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Doutrina ESTABELECIMENTO COMERCIAL E ESTABELECIMENTO INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA Pelo Prof. Doutor José de Oliveira Ascensao 1. O Direito Comercial esta a ser, a nossos olhos, objecto de uma reformulacdo tumultuosa. Essa reformulacao é€ parcial: € 0 estabelecimento comercial nao foi directamente contemplado. Mas varios preceitos, aqui e além, tém incidéncia sobre o seu enten- dimento e regime. De tal modo que podemos dizer que a proble- matica do estabelecimento comercial, que foi sempre complexa, esta agravada por estas intervengdes. Até porque, com a reforma, se afirmou o intento de revalorizar a empresa, e 0 estabelecimento comercial mantém uma ligacdo, polémica mas indiscutivel, com a categoria empresa. Vamos procurar primeiramente saber que luzes podemos reti- rar dessa legislac&o recentissima para os problemas fundamentais do estabelecimento. Entre estes salientamos o das vicissitudes e 0 da responsabilidade do adquirente pelas dividas do estabelecimento. Na realidade, temos de ter presente a ambiguidade que se oculta na prépria referéncia ao estabelecimento. Ele pode ser con- siderado sinénimo de empresa, ou diferente desta; e pode ainda ser integrado em categorias tao diferentes como as de: — sujeito — objecto — local — instituicéo — situagdo juridica. 6 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Sem poder desenvolver todas estas modalidades, observemos que legislagado recente veio aparentemente favorecer dois entendi- mentos: 0 estabelecimento como local, e 0 estabelecimento como sujeito. Eo que veremos na primeira parte do nosso trabalho. 2. Oentendimento do estabelecimento comercial como /ocal, € coincidente com o entendimento comum, como local aberto ao publico onde o comerciante faz transac¢ées com os clientes ('). Nao é um sentido novo: € 0 que corresponde por exemplo a palavra «estabelecimento» usado no art. 1197.°/2 do Cédigo de Processo Civil. Diplomas recentes reforcgam esta linha, e dao até definicdes da mesma indole de estabelecimento comercial. Sao por outro lado manifestagdo dessa anomalia profunda, que é a de, enquanto se processa a reforma da lei comercial pelo Ministério da Justica, serem focadas matérias fundamentais deste ramo em diplomas oriundos doutros ministérios, como o das Finangas e do Comér- cio e Industria — frequentemente sem intervencdo do Ministério da Justiga e em contradi¢do com as orientagdes que por este vao sendo tracgadas. Os dois diplomas a que nos referimos emanam do Ministério do Comércio e da Industria. Inserem-se por outro lado na linha de burocratizacdo que tem caracterizado a actividade daquele Ministério — mas a que infelizmente nao é imune tam- bém a reforma oriunda do Ministério da Justica. Assim, o Dec.-Lei n.° 239/86, de 19 de Agosto, aprova as normas de seguranga contra riscos de incéndio, a aplicar em esta- belecimentos comerciais. Nessas normas, 0 estabelecimento é defi- nido como «a instalagdo ou instalagdes afectadas ao exercicio de actividade comercial a que o publico tenha acesso» (1.2). O fun- cionamento fica dependente de certificado de conformidade. Por seu lado, o Dec.-Lei n.° 277/86, de 4 de Setembro, insti- tui o cadastro comercial. Reza o art. 1.°/3: «Para efeitos do dis- posto neste diploma, entende-se por estabelecimento comercial o local onde sejam exercidas as actividades econémicas previstas no Dec.-Lei n.° 339/85». () O art. 230.973 do Cédigo Comercial fala em «escritério aberto ao piiblico». ESTABELECIMENTO COMERCIAL 7 Nao obstante a opuléncia das definicdes, parece-nos seguro que este entendimento nao deve ser retido. E restrito ¢ nao téc- nico; nao é a proposito do local que se suscita a problematica espe- cifica do estabelecimento comercial. Por isso o tomaremos como um entendimento paralelo, desgarrado do que procuramos. 3. Na outra linha temos um problema maior. O legislador parece ter optado pelo estabelecimento como sujeito de direito ao instituir, no Dec.-Lei n.° 248/86, de 25 de Agosto, o estabeleci- mento individual de responsabilidade limitada (E.1.R.L.). Ha uns anos, tornou-se célebre esta boutade de Pittigrilli: a melhor maneira de acabar com uma tentacio é ceder-lhe. Talvez nela se tenha inspirado o legislador portugués. Preocupado com © numero de sociedades ficticias, com as quais se procurava afi- nal obter o resultado da limitagdo de responsabilidade mediante sdcios pintados, o legislador entendeu que a melhor maneira de acabar com elas seria acabar com a ilimita¢do de responsabilidade do comerciante em nome individual. Criou para isso 0 E.1.R.L. — sem, curiosamente, estabelecer nenhuma ponte pela qual se inte- grassem neste as sociedades ficticias existentes. Serd interessante quando a mesma orientagdo for aplicada a persistente fraude fis- cal; esta pode também seguramente ser liquidada se se suprimi- rem os impostos. Nao é porém nossa finalidade discutir a bondade da solucao, mas apenas verificar em que termos contribui a nova figura para a configuracdo do estabelecimento comercial. Os partidarios da limitag&o da responsabilidade do comerciante em nome individual, ¢ as leis que os atenderam, propdem-se atin- gir aquele objectivo por um destes trés meios técnicos: — a sociedade unipessoal — a personificacéo — 0 patriménio auténomo. A lei portuguesa vai tratar desta matéria quase sem conex4o com um Cédigo das Sociedades que é praticamente coevo, e que paradoxalmente deu muito maior abertura a sociedade unipessoal. Mas a sua técnica é tao pobre que é dificil determinar se se cria uma pessoa colectiva ou um patriménio auténomo. 8 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO 4. Aparentemente, criou-se uma nova pessoa, nao obstante as afirmacdes em contrario do preambulo do diploma. O proprio nome do instituto concorre nesse sentido — €¢ 0 esta- belecimento em si que é individual, logo o estabelecimento sera um sujeito; ainda, o estabelecimento é de responsabilidade limi- tada, e a responsabilidade é um atributo dos sujeitos. Mas ha mais. O estabelecimento tem uma firma (art. 2.°/2 3). Até agora, falava-se do nome do estabelecimento, o que esta bem para uma realidade objectiva; agora fala-se de firma, ea firma corresponde a um sujeito. Além disso, contra toda a expectativa, fala-se da faléncia do titular por causa relacionada com a actividade do estabelecimento (art. 11.°/2). Nao seré uma maneira de estender a faléncia ao esta- belecimento? No mesmo preceito se estabelece que o falido responde com todo o seu patriménio pelas dividas contraidas no exercicio do esta- belecimento, contanto que se prove que o principio da separacdo patrimonial nao foi observado na gestéo do estabelecimento. A solugdo é paralela 4 determinada pelo art. 84.° do Codigo das Sociedades Comerciais no que respeita a responsabilidade do sécio unico. Consagrou-se aqui 0 que sempre se entendeu como exem- plo acabado da chamada «desconsideracdo da personalidade juri- dica da sociedade». Nao teremos agora desconsideragao da per- sonalidade juridica do E. 1. R. L. ? Enfim, referéncias varias as dividas do estabelecimento {art.31.°/1, por exemplo) e a uma sede deste (art. 36.°) parecem completar 0 quadro da personificacao. 5. Mas estes argumentos nao serdo definitivos. O nome E.I.R.L. surge na sequéncia da Lei francesa n.° 85-697, de 11 de Julho de 1985, relativa 4 empresa unipessoal de responsabilidade limitada. Substitui-se empresa por estabeleci- mento, por forca da consideracdo comezinha de que a empresa € uma actividade, e 0 que se autonomiza s4o os meios pelos quais © comerciante explora a sua empresa ('). Restaria explicar como ()_N.° 10 do preambulo. ESTABELECIMENTO COMERCIAL 9 € que esses meios, que parece deverem ser realisticamente demar- cados, podem representar um patriménio, que ndo respeita a bens mas a situagdes juridicas. De todo o modo, nao é seguramente o nome o bastante para outorgar uma qualificacéo técnica ao E.1.R.L., como pessoa, A disposigdo sobre a faléncia nao tem o significado que apa- renta. O que o art. 11.°/2 estabelece, paradoxalmente, é a falén- cia do titular do estabelecimento em consequéncia de dividas gera- das no exercicio do estabelecimento! A composicao a operar cria uma figura anémala na ordem juridica portuguesa: 0 falido rico. O patriménio geral do comerciante nao é atingido, mas o titular do E.LR.L. fica sujeito as inibicdes resultantes da faléncia. Nomea- mamente, se exerceu actividade comercial exterior ao E.1.R.L., con- serva o patriménio comercial respectivo, mas tera de abandonar 0 exercicio por forca da incompatibilidade para ser comerciante! De todo o modo, a faléncia do estabelecimento nao cria por si nenhum problema, pois a faléncia pode estender-se também a um patriménio auténomo: assim aconteceraé com a heranga (art. 1140.°/2 do Cédigo do Processo Civil) (). A aproximacéo da sancdo do art. 11.°/2 da figura da des- consideracao da personalidade é impressionante. Mas pensando bem, descobrimos que a desconsideragéo da personalidade juri- dica, nestes casos, € uma consequéncia de um fenémeno mais vasto, que é a desconsideracdo da separacao patrimonial. A separacdo patrimonial pode ser desvirtuada através de praticas abusivas: a lei responde ignorando no caso o principio da separacdo. Nao ha nada porém que imponha a limitagao do fendmeno 4s hipoteses em que ha a intervencao de duas pessoas juridicamente distintas. A referéncia a firma pode ser explicada de outro modo. Ja a lei anterior aproximara por varios caminhos o nome do estabe- lecimento e a firma (). A qualificagao de um elemento de identi- ficagdo como firma n4o é definitiva para o efeito de apurar uma personificagao. ()_Veja-se também o art. 1361.° do Cédigo de Processo Civil, sobre a declaragio de insolvéncia de heranga quando se verifique que as dividas aprovadas excedem a massa da heranga. @) Cir. os arts, 22.° ¢ 27,° do Dec.-Lei n.° 425/83, de 6 de Dezembro. 10 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO q O mesmo diremos das referéncias a dividas ou créditos do esta- belecimento, que podem ser expressdes elipticas, ¢ a lei usa ja, por comodidade, para meros patriménios auténomos; ou a referéncia & sede do estabelecimento. 6. Que concluir? A nossa posicdo é a de que, quando nao respeita a pessoas naturais, a personalidade é uma técnica de organizacdo em que © legislador tem, ao menos na periferia, um razoavel espaco de manobra. A lei cria novas pessoas juridicas para lhes permitir atingir objectivos para os quais os instrumentos actualmente disponiveis na ordem juridica sao insuficientes. Sendo esta a sua funcdo, os intérpretes s6 devem concluir pela existéncia de um novo sujeito de direito quando o regime estabelecido por lei nao for suscepti- vel de ser enquadrado por nenhum outro instituto juridico. Nao € 0 que se passa neste caso. Apesar da infelicidade téc- nica do diploma, que mistura indicios de sinal contrario, nada ha no que se chamou o E.1I.R.L. que nao possa ser explicado através da figura do patriménio separado ou auténomo. No plano teleoldgico, o que se pretendeu foi criar um patri- ménio comercial, colocando o patriménio geral do comerciante a salvo dos riscos do comércio. Logo, a solucao evidente é-nos dada pelo patriménio auténomo. Representaria uma complicacao int- til interpor uma subjectividade nova, que criaria dificeis proble- mas de relacionamento com a pessoa do comerciante. Nao ha na realidade um novo pdlo no didlogo social que reclame a personifi- cacao. Na verdade, o instituto tem no seu nticleo um regime particu- lar de responsabilidade por dividas, como é préprio do patrimé- nio auténomo. Este regime particular é uma realidade. Pelas dividas resul- tantes da actividade do E.1.R.L. respondem apenas os bens a este afectados (art. 11.°/1). Diz-se também que o estabelecimento res- ponde unicamente pelas dividas contraidas naquele exercicio (art. 10.°/1), mas isto nao é exacto, como resulta da remissao para O art. 22.°: 0 estabelecimento responde por dividas pessoais quando 0s restantes bens do devedor forem insuficientes. Ha pois uma responsabilidade subsididria pelas restantes dividas. De todo ESTABELECIMENTO COMERCIAL i o modo, esta comunica¢do nao reciproca nao inquina a qualifica- ¢4o como patriménio auténomo, pois esta depende apenas da imu- nidade do patrimonio pessoal. S6 por sanc&o, em caso de abuso da funcdo de separacdo patrimonial, nos termos ja conhecidos do art. 11.°/2, o patriménio pessoal do comerciante responde. 7. Um aspecto do regime ha porém que considerar particu- larmente — o que respeita aos negdcios sobre o E.I.R.L., global- mente tomado. A lei é categérica em admiti-los, no art.21.°/1: fala na transmissao por titulo gratuito ou oneroso, na locacao, no usu- fruto, no penhor... E ocorrendo estas vicissitudes, o adquirente responde ou nado pelas dividas do estabelecimento? A lei nado da uma resposta expressa, mas a solucdo nao pode deixar de ser afirmativa. A erec- cdo do E.1.R.L. em patriménio auténomo implica que o conjunto assim formado, salvo clausula em contrdrio, se mantenha através das vicissitudes.Essa transmisséo ou manutencao das dividas trans- parece alias ainda do art. 11.°/3, onde se estabelece no caso de faléncia a responsabilidade de todo o titular anterior que haja trans- gredido o principio da separacado dos patriménios. Tal responsa- bilidade sé pode explicar-se por as dividas se terem transmitido, acompanhando a transmissdo do E.I.R.L. Doutra maneira para nada teriam de ser consideradas em caso de faléncia do transmis- sdrio. Estas solucdes permitirao resolver os problemas suscitados a propésito do estabelecimento comercial em geral? Podemos dizer que, assim, ficou consagrado para todos os casos 0 regime que tracam para estas vicissitudes? Para responder, teremos de abordar outro grande problema, que justificou afinal o estudo desta matéria. Temos de saber se o E.LR.L. € efectivamente um estabelecimento comercial, ou se nao representar4 figura diversa. 8. A resposta é negativa. O estabelecimento individual de responsabilidade limitada é patrimonio auténomo, mas nao é esta- belecimento comercial, no sentido prdprio; este ultimo, pelo con- trario, ndo é patriménio auténomo, pois nao responde em parti- cular por certa categoria de dividas. 12 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO No que respeita 4 qualificacdo do estabelecimento individual de responsabilidade limitada, basta pensar que este assenta num capital, num minimo de 400 000$00, nao podendo a parte em nume- rario ser inferior a 2/3 do capital minimo (art. 3.°/2 ¢ 3). Mas o capital, como elemento de conta, é totalmente alheio ao estabe- lecimento como unidade funcional. A lei esta regulando aqui um patriménio, néo uma unidade com aptidao produtiva. E certo que o E.1.R.L. esta ligado ao desempenho de uma actividade. O art. 2.°/2/a torna obrigatéria a indicac4o do objecto. E natural que do efectivo exercicio resulte a formagao da unidade funcional. Mas pode o E.1.R.L. estar plenamente formado, com indicagao do objecto respectivo, e nao haver ainda estabelecimento, © que demonstra bem a independéncia das duas nogGes. Como pode acontecer o contrario: pode haver um E.1.R.L., e varios estabelecimentos. A lei impde que cada pessoa sé possa ser titular de um E.I.R.L. (art. 1.°/3), mas um E.1.R..L. pode desenvolver a sua actividade através da constituigao de varias uni- dades produtivas, portanto de varios estabelecimentos. E pode o titular do E.1.R.L. alienar um estabelecimento comer- cial neste integrado, uma vez que nada impede que distraia dele elementos — seja o seu unico estabelecimento, seja um dos esta- belecimentos que compreenda. E muito nitido nesse caso que a alie- nagdo nao se faz como E.I.R.L.; portanto, problemas como os relativos ao capital ndo se suscitam aqui. Quer dizer, 0 negécio respeita a uma unidade funcional e nao a um patrimonio. A relaco entre este E.I.R.L. e 0 estabelecimento comercial em sentido técnico é da mesma ordem que a que medeia entre a sociedade comercial e 0 estabelecimento. Também aquela é patri- ménio auténomo e nao estabelecimento; também aquela tem capi- tal, pode ter estabelecimentos, etc. A aproximagdo nao é casual. Sociedade comercial, E.I.R.L. e até outras figuras, como a empresa publica, representam formas juridicas de estruturacdo da empresa. Todas elas suscitam uma problematica andloga, quando confron- tadas com o estabelecimento comercial em sentido técnico. 9. Vé-se assim que melhor teria sido falar simplesmente na limitaco da responsabilidade do comerciante em nome individual, ou em patriménio mercantil, ou separado, ou auténomo, em vez ESTABELECIMENTO COMERCIAL 13 de falar em estabelecimento. E, traducdo por traducdo, sempre vale- ria mais a traduco literal, empresa individual de responsabilidade limitada, pois é a estruturacdo juridica da empresa que se regula. Assim, temos um patriménio, temos um titular do patrimé- nio, chamado titular do estabelecimento; mas temos ainda um pre- tenso estabelecimento, que é realidade que se afasta totalmente da problematica até agora considerada. No que respeita ao estabele- cimento comercial em sentido técnico, em nada contribui para resol- ver os problemas deste, e cria ainda por cima uma perigosa ambi- guidade. Nomeadamente, nao podemos esperar daqui nenhum contri- buto para resolver o problema das vicissitudes do estabelecimento, e do estatuto das dividas neste. As dividas resultantes da activi- dade exercida transmitem-se, como vimos; e é uma verdadeira trans- missdo sem consentimento do credor a que subjaz aos arts. 21.° ¢31.° Mas isso acontece porque o E.1.R.L. € um patrimonio auté- nomo, que se transmite como tal. Nao permite extrair nenhuma ilagdo para o estabelecimento em sentido técnico, que nao é patri- monio auténomo. Por isso nos desinteressaremos do E.1.R.L. daqui por diante. 10. O estabelecimento comercial podera ser considerado objecto de direitos? E frequente uma resposta afirmativa. Foi-se até mais longe. Equiparou-se o estabelecimento 4 empresa, e fala-se na empresa como objecto de direitos ('). Todavia, desta maneira despreza-se uma distingdo que é fun- damental, porque corresponde a realidade e é necessdria para a conceituagdo e a disciplina juridicas. As palavras sao alias expressivas, uma vez que empresa ou empreendimento acorda logo a ideia de uma actividade, enquanto que estabelecimento corresponde ao que esta, € estatico, e melhor serve para designar a estrutura objectiva em que a empresa assenta. (') E mesmo esta a epigrafe do vol. 1 (tinico aparecido) de Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial, de Orlando de Carvalho, Atlantida, 1967. Cfr. também Fer- rer Correia, Sobre a Reforma da Legistacdo Comercial Portuguesa, Rev. Ordem dos Advo- gados, ano 44, 1984 — I, Maio, 5 ¢ segs. 4 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO A propria lei teve de proceder a essa distincao, em varios luga- tes. Curiosamente, o diploma sobre o E.1.R.L. insere no seu pream- bulo uma primeira definigdo oficial de empresa, como a actividade organizada para a producdo ou circulagao de bens e a prestacéo de servicos, com vista ao mercado e a obtencao de um lucro (n.° 10). E impossivel sera formular um novo Direito Comercial, assente na empresa, se esta nocdo nao for situada na sua sede pro- pria e devidamente trabalhada. Deixando porém a empresa, que esta fora do nosso tema, tam- bém pensamos que o estabelecimento comercial pode ser conside- rado um bem, e portanto ser objecto de direitos. Mas com isto ainda nao resolveremos qual a categoria de bem que representa. 11. Sem nos determos numa demonstracao que neste momento ndo podemos tragar diremos que, em nosso entender, 0 estabelecimento comercial é uma universalidade de facto: é uma coisa colectiva, unificada pela aptidéo para o desempenho de uma fungdo produtiva ('). Por isso podem ser praticados actos que recaiam sobre a coisa colectiva, como complexo, sem necessidade de individualizar todas as coisas singulares que possam ser impli- cadas. Mas com isto o problema no fica esgotado. E que, num outro sentido, o estabelecimento comercial ultra- passa o dominio dos bens. Referéncias as situacées juridicas impli- cadas multiplicam-se em textos legais. Assim, a propria definicao do art. 118.°/§ 4.° do Codigo da Propriedade Industrial (7), que engloba expressamente todo 0 activo e passivo, 0 direito a locacao, chave, nome, insignia, clientela; 0 art.603.°/i do Cédigo de Pro- cesso Civil, que também qualifica o estabelecimento como univer- salidade, que compreende tanto 0 activo como 0 passivo; e tantas outras (*), tornam evidente que as situacées juridicas sao também nucleares, no que respeita 4 problematica do estabelecimento comercial. (') Cfr. as nossas Ligdes de Direito Comercial, 1 — Parte Geral, Lisboa, 1985/86, n° 88. @)_ Na redaceio dada pelo Dec.-Lei n.° 27/84, de 18 de Janeiro. €) Como o art. 20.°/§ 3/2 do Cédigo da Sisa e do Imposto sobre Sucessdes ¢ Doagdes. ESTABELECIMENTO COMERCIAL 1s Isto nos mostra que ha um sentido técnico de estabelecimento comercial, entendido agora como complexo de situagées juridicas. Neste sentido, o estabelecimento comercial é uma universalidade de direito. E ponto em que nos nao podemos deter; mas também nao vemos motivo nenhum para fugir a qualificagao. O estabele- cimento comercial, como situacdo juridica, cai inteiramente naquela no¢ao, pois é um complexo de situacdes juridicas (ou uma situa- gdo juridica complexa) juridicamente unificadas para efeitos da sua sujeicdo a vicissitudes comuns ('). 12. Que relacdo ha entre o estabelecimento comercial, como complexo de situacdes juridicas, e o estabelecimento comercial como universalidade de facto, portanto como estrutura factica ade- quada a uma funcado produtiva? HA a seguinte: no nucleo da universalidade de direito tem necessariamente de encontrar-se a situacao juridica relativa a uni- versalidade de facto. Seja de propriedade, de locac4o ou qualquer outra, ela é elemento imprescindivel para caracterizar a situagado complexa como estabelecimento comercial. Se ai nao se enquadrar, pode haver negécios de outra ordem, mas nao um negocio rela- tivo a um estabelecimento comercial. Sendo assim, a funcionalidade prdépria do estabelecimento, como universalidade de facto, comunica-se ja de certa forma ao estabelecimento como universalidade de direito. Essas situagdes juridicas nascem do desempenho da funcao produtiva pelo esta- belecimento, sao situagées ligadas a exploragdo de certa actividade. O estabelecimento constitui o que poderemos chamar uma «uni- dade exploracional» — a sua unificacgdo destina-se antes de mais @ preservar uma exploragao que unitariamente se exerce sobre aquela universalidade de facto. O estabelecimento, como univer- salidade de direito, aproxima-se assim da no¢do de empresa, sem. com esta se confundir. Diriamos que o estabelecimento representa a tradugdo da vida da empresa no plano das situacées juridicas. () Sobre a pertenca da universalidade de direitos a teoria dos direitos, ¢ nao a teoria das coisas, cfr. Dias Marques, Teoria Geral do Direito Civil, 1, Coimbra Editora, 1958, 351. 16 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Muito mais haveria que dizer em fundamento destas afirma- Goes. Mas serd através do exame das vicissitudes do estabelecimento comercial que outros aspectos se revelarao, permitindo-nos dar res- posta a algumas das interrogacdes que colocémos no inicio. 13. Surge um problema prévio, fundamental, que é o da determinagao do 4mbito do estabelecimento, em caso de negécio que a este se refira. Que bens devem ser 0 seu objecto? Que situa- Ges juridicas estarao implicadas? O grande principio, aqui, é 0 da autonomia do titular. Assim como ele pode negociar o estabelecimento como universalidade de facto ou como universalidade do direito, assim ele pode também distrair deste os elementos que entender. Recordemos que é tipico das universalidades a possibilidade da dupla consideracdo dos seus componentes, uti singuli ou uti uni- versi, O titular pode dispor dos elementos separadamente, liqui- dando se quiser 0 conjunto. Ainda que negocie uti universi, pode distrair do estabelecimento os elementos que entender, desde que nao destrua a aptiddo funcional do conjunto. A consideracao uni- versal estende-se ao processo civil, que admite a formulacao de pedidos genéricos quando o objecto mediato da acgao seja uma universalidade, de facto ou de direito (art. 471.°/1/a do Cédigo de Processo Civil). A distraccdo de elementos singulares s6 nao sera possivel quando regra especifica o proiba na situacdo que previr. Pertence ainda a autonomia privada determinar que os neg6- cios recaiem apenas sobre o estabelecimento, como unidade rea- listica que é 0 seu objecto — como universalidade de facto — ou que representem uma vicissitude de um complexo de situagdes juri- dicas — que se refiram ao estabelecimento como universalidade de direito, portanto. Pode-se alienar apenas uma estrutura real, a maquinaria e elementos semelhantes, que podem nao ter entrado sequer em laboracdo, como se pode ceder a exploracao, por exem- plo, tendo em vista um complexo muito mais vasto de situagdes juridicas. Varios preceitos de lei — como os arts. 1889.°/1/c e 1938.°/1/f do Cédigo Civil — englobam mesmo os dois entendi- mentos de estabelecimento, cabendo & autonomia privada deter- minar qual em concreto é relevante. ESTABELECIMENTO COMERCIAL 7 14. O problema permanece todavia para a hipdtese de as par- tes nada terem estabelecido, ou terem-no feito incompletamente. Que situagGes juridicas devemos entender que sao abrangidos pelos negocios sobre o estabelecimento? Todas? Algumas? Ou os crédi- tos, os débitos ou os contratos s6 serio adquiridos por terceiros nos termos gerais da cessdo de créditos, assuncao de débitos ou cessdo do contrato? Aparentemente, uma solucdo negativa seria de repelir, pois com isto se viria afinal a desfazer a unidade do estabelecimento, que é um alto valor econémico-social € que, vimos ja, a lei per- tende justamente manter incdlume nas vicissitudes ('). Mas a dou- trina nacional acaba por a adoptar (’), impressionada provavel- mente com a consideracdo de que doutra maneira o adquirente poderia ter desagradaveis surpresas. No que respeita nomeadamente as dividas, poderia ele amanha ser surpreendido por avultado pas- sivo com que nao contava. Isto impediria que fugissemos aqui das solug6es atomisticas. Tais solucdes revelam-se porém impraticaveis. Ja ndo é so a destruicgdo da unidade do estabelecimento; ainda, se as situagdes juridicas nao acompanham este, chegariamos frequentemente a puras impossibilidades de prestacdo. Que sentido teria dizer que a divida resultante de um contrato de um fornecimento de choco- lates se mantém com 0 alienante, quando este vender a fabrica de chocolate? Que sentido teria dizer que a obrigacdo de adquirir 0 combustivel ou a matéria prima permanece com ele? Na progressdo, vemos que em numerosos casos 0 interesse do adquirente esta justamente na aquisi¢ao daquelas situacdes juri- dicas. Se ele quer adquirir, nado elementos materiais estaticos, mas uma empresa em funcionamento, é-Ihe indispensdvel a manuten- do de todos os vinculos juridicos que asseguram a «unidade explo- racional». A esta luz, pareceria que a solucdo supletiva deveria () Muito embora, como é normal em semelhantes valoragdes no Direito Privado, a lei as no pretenda sobrepor & apreciacdo pelas partes dos seus interesses. @) Cfr. por exemplo Fernando Olavo, A Empresa e o Estabelecimento Comercial, Lisboa, 1963, 37-38. 18 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO ser a da transmisso destes vinculos, e nao a da sua permanéncia na titularidade do alienante. 15. Sempre que a lei refere o estatuto das situacdes juridi- cas singulares perante as vicissitudes que atingem o estabelecimento, fd-lo em sentido favoravel, e nao desfavoravel, a transmissdo para © novo titular. Podendo variar a técnica, dir-se-4 que ha como que uma pre- sungdo da trdnsmissdo dessas situacdes. E muito importante o art. 118.°/§ 3.° do Cédigo da Proprie- dade Industrial, relativo 4 marca: «o trespasse do estabelecimento faz presumir a transmissado da propriedade da marca, salvo esti- pulacdo em contrario». E a técnica da presun¢do que é verbalmente adoptada. No que respeita 4s recompensas, a lei é ainda mais incisiva. Oart. 135.°/§ unico do mesmo Codigo diz-nos que, «salvo decla- racdo expressa em contrario, entender-se-a que a transmissao do estabelecimento envolve a das recompensas». Esta conexéo mais acentuada encontra-se também no art.157.°/§ 1.° do mesmo Cédigo, para o nome e a insignia do estabelecimento: «A transmissdo do estabelecimento abrange a do Tespectivo nome ou insignia, que poderao continuar tal como estéo registados, salvo se o transmitente os reservar para outro estabe- lecimento seu, presente ou futuro». O maximo de aderéncia atinge-se numa situagdo que traca mesmo uma excepcao significativa ao império da autonomia pri- vada. O art. 37.° da Lei do Contrato de Trabalho disp6e que os con- trato de trabalho existentes se mantém, em caso de transmissao do estabelecimento. Mas trata-se efectivamente de uma excep¢ao. Fora disto, vigora o principio da autonomia da vontade. O titular do estabelecimento pode pactuar livremente com o adquirente o Ambito a atribuir ao negécio que celebrarem. Cremos todavia poder dizer que o principio é o que aflora no art. 118.°/§ 3.° do Cédigo da Propriedade Industrial, relativo a marca. Nos outros casos, a lei interveio porque quis agravar a situa- ¢&o comum, impondo uma ligacdo mais forte. Nao havendo essa razdo particular, o principio é o de que se presume que as situa- ESTABELECIMENTO COMERCIAL 19 Ges juridicas englobadas no estabelecimento se transmitem. Isto com o esclarecimento, que adiante faremos, quanto ao Ambito des- tas situag6es. 16. Haverd outros interesses que desempenhem papel rele- vante na solugdo deste problema? Os interesses dos credores pessoais, quer do alienante quer do adquirente, nao nos parecem decisivos. Por um lado, sero habi- tualmente contrastantes, sem haver raz4o para considerar uns ou outros prevalentes. Por outro, no sao homogéneos, pois consoante a natureza das dividas, assim estaro interessados em que elas sub- sistam ou ndo: estardo interessados em principio na transmissdo das dividas de exploracdo, como aquelas que referimos ha pouco. Enfim, da lei nunca resulta a existéncia de uma tutela especifica destes credores na hipétese de transmissao do estabelecimento. Restar-lhes-d, se se sentirem prejudicados, recorrer aos meios gerais de tutela do credor contra actos praticados em seu prejuizo. A con- sideragZo destes sujeitos nao desempenha pois, aqui, fungdo sig- nificativa. Mas ha outro interessado cuja posic¢ao devemos examinar espe- cificamente. Referimo-nos a outra parte nas situagGes juridicas em causa. Qual a posi¢&o do credor do titular do estabelecimento? E qual a posic&éo do devedor? Pode-lhes ser imposta a substituicéo do sujeito da relagdo juridica? Ou tudo se passara segundo os princi- pios gerais reguladores destas vicissitudes? Aqui, encontramos textos legais que devem ser examinados com cuidado. Oart. 1118.° do Codigo Civil prevé o trespasse do estabeleci- mento comercial. Permite «a transmissdo por acto entre vivos da posigao do arrendatario, sem dependéncia de autorizacao do senho- rio, em caso de trespasse do estabelecimento comercial ou indus- trial». Temos portanto que ao senhorio, outra parte numa situacao juridica englobada no estabelecimento comercial, pode ser imposta a substituicado do locataro, em caso de negécio sobre o estabeleci- mento. 20 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Esta regra representard uma excepcdo na ordem juridica por- tuguesa? 17. N&o o pensamos. Pelo menos dela devemos aproximar outras previsdes, que ndo tém sido consideradas. Referimo-nos aos arts. 100.° e 145.° do Cédigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (Dec.-Lei n.° 63/85, de 14 de Marco, alterado pela Lei n.° 45/85, de 17 de Setembro). Nos termos do art. 100.°/1, «o editor nao pode, sem consen- timento do autor, transferir para terceiros, a titulo gratuito ou one- Toso, direitos emergentes do contrato de edicdo, salvo se a trans- Seréncia resultar de trespasse do seu estabelecimento». Eoart.145.°, relativo 4 produgdo fonografica e videografica, dispde que «aquele com quem tiver sido contratada a fixacéo nao pode, salvo no caso de trespasse do estabelecimento, nomeadamente por cisdo, transferir para terceiro os direitos emergentes do con- trato de autorizacdo sem consentimento dos autores». Portanto, temos uma disciplina generalizavel. Na base, esta a situac&o geral da inadmissibilidade de transferéncia da posicao contratual para terceiros, sem autorizagao do autor. Mas em caso de trespasse a regra é a inversa: a posicao contratual, que se inte- gra no acervo do estabelecimento, transmite-se automaticamente para o adquirente deste. Transmitem-se os direitos como se trans- mitem as obrigacdes, independentemente de qualquer consenti- mento do autor. E importante que isto se passe em matéria de Direito de Autor. O autor é uma entidade excepcionalmente protegida, na ordem juri- dica portuguesa. Nao obstante, a substituicdo da outra parte no contrato é-lhe imposta: outra pessoa passa a responder pelo cum- primento das obrigagées, e a opor-Ihe o exercicio dos direitos. Se até o autor fica, perante as vicissitudes do estabelecimento, nesta situag&o de sujeicdo, por maioria de raz4o ficam quaisquer outras pessoas que entrem em relacdo juridica com o titular do estabele- cimento. Vemos assim que, da propria lei, retiramos argumentos muito sdlidos no sentido do cardcter automético da transmissio das situa- gées juridicas, no siléncio das partes. Nao é s6 o estabelecimento que é sempre previsto em globo, nao é sé a finalidade da lei a pre- ESTABELECIMENTO COMERCIAL a servacdo daquela unidade; pode ainda formular-se um principio no sentido da imposic¢ao da transferéncia, a outra parte, das rela- ges que existiam com o titular do estabelecimento. 18. Mas contra isto poderd invocar-se sempre o desconhe- cimento possivel do adquirente, em relacdo ao passivo do estabe- lecimento. E pode invocar-se mesmo uma alteragdo legislativa recente, que provaria que as dividas se nao transmitem, em caso de alienac&o do estabelecimento. O Dec.-Lei n.° 177/86, de 2 de Julho, acrescentou ao art. 1247.° do Cédigo de Processo Civil um n.° 3, do teor seguinte: «No caso de 0 activo do falido compreender algum estabelecimento comercial, a venda incidird, nessa parte, sobre a totalidade do esta- belecimento, a nao ser que nao haja proposta satisfatéria ou se reconhe¢a vantagem na venda separada dos bens que o integram». Deste dispositivo pode na verdade extrair-se a conclusdo de que nem todo o passivo adere ao estabelecimento. Sendo o esta- belecimento frequentemente o unico elemento patrimonial penho- ravel do comerciante falido, teriamos o absurdo, a admitir que a alienac&o englobaria todo o passivo resultante da actividade do estabelecimento, de a lei mandar alienar globalmente uma unidade com mais passivo que activo, e inviabilizar a liquidacdo daquelas dividas no préprio processo de faléncia. Mas isso é contraditério com 0 que o Codigo estatui, ao disciplinar a alienacdéo em conse- quéncia da verificagéo do passivo — normalmente, justamente 0 passivo resultante da actividade do estabelecimento. Logo, podemos concluir que este nao é seguramente integrado pela tota- lidade do passivo. Nao havera maneira de combinar estes dois aspectos, fugindo ao dilema de, ou admitir a transmissao auto- matica de todas as situagdes juridicas em que interveio o titular do estabelecimento, ou impor em todos os casos o consentimento da outra parte, ou mais genericamente, a consideragdo atomistica das situacdes? Supomos que ha. Para tanto haverd que passar em revista todas as referéncias legais as situagdes juridicas que integram o estabelecimento. Nao podemos deixar de ficar impressionados com uma cons- tante. Todas estas situagdes juridicas sio funcionais — mais preci- 2 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO samente, exploracionais, na terminologia acima fixada. Esto liga- das a actividade do estabelecimento, 4 unidade de exploracdo que este representa. Assim acontece com 0 contrato de trabalho , a firma (), a marca (), a relacdo locaticia (*), os contratos de edi- Gio e de fixac4o fonografica e videografica (°), e assim por diante. Até o art.118.°/§ 4.° do Cédigo da Propriedade Industrial, nao obstante a amplitude da sua referéncia a todo o activo e passivo, n4o deixa de ilustrar este apenas com elementos funcionais - «direito a locacdo, chave, nome, insignia, clientela e outros valores». E este trecho ndo pode deixar de influenciar o entendimento do activo edo passivo referido no art. 603.°/i do Cédigo de Processo Civil. 19. Narealidade, tendo a lei em vista a unidade de explora- ¢40 — o art. 1085.° do Cédigo Civil fala em transferir a explora- cdo de um estabelecimento — sao estas, e apenas estas, as situa- g6es constitutivas da unidade de exploragéo que o estabelecimento-universalidade de direito exprime. So estas situa- des so funcionais, so a expresso e o suporte juridico da explo- rag&o que se realiza. Delas se distinguem as situacées cujo signifi- cado é meramente patrimonial. Ainda que geneticamente ligadas ao estabelecimento, estéo funcionalmente desligadas dele. Assim acontece com todas as dividas de prego, por exemplo. Sejam a favor ou contra 0 estabelecimento, resultem da aquisicao de bens neces- sdrios a actividade produtiva ou da venda de bens finais, tem muita importancia na apreciacdo da situacdo patrimonial; no ponto de vista funcional, néo tem nenhuma. Um estabelecimento em pro- cesso de faléncia pode manter toda a aptiddo que tinha anterior- mente, e isto, alids, impés-se ao legislador ©. () Art. 37.9 da Lei de Contrato de Trabalho. @) Art. 24.° do Cédigo Comercial. @)_ Art, 119.° do Cédigo da Propriedade Industrial. J4 referimos atrés, na mesma situacdo, o nome ¢ a insignia, (*) Art. 1118.° do Cédigo Civil. No n.° 2/b exclui-se o trespasse quando a tansmis- ‘so néo seja acompanhada da transferéncia, em conjunto, das instalagdes, utensilios, mer- cadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento. @) Arts, 100.° e 145,° do Cédigo Direito de Autor ¢ Direitos Conexos. ©) Cir. o Dec.-Lei n.° 177/86, de 2 de Julho, art. 50.°, que aditou um n.° 3 a0 art. 1247,° do Cédigo de Proceso Civil, impondo a venda do estabelecimento em globo. ESTABELECIMENTO COMERCIAL 23 As situagdes funcionais sAo por natureza aderentes ao esta- belecimento. E absurdo presumir que se mantém na titularidade do alienante uma divida cuja satisfacao depende, por exemplo, da laboracdo do estabelecimento; tanto como o seria condicionar a transmissao do estabelecimento a extingdo da divida. Igualmente inadmissivel seria s6 autorizar a transmissdo do estabelecimento se nao subsistisse nenhuma divida. Como estas representam o dia a dia do estabelecimento, isso equivaleria a determinar que nunca se poderia operar a transmissao global. Pelo contrario: se o adqui- rente quer um estabelecimento em funcionamento, o seu interesse é o de que se mantenham; como o interesse da outra parte sera normalmente o de que subsistam em relacéo ao adquirente. 20. Pode porém acontecer que 0 outro contraente sofra pre- juizos com a transmisséo. Nao haverd nenhuma defesa, para ele, hesses casos? A solucao dada a este problema pelo Cédigo Civil italiano interessa-nos muito particularmente como termo de compara¢ao. E isto porque o art. 2558.° deste consagra a solucdo geral para a qual nos orientamos: «Se nao for pactuado diversamente, o adqui- rente do estabelecimeno sucede (subentra) nos contratos estipula- dos para o exercicio do estabelecimento que nao tenham cardcter pessoal». Portanto, qualquer que seja a técnica adoptada, fica expresso o principio da unidade do estabelecimento como com- plexo de situacdes juridicas exploracionais. Qual é entdo a defesa dada a outra parte do contrato? Dispde- -se em continua¢do no mesmo artigo: «O outro (ferzo) contraente pode todavia eximir-se (recedere) do contrato, dento de trés meses a partir da noticia da transferéncia, se houver justa causa, salva neste caso a responsabilidade do alienante». Esta a solucdo italiana. Mas aqui nao a podemos seguir direc- tamente, porque ndo resulta dos principios gerais da ordem juri- dica portuguesa. Temos de encontrar nesta os indicios que nos per- mitam determinar a solugao que lhe corresponde. Esses indicios encontram-se ainda no Cédigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Oart. 100.°/2, apds estabelecer a imposicao ao autor da trans- missao das situagGes juridicas, como vimos, dispde que, se o ua JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO trespasse causar prejuizos morais ao autor, este tem 0 direito de resolver o contrato no prazo de seis meses a contar do conheci- mento do mesmo trespasse, assistindo ao editor direito a indem- nizac&o por perdas e danos. Esta disposic¢do é aplicavel a fixagao fonografica e videografica, nio obstante o siléncio do art. 145.°, dada a identidade fundamental de situacdes. Poderé a previsdo ser generalizada a todos os casos de impo- sigdo forcada de novo sujeito, na relacdo, a outra parte? Parece- ria que sim, pois a resolucdo do contrato é um meio de defesa razoa- vel quando essa substituic4o nao autorizada trouxer prejuizos a quem contratou com o alienante. Mas ha um elemento perturba- dor: 0 dispositivo em causa sé menciona prejuizos morais. Mesmo assim, pensamos que daqui se retira o regime aplica- vel. A previsdo especifica de prejuizos morais resulta, a nosso ver, do tipo de consequéncia previsto no final: «assistindo ao editor direito a indemnizacao de perdas e danos». E este tipo de conse- quéncia que sé se verifica em caso de resolucdo fundada em pre- juizos morais; nao ha ja se a resolugdo se fundar em prejuizos mate- riais, pois o autor ndo é obrigado a sofré-los, como veremos de seguida. Porque agrava a lei assim a situagado do autor que quer evitar prejuizos morais? Por influéncia do regime que o préprio Cédigo estabelece para o direito de retirada, no art. 62.°. Ai se admite que o autor possa retirar a todo tempo da circulacdo obra divul- gada ou publicada, e fazer cessar a respectiva utilizaco; mas impGe- -se em contrapartida a indemnizacao dos prejuizos que a retirada causar. No art. 100.° considerou-se da mesma forma que a cessa- gdo do direito de utilizagdo, fundando-se em consideracdes morais, devia dar ao utente direito de indemnizacao. 21. Certo ou errado, este raciocinio aplica-se apenas a reso- lugdo do contrato com fundamento em danos morais. Se houver danos patrimoniais, j4 o autor deve poder resolver o contrato sem contrapartida em qualquer indemnizacéo. Com efeito, nado se pode admitir que a outra parte agrave a situacdo do autor, causando- -lhe prejuizos,derivados da transferéncia do direito de utilizacdo. O autor nao tem de sofrer prejuizos, e por isso pode resolver o contrato. Mas sendo assim, nao tem por sua vez de indemnizar ESTABELECIMENTO COMERCIAL 25 Os prejuizos que a resolugdo venha a causar ao editor, pois se 0 tivesse, o dever de indenmizar anularia a vantagem que o autor justamente procurara, pondo termo ao contrato para fugir aos pre- juizos resultantes da transferéncia. Se o editor tem prejuizos com a resolucdo s6 a ele cabe suporta-los, por ter sido por sua inicia- tiva que foi agravada a condicao do autor. Daqui resulta que pensamos poder formular a regra basica da ordem juridica portuguesa. As vicissitudes que recaiam sobre © estabelecimento podem ser opostas aos que tém com 0 respec- tivo titular vinculos exploracionais; mas se essas vicissitudes cau- sarem prejuizo a outra parte, esta poderd resolver o contrato no prazo de seis meses, a contar do conhecimento das vicissitudes. 22. Osistema ndo fica completo se nao dissermos uma pala- vra sobre a vinculacdo do disponente do estabelecimento comercial. Continuard ele onerado pelas dividas do estabelecimento? Ou fica liberado, uma vez que estas se integram na universalidade? Mesmo admitindo a distingdo das dividas exploracionais e das comuns, ainda se poderd oscilar entre as duas solugdes extremas. Mas ambas parecem oferecer fragilidades. Nao se compreende que o alienante do estabelecimento continui vinculado por dividas explo- racionais, quando a causa destas esta no proprio estabelecimento, ¢ em geral sé mediante aquela empresa poderio ser satisfeitas; mas compreende-se mal que 0 alienante encontre na alienacdo do esta- belecimento um expediente facil para liberac&o das responsabili- dades em que incorreu. Propée-se um caminho intermédio. A natureza das dividas — justamente por serem exploracionais — impée que se transmi- tam com o estabelecimento, deixando de agravar o antigo titular. Mas ndo ha motivo para a responsabilidade se extinguir. Para o alienante cessou o débito, mas nao a responsabilidade. Continua responsavel por tudo aquilo a que se vinculou na gest&o do esta- belecimento. Isto resulta da teleologia prépria do estabelecimento comercial, que traz por natureza desvio aos principios gerais. Pode hoje basear-se argumento em contrario no art.11.°/2 do Dec.-Lei n.° 248/86, de 25 de Agosto, que cria o estabeleci- mento individual de responsabilidade limitada. Deste resulta,como vimos, a responsabilidade do alienante, se nado houver observado 6 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO o principio da separac4o patrimonial. Consequentemente, se esse principio foi observado, nenhuma responsabilidade cabera ao alie- nante, Pensamos que de facto assim é; mas é assim justamente por oE.1L.R.L. ser um patriménio auténomo. Transmitindo-o, o ante- tior titular perde em principio todo o contacto com aquela massa de créditos e de débitos. Mas no estabelecimento comercial em sen- tido técnico nao sucede o mesmo. O alienante separa uma massa de situagdes do seu patriménio, sujeitando-as a uma vicissitude comum, mas havia nexos que porventura ligariam essas situacdes ao seu restante patrimonio. Por isso, a responsabilidade por essas situacdes ndo se quebra. Cessa o débito, pela propria natureza exploracional do estabelecimento; mas nao ha nenhum principio geral que leve a pér em causa a responsabilidade do alienante. 23. O que ha que excluir portanto, por contraposicdo as situacGes juridicas exploracionais? As situacdes juridicas consoli- dadas, aquelas que tém significado meramente patrimonial. Sao dividas que brotam da vida da empresa mas nao tém nenhum sig- nificado para a exploracdo que com esta se pretende realizar. Valem como capital, como patriménio, nao como a estrutura juridica em que a empresa assenta, no sentido nobre desta palavra. Surgirao seguramente figuras de qualificagdo mais duvidosa, como os contratos de concessdo de crédito para investimento, mesmo que nao tenham contrapartida em garantias sobre bens inte- grantes do estabelecimento. Mas o niicleo das situagdes é perfei- tamente determinavel, por representar uma emanacdo da nocdo fundamental de empresa. O que a esta se referir é aglutinado e sujeito a regime especifico. O que Ihe for estranho cai no regime comum. Sé se transmite ao adquirente do estabelecimento se as partes o pactuarem, nos termos gerais, nao havendo nenhuma pre- sung¢ao de que assim aconteca.

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