tdticas da agio de massa, da greve e da intimidagao, Por outro lado, como uma proporeao elevada de seus membros era de escoceses, & como 0 vinculo nio lhes dava direito & residéncia em Newcastle, era do seu interesse tomar providéncias sisteméticas em relagdo a doengas, danos pes- soais ¢ velhice.”! Os Webb talvez tivessem razio, quando demoliram alguns dos mitos ro- minticos difundidos nas décadas de 1880 ¢ 1890 -.- mitos que foram alimen- tados por alguns dos préprios sindicalistas —, sobre os sindicatos terem se originado das guildas. Mas o que eles subestimaram foi a nogiio do “officio” e também o modo do cumprimento as cldusulas do aprendizado do Estatuto dos Artifices se tornou, desde o final do século xvi, uma exigéncia da qual os ofi- ciais procuravam tirar cada vez mais proveito, representando por isso uma ponte eptre as formas antigas € as novas. Brentano talvez tivesse razo quando declarou “os sindicatos se originaram do nao cumprimento de S Eliz. ¢. 4’ Do século xvi a0 inicio do século xix, hd evidéncias da continuidade dessas tradigGes das artes e oficios na ceramica, nas insignias das sociedades de so- corros mijtuos, nos emblemas e divisas dos primeiros sindicatos, bem como nos livrinhos de baladas ¢ versos destinados a cada oficio. Esse apelo & legiti- (xv) Ieem do Codigo Elisabetano, o qual eva geralmente invocado pela plebe para defender direitos ¢ costumes eonsiderados tradicionais. (N. R.} 60 midade e€ aos precedentes (no Estatuto dos Artffices) pode ser encontrado em. alguns versos de Essex do final do século xvtt: Daqueles que querem infringir nossos direitos, Ou intrometer-se em nosso ofivio, Ou violar a tei feita pela rainha Be Libera nos Domine. 8° ‘Também pode ser encontrado numa “Ode & mem@ria da rainha Elizabeth", que serve de prefécio ao relato do julgamento,em 1811, de uma causa de aprendiza- do relativa aos seleiros de Londres: A sua meméria ainda ¢ cara aos oftciais diavistas, Pois protegidos pela sua lei, eles agora resistem As infragées, que do contrario persistiriam Mestres tirdnicos, tolos inovadores Sao fiscalizados e limitados petas suas gloriosas regras. Dos direitos dos trabathadores ela ainda é uma garantia [...] E os direitos dos ofciais, ela defende e protege, Enquanto nis, pobres miserdveis indefesos, muitas veces Temos de andar de wm lado para o outro desta naga liberal. 8°? Na verdade, é possivel que se tenha um registro do momento real da transigyo de guilda para sindicato no diario de um tecelo de Coggeshall, que contém as regras da Companhia dos Roupeiros, Pisoeiros, Fabricantes de Baetas e Novos Fanqueiros de Coggeshall (16597-1698), seguidas por aquelas transmitidas pela companhia a um certo “Combers’ Purse”, evidentemente um clube local de curta duracio, formado “para que possamos demonstrar 0 amor que temos pelo nosso oficio e o amor que sentimos uns pelos outros por causa do officio" O sentimento de solidariedade de offcio podia ser forte. Mas a suposigiio de que essa fratemidade de oficio necessariamente entrasse em conflito com objetivos e soli- dariedades mais amplos € totalmente falsa. A consciéncia de oficio dos artesiios de Londres na década de 1640 nao inibiu 0 apoio a John Lilbume. O que a consciéncia de oficio pode inibir siio as solidariedades econémicas entre diferentes grupos de (x1x) From sueh as would our rights invade, Or would intrade into our trade,’ Or break the law Queen Betty made Libeca nos Domine. Coo Her memory still is dear to journey men,! For shelter“d by her laws, now they resist? Infringements, which would else persist:/ Tyrannie masters, innovating fools! Are check“d, and bounded by her glorious rules. Of workmen's rights she’s still a guaramtec f...)/ And rights of astizans, to fence and guard,’ While we, poor helpless wretches, oft must go! And range this liberal nation to and fro. 61 produtores contra seus empregadores, Mas se pusermos de lado esse postulado ana- erGnico, encontraremos entre 0s trabalhadores e traballadoras do sSculo xvm muitas evidencias de solidariedade e conscincia horizontais. Nas muitas listas de ocupagdes que examinci a respeito dos pasticipantes dos motins da fome, dos motins nas barrei- ras de pedigio ¢ sobre questoes libertdrias ou cercamentos nas terras comunais urba- nas, fica claro que as solidariedades rio eram segregadas pelos oficios. Numa regitio em que predominam os roupciros, mineradores de estanho ou carvao, hid urna predo- ‘mindncia Gbvia dessas ocupacies na lista dos infratores, mas sem chegar ao ponto de excluir as outras profisses, Espero ter demonstrado, em outro lugar, que durante os ‘motins da fome todos esses grupos partilhavam uma consciéncia comum —ideologia ¢ objetivos — como pequenos consumidores dos géneros de primeira necessidade., ‘Mas essas pessoas também consumiam valores culturais, a ret6rica libertéria, pre- conceito patridtico on xendfobo, ¢ em relagzio a essas questdes podiam igualmente demonstrar solidariedade. Quando, na tranquita década de 1750, a princesa Amelia tentou fechar o acesso a0 Richmond New Park, enfrentou a oposico de uma vigoro- sa consciéncia horizontal que se estendia de John Lewis, rico cervejeiro local, aos folhetistas de Grub Street, abarcando todo o “populacho” local (pp. 96-8). Quando, em 1799, os magistrados tentaram reprimir o futebol nas ruas de Kingston na tera -feira de Camaval, foi o “populacho” ¢ a “turba” que se reuniram e triunfantemente desafiaram suas ordens.* A turba pode mio ser famosa por possuir uma inpecdvel consciéncia de classe, mas 03 governantes da Inglaterra néo tinham nenhuma diivida de que era uma espécie de besta horizontal. Vi ‘Vamos examinar a argumentac&o até aqui. Sugeriu-se que, na prética, 0 patemalismo era niio s6 responsabilidade efetiva como teatro € gestos, ¢ que. longe de uma relacio calorosa, familiar, face a face, podemos observar uma ensaiada técnica de domfnio. Embora nao houvesse nenhurna novidade na existéncia de uma cultura plebeia distinta, com seus préprios rituais, festivais ¢ superstigdes, sugerimos que no século xvmt essa cultura era extraordinaria- mente robusta, muito distanciada da cultura de elite, e jé nao reconhecia, exce- to de modo superficial, a hegemonia da Igreja. A medida que dialeto ¢ norma culta se afastavam, a distancia aumentava. ‘Acultura plebeia nao era certamente revoluciondria, nem sequer uma cul- tura protorrevoluciondria (no sentido de fomentar objetivos ulteriores que questionassem a ordem social). Contudo, tampouco se deve descrevé-la como uma cultura deferente. Fomentava motins, mas ndo rebelides: agGes diretas, mas ndo organizagies democriticas. Nota-se a rapidez das mudangas de ani- 62 mo da multidio, indo da passividade & revolta ¢ & obediéncia covarde. Fo que vemos na balada satirica dos “Bravos rapazes de Dudley”: Marchamos de um lado para ouiro Ho, rapazes, ho Para por abuixo todas as casas E sdo os bravos rapazes de Dudley Ho, rapaces, ho Oh sao os bravos rapazes de Dudley, ha! Alguns tém varas, outros tém bastées Ho, rapazes, ho Para bater em todos os patifes ¢ vethacos {...]*! Mas 6 tumulto atinge seu limite prescrito, {Je entdo chegaram os dragées, Eo diabo pegou quem ficou para tras. Todos corremos para nossos abrigos Ho rapazes, ho Todos corremos para nossos abrigos Quase perdemos os sentidos de tanto medo E oh, sao os bravos rapazes de Dudley {_.]*™" E desse ponto descamba para uma reafirmagio da deferéneia: Deus abencoe a guarda de Lord Dudley Ho rapazes, ho Ele sabe como os tempos séo dificeis Chamou de volta os militares Ai dos rapazes, ai E nunca mais vamos nos amotinar [...| °°" E fécil caracterizar esse comportamento como infantil. Sem diivida, se ins tirmos em olhar para o século xvi apenas pela lente do movimento operdrio do século xx, 36 veremos 0 imaturo, o pré-politico, a inflincia da classe. E, sob um (ou) We bin marchin“up and deown/ Wo boys, wo! Fur to pull the Housen deown/ And its 0 the brave Doodley boys! Wo boys, Wo! It bin O the brave Doodley boys, Wolf Some gotten sticks, some gotten steavs/ Wo boys, wo! Fur to beat all rogues and kne-avs [.-1 (sou). the Dra-gunes they did come And twas devil take the hoindmost wum/ We all ran. down our pits’ Wo boys, wo! We all ran down our pits! Frietened a” rost out of our wits! And its 0 the brave Doodley boys |... (sont) God Bless Lord Dudley Ward’ Wo boys, wo/ He know“d as times been hard He called back the sojermen! Wo boys, wo/ And we"ll never riot again [1 63 aspecto, isso nfio é uma inverdade: vemos repetidamente prefiguracGes das atitu- des ¢ organizaciio de classe do século xtx, expresses passageiras de solidariedade em motins, greves-— até mesmo diante do patibulo. F tentador ver os trabalhrado- tes do século xvm como uma classe trabalhadora imanente, que tem sua evolugio retardada pelo senso da futilidade de transcender a sua. situagio. Mas 0 “movimen- to pendular de subserviéneia” da propria multidiio tem uma historia muito antiga: os “rebeldes primitivos” de uma época podem ser considerados, pela perspectiva de uma época anterior. os herdeiros decadentes de antepassaclos ainda mais primi- tivos, Uma dose exagerada de percepeilo histérica tardia nos impede de ver a multiddio como realmente era, sui generis, com seus prdprios objetivos, operando dentro da complexa e delicada polaridade de forgas de seu proprio contexto. No capitulo 4, tentei reconstruir s objetivos da multidao, bem como a Iégica do seu comportamento, num caso particular —o motim da fome. Acre- dito que todos os outros principais tipos de ago da multidio vio revelar, de- pois de uma andlise paciente, uma Idgica semelhante. Apenas 0 historiador miope considera “cegas” as explostes da multidio. Quero agora discutir su- cintamente trés caracteristicas da ago popular, e depois voltar mais uma vez para o contexto das relacdes genry-multiddo em que tudo ocorreu. A primeira é a tradigio andnima, Numa sociedade de total dependéncia ¢ clientelismo, encontra-se frequentemente a ameaga andnima, ou até 0 ato ter- yorista individual, no outro lado da moeda da deferéncia sirmulada. i exata- mente numa sociedade rural, em que toda resisténcia aberta & identificada ao poder vigente pode resultar em retaliago imediata — perda da casa, emprezo, arrendamento, se ndo vitimagao pela lei — que tendemos a encontrar 0s alos ‘obscuros: a carta andnima, o incéndio criminoso da Jenba ou da casinha, 0 gado jarretado, o tiro on tijolo pela janela, o porto fora dos gonzos, as drvores do pomar derrubadas, as comportas do lago dos peixes abertas A noite. O mes- mo homem que faz. uma reveréncia ao fidalgo de dia - ¢ que entra na historia como exemplo de deferéneia ~ pode & noite matar as suas ovelhas, roubar os seus faisGes ou envenenar os seus caes. Nao apresento a Inglaterra do século xvm como um teatro de terror coti- diano. Mas 0s historiadores mal comegaram a avaliar o volume de violéncia andnima, normalmente acompanbada de cartas anonimas ameagadoras. O que essas cartas mostram é que os trabalhadores do século xvii, na seguranga: do anonimato, eram hem capazes de acabar com qualquer ilusto de deferéncia e de considerar seus govemnantes de um modo bem pouco sentimental ou filial. Um escri- tor de Witney, em 1767, exortava 0 leitor: “niio deixe que esses malditos patifes ofegantes ¢ pancudos matem de fome os pobres por meios infemnais, s6 para que jpossam continuar com sua caga e suas corridas de cavalo, para que possam manter suas familias no orgulho e na extravagéncia”, Um habitante de Henley-on-Thames, OF que vira os voluntérios em ago contra a multidio, dirigiu-se a “vés, cavalheiros, como gostais de vos chamar [..] embota seja esse 0 vosso ero [...] pois sois um bando de patifes, dos mais abominaveis que jé existiram”. (Um autor de Odiham, escrevendo sobre um tema semelhante em 1800, observava: “estamos nos lixando para esses sujeitos que chamam a si mesmos de soldados fidalgos, pois na nossa ‘opiniao mais parecem macacos montados em ursos”.) As vezes a falta da apropriada deferéncia tansparece apenas num vivo aparte: “Lord Buckingham” ,comentava um escritor de panfieto em Nonwich em 1793, “que morreu outro dia, ganhava 30 mil libras por ano s6 para sentar a bunda na Camara dos Lordes e no fazer absolutamen- tenada”” Essas cartas mostram — e elas estiio dispersas na maioria das regides da Inglaterra, bem como em partes do Pafs de Gales — que a deferéncia podia ser bastante frdgil, composta de uma parcela de interesse préprio, uma de dissimu- lago e apenas uma de temor respeitoso pela autoridade. As cartas faziam par- te do contrateatro dos pobres, Tinham a intenco de gelar a espinha da gentry, dos magistrados ¢ prefeitos, lembrarthes seus deveres, forcé-los a praticar a caridade em tempos de escassez. Isso nos leva a uma segunda caracteristica da agio popular, que descrevi como contrateatro. Assim como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os plebeus afirmavam a sua presenca por um teatro de ameaga e sedic&o. Da época de Wilkes em diante,a linguagern do simbolismo da multidao € relativamente “modema” e de fécil leitura: a queima de efigies, 0 enforcamento de uma bota num patibulo, a iluminago das janelas (ou a quebra daquelas sem iluminacio), o destelhamento de uma casa, que, como observa Rudé, tinha um significado quase ritualistico. Bm Londres, o ministro impopular 0u 0 politico popular nao precisavam de pesquisas de opinido para saber do seu grau de popularidade com a multiddo. Podiam ser insultados com obscenidades ou carregados em triunfo pelas ruas. Quando 0 condenado pisava o palco de ‘Tyburn, 0 piiblico vociferava a sua aprovaco ou o seu desagrado. Mas se recuamos para antes de 1760, entramos num mundo de simbolismo teatral que é muito mais dificil de interpretar: as simpatias politicas populares so expressas num cédigo muito diferente daquele vigente na década de 1640 ou na década de 1790. E uma linguagem de fitas, fogueiras, juramentos e recusa de juramentos, brindes, charadas sediciosas ¢ antigas profecias, folhas de carvalho e mastros de maio, baladas com double-entendre politico, até melodias assobia- das nas ruas.* Ainda no sabemos o bastante sobre o jacobitismo popular para ayaliar 0 quanto era sentimentalismo, o quanto era substiucia, mas podemos dizer com seguranca que os plebeus em muitas ocasides empregavam com su- cesso 0 simbolismo jacobita como teatro, sabendo muito bem que era o roteiro mais indicado para enfurecer ¢ alarmar seus governantes hanoverianos.” Na 65 década de 1720, quando uma imprensa intimidada antes encobre que ilumina a opinido piiblica, detectam-se Animos sorrateiros no vigor com que se celebravam os aniversarios dos rivais Hanover e Stuart. Em maio de 1723,a Norwich Gazet- ze noticiava que a tiltima quinta-feira, aniversério do rei George, foi festejada na cidade “com todas as habituais demonstragdes de alegria e lealdade’ E como quarta-feira era o aniversirio da Feliz, Restauragio do rei Charles 1, © também da familia real, depois de uma usurpagdo demasiado longa ¢ bem-suce- dida de tirania santificada, a data foi celebrada nesta cidade de forma extraordina- ria, Pois, além de toque de sinos, tiros de canhio ¢ fogueiras, as ruas se cobriram de animais, colocaram-se ramos de carvalho junto &s portas, quadros foram pen- durados no lado de fora, ¢ houve uma variedade de danas antigas e cOmicas [...] [com] brindes & meméria gloriosa de Charles i Por mais abertamente desleais que fossem essas manifestagbes, no s6 a0 rei, mas também ao Grande Homem em sen proprio condado, elas nfo davam pietexto & aco dos magistrados da Coroa. Era uma guerra de nervos, ora satfrica, ora ameacadora. AS flechas as vyeres atingiam 0 alvo. Em 1724, 0s ministros do rei examinavam depoimentos de Harwich, onde os lideres hanoverianos leais tinham sido insultados por uma rough music muito ofensi enquanto © prefeito e outros membros da municipalidade estavam reunidos na Prefeitura para celebrar a ditosa ascensdio a0 trono de Sua Majesiade, bebendo a satide de Sua Majestade e de outros siditos leais, ele este depoente, [...] viu por uma janela [...] uma pessoa ommada com chifies na cabega, acompanbada por uma turba. Essa “dita pessoa infame”, John Hart, um pescador, estava sendo carregado pela cidade por cem ou duzentos outros de igual infémia. Estavam “batucando uma ridi- cula melodia de comudos puritanos, e [Hart] foi até a porta do prefeito e deste de- poente, quando fez sinais com as méos intimando-nos a beijar sua bunda®.** Se algumas das agées da multidao podem ser vistas como contrateatro, nfo se pode dizer 0 mesmo de todas. Pois uma terceira caracteristica da aio popular era sua capacidade de aco direta répida, Juntar-se a uma multidio ou a uma turba era outra maneira de ser andnimo, enquanto participar de uma organizagio continuada era estar fadado a se expor, podendo ser detectado vitimado. A multiddo do século xvill compreendia muito bem a sua capacidade de ago ¢ a sua prOpria arte do possivel. Scus éxitos deviam ser imediatos, sendo a aco redundava em fracasso. Deviam destruir estas maquinas, intimi- dar estes empregadores ou negociantes, danificar aquele moinho, arrancar de seus mestres um subsidio do pio, destelhar aquela casa, tudo isso antes que as tropas chegassem a cena. O procedimento € to familiar que basta lembri-lo com uma ou duas citagdes de documentos estatais. Em Coventry, 1772: 66, Quinta-feira & noite [...] uma grande turba de quase mil pessoas das classes mais baixas [...] reuniu-se ao som de pifamos e tambores por causa da reducao do pa- gamento, é 0 que diziam, determinada por [...] um dos principais fabricantes de fitas [...] Todos declaravam a intengao de derrubar a sua casa ¢ acabar com ele se conseguissem encontré-lo [...] Empregaram-se todos os meios pacificos [...] para dispersé-los, mas sem sucesso, ¢ atirando pedras e quebrando as janelas, eles comegaram a executar o seu intento."! Em Neweastle-upon-Tyne em 1740, durante a fase triunfal de um motim da fome: Mais ou menos as duas da madrugada de quinta-feira, um grande ntimero de car- voeiros, carroceiros, ferreiros e outros trabalhadores comuns [a besta horizontal mais uma ve7] veio pela ponte, libertou os prisioneiros e prosseguiu em grande ordem pela cidade tocando gaita de foles, batendo tambores, com roupas sujas amarradas em varas & guisa de bandeiras tremulantes. O némero entio aumentou ara uns mil, ¢ eles tomaram conta das principais ruas da cidade. Os magistrados se reuniram na Prefeitura e nao sabiam 0 que fazer. © resultado foi que entraram em panico na luta corpo a corpo com os manifes- tantes na escada da Prefeitura, e dispararam contra a multiddo matando mais Voaram entre nés pedras [...] que entravam pelas janclas como tiros de canhiio [--] por fim, @ turba arrombou as portas ¢ avangou sobre nés com uma violéncia terrivel. Pouparam nossas vidas sem diivida, mas nos obrigaram a sair do lugat, depois comecaram a saquear e destruir tudo 20 redor. Os vérios bancos dos juizes foram logo totalmente destruidos, o excritério do escrivao da cidade foi arromba- do, ¢ todos os livros, documentos ¢ registros da cidade e de suas cortes de justica foram atirados pela janela.® Arrombaram o cofte ¢ tiraram mil e quinhentas libras [...] quebraram todos os omamentos, dois belos retratos do rei Charles u e de James u [...J dilaceraram tudo, exceto os rostos [...] e mais tarde levaram os magistrados até as suas casas numa espécie de marcha triunfal de zombaria.™ ‘Mais uma vez, nota-se a teatralidade até no auge da ftiria, a destruigo simbé- lica dos bancos dos jufzes, dos livros do escrivao, dos retratos Stuart das auto- tidades municipais tories, a marcha triunfal de zombaria até as casas dos ma- gistrados. Entretanto, com tudo isso, nao se pode deixar de notar a ordem de suas procissées ¢ a modera¢%o que os impediu (mesmo depois de terem sido alvejados) de matar os adversérios. Claro, a multidao perdia a cabega com tanta frequéncia quanto os magistra- dos. Mas o ponto interessante € que nenhum dos lados perdia a cabeca com fre~ quéncia. Assim, longe de ser “cega”, a multidao ora em geral disciplinada, tinha objetivos claros, sabia negociar com as autoridades ¢, acima de tudo, empregava o7 sua forga com rapidez. As autoridades sentiam-se muitas vezes confrontadas, literalmente, com uma multidao anénima. “Estes homens sdo todos mineradores de estanho”, escreveu um funciondrio da alfandega de St. Austell em 1766, a respeito das gangues de contrabandistas locais, “sio raramente vistos em cima do solo durante 0 dia, ¢ nao receiam ser reconhecidos por nés.”* Quando se detectavam os “cabegas do motim”, era frequentemente impossivel conseguir depoimentos juramentados. Mas a solidariedade raramente ia além disso. Se presos, os lideres da multiddo podiam ter esperangas de um resgate imediato em 24 horas. Passado esse prazo, sua expectativa era de abandono. E possivel mencionar outras caracteristicas, mas essas ts — a tradic&o and- nima, o contrateatro ¢ a aco direta répida e fugaz — parecem (er importancia. ‘Todas dirigem a atengo para 0 contexto unitério da relagdo de classe. Num certo sentido, 0s governantes e a multidiio precisavam uns dos outros, vigiavam-se mutuamente, representayam 0 teatro e 0 contrateairo um no auditério do outro, moderavam 0 comportamento politico uns dos outros. Intolerantes com a insu- bordinagdo do trabalho livre, ainda assim os governantes da Inglaterra demons- travam, na pritica, um grau surpreendente de tolerfncia com a turbuléncia da multidio. Ha aqui alguma reciprocidade “estrutural” profundamente arraigada? Considero essa nogdo de reciprocidade gentry-multidao, de “equilfbrio paternalismo-deferéncia”, em que os dois lados da equago eram, em certa medida, prisioneiros um do outro, mais proveitosa do que as nogées de “socie~ dade de uma s6 classe”, de consenso ou de uma pluralidade de classes ¢ inte- resses. O que nos deve interessar ¢ a polarizacdo de interesses antagénicos e a dialética correspondente da cultura. Ha uma resisténcia muito articulada as ideias e instituig6es dominantes da sociedade nos séculos xvi e xIX —~ assim os historiadores esperam poder analisar essas sociedades segundo alguns as- pectos do confiito social. No século xvut, a resisténcia € menos articulada, embora frequentemente muito especifica. direta e turbulenta. Portanto, deve- -se suprir a articulagZo em parte decodificando as evidéncias do comportamen- to, em parte virando de cabega para baixo os conceitos brandos das autorida- des dominantes para examinar 0 que contém no fundo. Sem isso, corremos 0 isco de nos tomar prisioneiros dos pressupostos e da autoimagem dos gover- nantes: 0s trabalhadores livres sdo vistos como os “dissolutos ¢ desordeiros”, © motim é visto como espontineo e “cego”, e tipos importantes de protesto social ficam perdidos na categoria do “crime”. Mas so poucos os fendmenos sociais que nao revelam um novo significado quando expostos a esse exame dialético. O aparato pomposo, as perucas empoadas ¢ 0 vesturio dos podero- sos também devem ser vistos —-como era sua intengado —~ a partir de baixo, no auditério do teatro da hegemonia e do controle de classe. Até a “generosidade” ea “caridade” podem ser vistas como atos calculados de apaziguamento de 68 classe em tempos de escassez ¢ como extorsées calculadas (sob a ameaca de motins) por parte da multidaio. O que é (visto de cima) um “ato de doagiio” é (a partir de baixo) um “ato de conquista”. Uma categoria to simples como 0 “roubo” pode evidenciar, em certas circunsténcias, tentativas prolongadas de defender antigos usos de direito comum, por parte dos aldedes, ou de defender emolumentos sancionados pelo costume, por parte dos trabalhadores. E se- guindo cada uma dessas pistas até o ponto em. que se cruzam, torna-se possivel reconstruir uma cultura popular costumeira, alimentada por experiéneias bem distintas daquelas da cultura de elite, transmitida por tradigGes orais, reprodu zida pelo exemplo (talvez, com 0 transcorrer do século, cada vez mais por meios letrados), expressa pelo simbolismo e pelos rituais, e situada a uma distncia muito grande da cultura dos governantes da Inglaterra. Eu hesitaria antes de descrever essa cultura como uma cultura de classe, no sentido em que se pode falar de uma cultura da classe trabalhadora no sé- culo xix, na qual as ctiangas eram socializadas num sistema de valores com notagées de classe distintas, Mas no se pode compreender essa cultura, nos termos da experiéncia, na sua resist€ncia 4 homilia religiosa, na sua zombaria picaresca das prudentes virtudes burguesas, no seu pronto recurso a desordem @ nas suas atitades irénicas para com a lei, a menos que se empregue o concei- to dos antagonismos, ajustes e (as vezes) reconcitiagdes dialéticas de classe. Ao analisar as relagdes gentry-plebeus, descobre-se menos uma batalha encarnigada ¢ inflexivel entre antagonistas sociais irreconciliéveis que um “campo de forga” societal. Tenho em mente um experimento escolar (que, sem diivida, fiz errado) em que uma corrente elétrica magnetizava uma placa co- berta de limalhas de ferro. As limalhas, que eram uniformemente distribufdas, agrupavam-se num ou noutro polo, enquanto no meio aquelas limalhas que tinham permanecido no seu lugar alinhavam-se vagamente, como se dirigidas polos atrativos opostos. ¥ uma imagem muito préxima de como vejo a socie- dade do século xvi, na qual, para muitos objetivos, a multidio se aglomerava num polo, a aristocracia e a gentry no outro, e até o final do século os grupos profissionais e comerciais estavam ligados por linhas de dependéncia magné- tica aos governantes ou, de vez em quando, escondiam a face na ago comum junto & multidao, Essa metéfora nao s6 permite compreender a situaciio muito fequente de motim (e o modo como se lidava com esse), mas também grande parte do que era possivel, e igualmente os limites do possfvel que o poder nao se aventurava a ultrapassar. Portanto, estou empregando a terminologia do conflito de classe, embora resista a atribuir identidade a wma classe. Parece-me que a metéfora de um campo de forca pode coexistir proveitosamente com o comentario de Marx nos Grundrisse: 69 Em todas as formas da sociedade, uma determinada produc e suas relagies & que atribuem a qualquer outra produgfo e suas relagdes a sua posigdo bierdrquica ¢ influéncia. E uma iluminagao geral em que estiio imersas todas as outras cores, uma iluminagiio que modifica suas tonalidades especificas. E uma atmosfera es- pecial que define a gravidade especifica de tudo que nela se encontra. No final, essa cultura plebeia esti aprisionada nos parametros da hegemo- nia da gentry: os plebeus nunca deixam de estar cientes desse aprisionamento, conscientes da reciprocidade das relagdes gentry-multidio, alertas aos pontos em que podem exercer pressdo em proveito proprio. Igualmente se apoderam de parte da ret6rica da gentry para seu pr6prio uso. Pois, niio custa repetir, esse €0 século do avango do trabalho “livre”. E a caracteristica distintiva do siste- ‘ma manufatureiro era a de que, em muitos tipos de trabalho, os trabalhadores {ai ineluidos pequenos mestres, oficiais diaristas e suas familias) ainda contro- Javam em certa medida as suas relagGes e modos de trabalho imediatos, embo- ra tivessem muito pouco controle sobre o mercado para seus produtos ou sobre 0s precos das matérias-primas ou dos alimentos. Isso explica em parte a estra- tura das relagGes industriais e de protesto, bem como um pouco dos artefatos da cultura, seu cariter coeso e independéncia de qualquer controle." Também. explica grande parte da consciéncia do “inglés livre de nascimento”, que se apropriava de parte da ret6rica constitucionalista de seus governantes ¢ defen- dia obstinadamente seus direitos perante a lei e o direito a ter pio branco & cerveja barata. Os plebeus tinham consciéncia de que uma classe dominante que baseava sua pretensio 4 legitimidade na prescrigdo e na lei tinha pouca autoridade para revogar seus costumes e direitos. Areciprocidade dessas relages sublinha a importéncia das expresses sim- bélicas de hegemonia e protesto no século xvnl. E por isso que tenho chamado tanto a atengdo para a nogdio de teatro. Claro, toda sociedade tem seu proprio tipo de teatro. Grande parte da vida politica das sociedades contemporaneas s6 pode ser compreendida como uma juta pela auioridade simbdlica. Mas estou indo além da afirmagdo de que as lutas simbélicas do século xvur eram peculiares & Epoca e exigem mais estudo, Acho que o simbolismo nesse século tinba uma importincia peculiar devido a fraqueza de outros 6rgiios de controle: a autorida- de da Igreja estava morrendo, ¢ a autoridade das escolas € dos meios de comuni- cago de massa ainda nio surgira. A gentry tinha quatro meios principais de controle -um sistema de influéncia ¢ promogao que mal comportava os pobres tejeitados, a majestade ¢ 0 terror da lei, o exercicio local de favores ¢ raridades, 0 simbolismo de sua hegemonia. Isso representava, as vezes, um equilibrio social delicado, em que os governantes eam forcados a fazer concessbes. Por isso, a briga pela autoridade simbélica pode ser vista, nddo como um modo de representar brigas “reais” inconfessas, mas como uma briga real em si. As vezes 70 © protesto plebeu nao tinha outro objetivo sendo o de desafiar a seguranga hege- miénica da gentry, retirar poder de suas mistificagdes simbélicas, ou até simples. mente blasfemar. Era uma briga pela “aparéncia”, porém o resultado da briga podia ter consequéncias materiats -— no modo como era administrada a Lei dos Pobres, nas medidas consideradas necessérias pela gentry em tempos de pregos elevados, no fato de Wilkes ser aprisionado ou libertado. Devemos voltar a examinar o século xvi, prestando pelo menos tanta atengdo as brigas simbélicas nas ruas como aos votos na Camara dos Comuns. Essas brigas aparecem em todo tipo de lugares ¢ maneiras estranhos. As vezes 27a 0 emprego jocoso do simbolismo jacobita ou anti-hanoveriano, um modo de torcer o rabo da gentry. O dr. Stratford escreveu de Berkshire em 171 Nossos camponios neste pais esto muito gaiatos e muito insolentes. Alguns juizes honestos se reuniram para celebrar o dia da coroagdio em Wattleton, ¢ & tardinha, quando jd estavam meio alegres, Suas Exceléncias quiseram ter uma fogueira. Ao saber disso, alguns campdnios pegaram um nabo imenso e enfiaram és velas bem em cima da casa de Chetwynd [...] Depois foram dizer a Suas Exceléncias que, em honra da coroagio do rei George, uma estrela brilhante apa- recera acima da casa do sr. Chetwynd. Suas Exceléncias tiveram 0 bom-senso de pegar os seus cavalos ¢ ir ver esse prodigio, mas descobriram, para seu grande desapontamento, que a estrela nao passava de um nabo.” O nabo era, claro, 0 emblema particular de George 1 escolhido pela mul- ziddo jacobita quando estava de bom humor. Se mal-humorada, ele se tornava o rei cornudo, e os chifres faziam as vezes do nabo, Contudo, outros confron- 10s simbilicos naqueles anos podiam se tornar bem sérios. Numa vila de So- merset em 1724, ocorreu um confronto obscuro (um entre varios desses ca- sos) a respeito de um mastro de maio. Um proprietario de terras da regitio ‘William Churchey) parece ter mandado derrubar “o Antigo Mastro de Maio”, recentemente ornamentado com flores ¢ grinaldas, e depois teria posto dois homens na cadeia por cortarem um olmo para fabricar outro mastro. Em res- posta, o seu pomar de macieiras e cerejeiras foi destruido, um boi foi morto e 0s cachorros, envenenados. Quando os prisioneiros foram libertados, reer- gueu-se 0 mastro € celebrou-se o “May Day” com baladas “sediciosas” e belos derrisérios contra o magistrado. Entre os que ornamentaram 0 mastro estavam dois trabalhadores manuais, um preparador de malte, um carpinteiro, um ferreiro, um teceldo de linho, um acougueiro, um moleiro, um estalajadei- ro, um pajem e dois cavalheiros.* Quando passamos da metade do século, o simbolismo jacobita se enfra- quece ¢ 0 infrator aristocrdtico ocasional (que procurava talvez, satisfazer seus préprios interesses sob a cobertura da multidao) desaparece com ele. Depois de 1760, 0 simbolismo do protesto popular As vezes desafia a autoridade de at forma muito direta, Nem era 0 simbolismo empregado sem caleulo ou preme- Gitagdo cuidadosa. Na grande greve dos marinheiros no Tamisa em 1768, quando alguns milhares marcharam até o Parlamento, um documento que fe- lizmente sobreviveu permite que vejamos o desenrolar da ago.” No auge da greve (7 de maio de 1768), quando os marinheitos ndo estavam tendo suas reivindicagdes atendidas, alguns de seus Hideres entraram num bar perto das docas ¢ pediram que o taverneiro escrevesse, com boa letra e de forma adequa- da, uma proclamagio que pretendiam afixar em todas as docas e escadas do rio. © tavemeiro leu o papel e encontrou “muitas expressGes de rebelitio e traigdio”,¢ no final “Abaixo W..., abaixo o R...” (isto €,“Abaixo Wilkes, abaixo © Rei”). O taverneiro (segundo seu relato) discutiu com eles: “TAVERNEIRO Cavalheiros, pego que no falem de coagia, nem sejam culpados de nenhuma irregularidade. Marinueinas que quer dizer, senhor? Se nao formos rapidamente desagra- vados, temos navios e grandes canhées, que usaremos quando necessirio, para que nossas seivindicagtes sejam atendidas. ‘Além do mais, estamos decididos a desarvorar todos os navios sobre o rio, e depois dar adeus a vocés eA Velha Inglaterra pactir para algum outro pais [..] Ness¢ relato, os marinheitos estiio apenas fazendo o mesmo jogo da legis- latura com suas repetidas representagbes de delitos capitais e excesso de mor- tes legislativas. A tendéncia de ambos os lados da relagdo era ameacar mais do que executar. Desapontados pelo taverneiro, os marinheiros levaram seu papel a.um mestre-escola que realizava essa tarefa de escriba. Mais uma vez, 0 pon- to problemitico foi a conclusio da proclamagio — no lado direito “Marinhei- ros”, no lado esquerdo “Abaixo W..., abaixo o R...”. O mestre-escola tinha muito amor pelo seu pescogo para querer ser o autor de um documento desse teor. Deu-se ent&éo 0 seguinte didlogo, conforme seu préprio relato, embora seja uma conversa bastante improvdvel nas escadas de Shadwell: aaametos —_ Voeé niio é amigo dos marinheiros. MESTRE-ESCOLA — Cavalheiros, sou tio seu amigo que de modo algum quero thes, causar um grande dano, proclamando sua trai¢o a nosso Vene- vel Soberano e Senhor, o Rei, e sua agdo de rebelidio e sedigéo entre os colegas, pois € este © conteddo de seu documento na minha humilde opinido [_.] MaRIHEROS —Amaioria de nés tem arriseado a vida em defesa da vida, coroa ¢ dignidade de Sua Majestade, em defesa da nossa terra natal, ¢ em todas as ocasiGes temos atacado 0 inimigo com coragem e determinagio, ¢ temos safdo vitoriosos. Mas desde a conclusio da guerra, n6s marinheiros temos sido menosprezados, nossos 72 saldrios foram muito reduzidos, e os alimentos siio tio caros que néo temos mais condigies de assegurar o sustento para nds © nossas familias, E para ser franco com voc’, se nossas queixas no forem rapidamente atendidas, hi navios e grandes canhées de sobra em Deptiord e Woolwich, e armaremos uma confusio to grande sobre 0 rio como os londrinos jamais viram, pois assim que acertarmos as contas com esses mereadores, vamos partir para a Franga onde temos certeza de que seremos acolhidos de bracos abertos Mais uma vez os marinheiros tiveram a expectativa frustrada. Sairam da cena com a frase: “Acha que um grupo de marinheiros britinicos vai receber ordens de um velho mestre-escola antiguado?”. Em algum lugar acabaram encontrando um eseriba, mas até esse escriba se recusou a completar toda a incumbéncia. Na manhd seguinte. a proclamagio apareceu devidamente nas escadas para o rio, assinada embaixo & direita “Marinheiros”, e apresentando a esquerda... “Liberdade & Wilkes para sempre!”. O sentido dessa anedota € que, mesmo no auge da greve dos marinhei- os, os lideres do movimento passaram varias horas indo de taverneiro a mestre-escola, em busca de um eseriba que pusesse no papel a maior afronta A autoridade que podiam imaginar: “Abaixo o Rei”. Os marinheiros talvez no fossem republicanos em nenhum sentido refletido, mas esse era 0 maior “canhao” simbélico que podiam carregar, e se disparado com o aparente apoio de alguns milhares de marujos briténicos, teria sido realmente uma grande carga de canhao.! Ao contrario de lendas acalentadas, a Inglaterra nunca ficou sem um Exército permanente no século xvi? A manutengiio desse exército, nos anos de Walpole, era uma causa particular dos whigs banoverianos, Mas, para fins de controle interno, era frequentemente uma forga pequena e emergencial. Era, por exemplo, muito exagerado e inadequado para as necessidades cir- cunstanciais do ano de motins de 1766. O aquartelamento permanente de tro- pas em distritos populosos era sempre imprudente. Sempre havia demora, ¢ frequentemente demora de varios dias, entre o inicio da agitagaio e a chegada dos militares. As tropas, ¢ igualmente os seus oficiais (cujo poder de manobra contra os civis podia ser questionado nos tribunais), achavam a tarefa “odio- sa” A inveja da Coroa, secundada pela avareza da aristocracia, acabara cau- sando a fraqueza de todos os drgdos efetivos para a imposigaio da ordem. A fraqueza do Estado ficava manifesta numa incapacidade de usar a forga com rapidez, numa brandura ideolégica para com as liberdades dos stiditos,e numa 73 vaga burocracia, to enredada em sinecuras, parasitismo e clientela que mal oferecia uma presenca independente Assim, o prego que a aristocracia e a gentry pagavam por uma monarquia limitada e um Estado fraco era, forcosamente, a licenciosidade da multidao. Esse € 0 contexto estrutural central da reciprocidade de relagées entre dominan- tes ¢ dominados. Os dominantes, claro, relutavam em pagar esse prego. Mas s6 seria possivel disciplinar a multidio se houvesse uma classe dominante unifica- da e coesa, satisfeita em dividir os despojos do poder amigavelmente entre si e em governar com base no seu imenso dominio sobre os meios de subsisténcia. Essa consisténcia nio existiu em nenhum momento antes de 1790, como varias geragGes de estudiosos ilustres de histdria tém se dado ao trabatho de mostrar. ‘As tensdes-— entre a Corte ¢ 0 campo, o dinheiro e a terra, as facgGes ¢ as familias —penetravam fundo. Até 1750 ou 1760, 0 termo “gentry” & pouco dis- ctiminador para os objetivos de nossa andlise. Ha uma acentuada divergéncia entre as tradigdes whig e sory de relages com a multidao. Naquelas décadas, os whigs nunca foram paternalistas convincentes.* Mas, nas mesmas décadas, de- senvolveu-se entre os fories € a multidao uma alianca mais ativa e de consenso. Muitos membros da baixa gentry, as vitimas do imposto sobre a terra e os per- dedores na consolidacao das grandes propriedades rurais em oposig&o as peque- nas, odiavam os cortesdos ¢ © interesse financeiro tio ardentemente quanto os plebeus. E, a partir disso, vemos a consolidacio das tradigdes especfficas do paternalismo tory — pois, mesmo no século xix, quando pensamos em paterna- lismo, ndo € com a tradigiio whig, mas com a tory, que tendemos a relacioné-lo. No seu zénite, durante os reinos dos dois primeiros George. essa alianca alcan- cou uma expressiio ideoldgica nos efeitos teatrais do jacobitismo popular. Por volta da década de 1750, esse momento ja est passando, e com a as- censao de George 1m ao trono entramos num clima diferente. Certos tipos de conflito entre a Corte ¢ o campo tinham se suavizado a tal ponto que ja ¢ possivel falar do caiculado estilo paternalista da gemiy como um todo. Em tempos de distirbios, nas formas de controlar a multido, pode-se agora esquecer a distin- gio entre whig e tory — pelo menos, no nivel do juiz de paz em exercicio —e pode-se ver a magistratura em geral agindo conforme uma tradigdio estabelecida. Para manter o controle sobre os pobres, eles deviam mostrar que n&o eram pa- pistas nem puritanos. Deviam se apresentar, pelo menos em gestos, como media- dores. Durante episédios de motins, a maioria dos juizes de paz, de qualquer religidio, procurava evitar o confronto, preferindo intervir por meio da persuasio moral antes de apelar para a fora. Na verdade, o papel do juiz de paz. em tempos de motins podia ser quase reduzido a uma formula: “Tenho certeza de que um tinico magistrado firme poderia ter acabado com 0 motim a qualquer momento”, escreveu um mercador quacre a um amigo sobre o tumulto dos marinheiros em 74 North Shields em 1792: “Primeiro, falando aos marinheiros como um magistra- do deve falar nessas ocasiées e, depois, representando o homem de sentimentos ¢ humanidade, e prometendo levar todas as suas queixas ao Parlamento [...”* Essa atitude provinha &s vezes de um elemento de simpatia ativa pela multi- do, especialmente quando a gentry se sentia injustigada com o lucro que os in- termedidrios estavam obtendo com os cereais de sua propriedade e de sous arren- datirios. Um motim em Taunton em 1753 (Newcastle foi informado} tinha sido provocado por “um certo Burcher que possui os moinhos da cidade e que,em vez de cereais, méi os pobres. Em suma, todos acham que ele merece ser punido, de forma legal, por maus procedimentos dessa ordem [...]"2? O conde Poulett, go- vernador do condado de Somerset, achava claramente que homens como Burcher eram um maldito incOmodo. Criavam trabalho para ele e para a justica,e, claro, a ordem tinha de ser mantida. Um “levante” geral ou um estado de amotinagao traziam outras més consequéncias na sua esteira~ -a multiddo se tomava grossei- 13, 0 locus para discursos desteais e pensamentos sediciosos, “pois, depois de re- belados, todos vao antes seguir uns aos outros que escutar os cavalheiros”. Na verdade, nessa ocasifio “alguns por fim chegaram a empregar uma linguagem de igualdade, isto €, nJo compreendiam por que alguns devem ser ricos e outros pobres”. (Havia até rumores obscuros sobre uma ajuda da Franga.) ‘Mas a manutencdo da ordem no era uma questo simples: A impunidade desses amotinados encorajava... outros motins. Os cavalheiros na comissio tém medo de agir, nem é prudente que o fagam, pois ndo hd tropas em Taunton, Iminster etc., apenas uma guarda temporaria [...] em Crewkerne sem nenhum oficial. Mas parece que, em geral, a disposi¢fio dessas cidades e desses cavalheiros é deixar que os animos se acalmem, ¢ no provocé-los por medo das consequéncias, As consequéncias temidas eram imediatas: mais danos a propriedade, mais de- sordem, talvez ameagas fisicas aos magistrados. O conde Poulett estava dividido sobre a questo. Se assim aconsethado por Sua Alteza, ele “faria com que alguns dos principais Iideres fossem condenados”, mas “a disposicdo da cidade e dos cavalheiros vizinhos (era) contra essa atitude”. De qualquer modo, nao ha nesse caso, nem em centenas de outros semelhantes em 1740, 1753, 1756, na década de 1760 e mais tarde, nenhuma indicagio de que a ordem social estava em peri- g0: 0 que era temido era a “anarquia” local, a perda de prestigio e hegemonia na localidade, o relaxamento da disciplina social. Supunha-se normalmente que o conflito ia acabar se esvaziando, e o grav de severidade a ser demonstrado ——- se uma ou duas vitimas deviam ou nao balangar no patibulo -—era uma questiio de exemplo e efeito calculado. Estamos outra vez de volta ao teatro. Poulet se des- culpava com Newcastle por incomodé-lo com esses “pequenos distirbios”. 0 gesto jacobita obsceno de um pescador de Harwich preocupava mais os minis- 75 tros do rei do que muitas centenas de homens e mulheres marchando pelo campo trinta anos mais tarde, demolindo moinhos e apoderando-se dos graos. Nessas situagdes, havia uma técnica pritica de apaziguamento da multi- dao, A turba, escreveu Poulet, acalmava-se [...] quando os cavalheiros safam A rua, desejando saber o que que- riam 0 que pretendiam conseguir, alertando-os sobre as consequéncias, prome- tendo-lhes que os moleiros ¢ os padeiros seriam processados, que eles préprios comprariam os cereais e 0s tevariam ao mercado, e que os venderiam em peque- nas quantidades como eles desejavam.* Mas quando a multidio oferecia uma ameaga mais direta & gentry, entiio a reac era mais firme. No mesmo ano, 1753, 0 West Yorkshire enfrentou mo- tins nas barreiras de peddgio. Henry Pelham escreveu 20 irmao que o st. Las- celles ¢ sua banrira tinham sido dirctamente atacados: “tendo ao seu lado apenas seus arrendatarios ¢ seguidores”. Lascelles tinha enfrentado os amoti- nados ¢ “galhardamente os venceu e fez dez prisioneiros”. Houve ameacas a0 escrivdo de Leeds “e a todo o grupo ativo dos magistrados, diziam que iriam demolir as suas casas ¢ até maté-los”. Contra essa atitude, s6 uma demonstra- cdo maxima de solidariedade da classe dominante seria suficiente: Procurei persuadir os poucos cavatheiros que percebi serem mais ativos {...} Esse ‘caso me parece de to grande importancia que estou convencido de que s6 podera ser resolvido se as pessoas de maior prestigio na regido participarem da defesa das leis, Pois se 0 povo 86 for subjugado pelas tropas, e no se convencer de que seu comportamento € repugnante ao bom-senso das pessoas de maior prestigio na regio, quando as tropas forem embora, as hostilidades recomegario.” E um texto que vale a pena examinar. Em primeiro lugar, é dificil lembrar que o autor é o primeiro-ministro da Inglaterra, escrevendo ao “ministro do In- terior”. O ponto em discusstio parece ser 0 estilo requerido dos homens privados de grandes posses na hora de lidar com infragdes & sua ordem: 0 primeito-minis- tzo estd procurando persuadir “os poucos cavalheiros que vi" a serem mais “ati- vos", Em segundo lugar, 0 incidente ilustra magnificamente a supremacia da hegemonia cultural sobre a fisica. As tropas proporcionam menos seguranga do que a reafirmagao da autoridade patemalista. Acima de tudo, a credibilidade da gentry ¢ dos magistrados devia ser mantida. Numa primeira fase dos distiirbios, os plebeus deviam ser persuadidos sobretdo @ abandonar uma postura insubor- dinada, a enunciar suas reivindicacGes em termos legitimos ¢ deferentes: deviam aprender que provavelmente obteriam melhores resultados com uma petigio eal do que com um motim. Mas se as autoridades néio conseguiam persuadir a multiddo a depor os seus porretes e a esperar a reparagio, entiio mostravam-se &s vezes dispostas a negociar com a umultido sob coagao. Mas, nesses casos, torna~ 76 va-se muito mais provavel que o teatro pleno e terrivel da lei apresentasse mais tarde as suas medonhas matinés no distrito amotinado. Era preciso dar exemplos punitivos, para restabelecer a credibilidade da ordem. Depois, mais uma vez, a hegemonia cultural da gentry voltaria a funcionar. VIE Esse conflito simbélico s6 adquire seu significado no ambito de um deter- minado equilibrio de relagdes sociais. A cultura plebeia ndo pode ser analisada independentemente desse equilibrio. Suas definigdes so, em alguma medida, antiteses das definicdes da cultura de elite. O que tenho tentado mostrar, talvez Tepetitivamente, é que cada elemento dessa sociedade, considerado em separa- do, pode ter precedentes e sucessores, mas que, considerados em conjunto, formam uma soma que é maior do que a soma de suas partes: é um conjunto estruturado de relagdes, em que o Estado, a lei, a ideologia libertaria, as ebuli- GGes e as agdes diretas da multidiio, todos desempenham papéis intrinsecos a esse sistema, e demtro de limites designados por esse sistema, que so, a0 mes- mo tempo, os limites do que € politicamente “possfvel” e, num grau extraordi- nario, os limites do que é também intelectual e culturalmente “possivel”. A multid&o, na sua forma mais avangada, raramente transcende a retdrica liber- taria da tradic&o whig radical, ¢ os poetas nao transcendem a sensibilidade do paternalista humanitario e generoso." As cartas an6nimas furiosas que saltam das profundezas mais baixas da sociedade blasfemam contra a hegemonia da gentry, mas nao apresentam nenhuma estratégia para substituf-la. Num sentido, essa é uma conclusao um tanto conservadora, pois estou en- dossando a autoimagem retériea da sociedade do século xvim — a de que 0 set tlement de 1688** definiu a sua forma e suas relagGes caracteristicas. Dado que esse seitlement estabeleceu a forma de governo para uma burguesia agréria !°! tanto essa forma de poder do Estado como esse modo de producao e relagées produtivas que parecem ter determinado as expresses politicas e culturais dos cem anos seguintes. Na verdade, esse Estado, por mais fraco que fosse em algu- mas de suas fungées buroeriticas e racionalizadoras, era por si mesmo imensa- mente forte e eficaz como instrumento auxiliar de produgo, abrindo os cami- nhos para o imperialismo comercial, impondo os cercamentos no campo e facilitando a acumulagio e o movimento do capital, tanto por meio de suas fun- Ges de tributagdo, operacdes bancérias ¢ financiamento, como, de forma mais (oxy) Garantia de sucessao hanoveriana 20 trono. (N.R.) 7 rude, pelo que arrancava parasiticamente de seus pr6prios funciondrios. Foi essa combinagdo especifica de fraqueza e forga que criou a “iluminagio geral” em que todas as cores desse século esto imersas, que atribuiu aos juizes e aos magistrados 0 seu papel, que tornou necessdrio 0 teatro da hegemonia cultural e escreveu o seu roteiro paternalista ¢ libertério, que proporcionou a multiddo a sua oportunidade de protestar e exercer presso, que formulou os termos de negociagio entre a autoridade e os plebeus, ¢ que estabeleceu os limites que a negociaciio nao podia ultrapassar. Por fim, até que ponto ¢ em que sentido emprego 0 conceito de “hegemo- nia cultural”? Essa pergunta pode ser respondida num nivel prético ou num nivel tedrico. No nivel pritico, € evidente que a hegemonia da gentry sobre a vida politica da nagSo foi eficazmente imposta até a década de 1790. Nem as blasfémias, nem os epis6dios esporiidicos de incéndios criminosos a questio- nam, pois no pretendem suplantar o dominio da gentry, mas apenas puni-la. Os limites do que era politicamente possivel (até a Revolugiio Francesa) fica- vam expressos externamente em formas constitucionais ¢, internamente, den- tro das mentes humanas, eram tabus, expectativas limitadas e uma disposigao a adotar formas tradicionais de protesto que em geral tinham a intengiio de Jembrar A gentry seus deveres patemnalistas. Mas é também necessério dizer 0 gue essa hegemonia ndo acarreta. Ela no acarreta que os pobres aceitem o paternalismo da gentry nos proprios ter- mos da geniry ou segundo sua autoimagem consagrada. Os pobres podiam se dispor a conceder sua deferéncia & gentry, mas apenas por um prego, que era substancial. F a deferéncia era frequentemente desprovida de qualquer itusi a partir de baixo, podia ser vista em parte como antopreservagao necessaria, em parte como extragéio calculada do que podia ser conseguido. Visto dessa maneira, os pobres impunham aos ricos alguns dos deveres ¢ funges do pater- nalismo, assim como a deferéncia Ihes era por sua vez imposta. Ambos os la- dos da questo estavam aprisionados num campo de forca comum. Em segundo lugar, devemos lembrar mais uma vez a imensa distancia entre as culturas de elite ¢ plebeia, e o vigor da auténtica autonomia dessa ul- tima. O que quer que tenha sido essa hegemonia, ela no envolvia a vida dos pobres, nem os impedia de defender seus prdprios modos de trabalho e lazer, de formar seus proprios rituais, suas proprias satisfagdes e visio de mundo. Jsso nos alerta contra levar a nogdo de hegemonia longe demais ¢ a dreas ina- dequadas.” Essa hegemonia pode ter definido os limites exteriores do que era politica e socialmente praticavel, tendo por isso influenciado as formas do que era praticado: fomecia a arquitetura nua de uma estrutura de relages de domi- nacido ¢ subordinacto, mas dentro desse tragado arquiteténico era possivel criar muitas cenas e representar diferentes dramas. 73 Por fim, uma cultura plebeia independente assim tio robusta poderia ter nutrido até expectativas alternativas, desafiando essa hegemonia. Mas essa n@o é a minha leitura do que ocorreu, pois quando aconteceu a ruptura ideold- gica com o paternalismo, na década de 1790, ela surgiu menos da cultura ple- beia que da cultura intelectual da classe média dissidente, e a partir dai foi le- vada aos artesos urbanos. Mas as ideias dos seguidores de Paine, levadas por esses artesiios a uma cultura plebeia ainda mais ampla, ali logo se arraigaram. B talvez o abrigo fornecido por essa cultura robusta ¢ independente permitiu que clas florescessem ¢ se propagassem, até darem origem &s grandes e pouco deferentes agitagdes populares no final das Guerras Napolednicas. Estou falando teoricamente. O conceito de hegemonia € muito valioso, € sem ele ndo saberiamos compreender como as relagGes eram estruturadas. Mas embora essa hegemonia cultural possa definir os limites do que & possivel, ¢ inibir © crescimento de horizontes ¢ expectativas alternativos, nao ha nada deter- minado ou automatico nesse processo. Essa hegemonia sé pode ser sustentada pelos governantes pelo exercicio constante da habilidade, do teatro e da conces- so. Em segundo lugar, essa hegemonia, até quando imposta com sucesso, néo impoe uma visdo abrangente da vida. Ao contrério, ela impde antothos que im- pedem a visdo em certas diregSes, embora a deixem livre em outras. Pode coe- xistir (como aconteceu na Inglaterra do século xvin) com uma cultura muito vi- gorosa ¢ auténoma do povo, derivada de sua propria experiéncia € recursos. Essa cultura, que em muitos pontos pode ser resistente a toda forma de domina- cdo externa, constitui uma ameaga sempre presente as descrig6es oficiais da realidade. Com o solavanco brusco da experiéncia, a intrusio de propagandistas “sediciosos”, a multidao da “Igreja e Rei” pode se tornar jacobina ou Iuddita, a Marinha czarista leal pode se tornar uma frota bolchevique insurrecional. Por isso, nao posso aceitar a visio, popular em alguns circulos estrutura- listas e marxistas na Europa Ocidental, de que a hegemonia impde uma domi- nagiio abrangente aos governados — ou a todos que nao sao intelectuais — chegando até o proprio limiar de sua experiéncia, ¢ implantando em suas mentes, no momento do nascimento, categorias de subordinagio, das quais ales so incapazes de se livrar e que sua experiéncia nao é capaz de corrigir. Isso pode ter acontecido aqui e ali, mas nao na Inglaterra, nao no século xvi. VT Agora talvez,seja util reafirmar, bem como precisar, algumas partes dessa discusso. Quando a propus pela primeira vez, nos anos 1970, alguns conside- raram que eu teria estabelecido uma dicotornia mais absoluta entre patricios © 79 plebeus — sem forcas intermediérias de qualquer influgncia mais séria — do que era minha intengo. E a critica tem se voltado para a auséncia, na minha andlise, de um papel para a classe média. Nessa leitura, o surgimento de uma classe média na década de 1790 e a radicalizagdo de uma grande parte da in- telligentsia aparecem como algo inexplicdvel, um deus ex machina. E os eriticos tém se queixado do “dualismo” ¢ da triste polarizacio resultante, de eu nio admitir as camadas médias como atores histéricos e “negligenciar o papel da cultura urbana e da dissidéncia burguesa”.!°* Posso concordar que meu modelo bipolarizado tenha mais importéncia para os distritos rurais, de pequenas cidades e, especialmente, manufatureiros que se expandem fora dos controles corporativos (0 locus da “protoindustria- lizago”), do que para as grandes cidades e, sem divvida alguma, do que para Londres. Eu nao tinha a intengdo de diminuir 0 significado do crescimento durante todo o século, em niimeros, riqueza e presenca cultural, das camadas, médias que vieram a criar e ocupar uma “esfera piblica” (aos termos de Ji gen Habermas). Inefuem os grupos descritos por John Brewer: [...] advogados, corretores de terras, boticdrios e médicos; intermediarios no co- mércio do carvao, fecidos e graios; carroceiros, transportadores e estalajadeiros livreiros, impressores, mestres-escolas, artistas de casas de diversio e escrivaes; fanqueiros, merceeiros, farmacéuticos, donos de papelaria, ferragistas, lojistas de todo tipo; os pequenos mestres na cutelaria ¢ fabricagdo de brinquedos ou de todos os variados artigos de luxo da metrépole."* A lista podia ser ampliada, e deveria certamente incluir os detentores de pro- priedade plena, que levavam uma vida confortivel, e os ticos fazendeiros ar- rendatirios. £ a partir desses grupos médios que Eley vé “o surgimento ¢ con- solidagiio de um novo pilblico burgués consciente de si mesm Relacionado em tiltima andlise com os processos do desenvolvimento capitalista ¢ da transformagao social [...] com os processos da formagao cultural urbana que tendiam a sustentar uma identidade politica emergente e estavam por ve7es ligedos aredes politicas regionais; com uma nova infraestrutura das comunicagées.incluin- do a imprensa ¢ outras formas de producio literéria [...] ¢ com um novo universo de assaciagao voluntétia. E finalmente com um parlamentarismo regenerado [...]* Posso concordar com tudo isso. Mas esse surgimento e consolidacéo foi um processo complexo ¢ muito lento, que se realizou durante cem anos ou mais. Como observon o professor Cannon: Embora haja muitas evidéncias de que mercadores e financistas, professores Jomalistas, advogados e arquitetos, lojistas ¢ industrialistas tenham prosperado na Inglaterra hanoveriana, as questées a serem explicadas me parecem quase 0 oposto da historiografia marxista — nao interessa saber como € que eles chega~ 80 ram a controlar 0 govemno, mnas por que s6 desafiaram a dominagiio aristactética perto do final do séeulo 08 As questées nao me parecem estar situadas em nenhuma variedade de his toriografia, mas nos registros histéricos reais. E continuam a desconcertar histo- tiadores de muitas convicgdes. Havia certamente muitas prefiguracies do “sur gimento” de uma classe média na politica urbana. Mas, como argumenta John Brewer, a independéncia da classe média era constantemente restringida e re~ conduzida aos canais da dependéncia pelos controles poderosos do clientelism Os produtores de bens de luxo- - mobilia, carruagens ¢ roupas —, varejistas de todo tipo, aqueles, desde prostitutas a professores de danga, que executavam ser- vigos para 0s ricos, todas essas pessoas (e elas constitufam uma porgéo bastante grande da forga de trabalho metropolitana) dependiam para seu sustento de uma, cultura centrada na Corte, no Parlamento e na temporada londrina.*®” Asituagiio ndo induz necessariamente a deferéncia: podia gerar ressentimento e hostilidade. O que niio podia fazer, enquanto a arena do mercado no se tornas- se mais annima, era gerar independéncia. Se consideramos os controles sempre presentes do clientelismo, da patro- nagem ¢ do “interesse”, somos levados de volta ao modelo de um campo de forca bipolarizado, assim como esse vocabulério bipolarizado estava sempre na boca dos prdprios atores histérieos. Na verdade, esse modelo da ordem politica © social era por si mesmo uma forga ideol6gica, Uma das maneiras pelas quais 08 patricios repeliam a admissio da classe média a qualquer participagio real no poder era recusar a sua admisstio ao vocabulirio do discurso politico. A cultura patricia resistiu obstinadamente a conceder qualquer grau de vitalidade & nogio de “classe média” até 0 final do século.4° Além disso, é um erro supor que 0 crescimento em ntimeros e riqueza das “camadas médias” necessariamente mo- dificasse ¢ suavizasse a polarizagio de classe na sociedade como um todo. Em algumas circunstincias, desviava as hostilidades. Como vimos (pp. 46-8), os grupos médios podiam servir para encobrir 0 proprietério de terra ou o grande fabricante de roupas. Mas, enquanto tantos acessos para os cargos, as promo- Ges & 08 contratos continuavam sendo controlados pelos meios antigos e cor- Tuptos da patronagem, o crescimento nos ntimeros dos grupos médios s6 podia intensificar a competigao entre eles.” Portanto, minha discusstio no tem sido sobre ntimeros, riqueza ou até mesmo a presenga cultural da classe média, mas sobre sua identidade como um ator politico auténomo e com motivagao propria, sua influéncia efetiva sobre 0 poder, sua modificagdo do equilibrio patricios-plebeus de qualquer forma mais séria. Nao quero recuar das proposigdes neste capitulo, embora al satide a importincia da pesquisa atual sobre as instituig6es da classe média ¢ sobre a vida politica urbana. ‘A discussio €, em parte, sobre 0 poder e, em parte, sobre a alienagio cul- tural (p. 17). Alguns eriticos sugeritam que eu e outros da geragao mais velha dos “historiadores da multidao”, por nos voltarmos principalmente para os tumultos ¢ os protestos, excluimos da visio muitas outras manifestagGes popu- Jares, inclusive o entusiasmo patridtico e legalista, 0 partidarismo eleitoral, & evidéncias mais sombrias de xenofobia ou fanatismo religioso.'” Bstou dis- posto a admitir que essas questées niio me preocupam, ¢ estou feliz por ver que ‘essas lacunas esto sendo supridas por outros."!? Sem diivida, uma visio mais abrangente da multidio estd se tornando realidade. Mas espera-se que a visio nao se torne demasiado abrangente. Sdo poucas as generalizagGes a respeito das atitudes politicas dominantes dos “plebeus” no século xvi que t8m proba- bilidades de permanecer, exceto que a multidao era altamente volatil. As mul- tidées do século xvini so muito variadas, tém todos os formatos ¢ tamanhos. Nos primeiros anos do século, havia as gangues das cervejarias que os politi- cos soltavam contra seus oponentes. “Adoro uma turba”, disse o duque de Newcastle no final de sua vida: “Eu mesmo liderei uma turba certa vez. Deve- mos a sucessiio hanoveriana a uma turba”.!!* Em nenhum momento essa vola- tilidade é mais manifesta do que no fim do século. As generalizagdes quanto & disposigdo politica da multido nos dirfo uma coisa na época dos motins Priestley (1791) e outra muito diferente no auge da popularidade de Tom Paine e da Reforma dois ou trés anos mais tarde. E possfvel encontrar sentimentos revolucionérios em retorica de cervejaria e em cartas anénimas ameagadoras entre 1797 e 1801 (anos dos motins navais, da insurrei¢io irlandesa, anos de resisténcia & tributagdo ¢ de ferozes motins do pio), bem como legalismo antigalicanismo populares ardentes entre 1803 ¢ 1805 (anos de ameaga de in- vaso, de taiva contra a expansdo imperial de Napoledo, que despertava a hostilidade até de antigos “jacobinos” ingleses, anos de alistamento em massa nos Voluntérios ¢ da yit6ria agridoce de Nelson em Trafalgar). Essas transicGes répidas ocorriam, é claro, tanto nos individuos como no animo das multidées. Allen Davenport, que provinha de uma famflia de traba- Thadores na fronteira de Gloucestershire-Wiltshire, descreveu como chegou a Bristol em 1794, com dezenove anos: Eu era bastante patriota e pensava, naqueles tempos, que tudo o que a Inglaterra realizava era correto, justo e apropriado; e que qualquer outra nacao que Ihe fosse contrdria estava errada e merecia castigo. E que @ Franga que acabara de matar ‘© seu rei, exilar os seus nobres, insultar e profanar a religiéo cristii era realmente muito mé; e ev gritava “Igreja e Rei” to alto por tanto tempo quanto qualquer padre ou senhor no reino. E acreditava que nao s6 se justificava, como era dever 82 sagrado da Inglaterra reprimir e, se possfvel, exterminar essa nagdo desatinada de igualitarios, blasfemadores ¢ regicidas! E esse era 0 sentimento de nove décimos do povo da Ingiaterra (em) 1794.!"5 Davenport tornar-se-ia um destacado spenciano, republicano e cartista. A multidio do século xvu era multiforme: ora empregava 0 simbolismo Jacobita, ora endossava Wilkes a plenos pulmies, ora atacava pontos de reuniio dos dissidentes, ora fixava 0 prego do pao. E verdade que certos temas se repe- tem a xenofobia (especialmente o antigalicanismo), bem como um gosto pela retdrica antipapista ¢ libertéria (“o ingles livre de nascimento”). Mas as genera- lizagbes ficeis devem parar aqui. Talvez em reagao & exagerada simpatia e defe- sa demonstradas pelos historiadores da multido da minha geraco, alguns his- coriadores mais jovens esto dispostos a nos dizer aquilo em que a multidio acreditava, e (a0 que parece) a multiddo tinha sempre uma tendéncia nacionalis- ‘ae, em geral, legalista ¢ imperialista. Mas nem todos os historiadores passaram muito tempo pesquisando os arquivos em que se encontrario as evidéncias enig- miticas e ambivalentes, ¢ aqueles entre nds que tiveram essa experiéncia sio snais cautelosos. Nem se pode deduzir a “opiniao pitblica” diretamente da im- prensa, pois essa era escrita pelas ¢ para as camadas médias. O entusiasmo pela expansiio comercial entre esses leitores ndo era necessariamente partilhado por aqueles que seryiam em terra ou no mar nas guerras que promoviam essa expan- so. Em oposigdo ao tom populista da década de 1960, hoje em dia é moda entre 9s intelectuais descobrir que os trabalhadores cram (€ sio) intolerantes, racistas, sexistas, mas/e, no fundo, profundamente conservadores ¢ leais & Igreja e ao rei. ‘Mas uma consciéncia tradicional dos costumes (“conservadora”) pode em certas conjunturas parecer rebelde. Pode ter a sua prépria ldgica e suas préprias solida- riedades que nao € possivel tipificar de modo simplista. O préprio “patriotismo” pode ser um estratagema retérico que a multidao emprega para armar um ataque 8 corrupgiio dos governantes hanoverianos, assim como no século seguinte os ‘umultos da rainha Caroline foram um estratagema para atacar o rei George Ive sua Corte, Quando a multidao aclamava almirantes populares, podia ser uma maneira de atacar Walpole ou Pitt. Niio podemos nem mesmo dizer até que ponto ideias republicanas explici- tas estavam em circulacao, especialmente durante a turbulenta década de 1760. E uma questo mais frequentemente afastada com uma negativa do que investi- gada, Mas temos 0 caveat de Sir John Plumb: “Os historiadores, penso, nunca dio bastante énfase A predominéincia do amargo sentimento antimonarquico e pr6-republicano das décadas de 1760 ¢ 1770".""" Um pensamento semelhante passou pela mente de um historiador mais excitivel,o sr. J.C. D. Clark, que cita trechos da carta de John Wesley para o conde de Dartmouth em 1775, sobre 0 estado “perigosamente insatisfeito” das pessoas “de toda a nagio em toda cidade 83 grande e pequena, em todo 0 vilarejo por onde andei”. As pessoas “atacam” 0 proprio rei: “Calorosamente desprezam Sua Majestade e 0 odeiam com um 6dio total. Querem manchag as méos com o sangue dele. Estiio impregnadas com 0 espirito do assassinato e da rebelido [...]”#* Suspeita-se de que hi periodos, durante as décadas de 1760 e 1770, em que parte do povo inglés estava mais disposta a se separar da Coroa do que 0s colonos americanos, 86 que tinbam a infelicidade de nao contar com a protege do oceane Atlantico. Portanto, continuo fiel ao modelo patricios-plebeus e A metéfora do campo de forga, tanto para a estruturagdo do poder como para o cabo de guerra dialético da ideologia. Entretanto, ndo se deve supor que essas formulas fornegam um recurso analitico instanténeo para extrair 0 significado de cada agéio da multidao. Toda acio da multidio ocorria num contexto especifico, era influenciada pelo equilibrio local das forgas, e frequentemente encontrava a sua oportunidade e 0 sou roteiro nas divisdes facciondrias no interior dos grupos dominantes ou em questdes lancadas no discurso politico nacional. Em Whigs and cities, Nicholas Rogers discute convincentemente essa questo. Ele suspeita (talvez injustamen- te) que eu empregue procedimentos analiticos “essencialistas”. Se for assim, Rogers esté certo ¢ en errado, pois seu dominio do material é magnifico e suas descobertas stio fndamentadas por anos de pesquisa e andlise da multidao urba- na." Na perspectiva de Rogers, deve-se ver a maioria das agGes da multidio urbana ocorrendo num “terreno em que se cruzam a ideologia, a cultura e 0 po- der”. No inicio do século xvm, 08 préprios governantes, por razdes que Ihes di- ziam respeito, abriram esse espago para a multidao, dando-lhe um papel depen- dente e subaltemno. O clero da [greja Superior Anglicanae os partidaristas civicos ampliaram esse espaco. O calendario de aniversdrios e celebragdes politicas -— procissdes, iluminacées, eleigdes, queima de efigies, efervescéncia camavales- tudo conferia papéis & multidiio e recrutava sua participagao, Dessa forma, nas quatro décadas depois de 1680, “amplas segGes da populaga trabalhadora” exam atraidas para o discurso politico nacional: “Anos de aguda lula partidaria, num contexto social que concedia maior espago cultural ao povo comum. ti nham criado uma cultura politica contenciosa ¢ dinamica, centrada em torno dos aniversirios reais ¢ nacionais, nos quais a propria populaga participava vigoro- samente”, Foi apenas sob essa tutela que a multidfio aprendeu a afirmar a sua autonomia e, de vez em quando, a selecionar seus objetivos. A multidao passou entdo a ser um fendmeno que “tinha de ser cultivado, nutrido e contido”, para que nao saisse de seu papel subalterno.° ‘Aceito e aplaudo a abordagem do professor Rogers ¢ o modo como ele a emprega nos seus estudos urbanos. E prefertvel a simples redugio a uma pola- ridade patricios-plebeus, e — embora conceda & multidiio menos autonomia do que descubro (por exemplo, nas agdes contra milfcias ¢ destacamentos, nas ca~ 84 agitagdes nas manufaturas, nas agGes nas barreiras ou por causa dos alimentos nas provincias) — ela recoloca as ages da multidio urbana dentro de um contexto cultural ¢ politico mais complexo. Mas por meio de todas essas com- plexidades ainda devo pressupor a polaridade subjacente do poder ~- as forgas que pressionavam para invadir ¢ ocupar qualquer espago que se abrisse quan- do os grupos dominantes entravam em conflito. Mesmo quando as multiddes eram claramente manipuladas e subalternas, os governantes nunca as encara- vam sem ansiedade. Sempre poderiam ultrapassar os seus limites, ¢ a multidio desordenada voltaria a cair na polaridade “essencialista’, “transformando o calendério oficial num carnaval de sedigao e motim”.?! Subjacente a todas as aces da multidao, pode-se sentir a formacdo do que foi meu objeto de andlise, © equilibrio patricios/plebeus. Um componente desse equilibrio, as antigas farsas de paternalismo ¢ de- feréncia, estava perdendo forca mesmo antes da Revolucdo Francesa, embora experimentasse um renascimento tempordrio nas turbas da “Igreja e Rei” dos primeiros anos da década de 1790, no aparato militar e no antigaticanismo das guerras. Os motins Gordon tinham testemunhado o climax e também a apo- teose da desordem plebcia, além de terem infligido aos governantes um trauma que foi registrado num tom cada vez mais disciplinar na década de 1780. Mas a essa altura a relagdo reciproca entre a gentry e os plebeus, inclinando-se ora para um lado, ora para o outro, tinha durado um século. Por mais gritantemen- te desigual que fosse essa relagiio, ainda assim a gentry precisava de algum apoio dos “pobres”, e os pobres sentiam que eram necessdrios. Durante com anos, eles ndo foram totalmente os perdedores. Conservaram a sua cultura tradicional, conseguiram uma suspensio parcial da disciplina de trabalho do industrialismo incipiente, alargaram talvez o aleance das leis de assisténcia aos pobres, impuseram caridades que podem ter impedido que anos de escas- sez. chegassem a crises de subsisténcia, ¢ desfrutavam a liberdade de avanca- rem pelas ruas atropelando os outros. abrindo a boca e dando vivas. demolindo as casas de padeiros ou dissidentes odiosos, além de manifestarem uma dispo- i¢flo sediciosa e descontrolada, que espantava os visitantes estrangeiros e que quase os levou a acreditar, erroneamente, que eram “livres”. A década de 1790 acabou com essa ilusio, e na esteira das experigneias daqueles anos a relacdio de reciprocidade se rompeu. No mesmo momento em que se rompeu, a gentry perdeu sua hegemonia cultural autoconfiante. De repente, o mundo j& nado pa- recia afinal limitado em todos os pontos pelas suas regras, nem vigiado pelo seu poder. Um homem era um homem, “apesar de tudo”. Safmos do campo de forea do século xvi, ¢ entramos num perfodo em que hé uma reordenagiio estrutural das relagies de classe e da ideologia. Pela primeira vez. € possivel analisar 0 processo hist6rico em termos das notagées de classe do século x 85

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