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2017-48 . 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Nestes casos, a propria nogdo de cultura, e por tabela a de literatura, & forcada a repensar seus parimetros e até mesmo, — o que mais interessante -, sua fungdo social. E neste sentido que reafirmo que as caracteristicas ¢ as estratégias das expressdes artisticas vindas das periferias vém_ surpreendendo como a grande novidade deste inicio de século com o desejo de responder ao acirramento da intolerdncia racial e ds taxas crescentes de desemprego provenientes dos quadros econdmicos e culturais globalizados. A Titeratura também ndo ficou imune a estes novos inputs. E da tradigdo da série literéria brasileira, uma atengo significativa aos temas da miséria, da fome, das desigualdades sociais e, ultimamente, da violéncia urbana. E, como jé mencionei anteriormente, ¢ da nossa tradi¢do cultural, o engajamento politico ¢ 0 compromisso social do intelectual, neste caso, do escritor. Nesse sentido, um detalhe interessante no conjunto de nossa produgdo literdria é 0 fato de que, a0 ontario de nossos irmaos latino-americanos, nunca tivemos o testemonio como género literario. Especialmente depois dos anos 60, o testemonio tommou-se importante por conseguir dar a voz, ainda que de forma indireta, aos segmentos sociais cujo acesso ao livro e & literatura foi negado. Um dos testemonios mais famosos é 0 conhecidissimo caso da narrativa da india guatemalteca Rigoberta Menchti que, ao lado de sua familia, desde muito cedo, engajou-se no movimento camponés em defesa dos direitos humanos e da justiga social. Nessa luta, Rigoberta assistiu seu pai, mi irmao serem torturados e violentamente assassinados. Mesmo s6, Rigoberta prosseguiu na sua militincia chegando liderar, em 1981, um dos movimentos mais radicais de seu pais, a Frente Popular. Dez anos mais tarde em 1992, Rigoberta ganharia 0 Prémio Nobel da Paz. Fm 1983, havia contado sua histdria para Elizabeth Debray, que anota meticulosa e fielmente seu relato que vai resultar no primeiro registro latino-americano de testemonio, 0 livro J, Rigoberta Menchti. Desde entao, o género se espalha pela literatura politica latinoamericana mas no Brasil, temos apenas um caso de testemonio, 0 livro Cicera sobre a experiéncia trégica de uma empregada doméstica escrito em colaboragao com Danda Prado. A austncia desta forma colaborativa de narragao entre nés talvez. expresse a légica da verticalidade da estrutura das, nossas relagdes de poder e, portanto, a facilidade de agenciamentos e composigdes patronais entre classes sociais no Brasil. O fato & que 0 escritor sempre foi o sujeito do discurso sobre o pobre e o excluido da sociedade brasileira. (Me parece que neste sentido, o caso da museografia ndo esté muito longe da literatura). ipihwwrhelisebuarquedeallanda.com briteratura-mar gina 28 2017-548 Holesa Buaque de Hollands» Literatura Marga Com a subida da violéncia em 1987/88, emblematicamente datada pelos arrastdes no Arpoador, o interesse da classe media sobre o assunto comega a se manifestar de maneira mais clara e recorrente Fm 1993, 0 tema da violencia atinge seu dpice, s6 que agora a mobilizagao da opiniao publica é produzida no sentido inverso, o da violéncia policial. F deste ano, em julho, o massacre da Candeléria, no qual 8 criangas entre as 50 que dormiam nas escadarias da Igreja foram mortas a tiros por policiais, seguido, em agosto, ou seja, um més depois, pelo massacre de Vigério Geral responsavel pela morte de 21 inocentes também pela policia. Especialmente essa segunda chacina vai marcar época na nossa cultural social e politica, Intelectuais, artistas ¢ representantes da sociedade civil, unem-se e comecam a articular ages concretas em tomno de politicas em defesa da cidadania e dos direitos humanos. E desse momento a criago de organizagdes como o Viva Rio e a realizagao de marchas pela paz e contra a violéncia, Néo vou me deter nisso aqui porque nao é 0 caso, mas essas agdes e, sobretudo, s articulagdes entre agentes da classe média e as comunidades das favelas e conjuntos habitacionais marcam 0 inicio de um tipo de producdo cultural até hoje inéditas no Brasil. Sdo produgdes destas comunidades que interpelam a cultura ‘main stream ¢ tomam-se sucessos de piblico e de critica. Do ponto de vista da historia literéria, dois livros escritos por autores de classe média inauguram uma produgdo que vai se desenvolver de forma auténoma e com grande orga. So eles Zuenir Ventura com Cidade Partida, de 1994, que relata de forma originalissima, entre o documental ¢ o literdrio, as agdes pos-massacre de Vigdrio Geral e Estagdo Carandiru de Dréuzio Varela, publicado em 1999, sobre as condigdes, sub-humanas de vida no maior presidio da América Latina. As caracteristicas propriamente narrativas desses dois livtos so bastante interessantes sobretudo sintomaéticas. Cidade Partida traz um narrador cuja posigao nao pode ser confundida com o que seria um livro de denuncia social, no qual 0 autor se aproxima de seu objeto e através dele traz & tona uma realidade da qual nio se teria noticia sendo pela posigdo privilegiada deste mesmo autor, Também nao me parece refletir a objetividade necessaria e caracteristica do relato Jjomalistico, Mesmo ndo sendo um auténtico festemonio, 0 relato de Zuenir ao longo de toda sua narrativa, mantém uma postura ambigua: opinativa e afetiva — no sentido da nogao de valor-afeto de Anténio Negri—e ao mesmo tempo franqueia um espago de canal aberto para a fala do outro. Zuenir empresta a sua voz a comunidade que examina, até mesmo 20 traficante Flavio Negio, um fato inédito nas narrativas jornalisticas ou literdrias. Pela primeira vez, 0 asfalto ouve as razes, os gostos e a dor de uma ampla e diversificada gama de habitantes da favela, os “terriveis agentes da violéncia”, iniciando um processo de aproximagao entre a favela ¢ o asfalto, sem recorrer a falsas coloragbes herdicas ou vitimizadas. Em 1999, Dréuzio Varela vai percorrer um caminho parecido com Carandiru, Aqui a escuta médica, de tragos confessionais, que implicam no pressuposto da confianga entre quem relata ¢ seu ouvinte, reproduz também de forma no diretamente opinativa pensamento e 0 cotidiano do presos em carceragem. Essas so duas obras que, de certa forma, marcam um lugar de relativa abertura da voz da periferia para o mercado das grandes editoras. Ambas tiveram ‘uma ampla recepgao de piblico e consagraram-se como uma forte tendéncia de mercado, intretanto, dois anos antes de Carandiru, em 1997, nosso Mundo das Letras ja havia sido surpreendido pela publicago de uma obra de ficgdo que, em pouco tempo, se tomaria um dos maiores hes! sellers brasileiros dos tltimos tempos. Falo de Cidade de Deus, de Paulo Lins, hoje com 18 edigdes ¢ traduzido em inameros paises. Paulo Lins nos surpreendeu com uma varidvel totalmente imprevista nos nossos circulos literdrios: 0 pobre tem voz € pode até escrever; e mais ainda: escrever um livro de sucesso de piiblico e de critica, Vou comegar pelo comego. Paulo morador do conjunto habitacional Cidade de Deus, em Jacarepagué, zona oeste do Rio de Janeiro e local conhecidamente violento da cidade, formou-se na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou como professor de ensino médio, época na qual, comegou a escrever seus primeiros poemas. Em certo momento, comega a trabalhar como assistente de pesquisa, fazendo etnografias sobre a comunidade de Cidade de Deus para a Professora Alba Zaluar, que realizava um trabalho sobre a violéncia urbana. Como Paulo mostrava grande dificuldade em organizar a redagdo de seus relatérios, Alba Zaluar sugere que ele faga uma redagao literdia de seus resultados de pesquisa, E assim foi feito. Certa ocasiao, Alba mostra os textos de Paulo Lins para o Professor Roberto Schwarz que, imediatamente, identifica naqueles relatérios, seu potencial literdrio. Sugere entdo que Paulo faga um romance com aquele material e o apresenta a Cia das Letras, uma das grandes ¢ mais prestigiosas editoras nacionais. Paulo se entusiasma com o retomo de Schwarz, mas percebe imediatamente a importincia inaugural desta empreitada € entra, literalmente, em panico, Foi com enorme esforgo ¢ com a ajuda de Crime ¢ Castigo, seu modelo maior, que conseguiu termind-lo, ipihwwrhelisebuarquedeallanda.com briteratura-mar gina a6 2017-548 Holesa Buaque de Hollands» Literatura Marga Pela primeira vez, ¢ a partir da convivéncia estreita com as comunidades de periferia, incluindo-se ai bandidos & traficantes, temos uma detalhada anatomia do cotidiano da miséria e do crime no Brasil, agora com as cores da experiéncia vivida, J4 nao se trata mais da favela idealizada e separada do asfalto, mas da violéncia aberta e do inconformismo existentes nos novos conjuntos habitacionais, ou ncofavelas, como as identifica o autor. (A senzala ¢ 0 quilombo). Com o sucesso definitive de Cidade de Deus, ficou claro que alguma coisa irreversivel havia afetado a criagdo e 0 mercado literario, Talvez.até um novo cénone (tradigao) estivesse em processo de gestagio. Em 2000, surge um novo livro de igual importdncia ainda que de repercussao distinta da de Cidade de Deus. Trata-se de Capito Pecado de Ferréz (nome de guerra de Reginaldo Ferreira da Silva). Capdo Pecado traz um tio refinado quanto impactante retrato de Capo Redondo, um dos bairros de maior indice de violéncia, trifico de drogas e criminalidade de Sao Paulo, onde Ferréz.cresceu ¢ mora até hoje. Seus mais de 200.000 moradores nao contam com redes de esgoto, nem. hospitais, nem assisténcia de nenhuma espécie. Capao registra a marca sangrenta de 86.39 assassinatos a cada grupo de 100.00 habitantes, muito mais que a média nacional que jé & estratosférica para os padrdes europeus. Este livro mostra uma integracdo bem maior com o universo hip hop do que seu antecessor, Cidade de Deus. Mesmo que nao contasse com uma estrutura ritmica e musical organizada como a que encontram os rappers, Ferréz tomou como referéncia, as letras dos raps, com seu misto de crénica do gheto e convocago dos manos para a ado, Pelo menos, um ponto de partida diverso do enone letrado. No livro, temos a presenga de Mano Brown (lider do grupo de rap Racionais MCs, também residente de Capo Redondo) que comanda as epigrafes de cada capitulo do livro. Os dois juntos tornaram-se, dai em diante, grandes lideres comunitarios e fortes referencias para jovens sem perspectiva. O segundo livro de Ferréz, Manual Pratico do Odio, mais agressivo do que o primeiro, descreve o impasse de uma gerago que “ndo mede conseqiiéncias para buscar 0 que nao teve” (sic) Uma geragdo marcada pelas seqiielas deixadas pelo Estado e pela intensidade do impacto da midia. © que surpreende nos livros de Ferréz &, sobretudo, a inversio do lugar da violéncia, Em ver. de ser tema da narrativa, a violéncia ¢ apenas entorno, a condic¢do de vida de personagens comuns que, como nés, tém emogdes, prezam a familia, amam, tém citimes, fazem sexo € sonham com um futuro mais trangiilo. Isso é um choque para o leitor que nao vive nos cendiios do crime e termina promovendo uma forma de identificagao ou, pelo menos, entendimento, do personage agressor, ainda nao conhecida na nossa literatura Em Ferréz, torna-se mais clara uma caracteristica jé presente em Cidade de Deus. O autor narrativamente comprometido com 0 local de sua fala que se toma porosa e, portanto, excessivamente receptiva da diego local. Como se o autor dividisse a autoria da obra com o territério da ago. Muitas vezes temos a sensagdo de que Capo Redondo fala através do autor de seu relato. £ um caso bem novo e interessante de autoria que por se querer hiperlocalizada traz em sua construgao mesma uma das estratégias mais usadas pelas culturas locais em tempos de globalizagao. O verbo glocalize {i entrou para o léxico do mercado cultural destes iltimos anos. E importante ainda observar que 0 eu-coletivo sempre foi uma alternativa eficaz de empoderamento das diegSes literérias das minorias de género e elnia, Mas no penso ser te 0 caso de Paulo Lins ou de Ferréz. Mesmo que tragam consigo esta tradico narrativa, no caso dos dois autores ramente a opedo & mais para a marcagdo do local como espago territorial do que como vozes coletivas como € 0 caso da literatura de mulheres ou negros. Com o sucesso, Ferréz recebeu convite de bolsa para estudar literatura numa universidade americana, Nao vai. Esta recusa se estende para a oferta de um produtor norte-americano que tenta comprar os direitos de Capdo Pecado para 0 cinema, Ferréz, em entrevista para os jomnais, esclarece: “Escrevo para ser lido pela minha comunidade. Meu lugar & aqui. Minha guerra é essa” Comprometido com sua comunidade, Ferréz cria, ainda com Mano Brown, o movimento | DASUL, uma usina cultural que, entre outras atividades, tem um selo musical proprio e uma grife de moda chamada Irmandade (um conceito fundamental da cultura hip hop) que hoje jé ocupa um galpdo de 200 m, e outras duas oficinas apenas de costureiras, produzindo uma média de 300 pegas por dia. A grife, que se caracteriza por ilustragdes que denunciam o sistema, tem uma loja no centro de SP, sua produgo € distribuida para sete estados brasileiros, além de deter os direitos de distribuigo das marcas de 6 grupos de rap. A grife Irmandade confecciona também cartilhas mensais para um programa contra drogas e pretende abrir uma clinica para tratamento de dependentes. No mesmo embalo, Ferréz organizou dois rmimetos especiais da Revista Caros Amigos chamados “Literatura Marginal” com que retnem e divulgam escritores da petiferia, abrindo espago pata nos talentos locais. ipihwwrhelisebuarquedeallanda.com briteratura-mar gina 48 2017-548 Holesa Buaque de Hollands» Literatura Marga Por marginal, Ferréz entende a busca de um lugar na série literéria para aqueles que vem da margem. E explica melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que jé roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que nao tém espago, Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, nio quer dizer que a vamos sossegar. Temos ¢ que organizar 0 nosso édio, direcioné-lo para quem esté nos prejudicando. Tudo 0 que 0 sistema ndo da, temos que tomar”. Participando, em 2004, de uma mesa no Seminério Cultura e Desenvolvimento, o Ferréz, indignado, disse: ainda que eu escreva prioritariamente para minha comunidade, nao queto minha literatura no gheto, Quero entrar para 0 enone, para a histéria da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporaneos. F nao acho também que minha comunidade deve se limitar 4 minha literatura, ela tem o direto de ter acesso ao Flaubert. Esta afirmagao de Ferréz traz consigo a chave do principal subtexto dos novos projetos culturais vindos da periferia: ou seja a grande mudanga se faz na realidade através de uma concreta democratizagao de expectativas. Pela primeira vez na Historia, em alto ¢ bom som, o pobre afirma seu desejo e direito ao consumo dos mesmos bens materiais e simbélicos, historicamente usuftuidos apenas pelas classes médias e altas. Ele quer o téniis Nike de tiltima geragdo tecnolégica, assim como quer o acesso & informagao especiatizada e & alta cultura, Para essa “democratizagao de expectativas” talvez nés, intelectuais e artistas de classe média, ainda nao estejamos preparados. Na nossa fantasia perversa aceitamos que o pobre sonhe com um Nike, mas ndo com Flaubert. Um Giltimo livro que vou comentar rapidamente & 0 Cabega de Porco que foi langado esse ano ¢ que tem a autoria de Luiz Eduardo Soares, Celso Athayde ¢ MV Bill. Um sociélogo, uma lideranga comunitéria, presidente da CUFA (Central Unica de Favelas) e um rapper politicamente engajado. Bill e Celso Athayde estavam ja ha algum tempo fazendo uma pesquisa, com gravagdes em video, sobre as causas da violéncia e adesdo ao trafico de drogas entre jovens das favelas e uniram-se a Luiz Eduardo Soares que, além de socidlogo, ja tinha sido Secretirio de Seguranga no governo Garotinho ¢ Secretério Geral de Seguranga Péblica no governo Lula, portanto com experiéncia ¢ informagdes bastante concretas na drea da ctiminalidade. Os trés propuseram entdo escrever um livro a3 méos. I verdade que as partes escritas por cada um sdo assinadas nao produzindo, portanto, um tipo de autoria coletiva mais colaborativa. O livro nao desafina na passagem de um autor para outro que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro, Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicgao e sua competéncia especificas em pé de igualdade, onde a autoria é menos importante do que o conjunto polifénico do trabalho, que ¢ precisamente onde esta obra tira sua maior forga e valor. A leitura de Cabeca de Porco — cujo sentido na favela & o de uma situago da qual vocé percebe “sem safda’” - & uma leitura de um sé folego. Sem piedade, ¢ levado por ‘um texto profundamente afetivo, o leitor & mergulhado num universo de violencia e miséria cuja experiéncia emocional € totalmente desconhecida das classes média e alta. E interessante lembrar da reagdo da platéia essencialmente elitizada da tiltima FLIP, & apresentagdo deste livro com as presengas de Luiz, Fduardo e MVBill. Palmas ininterruptas, assobios, gemidos. Que reagdo teria sido essa? De uma “revelagdo quase religiosa”? De encantamento com pop stars? Ou o qui Neste caso em vez querer escolher uma dessas respostas & minha pergunta, prefiro ficar com o grau de intensidade ¢ no ortodoxia dessa manifestagdo ¢ de sua recepgdo pelo pablico. Escolhi comentar esses trés livros muito diferentes entre si para pensar um pouco o papel do intelectual contemporaneo. Antes disso, me permito um exemplo pessoal, bastante recente, e que demonstra minha falta de jogo de cintura pata lidar com esses fendmenos: Ha dois meses atris, coordenei pelo meu Programa na UFRJ, uma exposigdo no Centro Cultural dos Correios chamada Estética da Periferia . Essa exposigao foi montada pelo Gringo Cardia que tem dois projetos exemplares: O Kabum ¢ a Fabrica de espetaculos que so laboratérios super equipados com tecnologia de ponta © que forma marceneiros de teatro, iluminadores, cendgrafos, figurinistas, videomakers, fotdgrafos designers. O objetivo desses laboratérios é a formagao e a qualificago profissional de adolescentes e jovens das comunidades de baixa renda. A idéia da exposigao foi a de que esses jovens escolheriam as pecas da exposi¢ao, portanto tinham um poder curatorial, e serviriam como assistentes do Gringo na idealizagao e produgao da montagem cenogratfica do evento, Bem, mio sei se alguém aqui viu a exposi¢ao, mas confesso que eu, uma tipica intelectual dos anos 60, com todos os émus que representa, fiquei altamente incomodada e surpresa com o resultado. O que eu vi foi uma exposigdo que passava longe do que eu considero cultura ou a estética da periferia. Era tudo muito colorido, meio fashion, claramente estetizado. Para uma contempordnea do Cinema Novo isso soou desconfortivel. Mas, todas as sextas feiras, fizemos uma visita no diria guiada, mas meio em forma de painel de discusses com diferentes segmentos da periferia, Surpresa. Todos se reconheciam e aplaudiam o resultado alegando que esta era a primeira mostra na qual se respeitava a auto estima da periferia. Que trazia o lado positivo desta cultura e espelhava o que ha de melhor nas favelas e nos conjuntos habitacionais. Ouvindo isso, tive certeza de que estamos vivendo um momento bastante especial de acesso real ¢ inédito aos sentimentos, ethos ¢ demandas das classes de alto nivel de pobreza. Percebi também como é precério nosso poder de tradugao cultural entre classes e etnias, ipihwwrhelisebuarquedeallanda.com briteratura-mar gina 56 2017-48 Holoisa Buarque de Hollands » Literatura Marga Alguns pontos merecem serem revisitados para um aprofundamento de questdes: Em primeirissimo lugar a questio dos novos papéis do intermedidrio. Acho que nesse momento estamos aprendendo que em vez.de interpretar demandas traduzir diretamente culturas devemos exercer 0 papel de negociadores que possam relativizar nossos espagos de fala, — até hoje um patriménio digamos tombado pela tradigao ¢ pela academia -, para outras vozes que comegam a surgir com uma saudivel agressividade e alto poder de interpelagdo. Outro ponto seria o de procurar repensar, com alguma radicalidade, as distingdes to estabelecidas entre o que seria uma cultura “alta” € uma cultura “baixa” seja ela uma cultura de massa ou popular. Mais um ponto seria o de ficarmos atentos a tdo inevitével quanto interessante mistura, € uitas vezes hibridizagao mesmo, de géneros artisticos, midias e suportes. Em tltimo lugar recomendo uma especial alengio & questdo da autoria e da autenticidade tal como a conhecemos, formatada pelo periodo moderno. Nesse momento de samplers, remixes e pirataria criativa, é fundamental pensar a nogdo de saber compartilhado e ficar disponivel para as novas formas de autoria colaborativa que estdo surgindo ¢ que vdo sem ditvida forgar uma mudanga razoavelmente séria no nosso papel como intelectuais, artistas ¢ formuladores de politicas pablicas. E, finalmente, gostaria de passar para vocés 0 entusiasmo que estou vivendo com esse momento meio assustador, mas certamente atraente, O intelectual nao esté afinal necessariamente desempregado nesse século XXI, O que ele deve fazer para garantir sua sobrevivéncia com algum sentido e positividade é, antes de mais nada, uma bela e urgente autocritica, F, em -guida, testar novas formas de participagdo e engajamento. ipihwwrhelisebuarquedeallanda.com briteratura-mar gina 86

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