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Estado de Natureza, contrato social,

Estado Civil na filosofia de Hobbes, Locke e Rousseau

Marilena Chauí (profª de filosofia na USP)

(Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 220-223)

O conceito de estado de natureza tem a função de passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil,
explicar a situação pré-social na qual os criando o poder político e as leis.
indivíduos existem isoladamente. Duas foram as
principais concepções do estado de natureza: A passagem do estado de natureza à sociedade
civil se dá por meio de um contrato social, pelo
1. A concepção de Hobbes (no século XVII), qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e
segundo a qual, em estado de natureza, os à posse natural de bens, riquezas e armas e
indivíduos vivem isolados e em luta concordam em transferir a um terceiro – o
permanente, vigorando a guerra de todos soberano – o poder para criar e aplicar as leis,
contra todos ou "o homem lobo do tornando-se autoridade política. O contrato social
homem". Nesse estado, reina o medo e, funda a soberania.
principalmente, o grande medo: o da morte
violenta. Para se protegerem uns dos Como é possível o contrato ou o pacto social?
outros, os humanos inventaram as armas e Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o
cercaram as terras que ocupavam. Essas Direito Romano – "Ninguém pode dar o que não
duas atitudes são inúteis, pois sempre tem e ninguém pode tirar o que não deu" – e a Lei
haverá alguém mais forte que vencerá o Régia romana – "O poder é conferido ao soberano
mais fraco e ocupará as terras cercadas. A pelo povo" – para legitimar a teoria do contrato ou
vida não tem garantias; a posse não tem do pacto social.
reconhecimento e, portanto, não existe; a
única lei é a força do mais forte, que pode Parte-se do conceito de direito natural: por
tudo quanto tenha força para conquistar e natureza, todo indivíduo tem direito á vida, ao que
conservar; é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à
liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda
2. A concepção de Rousseau (no século que, por natureza, uns sejam mais forte e outros
XVIII), segundo a qual, em estado de mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a
natureza, os indivíduos vivem isolados teoria jurídica romana, só tem validade se as
pelas florestas, sobrevivendo com o que a partes contratantes foram livres e iguais e se
Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e voluntária e livremente derem seu consentimento
comunicando-se pelo gesto, pelo grito e ao que está sendo pactuado.
pelo canto, numa língua generosa e
benevolente. Esse estado de felicidade A teoria do direito natural garante essas duas
original, no qual os humanos existem sob a condições para validar o contato social ou o pacto
forma do bom selvagem inocente, termina político. Se as partes contratantes possuem os
quando alguém cerca um terreno e diz: "É mesmos direitos naturais e são livres, possuem o
meu". A divisão entre o meu e o teu, isto é, direito e o poder para transferir a liberdade a um
a propriedade privada, dá origem ao estado terceiro, e se consentem voluntária e livremente
de sociedade, que corresponde, agora, ao nisso, então dão ao soberano algo que possuem,
estado de natureza hobbesiano da guerra legitimando o poder da soberania. Assim, por
de todos contra todos. direito natural, os indivíduos formam a vontade
livre da sociedade, voluntariamente fazem um
O estado de natureza de Hobbes e o estado de pacto ou contrato e transferem ao soberano o
sociedade de Rousseau evidenciam uma poder para dirigi-los.
percepção do social como luta entre fracos e
fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão
força. Para fazer cessar esse estado de vida de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um
ameaçador e ameaçado, os humanos decidem corpo político, uma pessoa artificial criada pela
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ação humana e que se chama Estado. Para detém a espada e a lei; os governados, a vida e a
Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas propriedade dos bens.
morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral
como corpo moral coletivo ou Estado. Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido
como vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre
A teoria do direito natural e do contrato evidencia e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo
uma inovação de grande importância: o contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a
pensamento político já não fala em comunidade, este que transferem os direitos naturais para que
mas em sociedade. A idéia de comunidade sejam transformados em direitos civis. Assim
pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, sendo, o governante não é o soberano, mas o
indiviso, que compartilha os mesmos bens, as representante da soberania popular. Os indivíduos
mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e aceitam perder a liberdade civil: aceitam perder a
que possui um destino comum. posse natural para ganhar a individualidade civil,
isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e
A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto
existência de indivíduos independente e isolados, se submetem às leis e à autoridade do governante
dotados de direitos naturais e individuais, que que os representa chamam-se súditos. São, pois,
decidem, por uma ato voluntário, tornar-se sócios cidadãos do Estado e súditos das leis.
ou associados para vantagem recíproca e por
interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de John Locke e a teoria liberal – No pensamento
uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade
de uma coletividade voluntária, histórica e privada não é um direito natural, mas civil. Em
humana. outras palavras, mesmo que no estado de natureza
(em Hobbes) e no estado de sociedade (em
A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e
Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não
isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo existem leis para garanti-la. A propriedade
soberano. Feito o pacto ou o contrato, os privada é, portanto, um efeito do contrato social e
contratantes transferiram o direito natural ao um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não
soberano e com isso o autorizam a transformá-lo era suficiente para a burguesia em ascensão.
em direito civil ou direito positivo, garantindo a
vida, a liberdade e a propriedade privada dos De fato, embora o capitalismo estivesse em via de
governados. Estes transferiram ao soberano o consolidação e o poderio econômico da burguesia
direito exclusivo ao uso da força e da violência, da fosse inconteste, o regime político permanecia
vingança contra os crimes, da regulamentação dos monárquico e o poderio político e o prestígio
contatos econômicos, isto é, a instituição jurídica social da nobreza também permaneciam. Para
da propriedade privada, e de outros contratos enfrentá-los em igualdade de condições, a
sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse
legislação sobre a herança, etc.). uma legitimidade tão grande ou maior do que o
sangue e a hereditariedade davam à realiza e à
Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada
diferem na resposta a essa pergunta. como direito natural e sua primeira formulação
coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no
Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um final do século XVII e início do século XVIII.
grupo de aristocratas ou uma assembléia
democrática. O fundamental não é o número dos Locke parte da definição do direito natural como
governantes, mas a determinação de quem possui direito à vida, à liberdade e aos bens necessários
o poder ou a soberania. Esta pertence de modo para a conservação de ambas. Esses bens são
absoluto ao Estado, que, por meio das instituições conseguidos pelo trabalho.
públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as
leis, definir e garantir a propriedade privada e Como fazer do trabalho o legitimador da
exigir obediência incondicional dos governados, propriedade privada enquanto direito natural?
desde que respeite dois direitos naturais
intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi Segundo Locke, Deus é um artífice, um obreiro,
por eles que o soberano foi criado. O soberano arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o
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mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a tendo instituído a propriedade, o Estado
ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. não tem poder para nela interferir. Donde a
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve
deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao respeitar a liberdade econômica dos
expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio proprietários privados, deixando que
do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de façam as regras e as normas das atividades
seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, econômicas;
no momento da criação do mundo e do homem, o 2. Visto que os proprietários privados são
direito à propriedade privada como fruto legítimo capazes de estabelecer as regras e as
do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um normas da vida econômica ou do mercado,
direito natural. entre o Estado e o indivíduo intercala-se
uma esfera social, a sociedade civil, sobre
O Estado existe a partir do contrato social. Tem as a qual o Estado não tem poder instituinte,
funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal mas apenas a função de garantidor e de
finalidade é garantir o direito natural da árbitro dos conflitos nela existentes. O
propriedade. Estado tem a função de arbitrar, por meio
das leis e da força, os conflitos da
Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente sociedade civil;
legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais 3. O Estado tem o direito de legislar, permitir
do que isso, surge como superior a elas, uma vez e proibir tudo quanto pertença à esfera da
que o burguês acredita que é proprietário graças vida pública, mas não tem o direito de
ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres intervir sobre a consciência dos
são parasitas da sociedade. governados. O Estado deve garantir a
liberdade de consciência, isto é, a
O burguês não se reconhece apenas como superior liberdade de pensamento de todos os
social e moralmente aos nobres, mas também governados e só poderá exercer censura
como superior aos pobres. De fato, se Deus fez nos casos em que se emitam opiniões
todos os homens iguais, se a todos deu a missão sediciosas que ponham em risco o próprio
de trabalhar e a todos concedeu o direito à Estado.
propriedade privada, então, os pobres, isto é, os
trabalhadores que não conseguem tornar-se Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688,
proprietários privados, são culpados por sua com a chamada Revolução gloriosa. No restante
condição inferior. São pobres, não são da Europa, será preciso aguardar a Revolução
proprietários e são obrigados a trabalhar para Francesa de 1789. Nos Estados Unidos,
outros seja porque são perdulários, gastando o consolida-se em 1776, com a luta pela
salário em vez de acumulá-lo para adquirir independência.
propriedades, seja porque são preguiçosos e não
trabalham o suficiente para conseguir uma
propriedade.

Se a função do estado não é a de criar ou instituir


a propriedade privada, mas de garanti-la e
defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o
poder do soberano?

A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com


os realizadores da Independência norte-americana
e da Revolução Francesa, e finalmente, no século
XX, com pensadores como Max Weber, dirá que a
função do Estado é tríplice:

1. Por meio das leis e do uso legal da


violência (exército e polícia), garantir o
direito natural de propriedade, sem
interferir na vida econômica, pois, não
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